domingo, 29 de janeiro de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 4ª DOMINGO COMUM - HUMILDADE E MODESTIA - 29.01.2017


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO COMUM – HUMILDADE E MODÉSTIA – 29.01.2017



Caros Leitores,



Neste 4º domingo comum, a liturgia coloca para nossa reflexão a força extraordinária da humildade diante de Deus e diante dos semelhantes. Importa, porém, não confundir humildade com subserviência. Ser humilde não significa ser saco de pancadas para todos, não significa perder o amor próprio nem destituir-se da sua personalidade. Ser humilde é, antes de tudo, ser humano no mais autêntico sentido da expressão. A soberba, o orgulho, a arrogância são defeitos que não combinam com a autêntica imagem dos discípulos de Cristo. A humildade verdadeira tem tudo a ver com a modéstia no modo de ser e de agir. Vale aqui lembrar uma canção popular que proclama: homem que diz sou, não é. As qualidades da pessoa não precisam ser autopublicadas, pois todos os que com ela convivem aos poucos descobrirão.



Na primeira leitura, temos um trecho do profeta Sofonias (Sf 3, 12-13). Este profeta, pouco conhecido e classificado na Bíblia como um dos profetas menores, pois o seu livro possui apenas três capítulos, é descendente do rei Ezequias, portanto, um profeta de linhagem nobre. Seu nome significa “Deus se escondeu” e ele profetizou num tempo em que as lideranças dos hebreus buscavam alianças com os povos mais ricos da região, dividindo-se quanto à preferência pelos assírios ou pelos egípcios. Então, o profeta chama a atenção para o perigo dessas alianças, porque elas não contribuem para a aliança com Javé, que está “se escondendo” do povo e aplicará um grande castigo, se não houver mudança nessa associação com os povos pagãos. Por isso, ele adverte a todos que somente os humildes terão um refúgio no dia da cólera do Senhor. E define como é o comportamento dos humildes: “Eles não cometerão iniqüidades nem falarão mentiras; não se encontrará em sua boca uma língua enganadora; serão apascentados e repousarão, e ninguém os molestará.” (Sf 3, 13) Os líderes do povo hebreu não lhe deram ouvidos e a aliança com a Assíria converteu-se, algum tempo depois, no cativeiro da Babilônia, de onde só retornaram aqueles que compunham “o resto de Israel”. Esse é um tema importante nos escritos de Isaías e foi antecipado pelo profeta Sofonias nas suas advertências. Só o “resto de Israel”, isto é, só os humildes do povo da promessa obterão o refúgio no dia da cólera do Senhor. Somente estes retornaram do cativeiro, quando a cólera divina se manifestou.



Na segunda leitura, de Paulo dos Coríntios (1Cor 1, 26-31), o Apóstolo chama a atenção dos cristãos para a humildade como sendo a marca registrada do comportamento destes. Não são os ricos e nobres os preferidos de Deus, mas aqueles de quem, aparentemente, nada se espera. “Na verdade, Deus escolheu o que o mundo considera como estúpido, para assim confundir os sábios; Deus escolheu o que o mundo considera como fraco, para assim confundir o que é forte; Deus escolheu o que para o mundo é sem importância e desprezado, o que não tem nenhuma serventia, para assim mostrar a inutilidade do que é considerado importante.” (1, 27-28) Deus não nos escolhe por nossa sabedoria humana, nem por nossa nobreza e riqueza, ao contrário, ele observa a nossa humildade. O hino de Maria diante da sua prima Isabel repete essa temática noutro contexto: “Ele pôs os olhos na humildade de sua serva” (Lc 1, 48) e por ser humilde e modesta, Maria foi escolhida para ser a mãe de Deus. O Seráfico Patriarca São Francisco foi um desses mestres da humildade. Começou quando ele deixou todas as riquezas e todo bem-estar que a riqueza do seu pai lhe proporcionava e passou a viver como mendigo. Todos se recordam daquele episódio em que, diante do Bispo de Assis, ele argumentava com o pai dele e, por fim, não o convencendo, entregou a ele até a própria roupa do corpo, tendo sido acolhido pelo Bispo ali no meio da rua. São Francisco era praticante daquela humildade radical e esse ensinamento ele deixou nos seus escritos. Todos conhecem uma frase famosa dele: “Ninguém é suficientemente perfeito que não possa aprender com o outro; e ninguém é totalmente destituído de valores que não possa ensinar algo ao seu irmão.” Nos Fioretti de São Francisco (cap 2), é contada a história de Frei Bernardo de Quintavale, um rico comerciante de Assis que, tocado pela humildade e santidade de Francisco, passou a admirá-lo e segui-lo, tendo depois vendido todos os bens que possuía e adotou o mesmo modo de vida franciscano de humildade e pobreza. E o apóstolo Paulo arremata a sua admoestação aos Coríntios sintetizando o conceito de humildade, repetindo uma passagem antiga do profeta Jeremias (Jr 9, 24): “como está escrito, aquele que se gloria, glorie-se no Senhor”. Nenhum cristão terá acumulado mérito suficiente para gloriar-se, a não ser que tenha recebido isso de Deus. E diz mais, no vers. 30: “É graças a ele que vós estais em Cristo Jesus, o qual se tornou para nós, da parte de Deus: sabedoria, justiça, santificação e libertação”. Em resumo, tudo do que podemos nos gloriar é recebido do alto e assim deve ser demonstrado e reconhecido.



