domingo, 28 de fevereiro de 2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 3º DOMINGO DA QUARESMA - CONVERSÃO NECESSÁRIA - 28.02.2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 3º DOMINGO DA QUARESMA – CONVERSÃO NECESSÁRIA – 28.02.2016

Caros Confrades,

Neste 3º domingo da quaresma, as leituras litúrgicas fazem referência à automanifestação de Javeh a Moisés, no monte Horeb, tanto na leitura do Êxodo, quanto na carta de Paulo a Coríntios. No texto do evangelho de Lucas (13, 1-9), menciona-se a necessidade da conversão, com exemplos dados por Jesus, inclusive aquela parábola da figueira que não dava frutos.

Na primeira leitura, do livro do Êxodo (3, 1-8), vemos a vocação de Moisés, quando Javeh o escolheu para falar diante do Faraó. Isso aconteceu no monte Horeb, que é o mesmo monte Sinai. Curiosamente, hoje não se sabe com certeza onde fica esse monte. Os rabinos atuais divergem entre si acerca de três montes daquela região, sem saber qual deles teria sido o cenário da narrativa do Êxodo, sobre a sarça que pegava fogo sem se queimar. São os seguintes: 1. o monte Jebel Mussa ("a Montanha de Moisés") localizada entre as Montanhas de Granito ao sul da Península do Sinai; 2. o Monte Karkom, localizado ao sul de Israel, muito próximo da fronteira egípcia; 3. o monte Jebel el-Lawz, na Arábia Saudita, localizado numa região chamada de Midian, na época bíblica. Chega a ser incompreensível o fato de uma montanha tão importante para a história de Israel não ter uma localização geográfica estabelecida com precisão. O texto do Êxodo (3, 1) diz que Moisés apascentava o rebanho do seu sogro, que era sacerdote de Madiã. Pela correspondência da nomeclatura, parece que a terceira opção é a mais provável, no entanto, as peregrinações são mais constantes no monte Jebel Mussa, o que torna muito confusa a definição. Outra curiosidade é a palavra “sarça”, que em hebraico se diz “seneh” e que serve como etimologia para o nome “sinai”. Esta é uma planta comum na região, um arbusto espinhoso, da mesma família das acácias, que existem no Brasil mas não são espinhosas. Então, o que chamou a atenção de Moisés não foi a planta, porque havia muitas, e sim o fato de que estava “pegando fogo”, mas não se queimava, levando-o a perceber ali algo miraculoso.

Ao aproximar-se, uma voz vinda do fogo mandou que ele ficasse longe e tirasse a sandália, porque aquela terra era sagrada. No diálogo entre Moisés e Javeh, Moisés perguntou-lhe o nome, foi quando Javeh emitiu uma autodefinição enigmática: “eu sou”, sem quaisquer complementos. O nome de Javeh é apenas “eu sou”, pois de fato, Deus não tem complementos, ele é todo e integralmente um, tornando-se desnecessária qualquer outra explicação. De acordo com o Monsenhor Manfredo Ramos, no sermão dominical, o verbo hebraico que é traduzido em português por “eu sou” (Ehyeh) tem um significado muito mais amplo do que a expressão correspondente em português, pois inclui não apenas o significado de “ser”, também o sentido de 'fazer ser', ou seja, além de SER absolutamente, Ele também faz as coisas serem. Seria uma autodefinição de Javeh como o criador do universo. “Eu sou” tem assim um significado ativo e dinâmico de ser, não o aspecto estático que a expressão em português sugere. “Eu sou”, este é o nome de Deus para sempre e assim ele será lembrado de geração em geração. Do nosso ponto de vista, para Deus, o nome não é o mais importante, mas sim a fé que temos nele e com base nesta fé, nós somos todos irmãos e sob a luz dessa mesma fé orientamos todas as ações da nossa vida.

Na segunda leitura, da carta de Paulo a Coríntios (1Cor 10, 1-6), encontramos a menção aos patriarcas e aos hebreus que atravessaram o deserto, conduzidos por Moisés, fugindo da escravidão em que viviam no Egito. Apesar de serem constantemente favorecidos por Javeh comendo o maná e bebendo a água do rochedo, no entanto desagradaram a Deus e muitos morreram antes de chegarem na terra prometida. O próprio Moisés também teria recebido esse castigo, por haver duvidado do poder de Javeh. Na carta a Coríntios, Paulo reproduz uma figura que era muito conhecido dos judeus daquele tempo, que era a imagem do Deus furioso e vingativo, que amava o povo, mas não os poupava, quando cometiam infidelidades. Então, diz Paulo, estes fatos devem servir de advertência a vocês, para que não repitam as mesmas atitudes reprováveis cometidas pelos seus antepassados, que foram alvo do anjo exterminador. Vejam bem: “anjo exterminador” é uma figura cultural do povo hebreu que parece indicar algo que, nos dias de hoje, chamamos de “castigos de Deus”. É interessante como, na cultura religiosa do nosso povo, ainda permanecem essas figuras fantásticas e aterrorizantes encontradas na tradição bíblica mais antiga.

