sábado, 28 de maio de 2022

COMENTÁRIO LITÚRGICO - FESTA DA ASCENSÃO DO SENHOR - 29.05.2022

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – DOMINGO DA ASCENSÃO DO SENHOR – 29.05.2022


Caros Confrades,


Celebramos neste domingo a festa da Ascensão do Senhor. Aqueles homens da galileia, mesmo após todo o curso intensivo de três anos e o posterior reforço de 40 dias de catequese, que Jesus fizera com eles, naquele momento final, ainda estavam a perguntar ao mestre: é agora que vais restaurar o reino de Israel? Parece que não haviam entendido muita coisa dos ensinamentos de Jesus. Ainda persistia em suas mentes aquele conceito judaico tradicional do Messias como um rei e guerreiro. O mais curioso é observar como ainda hoje vemos alguns cristãos fazendo perguntas semelhantes, porque não conseguem entender o significado mais profundo da mensagem de Cristo.


Na primeira leitura, retirada dos Atos dos Apóstolos (At 1, 1-11), o escritor sagrado narra a subida de Jesus ao céu, após despedir-se dos apóstolos. Coincidentemente, a leitura do evangelho de hoje é retirada do mesmo escritor dos Atos, o médico São Lucas e, se observarmos com atenção os dois textos, veremos que ele comete uma pequena incoerência acerca dos detalhes que cercam a ascensão de Jesus. Em At 1, 4 e 1, 9, ele escreveu: “Durante uma refeição, deu-lhes esta ordem: 'Não vos afasteis de Jerusalém … Depois de dizer isto, Jesus foi levado ao céu, à vista deles.” Lucas gosta muito de falar nos detalhes das cenas que descreve, mas desta vez ele (parece) se esqueceu do que havia escrito no evangelho, que é anterior (Lc 24, 50-51): “Então Jesus levou-os para fora, até perto de Betânia. Ali ergueu as mãos e abençoou-os. Enquanto os abençoava, afastou-se deles e foi levado para o céu.” Se fossem escritos de diferentes autorias, esta inconsistência da narrativa seria fácil de explicar, mas visto que são textos do mesmo autor, fica difícil ser compreendida. No entanto, isso importa apenas por uma questão de análise textual, pois na verdade, não altera o conteúdo da mensagem: Ele subiu ao céu depois de passar mais um tempo (40 dias) após a sua morte reforçando a catequese com os seus discípulos, para que eles entendessem melhor a doutrina que iriam pregar.


Aliás, os textos dos evangelhos se prestam mesmo a múltiplas interpretações. Nesse texto, os seguidores do espiritismo interpretam essa narração dos Atos para robustecer a sua tese de que, após a morte, o “espírito” não vai logo para a sua morada eterna, mas ainda passa algum tempo (tempos diferentes, de acordo com as necessidades de cada um) numa situação intermediária, em que já não tem mais corpo material, mas ainda não chegou ao nivel espiritual mais elevado. Por isso, algumas pessoas mais sensitivas são capazes de “ver os espíritos” dos mortos, porque eles ainda estão na situação vacante, ainda não fizeram a viagem definitiva até o outro mundo. Teoricamente, isso significaria que a “missão” daquela pessoa ainda não terminou, assim como a missão de Cristo não teria terminado e por isso a necessidade ficar aparecendo e ensinando aos apóstolos. Na minha opinião, trata-se de uma simples acomodação do texto a uma posição doutrinária diversa da oficial, algo que deve ser uma mera coincidência literária. Eu não creio que cada pessoa tenha uma “missão fechada”, que deva ser sempre obrigatoriamente terminada, sob pena de não poder o ser humano desvincular-se completamente do mundo terreno enquanto não a concluir. Essas teorias reencarnacionistas são muito antigas, anteriores ao cristianismo e, provavelmente, Cristo as conhecesse. Entre os gregos, havia defensores dessa doutrina, como os pitagóricos e os órficos, embora Aristóteles a rejeitasse. Porém, Cristo nunca se referiu a essa possibilidade nos seus ensinamentos e nem existe referência a isso nas cartas de Paulo, que era o mais entendido de cultura grega dentre os escritores sagrados. Penso que a missão de Cristo era única e o seu exemplo não pode servir de modelo para algo que ele nunca ensinou.


Ainda outro fato que está associado à festa da Ascensão diz respeito a um trecho conclusivo do escritor sagrado Lucas, quando ele escreveu (At 1, 11): “Apareceram então dois homens vestidos de branco, que lhes disseram: 'Homens da Galiléia, por que ficais aqui, parados, olhando para o céu? Esse Jesus que vos foi levado para o céu, virá do mesmo modo como o vistes partir para o céu.” Entra em ação, outra vez, o detalhismo de Lucas, percebam: dois homens vestidos de branco. Ele nem diz que são dois anjos, mas por terem saído das nuvens e estarem trajando branco, a tradição entendeu sempre que são dois anjos. Mas o que eu quero chamar a atenção também é para o outro detalhe: “Ele virá do mesmo modo como o vistes subir.” Por causa deste detalhe, muitos pintores da arte sacra têm mostrado Jesus, com um semblante resplandescente, descendo do céu para julgar a humanidade, no final dos tempos. Contudo, de acordo com as interpretações mais recentes dos biblistas, essa descrição deve ser entendida metaforicamente, não do modo restrito como está escrito. Esta descrição corresponde ao modo como os primeiros cristãos entendiam a mensagem de Jesus, quando Ele disse que retornaria para julgar a todos. Por causa dessa compreensão do fato e por causa dessa descrição de Lucas, muitos cristãos dos primeiros tempos viviam na expectativa de ver Jesus voltando já naquela época. São Paulo até adverte os cristãos de Tessalônica (II Tes 2, 1-12) para que ninguém queira adivinhar o dia em que o Senhor voltará. Isso porque alguns cristãos primitivos, achando que Jesus estava quase para vir, deixaram até seus trabalhos e ficavam o dia todo ociosos só esperando a volta de Jesus. Havia, dentre alguns, esse entendimento de que Ele estava para retornar em breve e muito provavelmente o evangelista Lucas transferiu essa ideia para o seu texto. A interpretação em que eu acredito é de que cada fiel vai encontrar-se com o Julgador por ocasião da sua passagem do nível material para o espiritual, não havendo um determinado dia, no qual todos os vivos e mortos fariam tal apresentação. Apesar disso, a forma tradicional de interpretar essa passagem de Lucas (como um dia determinado para todos) ainda é amplamente majoritária, sobretudo nas congregações não católicas.