Na leitura do evangelista Mateus (Mt 5, 1-12), temos a grande apologia da humildade, feita pelo próprio Cristo, naquele memorável pronunciamento conhecido como “sermão da montanha”. A humildade se manifesta na pobreza, não exatamente na carência de bens, mas na pobreza de espírito, porque há pessoas carentes material e socialmente, mas que possuem espírito opulento e avaro, onde moram a ganância e o egoísmo. Ser destituído de bens materiais não significa necessariamente ser pobre, no sentido cristão. E o contrário, possuir bens materiais também não significa falta de pobreza de espírito. O evangelista diz, em outra passagem (Mt 6, 21), que o coração da pessoa está junto com o tesouro que ela guarda. A humildade, diz Cristo, está na mansidão, pois os mansos possuirão a terra. Não são os arrogantes que prevalecerão. Estes podem até dominar por certo tempo, mas sua glória é efêmera. A mansidão do coração tem uma força invencível. A humildade está também na vivência e na busca da justiça, na prática da misericórdia, na pureza de coração, na promoção da paz, na paciência diante das tribulações, na confiança inabalável de que o Reino dos Céus depende da contribuição de cada um de nós, por menor que ela seja. A frase final desse pedagógico sermão já foi, muitas vezes, mal entendida quando Jesus diz que os humildes terão sua recompensa no céu, frase que era interpretada “ad litteram” (como o próprio São Francisco fez), levando a crer que as pessoas deveriam desfazer-se de tudo o que possuíam para viver na extrema carência, pois somente assim obteriam a recompensa eterna. Durante séculos, essa frase foi repetida com esse significado e muitas vezes os religiosos e a própria Igreja Católica foram criticados, por possuírem bens e assim estarem em desacordo com o ensinamento de Cristo. A questão deve ser vista, conforme abordei acima, sob o aspecto da pobreza de espírito, mais do que sobre a pobreza material. Se a pessoa vive feliz no meio da extrema necessidade (como vivia São Francisco e assim ensinava aos irmãos) e assim demonstra o seu verdadeiro espírito cristão, levando até outros a se converterem, é óbvio que o objetivo de Cristo está sendo alcançado. No entanto, não existe apenas essa forma de viver a humildade cristã e seguir o ensinamento de Cristo, pois sabemos que a correta administração dos bens materiais, em vista da prática da caridade, atinge igualmente a finalidade da mensagem cristã.



O Papa Francisco, com a sua linguagem característica e com suas atitudes surpreendentes, comparou o sermão da montanha com o GPS. Todos sabem o que é um GPS (sigla para Global Positioning System, em inglês – sistema de posicionamento global, aquele sinal eletrônico que indica com grande exatidão as localidades num mapa). Pois bem, diz o Papa, na vida cristã, as bemaventuranças são o nosso guia, a nossa orientação: “São o guia da rota, do itinerário, são a bússola da vida cristã. Neste caminho, segundo as indicações deste ‘GPS’, podemos prosseguir na nossa vida cristã”. Diz mais que as riquezas não são necessariamente más, as riquezas são boas, o que faz mal é o apego às riquezas, quando isso se torna “uma idolatria”. Nesses casos, complementa ele, nos desviamos da rota. “É o GPS errado. É curioso! Estes são os três degraus que levam à perdição, assim como estas Bemaventuranças são os degraus que levam adiante na vida. Os três degraus que levam à perdição são: o apego às riquezas, porque eu não preciso de nada. O segundo é a vaidade. Quero que todos falem bem de mim. Se todos falam bem me sinto importante, muito incenso e eu acredito ser justo, não como aquele ou como aquele outro. Pensemos na parábola do fariseu e do publicano: ‘Ó Deus, eu te agradeço, porque não sou como os outros homens…’. ‘Obrigado, Senhor, porque sou um bom católico, não como o meu vizinho ou a minha vizinha’. Todos os dias isso acontece! O terceiro degrau: o orgulho, que é a saciedade, as risadas que fecham o coração. (Sermão na capela de Santa Marta, em 06.06.2016). Folgo em ver que as minhas modestas reflexões estão em sintonia com o entendimento do grande profeta do nosso tempo, o nosso Papa.

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domingo, 22 de janeiro de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 3º DOMINGO COMUM - 22.01.2017 - GALILEIA DAS NAÇÕES

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 3º DOMINGO COMUM – 22.01.2017 – GALILEIA DAS NAÇÕES

Caros Leitores,

A liturgia deste 3º domingo comum põe em destaque um tema interessante, ao refletir sobre a vocação de cada um, demonstrando que os pagãos também são chamados (vocacionados) por Cristo, pois o seu projeto de salvação é universal, e não apenas para alguns escolhidos. A ênfase está no termo “galileia das nações”, que aparece em duas das leituras: a primeira vez, na profecia de Isaías, como prenúncio, e a segunda vez, no evangelho de Mateus, como realização. Quando Jesus Cristo compreendeu que era chegada a hora de iniciar a sua atividade de pregador, após a morte de João Batista, foi morar em Cafarnaum, às margens do Mar da Galileia, na região conhecida como galileia das nações, justamente porque naquele local estavam alojados os povos pagãos, que não eram de descendência judaica, portanto, não faziam parte dos povos da promessa. O início de suas pregações nessa localidade simboliza que a sua mensagem de salvação devia ser levada também aos pagãos, não apenas aos judeus.

Logo no início da primeira leitura (Is 8, 23-9,3), o profeta Isaías faz a seguinte referência histórica: “No tempo passado, o Senhor humilhou a terra de Zabulon e a terra de Neftali; mas recentemente cobriu de glória o caminho do mar, do além-Jordão e da Galiléia das nações. ” (Is 8, 23) Esse “tempo passado” a que o profeta se refere foi o tempo do domínio assírio, por volta do ano 730 a.C., bem antes do cativeiro da Babilônia. A fim de prevenir futuras rebeliões, os dominadores assírios resolveram misturar naquela região comunidades de diversas raças e línguas, vindas de lugares diferentes, misturando as culturas e dificultando as comunicações entre eles. Foi assim é que vieram pagãos de diversas nacionalidades conviver nas terras das tribos de Zabulon e Neftali, nas margens do Mar da Galileia, trazendo tumulto e dificuldades para os hebreus ali residentes, ficando essa região conhecida como “galileia das nações”. Etimologicamente, a palavra “galileia” (hagalil, em hebraico, transliterada para o grego como galilaia) significa “distrito”, “província”, assim a galileia das nações significava um território onde moravam populações de diversas origens, era uma região onde o povo não tinha uma identidade étnica ou cultural e, naturalmente, era também uma região de muita pobreza. Tempos depois, o império assírio havia sido dominado pelos persas e já não exercia poder na região, no entanto, aqueles povos não mais retornaram para os seus locais de origem e formavam um conglomerado altamente disperso, um amontoado de línguas, costumes, religiões, culturas, uma população pobre e marginalizada, daí porque isso era considerado uma humilhação para os seus nativos. A maior cidade dessa região era Cafarnaum. Jesus saiu de Nazaré e foi morar nesta cidade, para dali começar a sua missão.