Então, podemos perguntar: por que Paulo usaria essas imagens do tempo antigo já na era cristã, numa época em que Jesus Cristo já havia dito que tinha vindo abolir aqueles costumes com o seu novo mandamento? Na verdade, Paulo faz referência ao rochedo donde brotava a água no deserto, vendo neste rochedo uma prefigura de Cristo, a fonte da água viva. Verifica-se, na verdade, um esforço de Paulo para integrar a antiga aliança com a nova aliança, através de uma catequese que aproveitasse os conhecimentos da tradição hebraica, pois os cristãos da cidade de Corinto eram, em grande parte, judeus convertidos, que conheciam bem essas histórias dos patriarcas. Ficava, portanto, mais fácil para Paulo lançar mão dos conceitos da tradição conhecida por eles para fazer a relação com a mensagem de Cristo. Havia, entre estes judeus, um conceito que nós ainda encontramos na mentalidade religiosa do nosso povo de que, quando acontece algo de ruim com alguém, aquilo foi um castigo de Deus. Isso era também entendido pelo raciocínio inverso, ou seja, que quando alguém havia sido beneficiado com algo de bom, isso seria um prêmio de Deus, uma espécie de reconhecimento de Deus pelos méritos desta pessoa.

Essa referência aos Patriarcas termina com a advertência de Paulo: quem julga estar de pé, tome cuidado para não cair. (1Cor 10, 12). Esse cuidado diz respeito à conversão do coração, todos nós necessitamos constantemente de conversão. Converter-se quer dizer estar sempre voltado para Deus, não apenas quando passamos por alguma dificuldade, enfrentamos uma adversidade. Alguns cristãos só se lembram de rezar, de voltar-se para Deus quando as coisas não vão bem. Então, diz Paulo, quem pensa que está de bem com Deus porque não foi castigado e, ao contrário, pensa que o irmão que sofre é porque não está de bem com Deus, deve mudar essa mentalidade. Se não houver “conversão” contínua, isto é, se não houver mudança de mentalidade, pode acontecer o mesmo que aconteceu no deserto: virá o “anjo exterminador”, representado sob a forma de presunção da salvação. Ninguém tem a salvação garantida, pois essa depende de esforço constante. Com isso, ele quer significar que a conversão não é uma atitude que acontece uma vez na vida e pronto, mas ela deve ser renovada a cada dia, na nossa consciência e nas nossas atitudes. O batismo não é garantia de salvação por si só, se não for complementado com um trabalho contínuo de renovação interior, pela leitura e meditação da escritura, pela inserção dos ensinamentos de Cristo no nosso dia a dia. Por isso ele adverte: quem pensa que está em pé (de bem com Deus, com a salvação assegurada), tenha cuidado para não cair (não deixar a presunção e o orgulho embotarem a sua visão de fé).

Este é também o ensinamento que retiramos da passagem do evangelho de Lucas (13, 1-9), quando os judeus falaram a Jesus sobre alguns do povo que haviam sido mortos por ordem de Pilatos, que confundiu o ritual de sacrifícios de animais deles com alguma ação de rebeldia, de modo que eles foram assassinados sendo inocentes. Por isso, Jesus pergunta aos próprios portadores da notícia: por acaso, vocês pensam que estes que morreram eram mais pecadores do que os outros? Dentro daquela mentalidade judaica, essa desgraça acontecida com cidadãos inocentes era entendida como um 'castigo divino' por alguma coisa imprópria feita por eles. Então, Jesus aproveita a ocasião para ensinar que não é nada disso, que não se deve associar o sofrimento de alguém com uma espécie de 'vingança' de Javeh, porque isso pode acontecer a qualquer um. Não se trata de vingança de Javeh, mas trata-se de um fato da vida, que não está relacionado com o poder divino, mas com a negligência ou ignorância dos seres humanos. Trazendo para os dias de hoje, Jesus diria que os tsunamis, o desequilíbrio ecológico do planeta, as epidemias viróticas disseminadas por toda a parte, a violência generalizada não são castigos divinos, mas são produtos da ação egoísta e desastrosa comandada pelo próprio homem.

Meus amigos, ouçamos com nossos ouvidos de hoje o que diz Paulo e não deixemos que o mesmo venha a acontecer conosco. Quem pensa estar de pé, tenha cuidado para não cair.

