domingo, 25 de junho de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 12º DOMINGO COMUM - O MEDO E A FÉ - 25.06.2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 12º DOMINGO DO TEMPO COMUM – O MEDO E A FÉ – 25.06.2017

Caros Leitores,

Neste 12º domingo comum, o tema da liturgia abre espaço para uma abordagem da relação entre religião e política, através da exortação de Cristo: não tenhais medo daqueles que matam o corpo e nada mais podem fazer. De fato, num tempo de grande avanço do secularismo, as pessoas sentem cada vez mais dificuldades para expressarem a sua fé, temendo as censuras sob todos os aspectos, levando muitos cristãos a terem atitudes omissas, quando poderiam dar testemunho. Em alguns países, a profissão da fé cristã se transformou em grave ameaça contra a vida das pessoas, como temos visto na imprensa internacional vários casos de perseguições e mortes a cristãos em países dominados pelo islamismo radical. Já naquela época, Jesus orientava os apóstolos para que não tivessem medo e, no decorrer da história, os cristãos de todos os tempos tiveram de enfrentar verdadeiras situações de insegurança e ameaça, que não cessaram com o avanço da civilização.

Essas situações de tensão e medo por causa da expressão da fé, de fato, já existiam muito antes de Cristo. A primeira leitura, por exemplo, traz um texto do profeta Jeremias em que tal situação se manifesta. Aliás, a vida deste profeta é um verdadeiro desafio à existência humana. Ele era um intelectual, estudioso, pesquisador, escreveu vários livros. Ele assistiu à destruição de Jerusalém por Nabucodonosor, porém não foi levado cativo para a Babilônia, como muitos hebreus foram, continuou residindo no território de Judá, após esses fatos. Começou, então, a receber ameaças por parte de rebeldes políticos, que suspeitaram ter ele feito algum tipo de acordo com o inimigo de Israel e talvez por isso não fora levado cativo. O fato de Jeremias não ter sido levado como escravo, tendo sido poupado por Nabucodonosor, deixou para alguns a ideia de que ele teria sido uma espécie de traidor da pátria e por isso ele passou a ser perseguido, até por pessoas de sua própria família. Logo, ele foi chamado a profetizar quando ainda era muito jovem e isso o colocou em algumas dificuldades perante as autoridades. Por isso, logo depois, ele teve medo e foi obrigado a debandar para o Egito, por motivo de segurança pessoal e dos seus parentes. Vejam que Jeremias era uma pessoa marcada, naquele tempo, ele já sofria de bullying em Israel. Visto isso, consegue-se compreender melhor a razão pela qual os textos de Jeremias são sempre queixosos, amargurados. Basta lembrar que ele é também o autor do Livro das Lamentações.

No texto da leitura de hoje (Jr 20, 10), ele faz o seguinte desabafo: “Todos os amigos observam minhas falhas: ‘Talvez ele cometa um engano e nós poderemos apanhá-lo e desforrar-nos dele’.” Quem tem amigos assim, fica-se a imaginar como serão os inimigos. Isso mostra o quanto Jeremias era discriminado e sabia que muitos tramavam contra ele. Por isso, ele teve de sair, contra a sua vontade, para morar no Egito. Mas lá, a sua situação não melhorou. Lá, ele via o povo de Deus abandonando as tradições hebraicas e se filiando às idolatrias egípcias e não conseguia ficar calado, bradando sempre contra tudo isso e conclamando o povo a retornar à sua fé. Não via muito resultado na sua pregação, mas não desanimava. Diz ele no versículo 11: “Mas o Senhor está ao meu lado, como forte guerreiro; por isso, os que me perseguem cairão vencidos. Por não terem tido êxito, eles se cobrirão de vergonha. Eterna infâmia, que nunca se apaga!” O fim da vida de Jeremias não poderia ser outro, senão este: foi apedrejado pelos próprios hebreus da localidade egípcia onde moravam, porque estes não suportaram mais ouvi-lo o tempo todo a bradar contra a idolatria deles e a chamá-los de volta à verdadeira fé de Javeh. Jeremias enfrentou o medo e Javeh o sustentou firme na fé, até as últimas consequências.