Então, diz o profeta Isaías: no passado, o Senhor humilhou aquela região, através da ação dominadora dos assírios. Mas depois cobriu o lugar de glória e uma luz resplandeceu para aquele povo que vivia na escuridão (Is 9, 1). Isaías estava prevendo que a atividade missionária de Cristo iria iniciar-se naquele local. E o evangelista Mateus vai repetir literalmente essa passagem de Isaías, quando diz: (Mt 4, 12-14) Ao saber que João tinha sido preso, Jesus voltou para a Galiléia. Deixou Nazaré e foi morar em Cafarnaum, que fica às margens do mar da Galiléia, no território de Zabulon e Neftali, para se cumprir o que foi dito pelo profeta Isaías”. Vê-se claramente a preocupação de Mateus em mostrar que Jesus é o Messias previsto pelos antigos profetas, ao dizer que Ele começou o seu ministério por Cafarnaum, logo após o encerramento da missão de João, o batista. Ele foi a luz que resplandeceu para aquele povo. Aquele território que, antes tinha sido causa de humilhação, passou a ser motivo de glorificação. Aquela terra onde habitavam pessoas de diversos povos e línguas foi a escolhida por Jesus para recrutar os seus primeiros discípulos e para ali lançar as primeiras sementes. Por isso, Mateus refere que Jesus começou sua missão em Cafarnaum exatamente continuando a mesma temática iniciada por João Batista: “Daí em diante Jesus começou a pregar dizendo: 'Convertei-vos, porque o Reino dos Céus está próximo. ” (Mt 4, 17). Dizia o Batista: arrependei-vos porque é chegado o reino dos céus (Mt 3,2). Mateus faz, desse modo, a intercalação da profecia de Isaías com a missão de João Batista e com a pregação de Jesus.

Sobre o recrutamento dos discípulos, Mateus diz: “Jesus andava à beira do mar da Galiléia, viu dois irmãos: Simão, chamado Pedro, e seu irmão André. Estavam lançando a rede ao mar, pois eram pescadores. Jesus disse a eles: 'Segui-me, e eu farei de vós pescadores de homens'.” (Mt 4, 18-19). No entanto, o evangelho de João traz uma versão diferente. Segundo este, João Batista tinha vários discípulos e a estes ele mostrou Jesus, dizendo: “eis o Cordeiro de Deus, a ele é que vocês devem seguir”. (Jo 1, 36) Os evangelhos não mencionam os nomes desses discípulos de João Batista, exceto um deles, André, que era irmão de Simão Pedro. (Jo 1, 40). Portanto, de acordo com João, não foi bem assim como Mateus descreveu. André era discípulo do Batista e foi aconselhado por este a seguir o Cordeiro, tendo André convencido também seu irmão Simão a fazer o mesmo. Idêntico raciocínio se pode fazer em relação ao chamado de Tiago e João, que Mateus narra assim: “Caminhando um pouco mais, Jesus viu outros dois irmãos: Tiago, filho de Zebedeu, e seu irmão João. Estavam na barca com seu pai Zebedeu consertando as redes. Jesus os chamou.” (Mt 4, 21) João devia ser também seguidor do Batista e já devia conhecer Jesus, tendo convencido seu irmão Tiago a também segui-lo. Deduz-se isso pelo modo como João narra esses fatos, dos quais ele participou. Especulam os biblistas que, quando Jesus deixou a casa dos seus pais, em Nazaré, e mudou-se para Cafarnaum, foi morar provavelmente na casa de Pedro, ocasião em que curou a sogra dele que estava enferma (Mt 8, 14). Bem, como quer que tenham ocorrido os fatos, o certo é que esses foram os primeiros discípulos que Jesus, que os convidou a transformarem-se em pescadores de homens. Aos poucos, em circunstâncias próprias, Jesus foi chamando os demais.

Para uma pessoa que lê a Bíblia com olhos puramente formalistas, especialmente aqueles que leem a Bíblia sem a luz da fé, fica difícil compreender essas divergências textuais. Mas para os estudiosos do assunto, essas diferenças são perfeitamente compreensíveis e explicáveis, não ocasionando uma ruptura doutrinária, mas tão somente formas estilísticas e modelos de composição literária. Para uma melhor análise, observemos que: 1. o evangelho de Mateus, assim como os de Marcos e Lucas, são bem mais antigos do que o de João, escritos por volta dos anos 60, enquanto João escreveu por volta do ano 100; 2. os evangelhos sinóticos são compilações de textos mais antigos, que circulavam nas comunidades e tinham diferentes origens, sendo cópias de tradições orais, histórias que passavam de boca em boca, narrando os ensinamentos de Cristo; 3. na época em que João escreveu, muitas dessas divergências provavelmente já haviam sido observadas e corrigidas, de modo que o texto de João é mais elaborado, mais pesquisado, mais coerente; 4. João fora testemunha ocular dos fatos, ou outros apenas souberam por terceiros. Portanto, não devemos considerar que os primeiros estejam errados e com isso colocar em dúvida o que ali está escrito. O que verdadeiramente importa é a escolha que Jesus fez dos seus discípulos e o início de sua pregação naquele local, onde habitavam pessoas de diferentes línguas e culturas, sinalizando de modo claro que não apenas os judeus eram os destinatários da sua obra de salvação, mas também aqueles pagãos e, por extensão, toda a humanidade.