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domingo, 21 de fevereiro de 2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 2º DOMINGO DA QUARESMA - CORPO GLORIFICADO - 21.02.2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 2º DOMINGO DA QUARESMA – CORPO GLORIFICADO – 21.02.2016

Caros Leitores,

Neste domingo, 2º da quaresma, a liturgia nos traz a narração da transfiguração de Cristo perante os apóstolos Pedro, Tiago e João, exibindo diante dele o seu corpo glorioso, tal qual se manifestaria mais tarde aos doze, após a ressurreição. Transfigurando-se, Jesus dá demonstração do seu poder e da sua origem divina. Nas outras leituras, fala-se sobre a promessa de Javeh a Abrão, dando início ao povo eleito, e sobre a advertência de Paulo aos Filipenses, dizendo que nós seremos transfigurados um dia, tal como aconteceu com Cristo.

Na primeira leitura, lemos o início das tratativas entre Abrão e Javeh, com vistas à formação da aliança, que deu origem ao povo escolhido. Abrão pede um sinal e Javeh mandou que ele trouxesse animais e aves para sacrificar em sua homenagem, ocasião em que Javeh trouxe o fogo do céu para a consumação do sacrifício, prometendo a Abrão uma descendência mais numerosa do que as estrelas. Esta passagem do Gênesis (Gn 15, 17), assim como outras similares, formam aquele conjunto de conteúdos legendários da memória hebraica, sustentados durante séculos por uma tradição oral, com imensas probabilidades de alterações ao longo do tempo, pois nenhuma tradição oral se mantém incólume por muito tempo. E reflete também a cosmologia da época, na que se refere à contagem das estrelas, pois estas eram entendidas como se estivessem penduradas na abóbada celeste. De fato, Abrão ficou com certo temor de acreditar nessa promessa de ter uma geração numerosa, por isso, pediu a Javeh um sinal, para que pudesse acreditar. Com efeito, Abrão era já idoso, assim como sua mulher Sarah, e não tinham conseguido gerar filhos até então, quanto mais a idade de ambos avançava, mais isso ficaria impossível. E como se cumpriria a promessa? Essa era a dúvida dele.

É no contexto dessa dúvida de Abrão que, com o consentimento de Sarah, ele gerou um filho na sua escrava egípcia Agar (a quem chamou de Ismael), antes que Sarah gerasse Isaac. Essas narrações legendárias incluídas no Pentateuco têm por finalidade explicar que todos os povos daquela região seriam descendentes de Abrão, porém enquanto os israelitas eram descendentes pelo lado legítimo da filiação de Isaac, filho da esposa, os outros povos eram descendentes de Abrão pelo lado ilegítimo de Ismael, filho da concubina dele. Essas histórias explicavam também porque aqueles povos habitavam naquela região “entre o rio do Egito (Nilo) e o rio Eufrates” (Gn 15, 18), no entanto, os verdadeiros “donos da terra” eram os israelitas, por serem filhos da esposa legítima de Abrão, os herdeiros da promessa de Javeh a Abrão.

Na segunda leitura, da carta de Paulo à comunidade de Filipos, uma das primeiras comunidades cristãs fundadas por ele, pela qual ele tinha grande estima, constata-se a angústia de Paulo (Fl 3, 18) quando ele escreve: muitos de vocês estão se comportando como inimigos da cruz de Cristo..., sede meus imitadores, vivam de acordo com o evangelho que eu vos dei. Não dêem maus exemplos, pensando só nas coisas terrenas, porque nós somos cidadãos do céu. Então, Paulo faz o seu discurso futurológico, ao afirmar que (Fl 3, 21), se vivermos de acordo com o evangelho, teremos no céu um corpo glorioso, semelhante ao corpo de Cristo. Os povos gregos eram os grandes comerciantes daquela região do Mediterrâneo. Os filipenses ouviram e aceitaram a pregação de Paulo, convertendo-se ao cristianismo. Mas quando Paulo viajou para fundar outras comunidades, os filipenses se voltaram aos seus afazeres materiais, diversões, comes e bebes, deixando de lado a vivência da fé cristã. Daí a chamada de atenção de Paulo: ouvi dizer que alguns de vocês se comportam como inimigos da cruz de Cristo… não façam isso, o fim destes é a perdição, o deus deles é o estômago e a sua glória está na vergonha. Esta advertência de Paulo cabe bem nos nossos dias, quando percebemos fiéis que esquecem os compromissos de cristãos sufocados pelas urgentes e inadiáveis necessidades do dia a dia. Não podemos deixar que o nosso deus seja a gula nem que a nossa glória esteja nos bens materiais. A vivência da fé deve iluminar nossas atividades profissionais e nossos compromissos cotidianos e não pode ser um empecilho para o exercício destes. Da mesma forma que essas atividades não podem se antepor aos nossos compromissos de fé, mas ambas devem conciliar-se mutuamente.