Na segunda leitura, temos um trecho bastante conhecido e polêmico da carta de Paulo aos Romanos (5, 12-15), no qual o apóstolo faz uma comparação entre Adão e Cristo: Adão foi o primeiro homem da aliança antiga, Cristo foi o primeiro homem da nova aliança. Esse texto de Paulo acarreta grande polêmica, sendo utilizado pelos teólogos ortodoxos para rejeitar a teoria científica do evolucionismo como sendo incompatível com o cristianismo. Não me parece, contudo que seja esse o seu propósito. Paulo está ensinando sobre o pecado original. Tanto assim que, no versículo 14, ele diz: a morte reinou, desde Adão até Moisés, mesmo sobre os que não pecaram como Adão, o qual era a figura provisória daquele que devia vir. Por outras palavras, o pecado de Adão, que não tem nada a ver com a degustação da maçã, respingou sobre todos os seres humanos, recaindo até sobre os que não agiram como ele, e mesmo num tempo em que não havia lei, ou seja, antes de Moisés, essas pessoas inocentes não poderiam ser imputadas de culpa, no entanto, mesmo assim, foram atingidas pelas consequências do pecado. Somente com a chegada “daquele que devia vir”, isto é, com a vinda de Cristo, a graça de Deus lavou a mancha do pecado e, com isso, aqueles que morreram no pecado inocentemente também foram alcançados pela graça purificadora de Cristo e assim ganharam a salvação. Assim, em poucas palavras, é a doutrina teológica sobre o pecado original. Talvez, alguém esteja se perguntando: mas, afinal, qual foi mesmo o pecado de Adão, para ter essas consequências tão devastadoras? Segundo penso, o pecado de Adão, que pesou de forma estrutural sobre todos os seres humanos, foi o do orgulho e da desobediência. A serpente, representando a própria natureza imperfeita do homem, o induziu a comer do fruto proibido (que nem era o sexo nem era a maçã) com a ilusão de que esse fruto o tornaria um imortal igual a Deus, e ele acreditou. E ainda pôs a mulher no meio do caminho, como uma alusão metafórica à influência que a mulher tradicionalmente exerce sobre o homem. E assim os primeiros pais cometeram dois pecados em uma só atitude: o orgulho de quererem ser iguais a Deus e a desobediência da ordem divina. O resultado, todos conhecemos: eles nem ficaram tão sabidos quando o Criador e ainda ficaram se escondendo, porque descobriram a nudez da sua fragilidade e da sua ignorância. Assim se decodifica, em rápidos traços, a metáfora bíblica do paraíso terrestre, lugar considerado meramente simbólico e fisicamente inexistente pela grande maioria dos teólogos contemporâneos. E o mais interessante de tudo é que, estudando as culturas de outros povos orientais daquele tempo, percebeu-se que em outras regiões também havia histórias semelhantes a essa do paraíso, sem nenhuma relação com a tradição hebraica. Quem tiver interesse sobre esse tema, sugiro que faça pesquisa na internet sobre Gilgamesh.

No evangelho de Mateus (Mt 10, 26-33), Jesus faz um discurso de cunho psicológico, explicando para os seus apóstolos que o medo é uma atitude humana natural, contudo, quando se trata de professar a fé, eles não devem ter medo, embora isso possa representar para eles uma ameaça. “Não tenhais medo daqueles que matam o corpo, mas não podem matar a alma! Pelo contrário, temei aquele que pode destruir a alma e o corpo no inferno!” (10, 28). Jesus estava ali preparando psicologicamente o seu grupo para o enfrentamento das perseguições e das dificuldades pelas quais teriam de passar. E vejamos que não foram poucas. De todos os doze apóstolos, apenas João não morreu martirizado. E os seguidores de Cristo, tanto no território grego quanto no império romano, experimentaram as mais variadas e cruéis perseguições. O próprio Paulo, inicialmente, era um desses perseguidores. Por isso, a exortação de Cristo não era vã e nem meramente retórica, ele já antevia as grandes dificuldades que perpassariam o caminho dos seus discípulos. E a promessa que ele fazia não podia ser mais estimulante: “todo aquele que se declarar a meu favor diante dos homens, também eu me declararei em favor dele diante do meu Pai que está nos céus.” (10, 32) Nas diversas provações pelas quais passaram os cristãos, ao longo do tempo, foi isso que se verificou e continua a se verificar nos testemunhos dos cristãos perseguidos de hoje.

Meus amigos, é esse o nosso desafio de ser cristãos nos dias atuais. Felizmente, nós vivemos num país onde não sofremos ameaças nem somos hostilizados pela nossa manifestação de fé, ao contrário, a nossa cultura foi construída com base nos valores cristãos e o ambiente social favorece a prática da religião. Então, para nós não é um grande desafio professar, com nosso exemplo e nossas atitudes, que somos discípulos de Cristo. No entanto, há pessoas que se sentem incomodadas, envergonhadas de expressar a sua fé num mundo cada vez mais secularizado. Continua, portanto, totalmente válida a exortação de Cristo: não tenhais medo, deem testemunho de mim, que eu darei testemunho de vocês.