Sob o aspecto do calendário, o dia oficial da festa da Ascensão do Senhor é na quinta feira passada, quando se completam os quarenta dias após a Páscoa. Mas, por motivo do acordo do governo do Brasil com a Santa Sé, para evitar os feriados religiosos no meio da semana, a comemoração dessa festa litúrgica sempre é transferida para o domingo seguinte. Segundo a tradição, os apóstolos voltaram a reunir-se no mesmo prédio onde haviam celebrado a última Ceia, prédio este que, segundo a tradição do catolicismo oriental, era uma casa pertencente à mãe do evangelista Marcos, hoje transformada em um grande templo.


Pois bem, a festa da Ascensão do Senhor prepara a festa de Pentecostes, que será celebrada no próximo domingo. Ao se despedir dos discípulos, Jesus pediu que eles não se afastassem de Jerusalém, para que recebessem a “visita” do enviado especial do Pai, o Paráclito, que iria confirmar tudo e abrir-lhes as mentes para o seu correto entendimento. A segunda leitura, de Paulo aos Efésios, contém uma invocação do Apóstolos aos fiéis daquele tempo, que pode muito bem ser aplicada a nós, nesse momento, sem quaisquer adaptações do texto (Ef 1, 18-19): Que ele [o Espírito] abra o vosso coração à sua luz, para que saibais qual a esperança que o seu chamamento vos dá, qual a riqueza da glória que está na vossa herança com os santos, e que imenso poder ele exerceu em favor de nós que cremos, de acordo com a sua ação e força onipotente. O mesmo Espírito que veio confirmar e esclarecer os ensinamentos de Cristo aos apóstolos deve continuar a sua atuação no nosso meio, para que possamos exercitar a amizade e a fraternidade através dos recursos técnicos que temos à nossa disposição. Preparemos, portanto, o nosso espírito para a solenidade de Pentecostes, evento litúrgico que encerra oficialmente o tempo pascal, dando início ao tempo comum da liturgia.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 21 de maio de 2022

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 6º DOMINGO DA PÁSCOA - 22.05.2022

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 6º DOMINGO DA PÁSCOA – PRIMEIRO CONCÍLIO – 22.05.2022


Caros Confrades,


Nas leituras deste 6º domingo da Páscoa, Jesus começa a se despedir dos seus apóstolos, pois terminou a sua missão e chegou a hora de retornar ao Pai. Então, ele diz: eu rogarei e o Pai enviará outro Paráclito, que permanecerá convosco para sempre. Constata-se aqui, mais uma vez, Jesus revelando a Trindade Santa aos apóstolos. Merece também uma referência, na leitura dos Atos dos Apóstolos, ao primeiro Concílio da Igreja, realizado em Jerusalém, onde foi discutida uma das primeiras questões doutrinárias que dividiu os cristãos: como fica a observância da Lei de Moisés diante dos ensinamentos de Cristo? Deve ser mantida ou está superada? Ora, mas Jesus disse que não veio abolir a lei, e sim cumpri-la com perfeição… assim pode ser delineada a questão dos cristãos judaizantes frente aos cristãos vindos do paganismo, querendo manter a obrigatoriedade da circuncisão como condição para a salvação.


Percebe-se, desse modo, uma preocupação da comunidade cristã de Antioquia, conforme está descrita nos Atos (15, 1-2), primeira leitura de hoje. Paulo e Barnabé haviam fundado comunidades naquela cidade e, ao passar por lá algum tempo depois, souberam da polêmica que se instalara entre os convertidos judeus e os convertidos pagãos. Alguns judeus vindos do norte afirmavam que “Vós não podereis salvar-vos, se não fordes circuncidados, como ordena a Lei de Moisés”. Paulo e Barnabé enfrentaram aquela dificuldade e argumentaram com os dissidentes, porém sem convencê-los. A situação se tornou tão delicada que os dois preferiram levar o caso para ser decidido pelo colegiado dos Apóstolos em Jerusalém, para que não ficasse apenas no entendimento deles dois. Assim deu-se o primeiro Concílio da Igreja, para a apreciação e decisão sobre questões cruciais da doutrina, que se encontrava em processo de maturação. Muitos outros Concílios se sucederam ao longo dos séculos, sempre para tratar de questões cruciais. Naquela ocasião, a resposta foi enviada através dos porta-vozes Judas e Silas, em nome da comunidade hierosolimitana: “Porque decidimos, o Espírito Santo e nós, não vos impor nenhum fardo, além destas coisas indispensáveis: abster-se de carnes sacrificadas aos ídolos, do sangue, das carnes de animais sufocados e das uniões ilegítimas. Vós fareis bem se evitardes essas coisas.” (Atos 15, 28-29)