Na leitura do evangelho de Lucas (9, 29-36), o tema é a narração da transfiguração de Jesus diante de Pedro, Tiago e João. Pela narração do evangelista, deduz-se que eles não entenderam nada daquilo, agarraram no sono e quando acordaram, Jesus já estava se despedindo. O completo entendimento desse episódio somente chegou para eles muito tempo depois, quando Jesus já havia ressuscitado. Chega-se a essa conclusão pelo contexto da narrativa. Primeiro, aquela visão espiritualizada de Cristo conversando com dois personagens também espirituais; segundo, o assunto da conversa (de acordo com Lucas, Jesus conversava com Moisés e Elias sobre a sua futura paixão e morte, coisa que ele já tinha explicado diversas vezes e eles não conseguiam entender); terceiro, os discípulos devem ter ficado hipnotizados com aquela visão fantástica e quedaram-se em profunda letargia. Diz Lucas (9, 36) que aqueles discípulos não falaram nada daquilo pra ninguém e nem conversavam entre eles sobre o assunto. Cada um deve ter pensado que tivera um sonho (ou um pesadelo) e até um teve receio de comentar com o outro, pois não sabia se o outro também tinha visto aquilo.

Uma observação textual merece ser aqui destacada. O evangelista Lucas diz que uma nuvem os encobriu a todos, os discípulos também ficaram cobertos pela nuvem, de onde saiu uma voz, que dizia: este é o meu filho dileto, escutai-o. O texto oficial da CNBB escreve “meu filho escolhido”, mas essa não me parece a melhor tradução. A palavra grega escrita por Lucas é “eklelegménos”, conjugação do verbo “legow”, que São Jerônimo traduziu por 'dilectus'. Conforme o dicionário, o verbo “legow” tem o significado de escolher, mas tem também o sentido de anunciar, declarar, então no contexto da história da salvação, parece-me que este último sentido estaria mais apropriado. Daí eu preferiria traduzir a expressão por “meu filho prometido”, porque assim fica mais coerente com a leitura do Gênesis (primeira leitura), onde se rememora a aliança com Abrão, o futuro desta promessa era a vinda do Salvador. Jesus é, portanto, aquele que fora prometido desde o início. “Escolhido”, como traduziu a CNBB, dá a impressão que Javeh teria vários filhos e escolheu Jesus, por isso não me parece uma tradução apropriada.

Os dois personagens com os quais Jesus dialogava (Moisés e Elias), de acordo com a explicação tradicional da exegese, representam a Lei e os Profetas. Esse entendimento também se encontra na fé judaica, como se pode ver na palavra “tanach”, com a qual os judeus resumem toda a sua Bíblia. A palavra “tanach” é formada de um acróstico com as iniciais de “torah” (lei de Moisés), “neviim” (profetas representados por Elias) e “chetuvim” (os escritos sapienciais). Ao transfigurar-se e aparecer junto com Moisés e Elias, Jesus estava referendando a Lei e os Profetas e acrescentando a elas os seus próprios ensinamentos. Assim é que se faz o entendimento cristão da presença dos três personagens no episódio da transfiguração.

Agora, ponho outra questão: por que Jesus não chamou todos os doze apóstolos para testemunharem aquela demonstração de sua divindade, mas apenas aqueles três? Fica difícil saber com certeza, mas podemos fazer conjeturas. Talvez, um reconhecimento da liderança de Pedro, fato que seria posteriormente tomado como argumento para justificar o primado do Papa. Talvez o fato de João e Tiago terem parentesco com Jesus (lembremo-nos que, na hora da morte, Jesus confiou Maria, sua mãe, aos cuidados de João) e Tiago é muitas vezes citado como “o irmão do Senhor”, ambos apontados como filhos de Salomé (mulher de Zebedeu), que seria irmã de Maria, mãe de Jesus. Essas genealogias são repletas de controvérsias, no entanto, o fato de terem sido eles dois escolhidos para testemunhar o fato miraculoso reforça essa tese, por serem pessoas de sua maior confiança.

À margem dessa polêmica, exsurge o fato de que nós, cristãos, somos todos escolhidos por Jesus para conhecer sua doutrina e chamados a participar da construção do céu na terra. Aos apóstolos, Jesus não se mostrou a todos, mas a nós, Ele se revelou sem restrição. Daí o conselho de Paulo, que pediu chorando aos Filipenses para que eles não se deixassem levar pela atração das coisas terrenas, porque assim estavam se desviando do foco da missão que ele, Paulo, lhe havia deixado. E quando a nós, Paulo nos adverte que tenhamos sempre na mente o nosso destino glorioso, nunca perdendo o foco nas promessas do nosso batismo.