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domingo, 18 de junho de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 11º DOMINGO COMUM - A NAÇÃO SANTA - 18.06.2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 11º DOMINGO COMUM – A NAÇÃO SANTA – 18.06.2017

Caros Leitores,

Terminado o tempo pascal, o ciclo litúrgico retoma o seu planejamento catequético, com as leituras deste 11º domingo comum, que nos propõem para reflexão o tema dos “escolhidos” por Deus. Na leitura do Êxodo (cap. 19), Javeh diz a Moisés que escolheu aquele povo de Israel para ser um reino de sacerdotes e uma nação santa. No evangelho, Mateus destaca nominalmente os doze apóstolos, a quem Jesus irá confiar a tarefa de serem continuadores da sua missão. O conceito dos escolhidos de Deus, no mundo de hoje, se direciona para a sua Igreja, que somos nós, seguidores de Cristo, um único “povo”, apesar de distribuído em diversas denominações eclesiásticas. A proposta de Jesus, no sentido de que “todos sejam um”, ainda se encontra em fase de construção, pois a unidade dos seus discípulos ainda não foi alcançada. E nós somos responsáveis por esse compromisso, através da nossa adesão batismal.

Na primeira leitura litúrgica, temos um trecho do livro do Êxodo (cap. 19), aquele que antecede a narração da entrega das tábuas da lei a Moisés. Depois de três meses de caminhada pelo deserto, o povo acampa ao pé do monte Sinai. Moisés sobe o monte, atendendo ao chamado de Javeh, que manda um recado para o povo: “se ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança, sereis para mim a porção escolhida dentre todos os povos” (Ex 19, 5). Em seguida, Javeh manda Moisés convidar todo o povo para uma “reunião” com Ele no dia seguinte, que aparece ao povo no meio de uma fumaça espessa, como se todo o monte Sinai estivesse em chamas. No capítulo seguinte, tem-se a narração dos dez mandamentos, os quais sintetizam as exigências de Javeh, para que a nação de Israel seja para sempre a sua nação santa e o seu povo eleito.

Um fato curioso, nesse contexto, é que atualmente não se sabe com certeza onde fica o monte Sinai. Mesmo tendo sido esse local o palco da confirmação da aliança de Javeh com os descendentes de Abraão, o lugar geográfico do monte onde se deu esse encontro de Javeh com Moisés e com o povo é motivo de dúvidas e discussões entre os biblistas. Há três locais prováveis, de acordo com os estudiosos da Terra Santa: 1. segundo a tradição mais antiga, identifica-se o local como Jebel Mussa ("a Montanha de Moisés"), localizada entre as Montanhas de Granito ao sul da Península do Sinai, tendo sido esse o provável caminho seguido pelos hebreus quando fugiam do Faraó, além de ser uma rota utilizada desde antigamente pelos comerciantes de pedras preciosas vendidas na região do Nilo; 2. a segunda opção é o Monte Karkom, localizado ao sul de Israel, muito próximo da fronteira egípcia, montanha que fica num local sagrado importante durante milênios, está coberta com milhares de escrituras antigas e arte em pedra, que pode a datar até o ano 4000 a.C; 3. a terceira opção é o monte Jebel el-Lawz, na Arábia Saudita, que fica numa região conhecida como Midian, na época bíblica. Os defensores desta teoria apontam o fato de que Moisés estava nesta região, porque tinha consultado com seu sogro Jetro, um sacerdote Midianita, antes de subir o Monte Sinai (Ex. 18:1). O dilema permanece insolúvel e talvez nunca seja esclarecido, porque Moisés subiu sozinho ao monte, mas isso não é realmente importante, porque mais significativo do que o local físico, é o legado de fé e tradição que dali se iniciou.

No evangelho de Mateus, lido neste domingo (Mt 9, 36), Jesus expressa compaixão por aquela multidão de pessoas que o seguem, percebendo-as cansadas e abatidas “como ovelhas sem pastor”, Então, Jesus exorta os apóstolos a serem guias desse povo, conferindo-lhes diversos dons para serem usados em benefício deles (curar doenças, expulsar espíritos maus, ressuscitar mortos…), dons que se perpetuam no poder da hierarquia da sua Igreja. O que se lamenta é que essas palavras de Jesus sejam ainda hoje interpretadas em sua literalidade e muitas pessoas esperam encontrar nos cultos religiosos a solução de seus males físicos e psicológicos, como se a oração fosse uma fábrica de milagres. Obviamente, os milagres existem e muitos são os testemunhos deles, no entanto, o milagre se opera pela fé, não basta dizer “Senhor, Senhor”. É decepcionante observar-se como os cultos religiosos têm-se tornado espetáculos de ilusionismo religioso, sobretudo nas assim chamadas “igrejas eletrônicas”, que aproveitam para promoverem a venda de “unções”, de objetos abençoados, além de apresentarem simulações de atos miraculosos, que seduzem pessoas crédulas, mas desinformadas. Não foi esse, certamente, o objetivo pretendido por Jesus Cristo. Ainda vigora a exortação de Javeh ao sopé do Sinai: se ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança, sereis um reino de sacerdotes e uma nação santa. Após mais de três mil anos desses fatos, fica parecendo que esse objetivo ainda não foi alcançado.