Na carta aos Coríntios (1Cor 1, 10-13), Paulo se refere a uma situação vivida naquela comunidade que muito se assemelha aos grupos do cristianismo contemporâneo. Paulo havia sido informado de que criaram-se grupos naquela comunidade, de acordo com as preferências de cada um, chegando até a contendas entre eles. E lhes pergunta: será que Cristo está dividido? em nome de quem fostes batizados? Meus amigos, essa divisão em grupos internos de interesses variados é tão prejudicial para a vivência da comunidade hoje, quanto o foi no passado, como se fossem pequenas seitas dentro do mesmo rebanho. Tradicionalistas, carismáticos, progressistas, vanguardistas, fundamentalistas, cançãonovistas, tridentinos, ecumênicos... Até os canais de televisão variados de cada grupo expõem essas divergências. Cabe aqui a pergunta de Paulo: acaso Cristo está dividido? Acaso a mensagem cristã não é uma só? Os vários grupos agem como se quisessem desmerecer a tendência dos outros irmãos e cada um deles querendo impor aos demais o seu próprio ponto de vista, arvorando-se em detentor da verdade e condenando os que pensam de modo diferente. A verdadeira compreensão da mensagem de Cristo deveria levar os divergentes ao exercício da tolerância e do mútuo respeito, como as atitudes mais compatíveis com a conduta do autêntico cristão. Cada qual, na diversidade da sua vocação e na peculiaridade da sua missão, compõe o grande mosaico de formas e expressões de uma mesma ideologia: o seguimento de Jesus Cristo.
Que o Divino Mestre nos una e nos fortaleça nessa desafiante caminhada.

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domingo, 15 de janeiro de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 2º DOMINGO COMUM - BATISMO DE JESUS - 15.01.2017

COMENTARIO LITURGICO – 2º DOMINGO COMUM – BATISMO DO SENHOR – 15.01.2017

Caros amigos,

Neste domingo, a liturgia é do segundo domingo do tempo comum, mas a leitura do evangelho se refere ao Batismo do Senhor. A narrativa do evangelista João é muito significativa e rica, por causa dos detalhes que ele cita, pois o outro João, o Batista, confessa que teve a primeira visão da Santíssima Trindade. No meio de muitas pessoas que se encontravam às margens do rio Jordão, para receberem o batismo da penitência, ali chegou também Jesus, colocando-se no meio dos demais penitentes. Jesus não precisava ser batizado, pois o batismo se destina ao perdão dos pecados, mas Ele quis cumprir todo o protocolo e João foi agraciado com a revelação do Cordeiro de Deus.

O batismo de Jesus marca o início de sua atividade pública, quando ele revela a todos qual o motivo de sua presença, da sua missão na história dos homens. Nas duas primeiras leituras, o tema é também sobre a missão: do profeta Isaías e do apóstolo Paulo. Isaías diz que o Senhor o preparou desde o nascimento para ser seu servo e ordena que ele recupere Jacó e unifique Israel. O profeta Isaías é o grande arauto de Javeh no cativeiro da Babilônia, quando o povo se encontrava no regime de opressão e distante da sua terra. Ali as tribos estavam todas dispersas e em crise de identidade. O profeta terá a missão de redefinir a unidade do povo, transmitindo mensagens de esperança e recordando a todos sobre a promessa de Javeh. Com isso, ele irá restaurar as tribos e reconduzir à casa os remanescentes de Israel. A tradução da CNBB fala em “remanescentes”, mas palavra original do texto é “resto”, para indicar um pequeno grupo, aqueles que sobraram. O profeta Isaías teve dois filhos. Ao primogênito, deu o nome de Shear Yashub –– em latim, Residuum Revertetur; em português, o resto que voltará –– para manifestar sua confiança e sua esperança no Messias que haveria de vir. O “resto” significa aquele grupo da resistência, aqueles heróis que encaram as lutas e as adversidades e nunca desistem, esses são os que merecem a recompensa. Isaías recebe a missão de reunir e resgatar o “resto de Israel” para devolvê-lo à terra prometida, pela obra salvadora do Messias. Na época do cativeiro da Babilônia, o Messias histórico foi o rei Ciro, da Pérsia, que derrotou Nabucodonosor e libertou o povo hebreu, que assim pôde retornar à sua terra. Para nós, o Messias Jesus Cristo, o verdadeiro, vem para nos conduzir à salvação eterna. A respeito do Messias, preconizou o profeta: “'Não basta seres meu Servo para restaurar as tribos de Jacó e reconduzir os remanescentes de Israel: eu te farei luz das nações, para que minha salvação chegue até aos confins da terra'.” (Is 49, 6) O rei Ciro trouxe a “salvação” para um pequeno grupo, o resto de Israel. Nós, cristãos, fazemos parte daquele grande “resto” simbólico, que recebeu a salvação por meio da Cruz de Cristo. Esse tema teológico é muito rico e belo: o resto de Israel, profetizado por Isaías.

Na segunda leitura, vemos o apóstolo Paulo descrever a sua missão, recebida de Cristo por revelação, como ele relata aos cristãos da igreja de Corinto: “Paulo, chamado a ser apóstolo de Jesus Cristo, por vontade de Deus.” Ele, Paulo, assim como os cristãos de Corinto, assim como todos nós, cristãos do mundo inteiro, temos uma mesma missão: “os que foram santificados em Cristo Jesus, chamados a ser santos junto com todos que, em qualquer lugar, invocam o nome de nosso Senhor Jesus Cristo, Senhor deles e nosso. ” (1Cor 1, 2) A carta de Paulo complementa a leitura de Isaías, quando este afirma que o Messias, além de reconduzir os remanescentes (o resto) de Israel, também fará com que a salvação chegue até os confins da terra. Embora Paulo não cite o Profeta, mas os textos se encaixam de forma plena. Cada um deles em sua época histórica, e nós aqui no nosso tempo atual, continuamos a desempenhar a mesma missão de levar adiante a mensagem de Cristo, com o nosso exemplo, com o testemunho de nossas vidas.

