domingo, 25 de dezembro de 2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - NATAL DO SENHOR - A ENCARNAÇÃO - 25.12.2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO – NATAL DO SENHOR – A ENCARNAÇÃO – 25.12.2016

Caros Leitores,

Então é novamente Natal. É curioso como essa festividade se repete a cada ano, porém sempre se mostra como algo novo, nenhum Natal é idêntico aos anteriores, tem-se aquela sensação de estar celebrando, a cada vez, uma festa inédita. Em nosso subconsciente, o Natal convida à renovação e os nossos pensamentos buscam se reinventar, como se a vida fosse de fato recomeçar. O Natal tem essa força extraordinária de mexer com a nossa acomodação e nos desafiar a “endireitar os caminhos e limpar as veredas”, como disse o profeta. O Natal nos convida a refletir sobre o admirável mistério da encarnação: Deus fez-se carne, isto é, tornou-se gente como nós. Os profetas diziam que isso aconteceria “na plenitude dos tempos” e isso significa que nós vivemos nesse tempo de plenitude, porque depois da encarnação de Cristo, a plena intervenção de Deus na história se tornou perene. Dali em diante, os tempos chegaram ao seu grau mais completo e dessa completude todos nós partilhamos. Talvez por isso o Natal sempre se apresente para nós como uma festa diferente.

As leituras litúrgicas contribuem para isso, trazendo fatos e reflexões para lá de inspirados, explicando com extrema clareza o fenômeno miraculoso da encarnação divina. Na primeira leitura, da Carta aos Hebreus, o seu autor, provavelmente um judeu convertido, procura demonstrar a continuidade da tradição hebraica em Jesus Cristo, com o objetivo de converter aqueles que, porventura, estivessem em dúvida sobre a sua messianidade. Ele inicia com uma afirmação taxativa e convincente: Jesus é a nova palavra, pela qual o Pai se comunica com a humanidade. Diz o texto: Muitas vezes e de muitos modos falou Deus outrora aos nossos pais, pelos profetas; nestes dias, que são os últimos, ele nos falou por meio do Filho, a quem ele constituiu herdeiro de todas as coisas e pelo qual também ele criou o universo. (Hb 1, 1-2). Isto é, a palavra de Deus transmitida através dos Profetas era uma forma de comunicação indireta com a humanidade. Mas nesses dias (os últimos, segundo ele, os tempos plenos), a Palavra de Deus foi transmitida diretamente por ele mesmo, sem intermediários. Agora o interlocutor não fala mais um discurso indireto: o Senhor disse..., ele agora fala na primeira pessoa: Eu vos digo... Não se trata mais do porta-voz, e sim do próprio mandante.

O texto não podia ser mais claro: Jesus fala com autoridade divina própria, não como um mensageiro, assim como foram os profetas. Mas, parece que ele não falou o discurso esperado pelos dirigentes do povo da aliança que, por isso, nele não acreditaram. Os chefes do povo hebreu, os sacerdotes puseram Jesus em prova por diversas vezes, na tentativa de certificar-se da sua origem, tendo ele sempre repetido aquilo que estava nas escrituras, especialmente em Isaías. Apesar disso, muitos não creram nele. O autor da epístola aos Hebreus tenta, através de uma argumentação bem construída, mostrar que em Jesus se consumam as profecias e, na pessoa dele, temos o esplendor da glória do Pai e a expressão do seu ser (Hb 1, 3). A palavra de Deus, transmitida por Cristo, é assim a palavra autêntica, aliás, Cristo é a própria palavra e, como tal, sustenta o universo, perdoa os pecados, coloca-se acima dos anjos, pois a nenhum dos anjos Deus se referiu dizendo “eu hoje de gerei”, somente para Cristo essa declaração foi ouvida.

Essa “teologia da palavra” está descrita, em sua forma mais perfeita, no prólogo do evangelho de João, que antigamente era lido no final de todas as missas, com o título de “último evangelho”. Tratando-se de um texto escrito já no final do primeiro século, tem-se uma perfeita síntese teológica do sentido do mistério da encarnação, reflexão que não aparece nos demais evangelhos, marcadamente descritivos. A leitura do texto de João demonstra o desenvolvimento da compreensão da doutrina de Cristo pelas primeiras comunidades, através das contribuições trazidas pelos “gentios” de cultura grega, sobretudo Paulo. Segundo os historiadores, João estava bastante idoso e tinha se estabelecido em Éfeso, onde era o líder da igreja local. Os seus seguidores fizeram-lhe diversos pedidos para que ele escrevesse o seu testemunho da vivência com Cristo, mas João havia se recusado a fazer isso antes. Porém, vendo se aproximar o fim dos seus dias, resolveu aceitar o desafio de escrever as suas memórias. Consta que não foi ele próprio o escritor, mas um secretário dele, a quem João teria ditado as palavras.