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domingo, 14 de fevereiro de 2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 1º DOMINGO DA QUARESMA - O SIMBOLISMO DAS TENTAÇÕES - 14.02.2016

COMENTÁRIO LITURGICO – 1º DOMINGO DA QUARESMA – O SIMBOLISMO DAS TENTAÇÕES – 14.02.2016

Caros Leitores,

A liturgia deste 1º domingo da quaresma põe para nossa reflexão o tema das tentações suportadas por Jesus Cristo, logo após o batismo e antes de iniciar sua atividade missionária. Esse tema traz de imediato a pergunta: Jesus podia ser tentado? Teria Satanás um poder tão extraordinário, a ponto de perturbar a paz de espírito de Jesus? Ou será que o evangelista exagerou na narrativa, com figuras de linguagem exacerbadas para chamar a atenção dos leitores? Nas duas primeiras leituras, o tema em destaque é a fé na dimensão da universalidade: no texto de Deuteronômio, a fé do povo hebreu em Javeh; no texto de Paulo a Romanos, a fé em Cristo, que congrega todos os crentes.

De início, convém destacar a presença da simbologia do número 40, tanto na leitura de Deuteronônio e quanto no evangelho de Lucas. Dentro do contexto bíblico, o número 40 aparece com frequência e sempre antecedendo a ocorrência de um fato muito importante. Quando o narrador inclui uma situação em que desponta o símbolo 40, isso não significa literalmente a passagem de 40 dias ou meses ou anos, mas o tempo oportuno para o poder de Deus se manifestar através de alguma obra grandiosa. Na liturgia moderna, a simbologia dos 40 dias é observada no período que antecede a Páscoa (quaresma) e no período que vai da Ressurreição até a Ascensão de Jesus.

Na primeira leitura (Deuteronômio, 26, 4-10), o texto traz as instruções de Moisés aos seus auxiliares, porque ele já sabia que não chegaria até a terra prometida, apenas a veria de longe. Possivelmente, a instrução seria para Josué, que foi o sucessor de Moisés no comando do povo, na reta final. Quando eles chegassem à terra prometida, deviam levar ao altar do Senhor em oferenda os primeiros frutos da terra e ali professar o agradecimento de todo o povo pela libertação da escravidão e pela condução que tiveram durante a peregrinação pelo deserto, tempo em que tiveram de enfrentar um sem número de desafios físicos e espirituais, tendo o Senhor conduzido-os sempre e constantemente perdoado as infidelidades deles. O livro tem esse título (deuteros+nomos=segunda lei) porque se trata de um compêndio encontrado posteriormente numa escavação no templo e que repete em parte normas já contidas na Torah, os cinco primeiros livros. Este livro é um verdadeiro 'código de legislação' hebraica, tantas e tão pormenorizadas são as prescrições e os rituais descritos. É uma verdadeira compilação do direito hebreu, que não fazia distinção entre normas religiosas e normas civis, porque a sua organização era um estado teocrático, situação que ainda hoje persiste nos países da religião islâmica.

Temos na segunda leitura (Paulo a Romanos, 10, 8-13), a lição paulina sobre a universalidade da fé em Cristo: é irrelevante se alguém é judeu ou grego, nascido na fé ou pagão convertido – e nós podemos acrescentar: europeu ou americano, africano ou indiano – o que importa é crer em Jesus com o coração e confessar essa fé com a boca, pois todo que nEle crer não ficará confundido. Quando Paulo fez essa afirmação, pensava apenas no mundo do seu tempo, mas por extensão, alcança todos nós. Especificamente, Paulo tencionava solucionar aquela polêmica que surgiu em Roma com os cristãos judaizantes em relação aos novos cristãos convertidos do paganismo. Os judeus cristãos achavam que só podia ser cristão quem aderisse primeiro à lei de Moisés e fizesse a circuncisão, querendo que essa regra fosse observada pelos cristãos de origem grega. Então, Paulo ensinou que o batismo cristão supre e substitui todos os rituais da antiga lei judaica. Roma, a grande metrópole na qual o cristianismo se universalizou, era uma grande babel daquele tempo, abrigando pessoas das mais diversas origens e nacionalidades, consequentemente, dos mais diversos idiomas e costumes. Foi o primeiro grande desafio enfrentado na pregação do evangelho para os pagãos ou gentios, resolvido graças à intervenção oportuna e sábia de Paulo, que fez prevalecer a sua autoridade de apóstolo para convencer os mais reticentes.