Esta frase necessita de uma análise gramatical mais detalhada, pois a tradução pode parecer confusa. Conferindo os textos originais grego e latino dos Atos, percebe-se que são apenas duas as exigências da Lei de Moisés que permanecem para os judeus e pagãos convertidos: 1. abster-se das carnes sacrificadas aos ídolos, seja por meio de sangramento ou de sufocação, e 2. abster-se das uniões ilegítimas. Isto é, o objetivo é manter a unidade do culto cristão, que não deve ser misturado com os cultos dos deuses pagãos, esse foi o grande problema enfrentado por Moisés no passado hebraico. Em relação às uniões ilegítimas, São Jerônimo usa o termo latino “fornicatione”, que é a tradução do grego “pornéias”. Essa palavra é habitualmente relacionada com o adultério, então essa seria a segunda regra a ser mantida. Com relação à circuncisão, não deveria ser mais obrigatória, porque esse ritual de purificação individual foi totalmente superado com o sacrifício de Cristo e foi substituído pelo batismo, então a circuncisão tornou-se obsoleta nesse contexto. Aliás, sabe-se que a exigência da circuncisão, no tempo dos hebreus, tinha também como finalidade facilitar o ato humano procriador, pois com a expectativa que se fazia do nascimento do Messias, todos deviam colaborar para isso. Após a vinda de Cristo, isso também não faz mais sentido de ser mantido como obrigatório. E assim o Concílio de Jerusalém solucionou a questão dos judaizantes, referendando o ensinamento de Paulo e Barnabé.


Sabiamente, o Concílio de Jerusalém entendeu que não devia exigir dos novos cristãos nada além do necessário, ou seja, do essencial. E afirmou isso de uma forma que se tornou clássica: “decidimos, o Espírito Santo e nós...” Não foi uma decisão assim na base das opiniões pessoais e do apego à tradição, mas após a invocação das luzes do Espírito Santo. Essa forma de enfrentar e decidir as questões sensíveis acerca da doutrina é chamada, no vocabulário teológico, de “magistério de Igreja”, tornando-se uma das fontes da teologia, ao lado da Sagrada Escritura e da Tradição. Essa temática foi alvo de uma grande polêmica levantada por Lutero, no século XVI, pois ele entendia que a teologia devia ter como única fonte a Bíblia (princípio da “scriptura sola”) e ainda hoje é um dos pontos de divergência mais cruciais entre os teólogos católicos e protestantes. Para os protestantes, não há tradição nem magistério, apenas a Bíblia.


Na segunda leitura, do Apocalipse (21, 10-14), o apóstolo João faz um interessante trocadilho com o número doze, em relação à cidade de Jerusalém, conforme a visão que teve. A nova Jerusalém, que desceu do céu, de junto de Deus, imagem da Igreja de Cristo, brilhava como uma pedra preciosíssima e estava cercada com uma alta muralha, que possuía doze portas, cada uma com o nome de uma das tribos de Israel. E esta muralha se assentava sobre doze alicerces e em cada um destes estava escrito um nome dos doze apóstolos de Cristo. Vejamos que curiosa imagem João nos apresenta, comparando a Jerusalém antiga com a nova, transmitindo a ideia de que a lei antiga prevalecia, simbolizada esta com as doze portas com os nomes dos filhos de Jacó, no entanto, estas portas estavam construídas sobre uma muralha dotada de doze alicerces, estes representados pelos doze apóstolos. Os doze apóstolos representam, portanto, a nova aliança, que sustenta a antiga e que lhe confere uma nova funcionalidade. A Igreja de Cristo é o alicerce desta nova aliança.


Nessa ocasião (Ap 21, 22), João faz um comentário muito significativo: não vi um templo na cidade (Nova Jerusalém), pois o seu templo é o próprio Senhor. Essa cidade também não precisa de sol nem de lua para clareá-la, pois a glória de Deus é a sua luz e a sua luminária é o Cordeiro. Jesus é o novo sol, pelo qual se reflete a luz de Deus. Essa intrigante descrição de João no Apocalipse está coerente com a lição de Cristo que, ao ser interrogado sobre “onde” se deve adorar a Deus, ele disse que os verdadeiros adoradores não precisam ir a um lugar determinado, um local físico, porque Deus deve ser adorado em espírito e em verdade. E onde estiverem dois ou mais reunidos em nome de Cristo, ali está um ambiente adequado para a oração. Infelizmente, ainda há cristãos que imaginam que só se pratica a religião indo à igreja e, ao sairem de lá, esquecem que a sua prática de cristãos deve prosseguir nas ações do dia a dia. Ser cristão não é apenas rezar o terço, assistir à missa, comungar e fazer o sinal da cruz quando passa diante de um templo. A principal exigência que Cristo faz para nós é que vivamos a nossa fé nos nossos relacionamentos, nas nossas atividades laborais, na vida privada e pública. Essa cisão entre a devoção e a vivência da fé é a característica mais presente na catequese do passado e a mais difícil de ser superada na religiosidade popular. A vinculação a um local físico é a grande marca do catolicismo devocionista, tão bem representado nas romarias e movimentos de massa, mas que (ao meu ver e com todo respeito) não realiza o verdadeiro ensinamento de Cristo.


No evangelho de hoje, o evangelista João (14, 23) diz com simplicidade e clareza o que Jesus requer de seus seguidores: “'Se alguém me ama, guardará a minha palavra, e o meu Pai o amará, e nós viremos e faremos nele a nossa morada.” E prossegue explicando isso: “E a palavra que escutais não é minha, mas do Pai que me enviou. […] o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, ele vos ensinará tudo e vos recordará tudo o que eu vos tenho dito.” (14, 24-26). Guardar a palavra não é escondê-la numa gaveta da memória e lembrar-se de vez em quando. O guardador não é um simples custódio, aquele que detém a guarda da coisa, mas deve ser sobretudo o executor, aquele que conhece a palavra e a pratica. É isso que Deus quer de nós. Teoricamente, é para isso que existe a Igreja de Cristo, com o seu corpo de pastores, sucessores dos apóstolos, que ficaram com o papel de conduzir a comunidade da fé na autêntica guarda da palavra, os alicerces da muralha, de que João fala no Apocalipse. Porém, não apenas os sucessores dos Apóstolos têm essa missão, eles fazem isso como obrigação, por delegação especial. Mas, na prática, todos os cristãos são autênticos guardadores e cumpridores do ensinamento de Cristo.