Antes de iniciar o trabalho de resgate de suas memórias, João e o escriba teriam feito uma semana de orações e jejum, preparando-se para a tarefa e pedindo a iluminação divina para que a composição dos fatos se desse com precisão e inteireza. Também há de se levar em conta que João, provavelmente, conhecia os demais evangelhos, os quais eram lidos nas catequeses das igrejas orientais, e ainda os escritos de Paulo. Acresça-se a isso o fato de que João foi testemunha ocular do que escreveu, diferente dos demais, que só ouviram falar. Por isso, o texto de João, além de ser mais elaborado, inclui diversas passagens de vida de Cristo, que não são relatadas nos demais textos.

João inicia assim (Jo 1, 1): “No princípio era a Palavra, e a Palavra estava com Deus; e a Palavra era Deus.” Esta é a tradução atual da CNBB. No texto latino, temos: no princípio era o Verbo... no texto grego, temos: no princípio era o Lógos. Com o intuito de tornar o texto bíblico mais popular, sem perda do caráter teológico, a tradução oficial é a Palavra. Nesta pequena frase, João faz afirmações marcantes da doutrina teológica, que já se desenvolvera naquela época. De trás para frente, temos: a Palavra (o Verbo) é Deus, isto é, Cristo não é apenas um profeta, é mais do que um profeta, é o próprio Deus. A Palavra (o Verbo) estava com Deus, isto é, antes de se humanizar, a Palavra estava unida a Deus, a Palavra se fundia com Deus. Isso aconteceu desde o princípio, pois no princípio de tudo, a Palavra (o Verbo) já existia, isto é, a Palavra (o Verbo) não começou a existir apenas agora que se humanizou, mas já existia desde sempre. E no versículo 14, logo adiante, está a tradicional e conhecidíssima verdade: E a Palavra (o Verbo) se fez carne e habitou entre nós. E no versículo 11: a Palavra (o Verbo) veio para o que era seu, mas os seus não a reconheceram. Aqui é que entra a ligação direta do evangelho de João com a carta aos Hebreus: Jesus é a Palavra do Pai, não reconhecida pelos hebreus.

Todo esse hino sobre a Palavra tem seu ponto central na frase: “o Verbo se fez carne”. A Palavra de Deus veio habitar no mundo e se tornou um de nós. É interessante compreendermos a expressão grega, na qual o evangelho de João foi originalmente escrito. Diz assim: kai ó Lógos sarx egéneto. Só uma explicação rápida: Kai=preposição “e”; ó Lógos = o Verbo, a Palavra; Egéneto = forma passiva do verbo “gennaw” (gerar, produzir); Sarx é aqui o vocábulo chave. Traduz-se literalmente por “carne”, vindo daí o substantivo “encarnação”. Mas “carne” significa no grego bem mais do que este vocábulo da língua portuguesa. Em grego, existe a palavra “soma”, que significa “corpo”, porém, João preferiu usar a palavra “sarx” e isso tem um sentido teológico especial. Corpo é um nome mais genérico, que se aplica a inúmeros objetos, sendo sinônimo de matéria em geral. Todo ente material é corpóreo. Porém quando nos referimos a corpo vivo, colocamos carne em oposição aos ossos, portanto, num sentido bem limitado. Na língua grega, “sarx” significa o corpo inteiro feito de carne e osso, o corpo dos seres vivos, o corpo humano quando se refere às pessoas. Num sentido figurado, “sarx” significa “natureza humana”. Portanto, dizer que o Verbo tornou-se “sarx” quer dizer que a Palavra tornou-se gente, transformou-se em ser humano, encarnou-se, humanizou-se. Desse modo, quando a Bíblia se refere a “toda a carne” isso quer dizer todas as pessoas, as pessoas inteiras, não apenas os músculos, que constituem a parte carnal literalmente falando. O Credo fala na “ressurreição da carne”, não é na ressurreição dos corpos. Pode parecer uma distinção insignificante ou meramente retórica, mas não é. A ressurreição da carne significa a ressurreição da pessoa inteira, porém, não da sua materialidade. Daí porque a teologia não aceita a doutrina da “reencarnação”, porque ela confunde os conceitos de “soma” (corpo) e “sarx” (carne). Por isso, reencarnar não é sinônimo de ressuscitar, porque reencarnação equivale a reunir-se novamente o corpo com o espírito e não é esse o sentido do mistério da encarnação. A expressão “o Verbo se fez carne” deve ser entendida como a Palavra assumiu a natureza humana, virou gente e não como se um espírito tivesse adquirido um corpo. Atentem para a profundidade dessa distinção. Jesus Cristo não foi um espírito que adquiriu um corpo e depois livrou-se dele, com a morte. A Palavra encarnou-se, ou seja, adquiriu a natureza humana e nunca mais a deixou. Jesus Cristo continua encarnado, mesmo não tendo mais materialidade corpórea. Ao adquirir a natureza humana associada à natureza divina, Jesus passou a ter dupla natureza de forma permanente e é por isso que Ele é nosso modelo perene de perfeição, aquele perfil que, um dia, nós alcançaremos, pela salvação que Ele nos conquistou.