A leitura do evangelho de Lucas (4, 1-13) repete a narração contida nos outros dois sinóticos: após ter sido batizado por João Batista, o Espírito conduziu Jesus ao deserto, onde ele jejuou durante 40 dias e foi tentado por Satanás. Ora, pergunta-se: Qual o poder que Satanás teria sobre o Filho de Deus, a ponto de desafiá-lo? Em que medida Satanás teria controle sobre as riquezas da terra, de modo a colocar isso como um atrativo para Jesus? Qual o conhecimento que Satanás tem da Sagrada Escritura, de modo a utilizar citações bíblicas para tentar convencer Jesus? Ora, com certeza temos aí figuras literárias, simbolismos linguísticos, certo exagero de descrição com caráter pedagógico para ilustração dos leitores. As tentações de Jesus representam, na verdade, os 'perigos' que, para a sua natureza divino-humana, poderiam significar as situações de extrema pressão psicológica. Ele estava prestes a iniciar a sua missão de pregador e devia saber controlar adequadamente o exercício do poder divino, que ele sabia possuir. Para cumprir os desígnios do Pai e para cumprir o plano salvífico, Jesus precisava passar por todo aquele padecimento enquanto pessoa humana. De fato, nós sabemos que Jesus enfrentou diversos desafios, que para Ele seriam facilmente resolvidos se usasse o poder divino, mas ele não podia fazer assim. As tentações representam, na verdade, as grandes ambições que mais seduzem os seres humanos: vaidade, poder, riqueza. Foi uma espécie de treinamento que ele realizou para comportar-se plenamente conforme a natureza humana elevada ao seu mais alto grau de perfeição.

Então, quais foram mesmo as grandes 'tentações' de Jesus? 1. Transforma essas pedras em pão... tentação do poder; 2. Eu te darei todos os reinos... tentação da riqueza; 3. Joga-te daqui para baixo... tentação do orgulho/vaidade. Quantas vezes, os fariseus tentaram Jesus para que Ele realizasse um milagre na presença deles, porque eles só ouviam falar pela boca dos outros e queriam presenciar. Jesus nunca os atendeu. Herodes foi um que disse na cara de Jesus: “você é uma piada”, porque insistiu pra Jesus fazer um 'milagrezinho' na presença dele (cf Lucas 9, 7 e 23, 6), e Ele nada disse. Portanto, o retiro espiritual que Jesus fez antes de começar a pregar foi também uma preparação psicológica para as dificuldades práticas que ele teria de enfrentar. Assim, se quisermos encontrar a figura de satanás tentando Jesus, não busquemos essa no deserto, onde ele jejuou, mas nos diversos fariseus que o tentaram em vão. O próprio Judas, que certamente vira Jesus fazer vários milagres, não conseguia acreditar que Ele fosse suportar todas aquelas humilhações impostas pelos chefes dos sacerdotes e iria 'dar a volta por cima' numa situação de extremo perigo, até pagou pra ver, mas perdeu a aposta. Desculpem-me, meus amigos, porque talvez alguns não concordem com o que vou escrever, mas muitas vezes, as pessoas se servem a figura de satanás para encobrir suas próprias fraquezas e personalidade imperfeita. As grandes tentações que nos afetam não nos vêm de um agente exterior tentador, mas da nossa “trindade” interior, que habita no nosso subconsciente mais recôndito: id, ego e superego (tomando emprestada a terminologia de Freud).

Meus amigos, o filósofo austríaco Edmund Husserl, criador da filosofia fenomenológica, tinha uma frase que usava insistentemente: “voltemos às coisas mesmas”. Trago esta frase para este contexto pela mensagem que ela contém. Em vez de atribuirmos a satanás as coisas más que fazemos, vamos olhar no espelho, encaremos de frente o nosso próprio ser, sem ocultações ou subterfúgios. Voltemo-nos para nós mesmos e tenhamos coragem de assumir nossas fraquezas, pois somente assim criaremos condições de superá-las. Foi o que Jesus fez no deserto: refletir sobre si mesmo, sobre sua condição divina e humana, sobre a sua missão espinhosa e dolorosa da qual ele não podia se esquivar. A literatura transformou essa autoanálise em tentação e os subterfúgios inconscientes dele na figura do tentador. Mas nós devemos ir além dessa metáfora tradicional. Quando fazemos algo do qual depois ficamos arrependidos, não foi um satanás exterior que nos tentou, foi ação daquele demônio que reside num canto escuro do nosso ser mais íntimo e nós fazemos tudo para ocultá-lo, ignorá-lo através de processos de racionalizações das nossas próprias decisões equivocadas. Se sairmos disso, seremos capazes de reciclar também a nossa noção de pecado.