O Papa Francisco, desde o início de seu pontificado, tem trabalhado com grande esforço para tentar reverter essa prática religiosa antiquada e ainda muito forte, no meio religioso popular, estimulada e mantida pela catequese tradicional e por uma estrutura organizacional arcaica, porém muito conveniente para a hierarquia eclesiástica, pois agrada aos católicos tradicionalistas, que ainda são poderosos em nossas comunidades. Que o Espírito ilumine sempre e cada vez mais as nossas autoridades eclesiais e todos nós, para sermos fiéis guardadores da palavra como Cristo ensinou, não daquele modo que a influência externa do poder sociopolítico a transformou e que precisa ser mudado.


Cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 14 de maio de 2022

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 5º DOMINGO DA PÁSCOA – MANDATUM NOVUM - 15.05.2022

Caros Confrades,

Na liturgia deste 5º domingo da Páscoa, o apóstolo João nos traz um tema que é central para todo o cristianismo: o novo mandamento de Jesus – amai-vos uns aos outros como eu vos amei. O povo hebreu já conhecia os mandamentos da Lei desde Moisés, mas João ensina que Jesus veio aperfeiçoar os antigos mandamentos e resumi-los em um só: o mandamento do amor. Com isso, aquela imagem do Javeh vingativo e possessivo, irado e violento, que era transmitida na Torah de Moisés, transmudou-se no Deus Amor, revelado por Jesus, aquele que está sempre pronto para perdoar.

Na primeira leitura, lemos o testemunho de Paulo e Barnabé, em viagem missionária pelas cidades da Capadócia, pregando aos pagãos e voltando anunciar que Deus abrira a porta da fé a eles, já que os judeus recusaram-se a aceitar o Messias. No domingo anterior, vimos como Paulo e Barnabé foram maltratados em Antioquia e proibidos de pregar o nome de Jesus. Então, partiram para pregar a palavra de Cristo aos gentios. E assim, eles viajaram por várias cidades da região da Frigia e Capadócia (Listra, Icônio, Pisídia, Panfília, Perge, Atália) e retornaram a Antioquia, onde anunciaram à comunidade de cristãos como os pagãos tinham sido receptivos à pregação do evangelho e tinham-se engajado com entusiasmo, produzindo bons frutos. Estas cidades situam-se, geograficamente, na região que hoje corresponde ao território da Turquia, sendo as mais famosas Antioquia da Síria (hoje chama-se Antakya) e Antioquia da Pisídia. Este território, atualmente, é vinculado canonicamente à Igreja Católica Syrian Ortodoxa, com sede em Damasco. Essa cidade, Antioquia da Pisídia, é a mesma referida na leitura dos Atos do domingo anterior, onde Paulo e Barnabé foram perseguidos e expulsos. Esta foi também a primeira viagem missionária de Paulo, houve ainda outras duas, nas quais ele chegou a pregar o cristianismo em outras comunidades gregas, aventurando-se até chegar em Roma.

É importante lembrar que nem sempre Paulo e Barnabé eram bem recebidos quando chegavam para a sua pregação, no entanto, eles eram insistentes. Em Listra, por exemplo, na primeira vez em que estiveram lá, pelos milagres que realizavam, eles foram confundidos como personificações de Júpiter, o deus principal da religião do lugar, e até chegaram a ser homenageados por isso. Quando Paulo e Barnabé perceberam que os listrenses estavam entendendo tudo errado do que eles pregaram, afastaram-se das homenagens e foram explicar. Então, os judeus de Antioquia haviam chegado àquela cidade em perseguição à dupla e começaram a espalhar boatos contra eles. A população os perseguiu e os apedrejou, arrastando-os até fora da cidade. Para eles, Paulo havia sido dado como morto, talvez tivesse desmaiado, perdido os sentidos, pois depois se recuperou. Mas, apesar das perseguições, eles conseguiram obter muitas adesões nestas cidades. E conforme está escrito em Atos 14, 23, eles fundavam as comunidades, designavam presbíteros (ou sejam, ordenavam sacerdotes os lideres da comunidade) e seguiam adiante para continuar sua missão em outras cidades.

A segunda leitura, do livro do Apocalipse (21, 1-5), contém uma das passagens bíblicas mais conhecidas e interpretadas: a imagem da Nova Jerusalém, que desce do céu, de junto de Deus. Isso aconteceu depois que o céu e a terra, assim como o mar, foram destruídos, e apareceu um novo céu e uma nova terra. A Nova Jerusalém era a própria morada de Deus entre os homens. A Nova Jerusalém é interpretada na teologia como a Igreja de Cristo. Ao longo do tempo, esta imagem foi explorada com um certo ar de triunfalismo desde os teólogos medievais, dando origem a uma espécie de empoderamento com que os membros da hierarquia eclesiástica se viram durante muito tempo (alguns ainda hoje assim se veem), ou seja, interpretando esta imagem como um tipo de reino temporal ou poder político, nos moldes como isso existia naquela época histórica. Esqueceram, esses cristãos triunfalistas, da exortação de Paulo, contida na primeira leitura de hoje (At 14, 22): 'É preciso que passemos por muitos sofrimentos para entrar no Reino de Deus'. Apesar da nova corrente interpretativa, que passou a ser estimulada a partir do Concílio Vaticano II e, sobretudo a partir da Conferência de Puebla, no México, em 1979, acerca da opção preferencial da Igreja pelos pobres, muitos eclesiásticos e leigos ainda continuam a entender a Igreja de Cristo como um reino temporal, muitos Bispos e Padres vivem e agem como verdadeiros monarcas em seus territórios, em total oposição com o que Cristo ensinou. Um exemplo disso é o modo como certos grupos católicos tradicionalistas desdenham do Papa Francisco, contraponndo-o com a figura do papa emérito Bento, a quem consideram o papa autêntico. Na verdade, o papa Francisco tenta restaurar o modelo original da Igreja de Cristo: igreja dos pobres para os pobres. E para não ficar apenas no discurso, ele se reúne com os pedintes da Praça de São Pedro oferecendo-lhes almoço e até mandou construir banheiros públicos para uso dos moradores de rua do Vaticano, dando-lhe mais condições humanas e dignidade.