Sobre a missão especial de Cristo, o evangelho de João (1, 29-34) relata o batismo de Jesus pelo outro João, que já foi cognominado Batista exatamente por causa do ritual que ele fazia com as pessoas convertidas, o batismo da penitência. João preparava os caminhos para a chegada do Messias e conclamava todos a fazerem penitência. O Papa Francisco, no sermão deste domingo, na hora do Angelus, faz alusão a esse fato, do seguinte modo: “Podemos imaginar a cena. Estamos na margem do rio Jordão. João está batizando, há muitas pessoas ali para receber o batismo de João, pessoas de diversas idades, homens e mulheres. Em determinado momento, Jesus aparece na margem do rio, no meio das pessoas, dos pecadores (de todos nós). Foi a primeira coisa que ele fez, quando deixou a casa de Nazaré, aos trinta anos de idade. João o batizou e sabemos o que aconteceu: o Espírito Santo se postou sobre Jesus em forma de pomba e ele ouviu a voz do Pai. Pronto, era este o sinal que João esperava. É ele, Jesus, o Messias. A missão de João estava encerrada.” Evidentemente, Jesus não precisava ser batizado e o evangelista Mateus relata que João até se recusou. de início, a batizá-lo. (Mt 13, 14). O evangelista João não menciona essa recusa, mas dá um testemunho belíssimo: “'Eu vi o Espírito descer, como uma pomba do céu, e permanecer sobre ele. Também eu não o conhecia, mas aquele que me enviou a batizar com água me disse: `Aquele sobre quem vires o Espírito descer e permanecer, este é quem batiza com o Espírito Santo'.” (Jo 1, 32-33) Jesus batizou-se não para purificar-se, porque já era totalmente puro, mas para purificar as águas do Jordão, e nestas simbolicamente todas as águas da terra, para conferir a elas o poder de nos purificar pelo batismo na fé da sua doutrina.

O início da missão de Jesus foi, podemos dizer, oficialmente homologado pela Santíssima Trindade. João evangelista não afirma que todos os presentes tivessem visto as três pessoas divinas, embora Mateus tenha afirmado isso. De qualquer forma, naquele momento, se as pessoas viram aquela manifestação, não compreenderam o que havia acontecido, mas só posteriormente, após a ressurreição de Jesus, quando as comunidades dos primeiros fiéis fizeram a rememoração dos acontecimentos da Sua vida, de onde provêm os textos primitivos que deram origem aos evangelhos, esse fato foi recordado e então puderam compreender o seu alcance deveras significativo.

O tema teológico do batismo é um daqueles que enfrenta sérias questões histórico-doutrinárias acerca do seu “modus faciendi”: se por imersão ou por ablução. Analisando sob o aspecto gramatical, o vocábulo batizar deriva do verbo grego BAPTIZÔ, que significa mergulhar, submergir, mas também lavar. Numa primeira acepção, o termo significa mergulhar. Mas em outro texto bíblico, por exemplo, em Lucas (11, 38), quando os fariseus se admiraram porque os discípulos de Jesus não lavavam as mãos antes de comer, a frase latina é “quare non baptizatus esset” e a frase grega é “ou proton ebaptiste”, demonstrando assim o significado do verbo “baptizô” no sentido de lavar. Para lavar as mãos, nem sempre as mergulhamos em água, muitas vezes apenas derramamos água sobre elas. Ou seja, o estudo etimológico da palavra permite a sua compreensão nos dois sentidos. E podemos ainda levar em consideração o aspecto da praticidade. Como batizar por imersão uma criança que esteja enferma, sem correr o risco de piorar sua condição de saúde? E mesmo no caso de pessoas sadias, o ritual seria extremamente incômodo pela necessidade de ter de realizar o batismo nos rios, lagoas, açudes, etc., ou em tanques de água preparados dentro dos templos, o que (ao meu ver) desvirtua o sentido da imersão de acordo com o batismo de Jesus, que ocorreu numa fonte de água natural. Disto se pode concluir que, seja por imersão ou por ablução, o ritual não fará diferença quanto à essência do ato e à produção dos seus efeitos.

Para finalizar, gostaria de ponderar que o batismo não deve ser um fato longínquo e esquecido na nossa caminhada existencial, mas um fato a ser testemunhado diuturnamente, na nossa vivência de cristãos, seja na família, seja no trabalho, nas relações familiares, nas amizades, na vida social em geral, através do nosso comportamento de pessoas engajadas e comprometidas com a fé assumida no batismo. A liturgia, em uma ocasião especial, que é a celebração da Vigília da Páscoa, todos os anos, convida os fiéis a renovarem as promessas do batismo, rememorando-nos constantemente do nosso compromisso de batizados. Que o divino Espírito nos inspire e nos fortaleça no exercício da nossa missão.

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domingo, 8 de janeiro de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - EPIFANIA DO SENHOR - 08.01.2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO – EPIFANIA DO SENHOR – 08.01.2017

Caros Leitores:

A memória litúrgica deste domingo é da Epifania do Senhor. É a festa popularmente conhecida como Dia dos Santos Reis, contudo, eles nem são reis nem são santos (no sentido estrito). O folclore trazido para cá pelos portugueses introduziu o costume dos “reisados”, tradição que se encontra em franco declínio, mas ainda se pratica em algumas localidades. Tempos atrás, era mais comum verem-se pessoas “tirando reis” de casa em casa. Atualmente, com o crescimento da violência urbana e sobretudo depois do vício da televisão, esses folguedos populares foram caindo em desuso e somente alguns “heróis” os mantêm. Os jovens e as crianças de hoje não reconhecem mais essas práticas, que eram muito fortes há 40 ou 50 anos.