Que o Mestre nos ensine sempre e nos dê sempre força para superarmos as nossas imperfeições e frustrações.

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domingo, 7 de fevereiro de 2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 5º DOMINGO COMUM - AQUI ESTOU - 07.02.2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 5º DOMINGO COMUM – AQUI ESTOU – 07.02.2016

Caros Confrades,

Na liturgia deste 5º domingo comum, as leituras mostram três situações diferentes, pelas quais a vocação divina foi dirigida a três personagens importantes na história da salvação: o profeta Isaías e os apóstolos Pedro e Paulo. Esses exemplos nos levam a refletir sobre a nossa própria vocação, cada um de acordo com os seus talentos, de modo que possamos dizer, como o profeta Isaías, “aqui estou, envia-me”.

Na primeira leitura, temos o relato de Isaías narrando sobre a sua vocação profética (6, 1), onde ele diz que foi no ano da morte do rei Ozias (740 a.C.) que ele recebeu a missão de profetizar. Diz ele que viu o Senhor dos exércitos sentado no trono, rodeado de serafins, que o adoravam dizendo “santo, santo, santo” e ficou com medo, porque era apenas um pecador. Caiu por terra e tremeu, porque achava que ali iria morrer, pois de acordo com a tradição hebraica, ninguém tinha visto a Deus e depois continuado vivo, então Isaías achou que era o momento de sua morte. Foi quando um dos serafins tirou uma brasa do altar e com ela tocou a boca de Isaías, purificando-lhe os lábios para que ele pudesse falar em nome de Javé. Após isso, ele disse ao Senhor: estou pronto, envia-me. Este é, sucintamente, o relato de Isaías e daí podemos fazer algumas considerações.

Primeiro, destaco o fato de que foi Isaías o profeta que mais se aproximou da realidade do futuro Messias, inclusive sobre o sacrifício da cruz a que ele teria de se submeter, tanto assim que o texto de Isaías é o mais citado por Jesus nas suas pregações, inclusive no domingo passado lemos aquele texto em que Jesus diz expressamente que “se cumpriu a palavra do profeta”. Mas Isaías, por causa do contexto histórico e político do reino de Judá, onde ele vivia, sempre às voltas com guerras e ameaças por parte dos inimigos, tinha a visão de Javeh como um chefe guerreiro, o Senhor dos exércitos, de modo que as previsões que ele fez do Messias eram também de um destemido guerreiro, que viria expulsar os inimigos. Não é de admirar, portanto, que o povo hebreu tenha resistido em reconhecer a messianidade de Jesus, porque ele não veio na condição de libertador político, conforme havia sido previsto pelos profetas. Quando Jesus veio pregar um reino do amor e da mansidão, eles não viram nele aquela figura da sua expectativa histórica, que se formara ao longo de tantos séculos, como de um Messias guerreiro e lutador.

Segundo, esse trecho de Isaías contém ainda uma invocação que foi colocada no cânon da missa como parte fixa: o santo, santo, santo (Is 6, 3) que era o canto entoado pelos serafins que ladeavam o trono de Javeh. Em primeiro lugar, gostaria de explicar algo sob o aspecto gramatical, que não sei se todos sabem. Na língua hebraica, não há uma mudança morfológica na palavra, quando ela se põe no superlativo. Por exemplo, em português, o superlativo de “santo” é “santíssimo”, mas em hebraico, o superlativo da palavra se expressa com a repetição dessa palavra por três vezes. Desse modo, 'santo, santo, santo' (em hebraico: kadosh, kadosh, kadosh) quer dizer santíssimo. Outro detalhe é que Isaías escreve: Senhor Deus Sabaoth, palavra hebraica que significa exércitos e que não foi traduzida nem para o grego nem para o latim, mantendo-se a grafia original nesses dois idiomas. Quem se recorda da missa em latim, lembra disso: Sanctus, sanctus, sanctus, Dominus Deus Sabaoth. Assim era também em português, mas na reforma litúrgica, a CNBB preferiu alterar a denominação “Deus dos exércitos” por “Deus do universo”, como está hoje no texto oficial.

Outro detalhe interessante é que o serafim apanhou uma brasa do altar com uma tenaz (para não se queimar) e com ela tocou os lábios de Isaías (que não se queimou), ficando com isso purificado para falar em nome de Javeh. É interessante notar essa figura do fogo como símbolo da purificação, que tem presença constante nas imagens bíblicas. A brasa foi retirada do fogo que fora aceso para o sacrifício das vítimas que eram oferecidas ao Senhor. Ora, esse detalhe insinua que Isaías teve esta visão enquanto estava no templo. Isaías teve a árdua missão de denunciar os pecados do povo de Israel, desde os simples fiéis até os governantes, fato que ele fez com muita coragem, mesmo sabendo dos riscos que corria. Não é fato histórico confirmado, mas há uma tradição que afirma que Isaías morreu ao ter seu corpo serrado no meio, por ordem do rei Manassés, que ficou ofendido com as admoestações do profeta.