Então, a Nova Jerusalém, que surge dentro do contexto de um novo céu e uma nova terra, a morada de Deus entre os homens, onde Ele enxugará toda lágrima, a morte, a tristeza, a dor desaparecerão, conforme a visão de João em Patmos, sempre cheia de metáforas e enigmas, deve mesmo ser entendida como a imagem da Igreja de Cristo? Eu diria que sim e não. Sim, porque a comunidade fundada por Cristo, a partir da catequese distribuída aos doze apóstolos e, através deles, para todos os crentes em todos os lugares, efetivamente desceu do céu, de junto de Deus, formando um novo céu e uma nova terra. Não, ou ainda não, porque essa comunidade, que forma a Igreja de Cristo, é por enquanto só o prenúncio da “Jerusalém” verdadeira, a morada de Deus na eternidade. A Igreja de Cristo antecipa, pela fé, a Nova Jerusalém para onde nós seremos conduzidos, após passarmos pelos muitos sofrimentos, conforme Paulo e Barnabé exortaram os antioquienses (At 14, 22). Quando eu estudava teologia, no Seminário da Prainha, na década de 1970, o Padre Antonio Sidra (que havia sido capuchinho, com o nome de Frei Casemiro de Grajaú), professor de teologia fundamental, dizia uma expressão que é clássica na doutrina: a Igreja realiza o reino de Deus dentro da dialética do “já e ainda não”. Desse modo, à luz da fé, a Nova Jerusalém relatada por João no Apocalipse, já está aqui, porém, de fato, ela ainda não está, pois nós chegaremos lá somente quando passarmos para a dimensão da eternidade. A Igreja de Cristo antecipa, pela fé, as promessas que Ele fez e nos deu como garantia o seu sublime sacrifício. Mas esta antecipação é em termos, ou seja, na fé e na esperança, e para alcançá-la, nós precisamos praticar a caridade, o exemplo, a solidariedade, a justiça, a união, a fraternidade... isto é, o novo mandamento que Jesus ensinou e praticou. Como disse o apóstolo Paulo em I Cor 13, 12: agora vemos de maneira confusa, como num espelho embaçado, mas depois o veremos face a face. É isso o já e ainda não, o modo como a Igreja de Cristo prefigura a Nova Jerusalém.

No evangelho de João (13, 31), lemos a conversa que Jesus teve com os apóstolos no final da Santa Ceia, após aquele momento tenso em que Judas se retirou da recinto. Os outros discípulos ficaram atônitos e sem reação. Jesus foi acalmá-los, dizendo: chegou o momento em que o Pai será glorificado e isso logo acontecerá. E acrescentou: “por um pouco de tempo, ainda estou com vocês. Lembrem-se do novo mandamento que vos dei: que vos ameis uns aos outros, assim como eu vos amei.” Aqui está a grande novidade que Jesus veio ensinar aos seus seguidores: o mandamento do amor mútuo, sem reserva. Aquela figura do Javeh odioso e vingativo ficou para trás, ela foi substituída pela figura do Pai amoroso, que não quer a morte do pecador, mas que ele se converta e viva. Todo o evangelho de João é um grande testemunho deste amor sem medidas, o qual está presente em todas as narrativas. Diferentemente dos demais evangelhos, em que os fatos são o destaque, nos escritos de João (cartas e evangelho), os fatos são apenas o pretexto para o amor de Deus se manifestar. A própria terminologia usada no texto reflete essa temática, como vemos em Jo 13, 33: “Filhinhos, por pouco tempo ainda estou convosco.” Nenhum dos outros evangelistas utiliza essa linguagem intimista e afetuosa de chamar os apóstolos de “filhinhos”. O evangelho de João transpira o amor de Deus, revelado no amor de Cristo.

Aqui está o nosso desafio cotidiano: cumprir o novo mandamento de Cristo, para assim testemunhar perante a comunidade que vivemos agora o “já e ainda não” da Nova Jerusalém, que é a nossa futura e definitiva morada.

Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 7 de maio de 2022

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 4º DOMINGO DA PÁSCOA - 08.05.2022

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO DA PÁSCOA – A FÉ UNIVERSAL – 08.05.2022


Caros Confrades,


A liturgia do 4º domingo da Páscoa evoca a imagem do Bom Pastor, que conhece as suas ovelhas (Jo 10, 27). Por obra dos capuchinhos, celebra-se também a figura de Maria, a Divina Pastora, personalidade mariana análoga à missão pastoral de Jesus. As primeiras leituras, uma de Atos e outra do Apocalipse, relatam a opção dos apóstolos Paulo e Barnabé de se voltarem para a evangelização dos gentios, dadas as enormes resistências opostas pelos líderes judeus. Um detalhe muito importante que se retira da leitura do evangelho de hoje é a afirmação de João, pronunciada por Jesus: “eu e o Pai somos um”. Algumas dezenas de anos depois da morte de Jesus, João vem recordar uma verdade revelada por Ele e, sem a qual, a mente humana jamais imaginaria a existência do Deus uno e trino.


O Papa disse, em uma de suas homilias, algo que fez estremecer os ouvidos dos cristãos burocratas, modalidade da qual o Vaticano está cheia: “O Senhor redimiu a nós todos, a todos, pelo sangue de Cristo: todos nós, não apenas os católicos. Todos.” E, na sequência, ele mesmo fez uma interpelação: “Padre… os ateus também?” E em seguida, respondeu: “Mesmo os ateus? Todos!” Logo depois, o setor de imprensa do Vaticano tratou de amenizar a fala do Papa, tentando esclarecer o que não precisa ser esclarecido, pois o que ele falou é o que Jesus Cristo realmente ensinou. O que ele quis mostrar foi que a fé é universal e não é propriedade de uma ou outra religião. Esse dilema foi enfrentado por Paulo e Barnabé, em Antioquia, nos primeiros tempos do cristianismo, quando os judeus se consideravam os “donos” da aliança com Deus. E o Espírito os inspirou o que deviam fazer.