Continuando a leitura do trecho do evangelho de Mateus, chega-se a um conjunto de frases ditas por Jesus, que suscitam confusão na mente do leitor. Depois de denominar os doze apóstolos, o evangelista põe na boca de Jesus algumas orientações desconcertantes (Mt 10, 5-7): “'Não deveis ir aonde moram os pagãos, nem entrar nas cidades dos samaritanos! Ide, antes, às ovelhas perdidas da casa de Israel!'”. Que significa “não ir aonde moram os pagãos”? Pois não são eles, os pagãos, que devem receber o anúncio da mensagem cristã para se converterem e crerem no evangelho? Que significa “não entrar nas cidades dos samaritanos”? Samaritanos e judeus não fazem parte do povo da aliança, aqueles que atravessaram o deserto sob o comando de Moisés? De acordo com a ótica de Mateus, a pregação deve ser dirigida, preferencialmente, “as ovelhas perdidas da casa de Israel”, isto é, aos outros judeus, àqueles judeus que não aceitaram Jesus nem creram na sua mensagem. Percebe-se aí que a preocupação do evangelista Mateus é com a conversão dos judeus, daqueles mesmos que crucificaram Jesus, pois para eles a pregação de Cristo foi dirigida em primeiro lugar. Esse fato pode ser melhor compreendido se considerarmos que o texto original do evangelho de Mateus foi escrito em aramaico e só depois traduzido para o grego, enquanto os demais evangelhos foram escritos originalmente em grego. A tradução portuguesa usa o vocáculo “pagãos”, mas no texto latino a palavra é “gentium”, isto é, os gentios, os povos não judeus, na prática, os gregos, que eram a maioria na região do Mediterrâneo. E se percebe também o ranço de xenofobia do autor em relação aos Samaritanos, por causa das dissensões entre os reinos do norte (Israel - capital Samaria) e do sul (Judá - capital Jerusalém), quando os filhos de Salomão, após a morte deste, brigaram e o reino foi dividido em duas partes. Jesus bem que tentou promover a união dessas facções, o que está bem claro no episódio da Samaritana, mas a desavença persistia e o escritor do texto evangélico demonstra isso. Fato notório é que essas “recomendações” só constam no texto de Mateus, não havendo referência a isso nos outros evangelistas.

A carta de Paulo aos Romanos, de certo modo, contradiz o texto de Mateus, pois romanos e gregos eram exatamente os “gentios” aonde os apóstolos não deveriam ir. Diz Paulo (Rm 5, 8): “a prova de que Deus nos ama é que Cristo morreu por nós, quando éramos ainda pecadores”. Se tivesse prevalecido a ideia de Mateus, a mensagem de Cristo não teria chegado aos gentios e nem a nós. E complementa Paulo (Rm 5, 10): “Quando éramos inimigos de Deus, fomos reconciliados com ele pela morte do seu Filho”. Por outras palavras, Paulo está nos dizendo que o conceito da “nação santa” não se aplica exclusivamente àquele povo que, originalmente, recebeu a pregação de Cristo (e nem acreditou nele), mas inclui também a nós, os gentios, isto é, aqueles que não ouviram Jesus Cristo falar, no entanto, acreditaram sem ter visto. E agora, já estando reconciliados, seremos salvos por seus méritos.

Caros amigos, a construção da “nação santa”, do único povo de Deus, da unidade de todos os cristãos e, mais ainda, da união de todos os crentes monoteístas continua sendo o grande desafio do ecumenismo, que a Igreja vem defendendo, e que nem sempre é bem compreendido. Talvez por isso, o projeto de Javé da “nação santa”, mesmo contando com o sacrifício de Cristo, ainda não se concretizou.