Nesse espírito, quero renovar sinceros votos de Feliz Natal a todos.

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domingo, 18 de dezembro de 2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 4º DOMINGO DO ADVENTO - O JUSTO JOSÉ - 18.12.2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO DO ADVENTO – O JUSTO JOSÉ – 18.12.2016

Caros Confrades,

Neste quarto domingo do Advento, a liturgia destaca a figura de São José, chamando-o de “o justo”, aquele que compreendeu e aceitou a maternidade de Maria. De início, ficou embaraçado, mas sem querer difamá-la, porque sabia das consequências severas que recairiam sobre ela, planejou deixá-la em segredo. Porém, o mensageiro celeste o tranquilizou e José assumiu com zelo e serenidade a sua missão de cuidador do Messias. São dois momentos críticos e opostos em que a virtude da justiça se revelou nas atitudes de José: a primeira vez, quando, na dúvida da gravidez misteriosa, decidiu não denunciá-la, porque não tinha motivos para duvidar dela; a segunda vez, quando, na certeza advinda com o aviso celeste, transmudou a dúvida em confiança. O Papa Francisco, no sermão de hoje, disse que São José nos ensina a confiar em Deus, quando ele se aproxima de nós.

Na primeira leitura, do profeta Isaias (Is 7, 10-14), lemos aquela famosa previsão sobre a futura vinda do Messias: uma virgem conceberá e parirá um filho, que terá o nome de Emanuel (Is 7, 14). O profeta Isaias é a leitura preferida para a liturgia do advento, por causa da sua precisão de detalhes sobre o futuro Messias. É sempre oportuno esclarecer um tema que já foi motivo de muitas discussões, sobretudo com crentes de outras igrejas, acerca da concepção virginal de Maria e também acerca do fato se Jesus teve (ou não) irmãos. A palavra latina “virgo”, da qual deriva a palavra virgem em português, é a tradução da palavra grega “parthenos”, que significa jovem. Desse modo, o termo “virgem”, no contexto bíblico não significa exatamente a virgindade no sentido biológico, mas no sentido da juventude da mulher. Era como se “virgem” fosse sinônimo de “jovem mulher”. Na hora da tradução para o latim, São Jerônimo utilizou o vocábulo “virgem” neste sentido de mulher jovem, pela falta de outra palavra mais adequada no latim. Porém, daí a hermenêutica bíblica tradicional passou a entender a palavra “virgem” no sentido da integridade corporal da mulher, desenvolvendo toda uma teologia acerca da virgindade, interpretação que vai contra a tendência costumeira do povo hebreu, pois num contexto histórico de espera do Messias, a mulher que permanecia virgem, portanto, sem chance de ter filhos, era considerada uma indigna por Javeh, já que ela nunca poderia ser a mãe do Messias. Desse modo, a profecia de Isaías quando diz uma “virgem conceberá” deve ser entendida como uma “jovem conceberá”. Polêmica à parte, o fato é que a concepção divina de Maria foi um fenômeno que intrigou José.

Tentemos imaginar a situação. José ainda não era casado com Maria, ainda não coabitavam, eram o que corresponde ao noivado, de acordo com o costume daquela época. Maria ainda estava passando por um “treinamento” para assumir as funções próprias do matrimônio. Os textos bíblicos não esclarecem como foi que José tomou conhecimento da gravidez: se foi Maria quem contou a ele ou se ele, José, percebeu. De um modo ou de outro, José sabia que não era ele o pai, então, cabia-lhe denunciar a noiva por mau comportamento perante os sacerdotes, mas José sabia que isso implicaria o apedrejamento de Maria por adultério, de acordo com a Lei de Moisés. José era justo e não queria fazer mau juízo sobre Maria, porém não entendia como aquela gravidez tinha ocorrido. Então, resolveu simplesmente abandoná-la, viajar para outras terras e seguir sua vida por lá. Só que isso era muito trabalhoso, afinal, mudar de domicílio não é fácil nos dias de hoje, devia ser mais complexo ainda naquela época. José se encontrava nesse dilema sobre o que fazer. Foi quando ele teve o sonho com o anjo, fato que é narrado por Mateus no evangelho deste domingo (Mt 1, 18-24). É interessante observar que a Bíblia relata diversos episódios em que Javeh fala com as pessoas em sonho, seja diretamente, seja através de um mensageiro. Esta palavra em grego, diz-se “angelos”, derivada do verbo “angelô” (anunciar, proclamar), que se transformou no latim em “angelus” e, em português, passou para “anjo”.