A epifania do Senhor designa a universalidade da salvação trazida por Cristo. No Antigo Testamento, os profetas se referiram ao Messias como salvador do povo de Israel e, naquela época de domínio político dos romanos na Palestina, havia a esperança do Messias que lhes restituiria a liberdade. O nascimento de Jesus numa cidadezinha longe da capital e sem qualquer aparato de poder e riqueza era o oposto da figura do Messias esperado. Assim como também foi inesperada a presença de pessoas ilustres vindas de terras orientais, isto é, de fora do território judaico, pois eles não pertenciam ao grupo do povo da promessa, os judeus. Mateus, cujo evangelho tem como tema básico a apresentação de Jesus como salvador, narra a chegada dos magos como um fato que vem reforçar a ideia da salvação universal, não apenas aos “assinalados”.

O evangelista não informa de que cidade eles vieram, mas apenas que vieram de terras distantes no oriente, guiados pela estrela. O texto fala somente nos 'magos', não diz que eles são reis e também não se deve entender esta palavra no sentido da prática de magias. Muito provavelmente, eles eram sacerdotes de uma religião diferente, talvez do zoroastrismo, religião fundada por Zaratustra, cerca de 1.500 anos antes de Cristo e praticada na região que hoje corresponde ao Irã. Há pouco tempo, assisti a um filme intitulado “O quarto sábio”, abordando a provável existência de um quarto “mago”, que se desencontrou dos outros três, por ter chegado atrasado ao local combinado, e saiu seguindo os passos dos outros, vindo a encontrar-se com Jesus somente quando ele já estava sendo levado para o Calvário. Os assim chamados “magos” eram estudiosos da astrologia, tema muito comum entre os povos antigos, que buscavam a compreensão do universo através da observação dos astros, fazendo correlação da movimentação destes com as vidas das pessoas. Esses saberes eram, em geral, distantes da maioria das pessoas e eram considerados ciências ocultas, confundidos com a magia.

O termo “epiphania” é um substantivo derivado do verbo grego “epiphainow”, que significa aparecer, mostrar-se, apresentar-se. A epifania é a festa da manifestação do Salvador, e isso se deu efetivamente no seu nascimento. Por essa razão, as igrejas católicas orientais celebram o seu dia de Natal na epifania. A Igreja Católica Romana separou as comemorações do nascimento de Jesus em duas festas: uma em 25 de dezembro, o Natal – nascimento de Cristo, e hoje, a manifestação de Cristo às nações do mundo, representados na pessoa dos “magos” orientais, em 6 de janeiro. Se observarmos bem, a tradição das igrejas orientais, mais antiga, é mais coerente, porque realmente a manifestação de Cristo ao mundo se deu com o seu nascimento. A divisão da festa em duas representou uma interferência indevida da cultura romana sobre o cristianismo, o que foi repudiado pelos Padres orientais, que mantiveram até hoje a sua tradição.

As leituras litúrgicas da Epifania procuram integrar os textos do antigo e do novo testamento, no caso, o livro de Isaías com o evangelho de Mateus. No livro de Isaías (deutero-Isaías), cap. 60, 1, o autor conclama Jerusalém a se alegrar, porque “sobre ti apareceu o Senhor e a sua glória se manifestou”. E diz mais adiante (60, 6): “será uma inundação de camelos e dromedários de Madiã e Efa a te cobrir; virão todos os de Sabá, trazendo ouro e incenso e proclamando a glória do Senhor.” Por certo, os “magos” viajavam em camelos, o transporte característico do Oriente Médio, mas a narração de Mateus parece sugerir que a chegada deles não foi motivo de alvoroço, porque diz apenas que eles encontraram o Menino e Maria, sua mãe, ofereceram os presentes e o adoraram. Depois foram embora. Parece que Mateus (2, 2) quis mostrar a realização da profecia de Isaías: “eis que alguns magos do Oriente chegaram a Jerusalém, perguntando: 'Onde está o rei dos judeus, que acaba de nascer? Nós vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo.' ” Até o Salmista (71, 10), faz coro com essa proclamação, ao cantar: “Os reis de Társis e das ilhas hão de vir e oferecer-lhes seus presentes e seus dons; e também os reis de Seba e de Sabá hão de trazer-lhe oferendas e tributos.” A escritura está permeada de passagens assemelhadas, nas quais essas referências se reproduzem. Os evangelistas, que conheciam a Lei e os Profetas, trataram de integrar as profecias nos seus textos, como forma de comprovar que Jesus é o Messias prometido, numa época em que muitos judeus duvidavam e teimavam em não admitir isso.

É curioso notar que nem o evangelista Lucas nem Marcos se referem ao episódio da visita dos “magos”. É de admirar sobretudo que Lucas não trate dessa visita, quando se sabe que os detalhes mais particulares da infância de Cristo se encontram no seu evangelho, provavelmente repassados por Maria. No entanto, será que da visita dos “magos” logo após o nascimento de Jesus, Maria não se lembraria? E por que não teria repassado isso a Lucas, assim como fez com outros acontecimentos? De fato, é de causar estranheza o silêncio do evangelho de Lucas acerca desse importante fato da infância de Jesus. Bem, por mais especulações que se façam, nunca se saberá com certeza o motivo dessa omissão. Mas visto que os evangelhos não são propriamente registros históricos e sim proclamações de fé das comunidades primitivas, o que mais importa nessa narrativa é a doutrina da universalidade da salvação.