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domingo, 11 de junho de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - DOMINGO DA SANTÍSSIMA TRINDADE - 11.06.2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO – DOMINGO DA SANTÍSSIMA TRINDADE – IMENSA E UNA - 11.06.2017

Caros Leitores,

Neste domingo após Pentecostes, a liturgia celebra a festa da Santíssima Trindade, imensa e una, como diz o cântico litúrgico. A imagem do Deus Uno e Trino é o maior mistério que Jesus revelou na sua pregação, algo que os apóstolos só entenderam após o Pentecostes, e essa verdade é o centro da fé cristã. Nenhuma outra religião tem a fé fundamentada em um Deus que é uno e conforma-se em três pessoas. Alguns estudiosos tentam relacionar a Trindade cristã com tríades de divindades egípcias ou indianas, mas a comparação não se aplica, porque a Trindade cristã é também una e as demais não são. No Antigo Testamento, o povo hebreu conhecia apenas o Deus da aliança, o todo poderoso mas também o terrível. A revelação divina no A.T. foi, então, apenas parcial. Somente a encarnação de Cristo trouxe a imagem completa do Deus da aliança, de modo que por Ele foi celebrada uma Nova Aliança, agora com o Deus Unidade e Trindade. Esse é o significado do Novo Testamento.

Na primeira leitura, retirada do livro do Êxodo (Ex 34, 4-9), lemos o diálogo de Moisés com Javé, logo após haver recebido as tábuas da lei. Moisés descia do monte com as tábuas na mão e pediu clemência a Javé por aquele povo, pois ele já sabia que seria difícil a missão dele como líder, que devia levar todos ao cumprimento daquela lei. Conhecendo as suas tribos, Moisés ficou preocupado e foi logo pedindo a Javé: tem paciência com esse povo, que é um povo de cabeça dura, e perdoa-lhes os pecados, acolhe-os como Teu povo. É exatamente essa a imagem de Javé que predomina no Antigo Testamento: um Deus exigente, irascível, que aplica grandes castigos por causa das atitudes contrárias à lei, mas, ao mesmo tempo, misericordioso e sempre pronto a perdoar. Era essa a figura de Deus desenhada na mente do povo hebreu e que Jesus veio desfazer, quando ensinou que Deus é amor. Era muito difícil para aqueles hebreus moldarem uma nova compreensão do Deus da aliança, esse foi o grande esforço pedagógico de Jesus, tanto no grupo dos apóstolos quanto nas discussões com os fariseus. Além de ser a mais verdadeira expressão da bondade e da misericórdia, esse Deus ainda é múltiplo, sem deixar de ser um. Convenhamos, foi exigida dos hebreus uma mudança tão radical de pensamento acerca de Javé que eles não conseguiram aceitar nem compreender. E no meio dessa dúvida, terminaram por condenar à morte Aquele que veio trazer a notícia.

A figura de Deus como personalidade una e trina foi, de fato, a grande novidade trazida pela revelação de Cristo. São João, no prólogo do seu evangelho, foi quem melhor sintetizou a doutrina da Trindade: no princípio, o Verbo estava em Deus e o Verbo era Deus. Depois, o Verbo se fez gente e todos nós o vimos. João Batista viu o Espírito descer do céu e repousar sobre ele. E por ele recebemos a plenitude da graça. Esse é o grande mistério. Quando nós falamos em mistério da nossa fé, no sentido etimológico grego, estamos dizendo algumas verdades desconhecidas, algumas informações que antes estavam escondidas, mas que nos foram trazidas por Cristo; isto é o que também chamamos de revelação. Portanto, mistério e revelação são conceitos equivalentes.

As discussões e as tentativas de compreensão sobre a informação trazida por Cristo acerca da Trindade causaram muita celeuma nas primeiras comunidades cristãs, tendo sido objeto de diversas doutrinas, algumas delas consideradas heréticas, porque não admitiam a mesma natureza do Pai ao Filho e ao Espírito Santo. Dessas doutrinas, as mais famosas e que tiveram mais adeptos foram o arianismo e o monofisismo. O arianismo, defendida por um bispo de nome Ario, ensinava que Cristo é filho de Deus, mas não é igual a ele, seria uma espécie de semideus. O monofisismo ensinava que Cristo tinha apenas uma natureza, a divina, e a sua humanidade era apenas aparente. Algo como se fosse um fantasma divino visível. Essas doutrinas contraditórias foram discutidas e, por fim, definidas nos Concílios de Nicéia (325) e Constantinopla (381), quando foi composto o “symbolo”, isto é, o resumo doutrinário que nós chamamos de “credo” e o rezamos na missa. Tanto o arianismo quanto o monofisismo foram rejeitados e foi confirmada a doutrina das duas naturezas (divina e humana) em Jesus Cristo e também foi confirmada a doutrina de Maria como mãe de Deus e não apenas mãe do filho humano de Deus. O Concilio de Nicéia está próximo de completar 1.700 anos.