A bíblia relata sobre muitos personagens bíblicos que foram visitados por esses mensageiros (angelos), mas não descreve como é a aparência deles, porém, os artistas medievais se encarregaram de compor a sua figura como um ser masculino, de grande beleza, tendo as omoplatas desenvolvidas em forma de asas como os pássaros. E assim ficou criada a figura estereotipada do anjo que todos conhecemos. No entanto, não podemos nos esquecer que Lúcifer era também um anjo da corte celeste, apesar disso, a figura deste é retratada pelos mesmos artistas de uma forma totalmente diversa. Digo isso para que retiremos da nossa cabeça as imagens medievais, quando nos referimos aos mensageiros divinos. Por que razão não existem figuras femininas como anjos (ou anjas), apenas figuras masculinas? Evidentemente, entra aí toda a carga cultural do machismo, típico da cultura grego-romana. Apesar da sua feição marcadamente andrógina, no entanto, eles são apresentados sempre como seres masculinos, em coerência com a mesma cultura que afirma que somente os homens podem exercer os ministérios eclesiais. É o paradigma da masculinidade, ainda presente na Santa Madre Igreja.

Pois bem, mas voltando à história sobre o sonho de José, vemos uma diferença curiosa na forma como o mensageiro (anjo) apareceu a José e a Maria. No caso de Maria, ela estava desperta e dialogou com ele. No caso de José, ele estava dormindo e não participou da conversa, apenas recebeu a mensagem. É o caso de indagarmos se, efetivamente, um mensageiro lhe apareceu ou se ele apenas sonhou, foi apenas um sonho simples, da mesma forma como nós, muitas vezes, estamos com uma dúvida nos atormentando e, num sonho, vislumbramos uma solução. Aliás, se formos observar bem, nas diversas vezes em que um texto bíblico se refere a um mensageiro (anjo), em geral, a presença de um ser angelical não é de fato necessária, mas a situação se esclarece com uma explicação psicológica. O caso do sonho de José é um desses exemplos. Outro caso também relacionado com José é aquele episódio em que ele recebeu uma “ordem” de fugir com Maria e o menino para o Egito, até passar a perseguição de Herodes, através de outro sonho. A referência ao mensageiro fica mais por conta da tradição hebraica, ainda muito presente no cristianismo primitivo. E também devido ao estado de desenvolvimento científico da época, em que esses fenômenos psicológicos eram sempre considerados como manifestações divinas ou demoníacas. Disso podemos concluir, com alguma segurança, que a doutrina tradicional acerca dos anjos precisa ser repensada e redimensionada, dando-lhe uma compreensão mais realista e menos fantasiosa.

O caso da anunciação a Maria já foge a essa regra, por causa do diálogo que ela travou com o anjo até ser convencida e dar o seu aceite. Há uma intervenção divina na história, trata-se de algo realmente miraculoso na sua essência, algo para o qual apenas uma explicação da psicologia não seria suficiente. Isso é que torna diferente a atuação do “mensageiro” divino em certas situações em que há uma justificativa para a sua presença. Temos um exemplo bem típico no Antigo Testamento (Gn 32, 24), que narra a luta que Jacó teve com um anjo, pouco antes de sua reconciliação com Esaú. Porém, nem sempre o fato narrado justifica a presença física do “anjo”, mas pode ser resolvido de um modo mais prosaico, como quando estamos sonhando ou quando simplesmente temos um “estalo” na mente, aquilo que os psicólogos chamam de “insight”, uma descoberta inesperada e instantânea que a nossa mente produz, em situações emergenciais. Apenas para reforçar o que escrevi antes, acerca da necessidade de um estudo mais crítico e menos fanático sobre a angeologia.

E por último, uma breve referência à segunda leitura, da carta de Paulo aos Romanos (Rm 1, 1-7), na qual Paulo destaca a descendência de Jesus da raça de David (em grego: ek spérmatos David) segundo a natureza humana, e predestinado como Filho de Deus em poder, segundo o Espírito. Curiosamente, o texto da CNBB traduz a palavra latina “praedestinatus” (predestinado) como “autenticado”. Por certo, essa tradução visa evitar o uso da palavra “predestinado” por causa da doutrina da predestinação, que não é acolhida pela teologia católica, substituindo-a por uma palavra mais amena: autenticado. No entanto, eu considero essa palavra perigosa na sua interpretação, porque traz subjacente a ideia do que não é original, mas uma cópia carimbada... sinceramente, tem certas traduções que aparecem nos textos oficiais da CNBB que complicam aquilo que deveriam explicar. Dizer que Jesus é autenticado como Filho de Deus com o poder do Espírito, a meu ver, deturpa o significado do texto paulino e dá a impressão de uma coisa subalterna, uma segunda via que se autentica para ter validade oficial. Com certeza, Jesus não precisa dessa autenticação.