Com efeito, a aliança original de Javé foi com os judeus, mas estes não reconheceram em Jesus o Salvador que veio confirmar a promessa. Então diante da descrença deles, a boa nova trazida por Jesus, o seu evangelho, foi pregado aos gentios, ou seja, àqueles que não descendem dos antigos patriarcas. Num contexto trans-histórico, esses gentios somos nós, cristãos, que não descendemos do povo hebreu. A figura dos “magos” colocada nesse contexto próximo (ou mesmo junto) com o nascimento de Jesus faz parte do propósito do evangelista de mostrá-lo como o Salvador de todas as nações, e não apenas do povo de Israel. É verdade que alguns judeus aceitaram o evangelho e creram em Cristo, porém sabemos que foram em minoria. Os diversos episódios, conhecidos através das epístolas de Paulo, acerca do problema dos “judaizantes”, isto é, daqueles que queriam manter as tradições judaicas junto com o evangelho, demonstram que houve adesão apenas parcial dos judeus. Entretanto, a pregação do evangelho aos gentios não foi somente porque os judeus não o aceitaram, mas é da natureza mesma da mensagem de Cristo. Ou seja, mesmo que todos os judeus tivessem crido e se convertido ao evangelho, ainda assim o anúncio do cristianismo teria sido feito também aos gentios, porque essa era a sua proposta.

A universalidade da salvação trazida por Cristo é também o tema da carta de Paulo aos Efésios (3, 2-6), onde ele retoma a ideia da recusa dos judeus e o anúncio do evangelho aos gentios: “os pagãos são admitidos à mesma herança, são membros do corpo, são associados à mesma promessa em Jesus Cristo, por meio do Evangelho.” Sabemos, pelos estudos históricos, que foi nas colônias gregas do império romano onde o cristianismo começou a ganhar corpo como religião, foi lá onde se fundaram as primeiras comunidades e se ergueram as primeiras igrejas formalmente organizadas, aquelas que hoje nós chamamos de “Igrejas orientais”. Antioquia, Alexandria, Constantinopla, Filipos, Éfeso, Galácia, Colossos, Esmirna, Tessalônica, só bastante tempo depois, o cristianismo chegou ao mundo romano. Foi por esse motivo que os Patriarcas das Igrejas orientais não aceitaram a mudança da data do Natal para 25 de dezembro, porque as suas Igrejas eram muito mais antigas e a sua tradição já consolidada. E eu, sinceramente, gostaria que a Igreja Romana reparasse esse equívoco histórico e se unisse à liturgia das igrejas orientais, onde se encontra a tradição cristã mais genuína.

Meus amigos, independentemente dessas polêmicas históricas e literárias, o que nos interessa é destacar o símbolo da universalidade da mensagem cristã, quando os tempos se completaram e o Verbo se encarnou. Com a festa da Epifania, a liturgia encerra o ciclo do Natal e passa para o tempo comum, que irá até a quarta feira de cinzas, quando se inicia a quaresma.

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domingo, 1 de janeiro de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - MARIA MÃE DE DEUS - DIA DA PAZ - 01.01.2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO – DOMINGO DA PAZ – MARIA MÃE DE DEUS - 01.01.2017

Caros Leitores,

Neste primeiro domingo do ano civil, a liturgia celebra duas memórias muito importantes: a festa de Maria Mãe de Deus e o dia mundial da paz. O título de Maria Mãe de Deus foi estabelecido no Concílio de Éfeso (431 d.C.), após acirrada discussão entre os padres conciliares acerca de uma polêmica teológica debatida naqueles tempos de esclarecimentos e definições doutrinárias do cristianismo primitivo. Eram duas as teorias, ambas defendidas por ilustres teólogos da época: uma delas afirmava que Maria era Mãe de Deus; outra afirmava que Maria era mãe de Jesus-homem, mas não mãe de Jesus-Deus. A questão teológica de fundo era, portanto, esta: se em Jesus havia duas pessoas (uma divina e outra humana) e também duas naturezas (uma divina e outra humana). Se fosse assim, Maria seria mãe apenas do Jesus humano, não do Jesus divino. Porém, após muitos debates e argumentações, os Padres conciliares chegaram à definição teológica de que em Jesus há duas naturezas (divina e humana), porém, uma só pessoa e desse modo, Maria é mãe da pessoa de Jesus, incluindo as duas naturezas, portanto, Maria é Mãe de Deus.

Sob o aspecto literário-conceitual, essa questão estava centralizada na troca de uma letra da palavra, o que só faz sentido na língua grega. A dúvida era se na palavra deveria haver um T ou um D. Tal palavra era: ou theoTokos ou theoDokos. Theotokos significa Mãe de Deus; theodokos significa educadora de Deus. Os defensores da doutrina das duas pessoas (divina e humana) em Jesus afirmavam que a palavra seria theodokos; os defensores da doutrina de ser uma só pessoa, embora com duas naturezas, sustentavam a palavra theotokos. Como se verifica, esse tema mariológico é derivado do tema cristológico acerca da natureza divina e humana de Jesus. A questão cristológica fora definida antes, no Concílio de Nicéia (321 d.C.), quando ficou estabelecido que Jesus é consubstancial ao Pai e, ao mesmo tempo, encarnou-se, tornou-se pessoa humana, conforme está escrito no Credo. No entanto, ficou o resíduo conceitual referente à dupla natureza de Jesus não devidamente esclarecido, o que levou à polêmica acerca da maternidade de Maria. No caso concreto, um bispo de nome Nestório, a cidade de Alexandria, que defendia a tese de Maria-theodokos (tese rejeitada) e não aceitou a decisão do Concílio, foi destituído do cargo e exilado. Desde então, passou-se a celebrar, na oitava do Natal, a festa de Maria Mãe de Deus, pois ambas as festividades guardam estreita relação.