A segunda leitura, extraída da carta de Paulo aos Coríntios (2Cor 13, 11-13), traz apenas três curtos versículos, cuja finalidade é muito mais demonstrar como o apóstolo Paulo, logo nos primeiros tempos do cristianismo, ensinava a doutrina da Trindade. “A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos vós ” (2Cor 13, 13) Esta antífona é rezada no início das missas. Em todas as suas cartas, Paulo faz questão de sempre aludir às três pessoas divinas, pois estas são o ponto central da nossa fé. A partir das lições de Paulo, as orações e invocações litúrgicas passaram a adotar sempre a referência à Trindade e sempre terminam com a invocação clássica: por Jesus Cristo, que com o Pai e o Espírito Santo vive e reina para sempre. A demonstração de que a Trindade está no centro da vida cristã se verifica pela frequência com que a invocamos em todas as orações e ações. É comum as pessoas sempre iniciarem ou concluírem uma atividade com o sinal da cruz, que não é outra coisa senão uma invocação da Trindade.

É interessante examinar o cuidado linguístico que os teólogos redatores do Credo tiveram ao compor o resumo simbólico das verdades da fé: o Filho é gerado, não é criado. Gramaticalmente, as duas palavras até são sinônimas, mas no linguajar teológico, faz-se a diferença para explicar que o mundo, as pessoas, as coisas em geral foram criadas por Deus, mas o Filho foi gerado. Esta diferença conceitual significa que o Filho tem a mesma natureza do Pai, porque foi por ele gerado, enquanto as coisas do mundo não têm a mesma natureza do Criador. Em relação ao Espírito Santo, o Concílio de Constantinopla definiu que o Espírito procede do Pai e do Filho. Não utiliza nem o verbo gerar nem criar. O Espírito Santo origina-se de uma relação de amor entre o Pai e o Filho. Teologicamente, afirma-se que o Filho é o Verbo (a palavra) do Pai que, de tão poderosa, torna-se outra pessoa divina. Assim se explica teologicamente este grande mistério, que a nossa racionalidade não consegue entender. Na Idade Média, Santo Tomás de Aquino foi socorrer-se das categorias de Aristóteles não para explicar a verdade trinitária, porque esta não comporta nas cavidades do intelecto humano, mas para justificar, perante os adversários do cristianismo que, embora não sendo racional esse conceito, por outro lado, não encerra uma contradição e, por isso, não é contrário à razão. O fato de ser incompreensível não é porque contenha algo impossível de existir, mas apenas porque as limitações da nossa capacidade racional nos impedem de entender. Daí ser necessária a fé, que complementa a razão. Todos se lembram daquele famoso poema de Sto Tomás, do qual se cantam duas estrofes quando tem a bênção do Santíssimo Sacramento. Sto Tomás escreveu exatamente isso que eu repeti acima: a fé vem em socorro da racionalidade. Vou escrever em latim, para ficar mais original: Tantum ergo sacramentum veneremur cernui. Et antiquum documentum novo cedat ritui, praestet fides suplementum sensuum defectui. Traduzindo a última frase: que a fé forneça um suplemento para a falha dos sentidos, isto é, que a fé ajude a completar aquilo que os sentidos sozinhos não conseguem perceber.

O trecho do evangelho de hoje (Jo 3, 16-68) não me pareceu bem escolhido para a festa da Santíssima Trindade, porque fala apenas do Pai e do Filho, não faz uma referência ao Espírito Santo. Há outros trechos mais significativos, que fazem referência às três pessoas divinas. Neste, apenas de forma indireta, quando João alude ao Espírito, ao afirmar que “Deus amou tanto o mundo que mandou seu Filho unigênito...” (Jo 3, 16). Podemos entender que esse Amor sem medida é a pessoa do Espírito divino, como concluiu o Concílio de Constantinopla ao compor a redação final do Credo: o Espírito é fruto de uma relação de amor entre o Pai e o Filho, então, o amor do Pai para com o mundo, ao ponto de enviar o seu próprio Filho, é também uma afirmação indireta da pessoa do Espírito Santo.

Meditemos sobre essa verdade imensa e una, que é de fato o elemento central da nossa fé cristã. Se tivermos sempre presente na mente essa verdade, as nossas atitudes cristãs terão muito mais sentido.