Ao ensejo, envio antecipados votos de Feliz Natal.


domingo, 11 de dezembro de 2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 3ª DOMINGO DO ADVENTO - O ÚLTIMO PROFETA - 11.12.2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 3º DOMINGO DO ADVENTO – O ÚLTIMO PROFETA – 11.12.2016

Caros Leitores,

O 3º domingo do Advento, denominado domingo “gaudete” (alegrai-vos), celebra a alegria da comunidade diante da próxima chegada do Senhor. O refrão latino antigo dizia: gaudete in Domino, iterum dico, gaudete. Alegrai-vos no Senhor, outra vez eu digo, alegrai-vos. Este é o tema dominante desta liturgia, que traz na leitura do evangelho o elogio que Jesus faz a João Batista: ele é muito mais do que um profeta, dentre os nascidos, ninguém é maior do que ele. E, nesse contexto, indiretamente se autodeclara o Messias, quando afirmou que foi sobre João que o profeta disse: eis que mando o meu mensageiro para preparar-te o caminho.

A primeira leitura, do profeta Isaias (35, 1-10), texto escrito no período final do cativeiro da Babilônia, expressa a alegria dos cativos ao serem libertados e retornarem a Jerusalém: “Dizei às pessoas deprimidas: 'Criai ânimo, não tenhais medo! Vede, é vosso Deus, é a vingança que vem, é a recompensa de Deus; é ele que vem para vos salvar'. Então se abrirão os olhos dos cegos e se descerrarão os ouvidos dos surdos. O coxo saltará como um cervo e se desatará a língua dos mudos. Os que o Senhor salvou, voltarão para casa.” (Is 1, 4-10) Esta alegria do retorno dos cativos para casa é comparada com a alegria da Igreja pela chegada do Senhor, que se avizinha. A liturgia relembra a festa dos hebreus celebrando a sua libertação do cativeiro babilônico, fazendo alusão com o júbilo que deve tomar conta de todo o mundo cristão, com a chegada da libertação trazida por Cristo. Se aquela libertação terrena foi motivo de tão grande regozijo para os hebreus, então para nós, que recebemos de Cristo a salvação eterna, a alegria deve ser muito maior. A parte final do versículo 10 é bem sugestiva: “Eles virão a Sião cantando louvores, com infinita alegria brilhando em seus rostos: cheios de gozo e contentamento, não mais conhecerão a dor e o pranto.” Sião, a Jerusalém terrestre, é a manifestação prévia da Igreja de Cristo, da qual nós fazemos parte. A ela, nós nos dirigimos cantando louvores e com intensa alegria brilhando nos nossos rostos, tal como os hebreus libertados. O livro de Isaías, ao mesmo tempo em que descreve a tristeza do povo cativo, do meio para o fim, passa a retratar o grande contentamento daqueles que puderam voltar à sua terra. É uma leitura recorrente no tempo do advento, era também uma leitura preferida por Cristo, quando comparecia aos cultos na sinagoga e lhe era dada a palavra.

Na segunda leitura, retirada da carta de Tiago (Tg 5, 7-10), ele exorta os cristãos sobre a vinda do Senhor, que está próxima. Sabemos que, naquele tempo, tanto os apóstolos quanto as comunidades primitivas esperavam para “os próximos dias” o retorno de Jesus. Ao subir aos céus, ele havia prometido que retornaria em breve, então, a interpretação que os primeiros cristãos davam a essa passagem bíblica era totalmente literal: ele vai voltar dentro de poucos dias. No caso da exortação de Tiago, esta espera tinha outro sentido daquela referida pelo profeta Isaías, pois no tempo deste Profeta, o Messias ainda não havia vindo, portanto, ele se refere à sua chegada original. Mas na carta de Tiago, a espera é pelo seu retorno, para julgar o mundo. Daí percebermos uma certa ingenuidade e singeleza nas palavras de Tiago, no versículo 9: “Irmãos, não vos queixeis uns dos outros, para que não sejais julgados. Eis que o juiz está às portas.” Essa era uma compreensão recorrente entre os judeus convertidos, pois essa era também a maneira como os apóstolos haviam compreendido as palavras de despedida de Cristo, na Ascensão. Esta carta de Tiago não é dirigida a uma comunidade de gentios nem de uma determinada localidade, mas a todos os judeus da diáspora. A diáspora, ou dispersão dos judeus, ocorreu logo após a destruição de Jerusalém pelos romanos, levando-os a se espalharem por diferentes territórios da Ásia, África e sul da Europa. Em alguns destes locais, já existiam igrejas cristãs, sobretudo aquelas fundadas por Paulo, tendo sido até motivo de atritos. Na verdade, os judeus ficaram sem um território próprio e isso perdurou por vários séculos, pois eles somente voltaram a ter um local geográfico com a criação do Estado de Israel, após a segunda guerra mundial. Pois bem, a carta de Tiago reflete assim aquela ideia que era comum entre os primeiros cristãos, acerca da iminente volta de Cristo, para julgar os vivos e os mortos. Ficai calmos, porque o juiz está chegando, ninguém queira julgar uns aos outros.