Assim se lê na primeira leitura, dos Atos dos Apóstolos (13, 14ss), relatando a missão de Paulo e Barnabé, em Antioquia da Pisídia, onde havia muitos judeus simpatizantes do cristianismo. O sermão dos dois atraía mais fiéis do que o culto na sinagoga, por isso a pregão dos Apóstolos atiçou a ira dos chefes dos sacerdotes judeus, que não queriam ouvir falar no nome de Jesus. Obtendo apoio das mulheres ricas e dos homens influentes do lugar, os chefes dos judeus puseram toda a cidade contra Paulo e Barnabé, forçando-os a fugirem para outro local. Foi quando Paulo lançou-lhes o anátema: “'Era preciso anunciar a palavra de Deus primeiro a vós. Mas, como a rejeitais e vos considerais indignos da vida eterna, sabei que vamos dirigir-nos aos pagãos.” (At 13, 46) Então, os Apóstolos deixaram de insistir com os judeus pela sua conversão ao cristianismo e passaram a pregar a Palavra aos gentios, isto é, aos gregos e outros povos não judeus, donde foi atribuído a Paulo o título de Apóstolos dos gentios. Foi o ponto de partida para a fé universal.


Um detalhe interessante dessa narrativa (At 14, 50) é quando Lucas relata que os judeus recorreram às mulheres ricas e religiosas, bem como aos homens influentes da cidade para buscarem apoio a fim de expulsarem Paulo e Barnabé dali. Há duas observações que quero fazer aqui. Primeiro, a menção das mulheres ricas. Sabe-se que, naquela época, as mulheres eram submissas aos maridos e, por elas mesmas, não tinham força para se projetarem socialmente. Será que os homens influentes, referidos pelo escritor sagrado, eram os maridos dessas mulheres ricas? Talvez um dos objetivos do texto seja estabelecer um confronto entre as classes sociais daquele tempo, querendo destacar que as primeiras comunidades cristãs eram compostas por pessoas simples e mais pobres, bem como ainda denunciar que as elites judaicas e gregas rejeitaram o cristianismo. Isso mesmo havia acontecido com a pregação de Cristo, que sempre se dirigia à classe popular. São raros os relatos de pessoas ricas que buscavam ouvi-lo e segui-lo, como foi o caso de Nicodemos e de José de Arimateia. Esse fato explica também o motivo de Paulo ter-se dedicado integralmente à pregação do evangelho nas comunidades gregas, porque percebera que era inútil trabalhar para a conversão dos judeus. E talvez esse fato também explique um certo ranço de distanciamento que se verificou, durante séculos, entre cristãos e judeus, problema que somente após o Concílio Vaticano II começou a ser atenuado, quando o Papa Paulo VI iniciou um movimento de aproximação com as igrejas católicas orientais (consideradas cismáticas) e com as comunidades judaicas.


Sabemos, pelos escritos de Paulo, que diversos judeus, residentes em cidades gregas, aderiram ao cristianismo, apensar da influência negativa dos fariseus, então quiseram ter uma 'prioridade' em relação aos novos cristãos de origem grega, considerando-se eles os primeiros a quem a Palavra fora dirigida, e assim eles deveriam ter um tratamento diferenciado. Algo como “irmãos mais velhos”. Paulo opôs-se veementemente a isso, afirmando que, após a nova aliança celebrada por Cristo, já não há mais diferença entre judeu e grego, porque agora todos estão incluídos no mesmo rebanho e são conduzidos pelo mesmo Bom Pastor. Convém sempre lembrar que foi em decorrência desse novo direcionamento da catequese dos Apóstolos, voltada para os não judeus, que nós brasileiros, latino americanos, tivemos o acesso à Boa Nova cristã, na continuidade da ação apostólica de Paulo. O cristianismo no Brasil, portanto, é uma etapa da concretização da profecia de Jesus acerca da fé universal.


A pregação do cristianismo aos gentios (não judeus) está também representada no texto da segunda leitura, retirada do Apocalipse de João: “Eu, João, vi uma multidão imensa de gente de todas as nações, tribos, povos e línguas, e que ninguém podia contar. Estavam de pé diante do trono e do Cordeiro.” (Ap 7, 9) Embora João tenha se mantido em território habitado por judeus e mesmo não tendo seguido Paulo em suas pregações pelos domínios gregos, no entanto, ele teve a mesma intuição de que o cristianismo obteria mais sucesso entre os gentios do que entre os judeus. E prossegue João: “Esses são os que vieram da grande tribulação. Lavaram e alvejaram as suas roupas no sangue do Cordeiro. ” (Ap 7, 14) Com outras palavras, João repete o mesmo ensinamento de Paulo a respeito da questão dos judaizantes: todos os que foram lavados no sangue do Cordeiro pertencem ao mesmo rebanho, sem distinção de origem. Todos passaram pela 'grande tribulação' e saíram vitoriosos. João estava, certamente, se lembrando da promessa de Cristo de que eles iriam ser perseguidos por causa do nome d'Ele, mas que, ao final, sairiam vitoriosos. João foi um exemplo de alguém que sofreu na pele inúmeras provações por causa da pregação do evangelho. Mas ele tinha certeza de que, depois daquela tribulação, o sangue do Cordeiro o habilitaria a receber a recompensa. Após a provação pelo sofrimento, todos “nunca mais terão fome, nem sede, nem os molestará o sol, nem algum calor ardente. Porque o Cordeiro, que está no meio do trono, será o seu pastor e os conduzirá às fontes da água da vida. ” (Ap 7, 16-17)