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domingo, 4 de junho de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - DOMINGO DE PENTECOSTES - SETE SEMANAS - 04.06.2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO – DOMINGO DE PENTECOSTES – 04.06.2017 – SETE SEMANAS

Caros Leitores,

Celebramos, no domingo de Pentecostes, uma festa que, no tempo de Cristo, era já celebrada pelos judeus, comemorando o recebimento da Lei (Torá), dada por Javé a Moisés. A “festa das semanas” (shavuot) dos judeus, assim chamada porque acontecia sete semanas após a Páscoa, foi traduzida para o grego com o nome de Pentecostes. A comunidade cristã primitiva associou essa festa com a vinda do Paráclito, que confirmou as promessas de Cristo aos apóstolos, e isso marca o início oficial da comunidade eclesial, formada pelas pessoas de boa vontade, que acreditam em Jesus e se responsabilizam por levar adiante os seus ensinamentos. A celebração de Pentecostes marca assim o evento inaugural oficial da Igreja de Cristo. Aproveitando a presença de muitos peregrinos em Jerusalém, para essa festa tradicional, Pedro fez aquela memorável, narrada por Lucas nos Atos dos Apóstolos (2, 2), em que a ação miraculosa do Espírito se manifestou, através do dom das línguas. Pedro, que era um pescador semianalfabeto, proferiu uma espécie de aula magna para numerosos ouvintes representando os povos de diversas nações, que se encontravam em Jerusalém, e eles ouviram aquela pregação, cada um, no seu próprio idioma, funcionando a eloquência do Espírito como um tradutor instantâneo. O escritor de Atos, o evangelista Lucas, com o detalhismo que lhe é peculiar, teve o cuidado de enumerar as nacionalidades dos presentes, conforme consta em Atos 2,9: “partos, medos e elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Judeia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia,da Frígia e da Panfília, do Egito e da parte da Líbia próxima de Cirene, também romanos que aqui residem; judeus e prosélitos, cretenses e árabes”, em resumo, habitantes de todos as nações que tinham algum contato com os romanos, que na época eram quase todas as regiões conhecidas. Excetuando o extremo oriente (China, Índia, Japão, Mongólia, que eram conhecidas mas não negociavam com os romanos) e as américas (que não eram ainda conhecidas), Lucas faz questão de declarar que todas as nações do mundo estavam presentes naquela ocasião e ouviram a pregação de Pedro.

A vinda do Espírito cumpriu a principal promessa de Jesus, quando enviou os discípulos a pregarem pelo mundo o seu evangelho, qual seja: estarei convosco até o fim do mundo. Desse modo, embora a liturgia celebre a festa de Pentecostes apenas em um domingo do ano, devemos estar cientes de que a vinda do Espírito não foi um fenômeno que aconteceu naquele dia, mas que continua a ocorrer todos os dias, em todas as comunidades cristãs, falando coletivamente, e em cada cristão, falando subjetivamente. Pelo sacramento da crisma, cada cristão celebra o seu Pentecostes particular, recebendo o Espírito já não mais em forma de língua de fogo, mas nem por isso de um modo menos abrasador. Pelo batismo, nós ingressamos na comunidade dos cristãos, mas é pela crisma que nos habilitamos verdadeiramente para o exercício do envio à missão, da mesma forma como aconteceu com os apóstolos, naquele dia de Pentecostes. São Paulo, na epístola aos Coríntios (1Cor 12, 4) diz que há diversidade de dons, mas um mesmo é o Espírito. Então, a missão de cada um dentro da Igreja pode ser diferente, mas nos anima e nos une o mesmo Espírito. Os cristãos ordenados, os clérigos, têm a missão de testemunhar Cristo e de anunciá-lo a todos, pregando a palavra e presidindo os trabalhos, seguindo na frente (esse é o sentido original do verbo latino praesum=presidir=ir na frente). Os cristãos não ordenados, os leigos, têm a missão de testemunhar Cristo e anunciá-lo a todos com o seu exemplo, com as suas obras e atitudes.

Ainda na carta a Coríntios acima citada (1Cor 12,12), Paulo explica e exemplifica essa diversidade de dons, de carismas, de tarefas, através do pedagógico exemplo do corpo: “Como o corpo é um, embora tenha muitos membros, e como todos os membros do corpo, embora sejam muitos, formam um só corpo, assim também acontece com Cristo.” É a conhecida doutrina teológica do “corpo místico de Cristo”, da qual já ouvimos falar tantas vezes, mas é sempre necessário recordá-la, para que nos conscientizemos da função que cada um de nós deve assumir nesse contexto. Não é necessário fazer nenhum esforço extremo, basta deixar agir o Espírito que está em cada um de nós, basta ouvir a voz da nossa consciência, que nos transmite a mensagem vinda do Espírito. Todos sabemos que o exemplo vale mais do que as palavras. Então, o nosso maior testemunho será viver o dia a dia como autênticos cristãos. Há certas pessoas, sobretudo entre algumas denominações cristãs não católicas, que interpretam de forma literal o mandato de Cristo (ide e pregai a todas as criaturas) e nós os vemos, às vezes, em praças e locais públicos com a Bíblia na mão e um equipamento de amplificação de som a fazerem pregações, que em vez de atrairem as pessoas, causam o efeito oposto nelas. Houve um desses pregadores que chegava numa praça de Fortaleza todos os domingos bem cedo da manhã e começava a sua leitura e pregação ali sozinho, sem ninguém a ouvi-lo, num momento em que a praça estava vazia. O seu discurso, ainda que bem intencionado, incomodava os moradores das residências próximas, os quais chamaram a polícia acusando-o de perturbar o silêncio. Ou seja, as suas palavras tiveram nenhum resultado. Por isso, repito que mais do que falar, discursar ou discutir religião com as pessoas, o nosso maior testemunho será com o bom exemplo silencioso, coerente, convicto, esse produz muito mais efeito do que palavras bíblicas ao vento, levadas por aparelhos sonoros.