No evangelho de Mateus (Mt 11, 2-11), lemos o episódio em que João Batista, encontrando-se preso a mandado de Herodes, ouviu falar de Cristo e enviou a ele alguns dos seus discípulos, a fim de recolher informações: “és Tu o que esperamos ou devemos esperar por outro?” Lembremos que João Batista já havia batizado Jesus no rio Jordão, portanto, já o conhecia, inclusive foi naquela ocasião em que o Espírito Santo apareceu, portanto, João Batista tinha conhecimento da existência de Jesus, que era também seu parente. Mas, mesmo assim, visto que estava preso e não podia fazer isso pessoalmente, enviou seus discípulos para se certificarem do fato. Não deixa de ser curiosa essa referência do evangelho à inquietação de João Batista sobre o Messias. Por certo, ele queria ter certeza do término de sua missão preparatória. João Batista tinha discípulos e era preciso que estes tivessem essa certeza também. Quiçá, o objetivo maior era tranquilizar os discípulos, pelo fato de encontrar-se preso. Portanto, eu entendo esse fato de João Batista enviar mensageiros para irem ter com Jesus como uma forma de dizer a eles algo assim: pronto, a minha carreira terminou, de agora em diante, vocês devem ficar com Ele. Sabemos que alguns discípulos de João Batista passaram a seguir Jesus Cristo. Daquela prisão onde se encontrava, João Batista não mais saiu, vindo a ser decapitado a pedido da concubina de Herodes, como forma de vingar-se dele, que havia censurado a sua vida marital com Herodes, por ser uma união ilegítima. A vingança da imperatriz não demorou a acontecer.

É interessante a atitude de Jesus diante das perguntas dos discípulos de João. Ele não respondeu de forma direta, mas apenas indiretamente, ao afirmar: “Ide contar a João o que estais ouvindo e vendo: os cegos recuperam a vista, os paralíticos andam, os leprosos são curados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e os pobres são evangelizados.” (Mt 11, 4-5) Se observarmos bem, Jesus estava mandando o recado para João Batista mais ou menos nesses termos: vejam só, estão acontecendo aquelas coisas que o profeta Isaías dissera que iriam acontecer com a chegada do Messias. Isto é, para um bom entendedor (e João conhecia as escrituras), ali estava uma resposta claríssima. João deve ter, então, se despedido dos seus discípulos, porque a sua missão tinha sido encerrado e, certamente, os encaminhou para o seguimento de Jesus.

Mas o evangelista Mateus prossegue (11, 9) a história, contando o que Jesus falou aos seus ouvintes, após a saída dos discípulos de João: Vocês lembram de João, aquele que pregava no deserto? Vocês pensavam que ele era um profeta, pois eu vos afirmo que ele é mais do que um profeta. Aqueles que ouviam Jesus conheciam os Profetas da Israel e os reverenciavam, assim Jesus quis dar a eles uma noção da importância de João Batista. E citando o seu profeta preferido, Isaías, completou: “É dele que está escrito: 'Eis que envio o meu mensageiro à tua frente; ele vai preparar o teu caminho diante de ti'.” (Mt 11, 10) Com essa autodescrição, Jesus está, ao mesmo tempo, afirmando que João é o último Profeta e que Ele, Jesus, é o Messias. Em outra ocasião, Jesus havia utilizado outra passagem de Isaías para se identificar na sinagoga, perante os rabinos e os chefes do povo, quando foi convidado para fazer a leitura e escolheu um trecho de Isaias, conforme está relatado no evangelho de Lucas (4, 16). Após a leitura na qual Isaías falava sobre as qualidades do futuro Messias, Jesus disse: hoje se cumpriu essa escritura. Foi como se dissesse: Isaías estava falando a meu respeito. E complementando o elogio que fazia a João Batista, assim terminou o seu discurso: “de todos os homens que já nasceram, nenhum é maior do que João Batista.” (Mt 11,11) Vejam que Jesus exclui a si próprio dessa referência, fazendo assim uma alusão velada à sua divindade. Ele nunca falava de si mesmo diretamente, mas sempre de forma indireta. Porém, logo depois, Jesus faz um surpreendente elogio a todos nós, cristãos: “No entanto, o menor no Reino dos Céus é maior do que ele.” Ou seja, Jesus coloca os seus seguidores (quer dizer, nos coloca) acima de João Batista, porque ele não chegou a ver a revelação e a salvação, que nós conhecemos através dos seus ensinamentos e a eles aderimos através do nosso batismo.