Também tem tudo a ver com a festa de Maria Mãe de Deus o dia mundial da paz, porque ela é a rainha da paz, por ela chegou ao mundo a verdadeira paz. E tem tudo a ver também com a figura do nosso Seráfico Patriarca São Francisco, porque ele foi o artífice da paz no seu tempo. Basta lembrar, dentre tantos outros, o episódio da pacificação da cidade de Gubbio, que era ameaçada por um lobo faminto. Os colegas devem se lembrar bem dessa história, que faz parte dos Fioretti de São Francisco: ele esperou o lobo, conversou com ele e convenceu a população a dar-lhe alimento, ficando a fera amansada e amiga de todos. E, também por coincidência simbólica, a primeira leitura da liturgia de hoje traz a emblemática bênção da paz, contida no Livro dos Números, cap 6, 22, a qual era a saudação padrão de São Francisco, abreviada para a expressão Pax et Bonum. Mas a bênção da paz, tal qual foi dada por Javeh a Moisés para abençoar os filhos de Israel, era a oração clássica de São Francisco, principalmente quando um irmão estava em dificuldade: “O Senhor te abençoe e te guarde; o Senhor faça brilhar sobre ti a sua face e tenha piedade de ti; o Senhor volte para ti o seu rosto e te dê a paz; o Senhor te abençoe!” Os colegas talvez se recordem que o nosso confrade Frei Gregório (Josemar Lucena) compôs uma melodia para essa oração, a qual o Frei Higino gostava muito que se cantasse. Quem fez noviciado nos anos de 65 e 66 ainda deve lembrar desse cântico. É oportuno também mencionar, nesse contexto, a Oração de São Francisco: “Senhor, fazei de mim um instrumento da vossa paz...” essa a sua oração mais característica. Por isso, afirmei acima que São Francisco foi um artífice da paz no seu tempo.

Abordando agora diretamente o tema litúrgico da festividade de Maria Mãe de Deus, vale lembrar que esse tema é bem característico da cultura católica ocidental e perene fonte de polêmica com os seguidores de Lutero, que não acreditam nisso. Lutero viveu muito tempo depois das questões antes referidas e que foram resolvidas no Concílio de Éfeso, por isso pode deduzir-se que, apesar da definição teológica, a doutrina rejeitada continuou sendo propagada nos mosteiros por muito tempo, pois Lutero foi um defensor da tese rejeitada (“Maria theodokos”), doutrina que hoje prevalece nas igrejas protestantes. Convém recordar que o evangelista Lucas, nos primórdios do cristianismo, quando relatou que Maria foi visitar a sua prima Isabel, esta vaticinou: “de onde me vem a dita de que a mãe do meu Senhor venha me visitar?” (Lc 1, 39) Essa dúvida sobre a maternidade de Maria, portanto, não era nem para ter sido levantada a posteriori. No entanto, sabe-se que os intelectuais cristãos de cultura grega abriram diversas disputas com os judeus convertidos, fato que causou grande angústia e deu muito trabalho sobretudo a Paulo, para apaziguar os ânimos. Essa aproximação entre a mensagem de Cristo e a cultura grega, nos primeiros tempos, foi fonte de inúmeras questões e suscitou a necessidade de diversos Concílios para esclarecimentos.

Um outro aspecto não menos importante desse tema de Maria Mãe de Deus, que é também fonte de intermináveis polêmicas entre católicos e não católicos, é a respeito de Maria ter tido ou não outros filhos, além de Jesus. Lutero e seus seguidores dizem que sim, porque na Bíblia consta que Maria deu à luz o seu primogênito (Lc 2,7), ou seja, filho primogênito é o primeiro filho, o mais velho e, portanto, houve outros filhos de Maria. Esta passagem é combinada com outra (Mt 12, 46), que diz assim: lá fora estão tua mãe e teus irmãos, que querem te ver. Não faz muito tempo, foi divulgada na imprensa a descoberta de um antigo túmulo onde há a inscrição: Tiago, irmão de Jesus. O achado foi objeto de estudos técnicos especializados, não tendo os estudiosos chegado a uma certeza acerca da autenticidade da inscrição. Visto que não foi possível obter a certeza, então a questão encerrou por aí. Porém, a explicação literária adotada pela Igreja Católica para afirmar que Maria não teve outros filhos além de Jesus está na interpretação da palavra grega 'adélphos', que é traduzida no latim por 'frater' e em português por irmão. Na cultura grega, o conceito de “adélphos” tem um significado mais amplo do que o conceito de “irmão” na nossa língua portuguesa, onde é bem restrito. Assim, quando o grego usava a palavra adélphos não estava se referindo necessariamente a irmão de sangue, mas a um membro da família com parentesco próximo, por exemplo, um primo. Considerando que as famílias antigas eram muito numerosas, ou seja, moravam na mesma habitação do chefe da família os filhos destes, com os respectivos genros e noras e filhos destes (netos do chefe da família), então aquele aglomerado de pessoas era considerado uma família só e assim, mesmo aqueles que não eram filhos do mesmo pai/mãe eram considerados 'adelphos' num sentido amplo. No caso, Tiago era primo de Jesus, portanto, está coerente com a inscrição tumular.

Esta explicação, contudo, não é aceita pela doutrina protestante e por isso eles criticam os católicos, porque têm essa devoção extraordinária para com Maria, que muitas vezes supera a própria figura de Cristo, que devia ser o centro das atenções. Não se pode tirar totalmente a razão dos protestantes, porque a catequese tradicional deixou mesmo essa marca, não só em relação a Maria, mas aos santos em geral, que se apresentam na mente do fiel de uma forma bem mais enfática do que a figura de Cristo. No caso de Maria, incide ainda toda a carga cultural da figura materna, que é um arquétipo fortíssimo na nossa tradição ocidental e se transfere para a vivência religiosa, nada de admirar, portanto, que tenha toda essa penetração na piedade popular.

Polêmicas à parte, a festa litúrgica de hoje nos recorda a importância do 'sim' de Maria, para que se realizasse, através dela, o mistério da encarnação e da nossa redenção. Que a Rainha da Paz nos ensine a ser verdadeiros instrumentos da divina paz, tal qual nos ensina o Seráfico Pai.
Renovados votos de Feliz Ano Novo a todos.

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