Na parábola do bom pastor, aludida no texto do evangelho de João, podemos vislumbrar novamente a vocação dos gentios para terem prioridade na pregação dos Apóstolos. Quando João reproduz as palavras de Jesus: “As minhas ovelhas escutam a minha voz, eu as conheço e elas me seguem. ” (Jo 10, 27), esta frase nos deixa a cogitar no porquê de não terem os judeus escutado a voz do Bom Pastor e não o terem seguido. Eles não eram Suas ovelhas? Ora, mas foi para eles, o povo da promessa, que a Palavra divina foi dirigida em primeiro lugar, como não seriam eles Suas ovelhas? Parece, meus amigos, que o problema é o seguinte: ouvir a palavra sem escutá-la. Embora estes dois verbos sejam gramaticalmente sinônimos, observemos bem, quantas vezes, nós ouvimos algo e não conseguimos mentalizar aquilo? Seja porque estamos distraídos, seja porque nos faltou interesse, seja porque estávamos ocupados com outras coisas mais importantes naquele momento. Deve ter sido algo semelhante que aconteceu com os judeus: ouviram a pregação de João Batista e não a escutaram; ouviram a pregação de Cristo e não a escutaram; ouviram a pregação dos apóstolos e não a escutaram. Talvez estivessem com os ouvidos ocupados com outras coisas “mais importantes”.


No final desse trecho do evangelho (Jo 10, 30), o evangelista faz uma breve afirmação, que contém um imenso significado. Depois de dizer que não irá perder aquelas ovelhas, porque foi o Pai quem havia lhe dado, Jesus arremata: “porque eu e o Pai somos um”. O grande diferencial do evangelho joanino, em relação aos outros, está nessas inserções teológicas que João faz. Ele não se limita a narrar o fato, mas trata de mesclar com ensinamentos doutrinários. Dizer que “eu e o Pai somos um” significa que Jesus também é Deus, mas não um “outro” Deus, e sim o mesmo Deus que é o Pai. Com outras palavras, aqui está a mesma afirmação que ele colocou no prólogo do seu evangelho: no princípio…, o Verbo estava em Deus e o Verbo era Deus… tudo que existe foi feito por ele e sem ele nada foi feito. Com poucas palavras e belas imagens, João sintetiza a doutrina teológica da trindade.


Essa verdade teológica do Deus Trino não se encontra em nenhuma outra religião, bem como também não está presente no Antigo Testamento. Nenhum profeta anteviu isso, nenhum escriba antigo mencionou nada parecido. Somente a revelação neotestamentária veio trazer essa novidade, somente a pregação de Cristo trouxe a lume tão complexa figura, impossível de ser imaginada e alcançada pela mente humana sozinha. O motivo pelo qual uma tal afirmação só veio a aparecer nos textos de João significa que somente muitos anos após a morte de Cristo, com o desenvolvimento doutrinário da revelação contida no evangelho, foi que os líderes cristãos começaram a entender isso. E o contato e a influência da filosofia grega foi um recurso de grande importância para a construção desses esclarecimentos conceituais.


Com um cordial abraço a todos. Feliz Dia das Mães.

Antonio Carlos

domingo, 1 de maio de 2022

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 3º DOMINGO DA PÁSCOA - 01.05.2022

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 3º DOM. DA PÁSCOA – MISSA NA BEIRA MAR – 01.05.2022


Caros Confrades,


Na liturgia deste terceiro domingo da Páscoa, temos três leituras do Novo Testamento, sendo uma retirada dos Atos e as outras duas escritas por João: a segunda leitura, retirada do Apocalipse, e o evangelho. Neste, relembramos o episódio em que Jesus fez Pedro confessar seu amor por ele três vezes, talvez como uma forma de compensar a tripla negação que ele fizera naquela noite em que Jesus foi preso. Vemos ainda, na primeira leitura, o relato de Lucas, nos Atos dos Apóstolos, sobre a pressão recebida por eles naqueles dias que sucederam a paixão de Cristo, sendo perseguidos pelos chefes dos sacerdotes e açoitados, para que não pregassem em nome de Jesus.


Relata o escritor Lucas, em Atos (5, 27), que os Apóstolos foram levados ao Sinédrio, para se apresentarem ao Sumo Sacerdote. O Sinédrio era o tribunal religioso, onde eram julgados os que infringiam a Lei. Lá, foram interrogados sobre o porquê de estarem pregando em nome de Jesus, se haviam sido proibidos de fazer isso. Estavam os sacerdotes muito irritados porque os Apóstolos punham neles a culpa pela morte de Jesus e ganhavam muitos seguidores entre os judeus. Mas não podendo manter os Apóstolos presos, por causa do receio da revolta popular, limitaram-se a mandar açoitá-los e depois os soltaram, renovando a proibição. E estes saíram do Sinédrio muito contentes, porque tinham sido insultados por causa do nome de Jesus, e isso não os impediu de continuar a sua missão de disseminar o cristianismo em Jerusalém. Apenas para deixar referenciado, a pena de açoites era utilizada naquela época para delitos pequenos, aquilo que atualmente o Direito chama de delitos de menor potencial ofensivo. Por ocasião do julgamento de Jesus, Pilatos também mandou açoitá-lo, tentando aplacar os judeus, pois tinha a intenção de libertar Jesus depois da surra, mas não deu certo a estratégia No caso dos Apóstolos, deu certo e até funcionou como um incentivo para eles.


A segunda leitura é um trecho do Apocalipse. Todos sabem que essa palavra significa revelação, pois o texto relata várias visões que João teve quando estava desterrado na ilha de Patmos. Numa dessas visões, ele recebeu uma ordem: o que estás vendo, escreve num livro. Trata-se do texto mais enigmático da Bíblia, pelo fato de usar uma linguagem excessivamente cifrada e metafórica, dando azo a múltiplas interpretações. Importa destacar que a literatura apocalíptica foi um gênero de escrita bastante comum nos primeiros séculos do cristianismo, existindo diversos livros de apocalipse, embora o livro escrito por João tenha sido o único incluído na Bíblia. Outro fato importante a ser registrado é que, embora este seja o último livro do cânon bíblico, ele foi escrito por João antes das cartas e do evangelho, que foram escritas após ele ter sido libertado da ilha. De acordo com a tradição, após a morte de Maria, mãe de Jesus, que vivia sob os cuidados de João, ele foi viver em Éfeso, onde foi bispo daquela comunidade até a sua morte.