Que nós realmente façamos por onde sermos dignos desse escancarado elogio que Jesus nos fez.

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domingo, 4 de dezembro de 2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 2º DOMINGO DO ADVENTO - COM A PÁ NA MÃO - 04.12.2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 2º DOMINGO DO ADVENTO – COM A PÁ NA MÃO – 04.12.2016

Caros Leitores,

Neste segundo domingo do advento, a liturgia introduz a figura de João Batista, considerado o último Profeta do Antigo Testamento, aquele que faz a transição do Antigo para o Novo. E a linguagem de João Batista é dura e ríspida contra as pessoas de fé dissimulada. Dirigindo-se aos fariseus e saduceus que vinham até ele a fim de receber o batismo, sem fazerem a conversão do coração, ele fulmina: toda árvore que não der bons frutos será cortada e lançada ao fogo. O Messias virá com a pá na mão, para limpar a sua eira. A palha seca será queimada num fogo que nunca se apaga. Daí o lema de sua pregação: convertei-vos enquanto é tempo, porque o dia está próximo. Dando prosseguimento ao tema iniciado no domingo anterior, acerca da vigilância permanente, temos neste domingo a advertência contra a simulação da fé. Não basta dizer “eu sou filho de Abraão” para obter a salvação, se essa afirmação for apenas da boca para fora. A verdadeira conversão vem de dentro, vem do coração.

Na primeira leitura, do extraordinário profeta Isaías, aquele que era o preferido nas citações de Jesus Cristo, vemos o traçado do perfil do futuro Messias (Is 11, 1-10): do tronco de Jessé surgirá um rebento e sobre ele repousará o Espírito do Senhor. Jessé é o pai do rei Davi. Davi havia sido o grande rei de Israel e formou, com Salomão, o período histórico mais próspero da vida daquele povo. O reinado de Davi foi decantado por muitos séculos como o melhor da história do seu povo. Ele foi sucedido por Salomão, que continuou com um reinado de muita prosperidade, porém os reis que vieram depois não prosseguiram na fidelidade a Javeh e o povo enfrentou muitas tentativas de domínio, até que ocorreu a derrota da Samaria para a Assíria, cujo rei Senaqueribe fez também o cerco de Jerusalém, vindo posteriormente a também dominá-la. O profeta Isaías vivenciou esses tempos conturbados, em que os governantes do povo se afastaram das promessas da Aliança, com enormes sacrifícios para o povo. Então, ele transmitia mensagens de conforto e esperança para a população, anunciando a vida do Messias, que descenderá da linhagem de Davi e fará retornar a paz e a prosperidade a Israel.

Ao traçar o perfil do futuro Messias, o Profeta não economiza palavras: “Ele não julgará pelas aparências que vê nem decidirá somente por ouvir dizer; mas trará justiça para os humildes  e uma ordem justa para os homens pacíficos.” (Is 11, 3-4). E para simbolizar a paz que o Messias trará para o povo, o Profeta utiliza imagens bastante significativas, mostrando que até os “inimigos naturais” viverão em harmonia: “O lobo e o cordeiro viverão juntos  e o leopardo deitar-se-á ao lado do cabrito; o bezerro e o leão comerão juntos e até mesmo uma criança poderá tangê-los. A vaca e o urso pastarão lado a lado, enquanto suas crias descansam juntas; o leão comerá palha como o boi.” (Is 11, 6-7). Isaías escreveu isso cerca de 700 anos antes de Cristo e é absolutamente impressionante como essas figuras simbólicas se harmonizam com a doutrina que Cristo veio ensinar, dando ênfase total no amor a Deus e ao próximo, como sendo esta a regra básica da Escritura, aquela que todos devem seguir. O evangelista Lucas (4, 14) relata claramente aquele conhecido episódio do dia em que Jesus Cristo foi convidado para fazer a leitura na Sinagoga, uma leitura do livro de Isaías, e ao terminar de ler, declarou: “hoje se cumpriu essa profecia que acabaste de ouvir.” Ou seja, Cristo confirmou em público que as predições de Isaías se referiam à pessoa dele. Em outras palavras: Ele é o Messias de quem falava o profeta Isaías. Não precisa acrescentar mais nada.