Na segunda leitura, o apóstolo Paulo conta, de sua própria pena, a sua vocação, história que todos conhecemos. Mas ele faz alguns complementos interessantes sobre as aparições de Cristo após sua ressurreição, narrativas que estão em certa divergência com os evangelhos. Por exemplo: diz que Jesus apareceu primeiro a Cefas (Pedro) e depois aos doze (2Cor 15, 5); esta aparição a Pedro isoladamente não consta nos evangelhos. Diz depois: mais tarde, apareceu a mais de 500 irmãos de uma vez, depois apareceu a Tiago e depois aos apóstolos todos juntos. Pelas narrativas evangélicas, essas aparições a 500 irmãos e a Tiago também não estão registradas, contudo, não se pode dizer que Paulo esteja faltando com a verdade, pois muitas tradições orais que eram conhecidas em algumas comunidades não eram conhecidas em outras e nem todas foram escritas.

Por fim, em 2Cor 15, 8, Paulo diz que Jesus apareceu também a ele (“como um abortivo”), afirmando não ser merecedor de tamanha honra. Nesse ponto, Paulo está fazendo um discurso de humildade, arrependido do tempo em que foi perseguidor da Igreja. Mas logo depois (vers. 10), ele faz um autoelogio, ao dizer: tenho trabalhado mais do que os outros apóstolos. Talvez como uma espécie de compensação, por ter sido perseguidor, Paulo tenha se dedicado muito mais do que os outros, em viagens e missões por todo o mundo grego, levando o cristianismo até Roma, que era a grande capital do mundo de então. Foi Paulo quem levou Pedro para presidir a comunidade de Roma, para dedicar a ele a honra de ser o líder cristão da cidade mais importante, fato que ainda hoje tem grande repercussão, na pessoa do Papa, bispo de Roma. Aliás, na minha convicção pessoal, a vocação de Paulo é uma das maiores provas da divindade de Cristo, porque se dependesse dos doze, dificilmente o cristianismo teria alcançado a expansão que atingiu, em termos de locais habitados naquela época. Com sua formação intelectual e sua pedagogia arrojada, pode afirmar-se que Paulo foi o primeiro teólogo, igualando-se a João em importância na elaboração doutrinária.

O evangelho de Lucas (5, 1-11) expõe a vocação dos primeiros apóstolos: Pedro e seu irmão André, que eram sócios de Tiago e João, filhos de Zebedeu, todos pescadores. Primeiro, Jesus entrou na barca de Pedro e pediu que se afastasse um pouco da margem do Mar da Galiléia (ou Lago de Genesaré), para que pudesse pregar para a multidão que estava na praia. Depois, Jesus ordena que Pedro adentre para águas mais profundas, a fim de pescar. Pedro estava meio desanimado, porque na noite anterior, a pescaria tinha sido um fracasco. Foi então que se deu a pesca milagrosa: eram tantos peixes que o peso deles rompia as redes e foi preciso chamar a outra barca (de Tiago e João), para que o auxiliassem. Foi quando Jesus convidou Pedro para ser pescador de gente, estendendo o mesmo convite aos demais.

Pois bem, meus amigos. O que vemos de comum nesses três episódios? É o fato de que Deus se serve de fatos da existência das pessoas para chamá-los a colaborar na Sua missão. Na história de nossas vidas, a vocação cristã nos põe diante desse desafio de identificar e cumprir a nossa missão na sociedade onde vivemos. Assim como Isaías, Pedro, Paulo e todos os apóstolos, se especularmos sobre o nosso passado, iremos encontrar diversos fatos pelos quais Jesus nos chama para dar testemunho dele, sendo essa a nossa missão. Missão é um conceito que se identifica com a nossa vida social, na qual somos chamados a viver de acordo com o evangelho, testemunhando a nossa fé perante a comunidade. Não é necessário ficar o dia todo com o terço na mão nem com a Bíblia embaixo do braço para simbolizar que estamos em missão. Quando cumprimos nossas tarefas com honestidade, convicção, amor ao próximo, alegria, integridade, estamos dando um testemunho muito mais eloquente e eficaz do que se estivéssemos só balbuciando orações em particular. Portanto, nós não precisamos sair da nossa rotina para colocar em prática a nossa vocação, para realizar na nossa vida o que Deus deseja e espera de nós, estejamos nós só na beira da praia ou em águas mais profundas. Em qualquer lugar em que nos encontremos, a missão está ao nosso alcance.

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