A festa de Pentecostes deve ser também a festa da unidade dos cristãos ou, mais do que isso, a unidade de todos os povos. Foi o grande desafio lançado por Cristo aos apóstolos: ide e pregai a todos os povos, para que se tornem um só rebanho. Esta profecia de Cristo continua sendo o maior desafio a ser enfrentado e vencido por todos os lideres religiosos, principalmente aqueles que comandam as religiões monoteistas. Há algumas semanas, o Papa encontrou-se com os líderes do judaísmo e do islamismo e os conclamou, mais uma vez, para, juntos, realizarem ações direcionadas para a união dos seus liderados. Ontem, na vigília de Pentecostes, o Papa presidiu uma solenidade no Circus Máximus, em Roma (aquele local onde, no passado, se realizavam as famosas corridas de bigas) e, perante dezenas de milhares de pessoas, rezou por uma “diversidade reconciliada” entre os cristãos, que devem trabalhar em favor da “unidade para a missão”. O Papa pediu que os cristãos vivam “unidos pelo Espírito Santo” na oração e na ajuda “aos mais pobres”, “todos, todos, todos”, ou seja, sem distinção de rótulos ou designações de grupos religiosos. Lamentavelmente, nem todos os cristãos (católicos e não católicos) conseguem compreender a importância desse apelo e, até dentro da própria Cúria Romana, há radicais que menosprezam esses esforços do Papa. O mesmo se pode dizer de alguns grupos autodenominados carismáticos, dentro da Igreja Católica, que se consideram, muitas vezes, mais autênticos do que o próprio Papa. Este lembrou ainda os cristãos que, em diversos países do mundo (sobretudo nos países islâmicos), são perseguidos e assassinados somente pelo fato de serem cristãos, comparando-os aos mártires de outrora.

Meus amigos, nesta festa de Pentecostes, devemos pedir ao Espírito que ilumine e fortaleça o Papa, nessa sua busca tenaz e obstinada por construir uma nova Igreja. O Papa Francisco está seriamente imbuído do mesmo espírito do Seráfico Patriarca de Assis, na tentativa de reconstruir a Igreja, mantendo-se fiel a ela. É do que nós cristãos mais precisamos, nesses tempos conturbados e temerários. O Papa está empenhado em conduzir de volta a Igreja de Cristo para o seu verdadeiro objetivo, que é transformar todos povos no único rebanho de Cristo, contudo algumas pessoas que ocupam elevados cargos na hierarquia estão mais preocupados com as tradições e com os protocolos, estão mais receosos de perderem seus gordos salários e seus exclusivos privilégios, por isso não querem que o Papa mexa em nada, deixe tudo como está e apenas se mantenha seguindo a burocracia, de olho no Direito Canônico e se autoproclamando como único dono da verdade. Que o Espírito ilumine esses corações empedernidos.

Para mim, não resta dúvida de que o Papa está visivelmente sendo conduzido pelo Espírito Santo, nessa sua tarefa de redesenhar a identidade da Igreja Católica e é realmente dele, mais do que de todos os outros Bispos e Sacerdotes, a responsabilidade por bem conduzir essa missão. Ninguém atualmente duvida que o Papa tem um grande carisma e é isso que o move. Apenas para lembrar que kharisma, em grego, é um substantivo derivado do verbo khairôw, que significa estar alegre, ter motivo de alegria; kharisma é, portanto, obséquio, dom, marca de felicidade. Penso que a palavra carisma, no seu significado original, traduz perfeitamente a personalidade do Papa e o credencia para a realização dessa árdua e difícil tarefa a que ele se propôs. Com toda certeza, ele não está sozinho nessa empreitada, mas o Espírito está com ele e as orações de todos nós, verdadeiros cristãos, são essenciais para o bom êxito das suas ações.

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