Na segunda leitura, da carta do apóstolo Paulo aos Romanos (15, 4-9), percebemos ali implícita a questão dos judaizantes, isto é, daqueles cristãos convertidos do judaísmo e que afirmavam que para ser cristão, era necessário antes circuncidar-se, seguindo a lei de Moisés. Paulo explica, de forma bem didática, que o Messias veio não apenas para os judeus, mas também para os gentios e que agora não há mais que falar na lei de Moisés, porque Cristo trouxe uma nova lei: a lei do amor. Essa foi uma questão que deu muito trabalho a Paulo para conseguir apaziguar as partes divergentes, fazendo-se necessário que ele usasse de todo seu poder de convencimento, conforme se verifica nesse trecho (15, 8-9): “Cristo tornou-se servo dos que praticam a circuncisão, para honrar a veracidade de Deus, confirmando as promessas feitas aos pais. Quanto aos pagãos, eles glorificam a Deus, em razão da sua misericórdia.” Cristo vem anunciar a Boa Nova da salvação tanto para aqueles praticantes da circuncisão (judeus, que agora não precisam mais fazê-la) quanto para aqueles que não foram circuncidados. Aos primeiros, em razão do cumprimento das promessas da aliança com Javeh; aos outros, em razão de sua divina misericórdia. Não é necessário converter-se antes ao judaísmo, para tornar-se um seguidor de Cristo, porque a misericórdia divina supera essa distinção. E conclui esse raciocínio desse modo (15, 6): “Assim, tendo como que um só coração e a uma só voz, glorificareis o Deus e Pai do Senhor nosso, Jesus Cristo. Por isso, acolhei-vos uns aos outros, como também Cristo vos acolheu, para a glória de Deus.” Com a Nova Aliança, não há mais que falar na lei anterior, pois ela já foi superada e assim não mais vale nem para os herdeiros da promessa nem para os novos convertidos, pois agora todos são um só coração e uma só voz.

No evangelho deste domingo, da autoria de Mateus (3, 1-12), surge a figura emblemática de João Batista, encerrando o ciclo profético e, ao mesmo tempo, abrindo a porta para aquele que é “mais do que um profeta”, pois não fala mais em nome de outrem, mas em nome próprio. No entanto, por estar ainda na perspectiva temática dos antigos Profetas, a linguagem de João ainda reflete aquela imagem de Deus furioso e tremendo, como era o padrão da imagem de Javeh no Antigo Testamento. Mateus diz que João foi anunciado pelo profeta Isaías, quando declarou que “uma voz clama no deserto: preparai o caminho do Senhor”. João pregava no deserto da Judeia, nas proximidades do rio Jordão e a sua figura exótica logo se tornou conhecida por toda a população da redondeza: um eremita que se vestia com couro de camelo, morando em abrigos naturais, alimentando-se de gafanhotos e mel do campo, cabelos e barba sem qualquer trato, alguns o tomavam como um louco, mas outros viam nele um homem de fé e o procuravam para ouvir a sua pregação. Fez inúmeros seguidores, alguns dos quais, posteriormente, tornaram-se discípulos de Cristo. Para aquelas pessoas que demonstravam sinceridade de propósitos, João aplicava o batismo da conversão. Mergulhar nas águas do rio Jordão era o símbolo de uma lavagem exterior e interior, o que implicava uma mudança de hábitos mas, sobretudo, a conversão do coração, dando cumprimento ao sentido mais exato da palavra “batismo”: um ato externo que simboliza uma mudança interna na pessoa.

Mas João Batista era extremamente ríspido com aqueles que ouviam as suas palavras e não mostravam convicção, como era o caso dos fariseus e saduceus, que o procuravam apenas por curiosidade. “Raça de víboras”, tradução literal do latim “progenies viperarum”, que é, por sua vez, tradução literal do grego “gennímata echidnon”. A tradução da CNBB diz “raça de cobras venenosas”, mas me parece desnecessário esse eufemismo, por isso, prefiro “víboras” mesmo. Continua João: vocês pensam que basta dizer que “sou filho de Abraão” para com isso obter a salvação? Pois tenham cuidado: o machado já está na raiz da árvore e toda árvore que não der bom fruto será cortada e jogada ao fogo. Meus amigos, precisamos refletir sobre a nossa vivência da fé cristã, para que não nos tornemos meros executores de atos religiosos externos, sem que o nosso coração esteja sintonizado e coerente com as nossas ações. Cai bem aqui aquela conhecida música antiga de Fernando Mendes: não adianta ir à igreja rezar e fazer tudo errado. Em outras palavras, era isso o que João Batista queria dizer. Não podemos agir como os fariseus e saduceus daquele tempo.

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