O pequeno trecho do Apocalipse (5, 11-14) lido neste domingo mostra que grande parte da arte sacra produzida na Idade Média e no Renascimento tem como fonte de inspiração a Revelação de João. Assim como alguns trechos fixos da liturgia são também retirados desse mesmo livro. Dizendo, por exemplo, que o Pai estava sentado no trono e, ao seu lado, o Cordeiro que fora imolado e, em volta do trono, milhões de anjos, esta é uma descrição que se vê representada nos quadros de diversos artistas, cada um interpretando à sua maneira. E mais: as imagens dos anciãos que se prostram e dos quatro seres vivos que diziam amém também tiveram inúmeras reproduções. Há suposições de estudiosos que afirmam que o Apocalipse era um texto bem mais longo, do qual foram retirados alguns trechos mais complexos, de modo que o livro do Apocalipse, que está na Bíblia, apresenta fragmentos do texto original, que teria sido perdido. Daí existirem certos lapsos de sequência, que suscitam as mais diferentes interpretações. Trata-se, portanto, de um texto complexo e é assustador observar que alguns leitores bíblicos banalizam as visões de João com interpretações fundamentalistas e rasteiras, desconhecendo a realidade de sua elaboração e preservação.


O texto do evangelho, também de João, relata a terceira aparição de Jesus aos discípulos, após a ressurreição, desta vez na margem do lago de Tiberíades ou mar da Galiléia. Eu fico imaginando a emoção de João ao escrever o seu evangelho, quando já era bastante idoso, com mais de 90 anos, recordando os fatos de sua juventude, de sua convivência com Jesus. Consta que João teria escrito o seu evangelho por volta do ano 100 d.C., vindo a falecer pouco tempo depois, no ano 103. Pelo fato de ter sido escrito bem tardiamente, o texto de João traz muitos aperfeiçoamentos doutrinários, diferente dos outros evangelhos, que apenas relatam fatos. Além disso, o fato de João ter sido testemunha ocular dos acontecimentos, enquanto os outros evangelistas sabiam apenas por ouvir dizer, faz grande diferença. Sem deixar de mencionar que, na ocasião, os outros evangelhos já eram do conhecimento das comunidades cristãs e João, certamente, conhecia os seus textos. Por isso, o evangelho de João é bem mais reflexivo e teológico.


Pois bem. João relata que alguns dos discípulos, inclusive ele próprio, estavam na sua faina comum da pescaria, quando Jesus apareceu. Essa narrativa denota que, após a ressurreição de Cristo, os Apóstolos retornaram aos seus afazeres profissionais, pescadores que eram e precisavam trabalhar para ter o que comer. Então, Jesus foi procurá-los no seu ambiente de trabalho, para continuar a sua catequese de preparação para a missão de pregadores, confirmando o que ele havia ensinado antes. Depois de passarem a noite em tentativas, sem conseguir apanhar peixes, Jesus apareceu-lhes de manhãzinha e mandou que eles retornassem e jogassem a rede à direita do barco, ocorrendo aí a pesca milagrosa. De início, eles não identificaram Jesus. Foi João que percebeu e disse a Pedro: é o Senhor. Chegados à praia, já havia fogo aceso, no qual foram assados pães e peixes, que Jesus repartiu com eles. João não diz que Jesus comeu junto com eles. Também nessa narrativa podemos observar que Jesus celebrou à beira mar uma 'missa', repetindo a última ceia, sem fazer uso do vinho, mas apenas com pães e peixes.


É oportuno lembrar que, nos tempos iniciais do cristianismo, o foco da pregação dos apóstolos ainda estava no entorno de Jerusalém, estendendo-se também a Alexandria e Antioquia, locais onde havia numerosas comunidades de judeus. Somente algum tempo depois, com a conversão de Paulo, teve início a pregação do evangelho aos gentios, nas cidades de língua grega, onde também ocorria a dominação romana, progredindo aos poucos até chegar a Roma, a grande capital do império. Depois de estabelecer comunidades também em Roma, dada a importância política e estratégica do local, Paulo levou Pedro para ser o lider dos cristãos romanos. Pedro era, então, bispo em Antioquia, porém Paulo havia compreendido o desejo de Cristo no mesmo sentido que João também ensinava, ou seja, que embora fosse ele (João) o discípulo amado, no entanto, a 'chefia' do grupo fora delegada a Pedro. A prova de que esse entendimento não era consensual é que, anos mais tarde, os bispos das cidades gregas não aceitaram submeter-se à autoridade do Bispo de Roma, surgindo daí o grande cisma do ocidente, em 1054, quando as igrejas católicas gregas formalmente romperam com a Igreja Romana. Após mais de 900 anos, em 1964, o Papa Paulo VI teve o primeiro encontro amistoso com o Patriarca Atenágoras, de Constantinopla, dando início a um processo de negociações para reunificação do catolicismo, o que vem sendo continuado pelos Pontífices seguintes, tarefa difícil e ainda não concluída.


Pois bem, meus amigos. Esses testemunhos de João e de Paulo são muito importantes e nos ajudam a compreender os rumos que a Igreja de Cristo seguiu nos primeiros séculos. E eu vejo, com muita esperança, as últimas tratativas para a reunião das igrejas católicas oriental e ocidental, levadas a efeito pelos últimos Papas. Em 2013, comemorou-se o aniversário de 1.700 anos do Edito de Milão, pelo qual o imperador Constantino deu a liberdade religiosa dos cristãos. A festa foi realizada em Constantinopla, com a participação dos representantes do Vaticano, fato bastante promissor para o avanço da união de toda a cristandade.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos