domingo, 27 de novembro de 2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 1º DOMINGO DO ADVENTO - HORA DE DESPERTAR - 27.11.2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 1º DOMINGO DO ADVENTO – HORA DE DESPERTAR – 27.11.2016

Caros Confrades,

Com a liturgia do 1º domingo do advento, dá-se o início ao ano litúrgico católico de 2017, antecipando-se ao ano civil, de acordo com o calendário eclesiástico. No domingo passado, tivemos o último domingo do ano litúrgico de 2016, com a celebração da festa de Cristo Rei. Os anos litúrgicos seguem uma sucessão de três conjuntos de leituras, distinguidos como anos A, B e C, para que as leituras não se repitam todos os anos. O ano que se inicia faz parte da série A, que segue preferencialmente o evangelho de Mateus para as leituras dominicais, que são complementadas com uma do Antigo Testamento e uma carta apostólica. Esta antecipação é necessária para que o tempo do Advento, que é dividido em quatro semanas, possa ser integralmente celebrado antes do Dia de Natal, que em 2016 ocorrerá num domingo, por isso o Advento começa um pouco mais cedo, ainda em novembro.

Já é bem conhecido por todos que a celebração do Natal em 25 de dezembro é apenas uma data simbólica, posto que o nascimento de Cristo deve ter ocorrido no mês de março. Porém, esta celebração do Natal de Jesus em 25 de dezembro já existe desde o século IV, isto é, há mais de 1.600 anos, não tem mais nenhuma relação com a festa pagã que antes existia nesta data, uma festa romana dedicada ao deus Saturno (saturnália), que se prolongava por uma semana, indo do dia 17 ao dia 24 de dezembro, período em que ocorre o solstício de inverno no hemisfério norte. Depois de tantos séculos em que a civilização ocidental associa o Natal de Jesus com o dia 25 de dezembro, não faria nenhum sentido propor uma mudança de data, para adequar ao período mais provável. Associado a esse simbolismo, o ano litúrgico se constitui com datas e períodos que rememoram os fatos comemorados, não devendo ser tomadas essas datas como corretas do ponto de vista histórico. Isso em nada compromete a grandeza e a importância das festas que comemoramos nessa época do ano. Apesar do grande esquema comercial que se incorporou ao Natal, nós cristãos devemos celebrar o tempo do advento com o espírito de verdadeira conversão, preparando a vinda do Senhor.

As leituras litúrgicas deste primeiro domingo recomendam a vigilância e a prontidão, porque ninguém sabe o dia em que o Senhor virá. A primeira leitura, de Isaías (Is 2, 1-5), narra uma visão tida pelo Profeta sobre Jerusalém, em cujo monte está firmemente estabelecida a casa do Senhor: de lá, vem a palavra do Senhor. Para lá, acorrerão as nações e os povos todos. O nome “Jerusalém” significa “cidade da paz” e esse simbolismo está contido na visão do Profeta, segundo a qual os seus habitantes “transformarão suas espadas em arados e suas lanças em foices: não pegarão em armas uns contra os outros e não mais travarão combate ” (Is 2, 4) Esta visão do profeta Isaías, transportada para os dias de hoje, aplica-se à Igreja de Cristo, firmemente estabelecida no monte da casa do Senhor, referindo-se ainda, numa visão de futuro, à Jerusalém celeste, onde se encontra Cristo ressuscitado. O Cristo que nasce menino na festividade do Natal é o mesmo que se encontra glorioso na Jerusalém celeste. O simbolismo do seu (re)nascimento a cada ano nos convida a também internamente reavivar em nós mesmos o espírito cristão que se formou em nosso íntimo pelo batismo e que se consolidou na nossa formação religiosa, pela qual somos chamados a dar testemunho dos ensinamentos que recebemos. No advento, a cada ano, Cristo quer renascer em cada um de nós e, para isso, Ele requer nossa disponibilidade e nossa participação. O verdadeiro natal é o que deve ocorrer no coração de cada crente, onde devemos montar o verdadeiro presépio para acolher o que vai nascer. A Belém dos nossos dias deve ser encontrada no coração de cada cristão, que se prepara para celebrar a festa do Natal. Daí o tema deste domingo ser, como diz o apóstolo Paulo na sua carta aos Romanos, a hora de despertar.

Passando, então, à segunda leitura, da Carta aos Romanos (Rm 13, 11-14), o Apóstolo exorta os cristãos de Roma para que se dispam das ações das trevas e se revistam das armas da luz, porque a salvação está bem mais próxima, com a chegada de Cristo, que se avizinha. Ele, com certeza, faz essas referências aos Romanos numa época em que as festas da saturnália ainda eram muito populares, com suas orgias, comilanças e licenciosidades, e recomenda: “Procedamos honestamente, como em pleno dia: nada de glutonerias e bebedeiras, nem de orgias sexuais e imoralidades, nem de brigas e rivalidades.” (Rm 13, 13) Tudo isso era o que realmente as pessoas faziam naquelas festas pagãs, as quais são representadas nos dias de hoje com o carnaval. Porém, os cristãos não devem proceder iguais a eles, mas devem dar o exemplo de filhos da luz. Recordemo-nos ainda que Paulo pregava em Roma nos tempos de Nero, quando o cristianismo era uma religião proscrita e os cristãos eram tidos como inimigos do Estado Romano, precisando reunir-se às escondidas, para a celebração dos seus cultos religiosos. Paulo pregava nas catacumbas e apenas secretamente visitava as residências dos cristãos romanos, correndo o risco de ser denunciado e preso, como de fato o foi por diversas vezes. Mas o risco valia a pena, porque divulgar o cristianismo em Roma, a capital do mundo de então, significava muito para a propagação de sua doutrina. A prova está em que, quando Constantino decretou a liberdade religiosa, grande parte da comunidade romana já era adepta do cristianismo, embora não demonstrassem publicamente.

A leitura do evangelho é retirada de Mateus. Lemos hoje o texto do cap. 24, 37 a 44, no qual Jesus fala aos discípulos sobre a sua vinda nos últimos tempos. Assim como nos tempos de Noé, quando ocorreu o dilúvio sem ninguém esperar, assim também será a vinda gloriosa de Cristo. Por isso, todos devem estar despertos, porque na hora em que menos se esperar, o Filho do Homem virá. Sorrateiro como um ladrão, o Filho do Homem surpreenderá muita gente dormindo. Ninguém sabe quando será este dia, ou melhor, ninguém sabe quando será o seu dia. Na atualidade, a reflexão teológica prefere interpretar esses discursos escatológicos de Jesus de forma diferente do que tradicionalmente se entendia, isto é, não como um fenômeno coletivo, de proporções globais, mas como um evento privado que acontece na vida de cada pessoa. De fato, o Senhor já se encontra na sua glória e, em vez de ser Ele que venha ao nosso encontro, nós é que nos dirigiremos ao encontro dele. Vejamos o texto do evangelho: “Dois homens estarão trabalhando no campo: um será levado e o outro será deixado. Duas mulheres estarão moendo no moinho: uma será levada e a outra será deixada.(Mt. 24, 40-41) Se o evento final fosse de ordem generalizada, como ensinou a catequese tradicional, todos seriam arrebatados simultaneamente, não faria sentido um ser levado e outro deixado. Se o final dos tempos fosse ocorrer como um grande cataclismo de proporções gigantescas, como entenderam os artistas da Renascença e assim pintaram nos seus quadros clássicos, não ocorreria de alguém ser poupado, mas a destruição alcançaria a todos. Será mais lógico concluir que essa arrebatação para prestar contas das suas ações deverá ocorrer em nível histórico e individual. Por isso é que cada um deve estar sempre vigilante, pois ninguém sabe o dia nem a hora em que isso ocorrerá.

Portanto, o ensinamento de Paulo sobre a hora de despertar não se refere a um tempo abstrato e indefinido, mas ao nosso tempo existencial. A nossa fé em Cristo deve ser renovada a cada dia, e o período do advento é o tempo mais propício para que despertemos a nossa consciência para essa realidade inafastável, que é o fim dos nossos dias, porque estes têm um prazo até certo ponto previsível. A contagem da nossa vida em meses e anos nos dá a medida para cada um avaliar a chegada ao final da carreira, quando deveremos estar com a fé robustecida e a esperança sempre renovada. Neste tempo do advento, a liturgia nos leva a fazer esta reflexão realista, não como forma de intimidação ou aterrorização, mas como exercício de vivermos conscientes e centrados nos nossos compromissos de cristãos.

Aproveitemos o tempo do advento para renovar a cada dia a nossa fé na divina promessa.

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domingo, 20 de novembro de 2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 34º DOMINGO COMUM - FESTA DE CRISTO REI - 20.11.2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 34º DOMINGO COMUM – FESTA DE CRISTO REI – 20.11.2016.

Caros Leitores,

O 34º domingo comum encerra o ano litúrgico e também o Ano Santo da Misericórdia, com a celebração da festa de Cristo Rei do Universo. Recordando um pouco a história, esta comemoração foi instituída em 1925, pelo Papa Pio XI, no período que intermediou as duas grandes guerras mundiais e num momento de grande descrença nas religiões e a consequente ascensão do ateísmo no mundo. Fazia pouco tempo que o comunismo havia triunfado na União Soviética e havia aquele temor de disseminação por outros países, gerando incômoda situação de insegurança. A intenção do Papa era mostrar Jesus como um rei pacífico, que não tem interesse em exercer o poder político e econômico, mas reina com a prática da caridade, com a dedicação ao serviço, com atitudes de humildade. Conforme Jesus mesmo dissera, diante de Pilatos, “o meu reino não é deste mundo”. E aos discípulos, ele havia dito: “aquele que quer ser o maior dentre vós, seja o mais disposto a servir”. Nos tempos atuais, a referência à figura do rei perdeu muito a sua força devido a ser um personagem que não faz parte da nossa realidade, não combina com o momento político mundial, no qual os reinos são praticamente inexistentes. O conceito do reino, portanto, passa para o campo do simbolismo e da utopia, no sentido do reino da paz e da concórdia, para a construção do qual todos os cristãos somos convocados.

Passando às leituras litúrgicas de hoje, vemos na primeira leitura, um trecho do segundo livro de Samuel (2Sm 5, 1-3), no qual é narrada a unção de Davi como rei de Israel, na presença dos anciãos representantes de todas as tribos. O rei Davi é uma das figuras mais emblemáticas do Antigo Testamento, juntamente com o filho dele, Salomão, outro grande governante, os dois fizeram histórias e lendas junto ao povo de Israel. Tão simbólica foi a missão do rei Davi que os profetas anunciaram que o Messias tão esperado de Israel nasceria de uma família da sua estirpe. Com efeito, tanto José, esposo de Maria, quanto ela própria eram da “casa de Davi”. As profecias antigas diziam que o Messias nasceria de uma mulher descendente de Abraão, da tribo de Judá e da família de Davi. Portanto, essa leitura do segundo livro de Samuel relaciona a realeza de Davi com a realeza de Cristo. Cristo é rei por ser descendente do mais importante rei de Israel. Essa é a ligação feita pelos teólogos desde a Idade Média, o que se justificava bem naquela época, em que a realeza era a forma de governo dominante, praticamente a única existente. E dentro da regra da hereditariedade, para alguém ter direito ao trono real, era necessário demonstrar que era descendente de um rei.

Logo nos primórdios do cristianismo, o evangelista Mateus buscava demonstrar, através das citações genealógicas, o vínculo familiar que unia Cristo ao rei Davi, afirmando assim o cumprimento das profecias. Mateus faz isso de uma forma bastante cuidadosa, quando no seu texto (Mt 1, 1-17) detalha a listagem genealógica de Jesus, elencando três períodos de 14 gerações, a partir de Abraão até chegar a Ele. De Abraão a Davi são 14 gerações, de Davi até o cativeiro da Babilônia, outros 14, e do final do cativeiro até o Messias são mais 14 gerações. De acordo com os biblistas, isso tem uma explicação matemática, porque a correspondência das letras hebraicas do nome de Davi com os números, somando-as, dá 14 como resultado. A soma é assim: em hebraico, escreve-se Dawid, com w. Na numerologia hebraica, o D=4 e o W=6; as vogais não existiam no hebraico, por isso não entram na soma. Então, o total será D+W+D=4+6+4=14. Como se pode perceber, a numerologia também faz parte da Bíblia e Mateus devia ser um especialista na matéria.

Temos na segunda leitura um trecho da carta aos Colossenses (Cl 1, 12-20), na qual Paulo faz um grande discurso apologético acerca da divindade de Cristo. “Ele é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação, pois por causa dele foram criadas todas as coisas no céu e na terra, as visíveis e as invisíveis, tronos e dominações, soberanias e poderes. Tudo foi criado por meio dele e para ele.” (2Cl 1, 15-16) Observa-se que Paulo não economiza nos qualificativos, ao contrário, faz uma suprema exaltação da figura de Cristo, embora não use o título de rei. Jesus é o princípio de todas as coisas e o primogênito dentre os mortos e alcançar a glória da ressurreição. O texto de Paulo é um autêntico hino à realeza de Cristo, sem citá-la. Com certeza, Paulo escreveu isso sem conhecer o texto do evangelho de Mateus (as cartas de Paulo são mais antigas), pois talvez se o tivesse conhecido, teria mencionado também a ascendência real de Cristo na sua origem terrena. O discurso de Paulo se direciona para a ascendência de Cristo no plano divino, mostrando a estreita relação d'Ele com o Pai: “porque Deus quis habitar nele com toda a sua plenitude e por ele reconciliar consigo todos os seres.” (2Cl 1, 19-20) Portanto, embora não mencione a palavra rei”, Paulo deixa isso subentendido nos vários conceitos utilizados para realçar a Sua personalidade divina. Nesse contexto, Paulo também relaciona a figura de Cristo como Cabeça da Igreja, cujo corpo somos nós, criando assim a doutrina do corpo místico de Cristo, largamente aplicada na teologia e na catequese.

No evangelho de Lucas (Lc 23, 35-43), lemos um trecho da narrativa dos eventos relativos à paixão de Cristo, quando Ele dialoga com os ladrões crucificados ao Seu lado. Enquanto um deles escarnece, desafiando-O a salvar-se e a salvar também os outros dois condenados, o outro repreende o comparsa e confessa seu arrependimento, pedindo que Jesus o acolha no Seu reino. Esse diálogo é bem conhecido, porque é repassado na liturgia da Semana Santa e foi sempre muito reproduzido também na catequese tradicional. Uma curiosidade, que me vem à mente sempre que leio esse texto é de imaginar como esse diálogo tornou-se conhecido, se é que, de fato, existiu. Sabemos que os apóstolos haviam debandado e, junto à cruz, estavam apenas João, Maria e algumas mulheres, que olhavam à distância. Pois bem, João, que estava presente, não relata esse diálogo nos seus textos. Os outros dois evangelistas, Marcos e Mateus, apenas se referem aos malfeitores crucificados com ele, sem mencionarem o diálogo, que só aparece no texto de Lucas. De que modo Lucas teria obtido tal informação? Ora, sabe-se que Lucas, sendo médico, cuidou de Maria por muito tempo e ouviu dela relatos intimistas referentes à vida dela própria e de Jesus, que os outros escritores não tomaram conhecimento. Por essa linha de raciocínio, podemos deduzir como probabilidade que tal diálogo tenha sido escutado e memorizado por Maria, mãe de Jesus, que posteriormente o segredou a Lucas. Não me parece crível que algum dos soldados, que participaram da execução, tenha se preocupado com isso. E se João tivesse prestado atenção nesses detalhes, certamente também os teria relatado. Mas muito provavelmente o olhar e o ouvido da Mãe captaram coisas que passaram despercebidas a todas as outras pessoas. É impressionante essa capacidade que as mães têm para perceber mensagens até subliminares no comportamento dos filhos.

Meus amigos, apesar de discordar desse aparato que a liturgia atribui à figura de Cristo como rei, entendo que Ele é verdadeiramente o soberano da verdade, da justiça, da paz, da igualdade e da fraternidade e que, para isso, ele não precisa de um manto real nem de um cetro nem de um trono, porque o seu manto é a verdade, o seu trono é a justiça e o seu cetro é a paz, que Ele vem nos trazer todos os dias, ensinando-nos a viver em fraternidade e harmonia. É disso que a sociedade precisa e compete a nós, cristãos, dar exemplo público dessa fraternidade e harmonia de Cristo nas nossas vivências cotidianas.

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domingo, 13 de novembro de 2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 33º DOMINGO COMUM - NÃO É O FIM - 13.11.2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 33º DOMINGO COMUM – NÃO É O FIM – 13.11.2016

Caros Keitores,

A liturgia deste 33º domingo comum, o penúltimo do ano eclesiástico, nos convida a refletir sobre aquelas coisas que ocorrerão no final dos tempos, o que nós aprendemos no catecismo com o nome de “novíssimos”, a segunda vinda de Cristo. Numa leitura apressada, parece que Jesus quer nos aterrorizar, falando de catástrofes, guerras, epidemias, que antecederão o final dos tempos. Contudo, é necessário perceber com outra mentalidade a descrição desses acontecimentos, que já foram motivo de deixar muita gente com insônia.

Na verdade, as leituras litúrgicas nos convidam a ter vigilância e prudência, como características reais da vida do cristão, crente na promessa de Cristo de que retornará no final dos tempos e, como não se sabe quando nem como será tal apoteose, deve-se estar sempre preparado. A conhecida descrição evangélica dos últimos tempos já foi objeto de interpretações variadas ao longo da história, em diversas ocasiões, as pessoas perceberam, nos fatos do seu tempo, a identificação com as predições de Cristo. Se observarmos os fatos contemporâneos, até parece que a leitura bíblica está se referindo ao tempo atual. Sempre que alguma notícia sobre fatos inesperados ou incompreensíveis é divulgada, os “profetas” e “videntes” tentam identificar neles as catástrofes previstas por Cristo. Porém, o próprio Cristo disse que somente o Pai sabe quando será isso e nem ao Filho Ele o revelou. Portanto, qual desses profetas e videntes é mais sabido do que o Filho? Com efeito, quando Jesus falou aquelas coisas terríveis, referia-se à dominação romana na Palestina, à destruição de Jerusalém, às perseguições dos primeiros cristãos, ou seja, quando o evangelista Lucas escreveu seu evangelho, tais fatos já tinham realmente acontecido. Jesus, porém, havia afirmado: isso não é o fim, ou seja, essas perseguições não irão destruir a sua doutrina nem dizimar seus seguidores.

É interessante observar que, desde o Antigo Testamento, já havia presságios dos Profetas acerca de maus agouros. Na primeira leitura, do profeta Malaquias (Ml 3, 19-20), ele se refere ao “dia, abrasador como fornalha, em que todos os soberbos e ímpios serão como palha; e esse dia vindouro haverá de queimá-los, diz o Senhor dos exércitos, tal que não lhes deixará raiz nem ramo.” (Ml 3, 19). Desde que os Patriarcas antigos narraram que houve outrora uma grande inundação (dilúvio) e o mundo todo sucumbiu debaixo da água, as pessoas criaram a ideia de que, da próxima vez, o mundo seria destruído pelo fogo. Isso é uma crença muito antiga, mas ainda recorrente na nossa cultura religiosa popular. No ano de 1910, quando estava se aproximando da terra o cometa Halley, pelos poucos conhecimentos daquela época sobre esse fenômeno cósmico, as pessoas viam aquela imensa “bola de fogo” se tornando cada vez maior e ficaram esperando apenas o momento final da destruição da terra. De repente, aquela luz se desfez, porque a terra atravessou a cauda gasosa do cometa. Em 2012, algumas pessoas afirmaram que o mundo acabaria no dia 21 de dezembro e citavam complexos cálculos matemáticos para justificar isso, nada aconteceu. Prevalece, assim, a palavra de Jesus: não é o fim.

Na segunda leitura, de Paulo aos Tessalonicenses (2Ts 3, 7-12), o Apóstolo bate cabeça com aquela comunidade, onde se havia espalhado a informação de que Jesus “estava para chegar”, na sua segunda vinda, e assim as pessoas já nem queriam mais trabalhar e viviam à toa, apenas aguardando o momento. Paulo manda-lhes um recado desaforado: eu (Paulo), que até poderia me prevalecer da função de pregador para obter o sustento pela comunidade, me dedico ao trabalho dia e noite, a fim de obter o meu sustento, então, quem não quer trabalhar, também não deve comer. Diz ele: “Bem sabeis como deveis seguir o nosso exemplo, pois não temos vivido entre vós na ociosidade. De ninguém recebemos de graça o pão que comemos. Pelo contrário, trabalhamos com esforço e cansaço.” (2Ts 3, 7-8). Uma interpretação falsa da promessa de Cristo estava atrapalhando a vida daquela comunidade, o que Paulo tentava esclarecer na sua correspondência. Conforme vimos no domingo passado, essa comunidade deu muito trabalho a Paulo. Circulou por lá uma carta anônima, que era atribuída a Paulo e muito o preocupou porque continha ensinamentos equivocados. Foi de lá que Paulo teve de sair fugido, porque os judeus, a quem ele desagradara, o procuravam para matá-lo. Enfim, uma comunidade trabalhosa, onde as pessoas tinham dificuldade em compreender a doutrina cristã, mesmo tendo recebido toda instrução de Paulo. Situações parecidas ocorrem ainda hoje, quando vemos pessoas que leem a Bíblia mas, em vez de buscar retirar da leitura o seu sentido mais coerente e produtivo, apegam-se a detalhes insignificantes, que deturpam a mensagem.

Na leitura do evangelho de Lucas (Lc 21, 5-19), Jesus faz aquela famosa previsão da destruição do templo de Jerusalém, que era entendida pelos judeus como a maior desgraça que lhes poderia acontecer. “Dias virão em que não ficará pedra sobre pedra. Tudo será destruído.'” (Lc 21, 6) Esse fato histórico se deu no ano 70, quando o exército romano invadiu Jerusalém e destruiu o templo. No entanto, perguntando os ouvintes a Jesus quando aquilo iria ocorrer, ele respondeu evasivamente: “cuidado para não serdes enganados...” (Lc 21, 8), porque muitas pessoas irão dizer que o tempo está próximo, mas não acreditem nessa gente. Muitas coisas irão acontecer: guerras, revoluções, tsunamis, terremotos, desastres ambientais, mas as piores são aquelas coisas perpetradas pela maldade dos homens: “'Um povo se levantará contra outro povo, um país atacará outro país. Haverá grandes terremotos, fomes e pestes em muitos lugares; acontecerão coisas pavorosas e grandes sinais serão vistos no céu.” (Lc 21, 10-11). Neste final de semana, teremos uma lua cheia especial (super lua) e é bem provável que ocorram destruições na orla marítima, como tem sido noticiado nos meses anteriores, atingindo vários pontos turísticos do litoral, inundando e destruindo construções. Muitas pessoas talvez venham a associar esses fatos naturais com a leitura do evangelho, quando na verdade, sabe-se que essas catástrofes estão relacionadas com o mau uso dos recursos naturais pelos países ricos, causando desequilíbrio na atmosfera, levando grandes secas à nossa região e, por outro lado, causando inundações em outras paragens. Essa crença ainda é comum, por causa daquela vetusta catequese tradicional, que apelava sempre para a ameaça aos castigos de Deus, como forma de convencer as pessoas a praticarem o bem. Mas Jesus continua nos exortando: ainda não é o fim.
Precisamos, portanto, compreender esse trecho do evangelho em concordância com os versículos que vêm a seguir, pelos quais Jesus diz que, antes que isso aconteça, a nossa fé passará por provações. “Antes, porém, que estas coisas aconteçam, sereis presos e perseguidos; sereis entregues às sinagogas e postos na prisão; sereis levados diante de reis e governadores por causa do meu nome. Esta será a ocasião em que testemunhareis a vossa fé.” (Lc 21, 12-13) Meus amigos, no sentido histórico, Jesus se referia aí às perseguições pelas quais passariam os Apóstolos e os primeiros cristãos, como de fato a história documentou. Mas no sentido trans-histórico, o texto se refere a nós, hoje. A nossa fé está a enfrentar contínuas provações, perseguições, ameaças dentro e fora do ambiente religioso. Faz poucos dias, no exame nacional do ensino médio (ENEM), o tema da redação proposto para os alunos foi a intolerância religiosa, demonstrando uma clara preocupação do Ministério da Educação com essa conduta que afeta a todos nós, que temos fé e que, muitas vezes, não sabemos respeitar a fé alheia. Nesta semana, o Papa Francisco visitou uma igreja protestante, em Roma, de surpresa e foi recebido com a maior festa. Foi a primeira vez que um Papa visitou um templo protestante e isso só lhe trouxe muitos elogios e ainda mais prestígio internacional. O exemplo do Papa Francisco deve servir de modelo não apenas para os cristãos, mas para todos os crentes das mais diversas fés, e o seu testemunho só está a confirmar aquilo que Jesus falou no evangelho: isso não é o fim.

Portanto, meus amigos, a narrativa de Cristo nos convida a sermos vigilantes e prudentes, exortando-nos a não nos deixarmos impressionar com as ameaças externas, pois o inimigo pode estar no meio de nós: o nosso orgulho, a nossa falta de misericórdia, a nossa soberba, a intolerância, o desamor. Essas são as reais ameaças que nos perseguem continuamente e é em relação elas que devemos estar sempre vigilantes.

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domingo, 6 de novembro de 2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - OS BEM AVENTURADOS - 06.11.2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO – OS BEM AVENTURADOS - TODOS OS SANTOS – 06.11.2016

Caros Leitores,

Neste domingo, celebramos a memória litúrgica da festa de Todos os Santos e Santas, transferida do dia 1 para hoje, conforme acordo entre a CNBB e o Governo. O evangelho de hoje rememora as bem-aventuranças ditadas por Jesus no famoso e carismático “sermão da montanha”, no qual ele inverte a ordem daquilo que o “mundo” considera felicidade e mostra que ser feliz, isto é, ser bem-aventurado é ser santo. Ser fiel nas coisas simples, ser solidário em todas as ocasiões, ser amável e respeitoso só contribui para a melhora geral da vida na sociedade. Sem dúvida, é disso que todos nós mais precisamos, na vida urbana dos nossos dias.

Na semana passada, tivemos em Juazeiro do Norte mais uma edição da concorrida romaria de finados, instituída pelo Padre Cícero e que conta com o apoio irrestrito dos Frades Capuchinhos, que sempre prestigiam e atendem fraternalmente a todos os fiéis. Até o nosso querido Frei Roberto, do alto dos seus 95 anos de idade, esteve ali animando e interagindo com os romeiros. No meu modo de entender, esse grande afluxo de pessoas que por ali passam todos os anos está totalmente ligado com a imagem da imensa multidão, descrita no texto de João, lido na liturgia de hoje, tanta gente que ninguém podia contar. No primeiro plano, João coloca os 144 mil assinalados, representantes das tribos de Israel. Antes do trabalho catequético de Paulo, o apóstolo dos estrangeiros (gentios), estimava-se que a mensagem de Cristo devia ser seguida por aqueles que eram herdeiros da promessa, pois foi para eles que, num primeiro momento, Jesus Cristo pregou. Mas, com a pouca adesão no meio judaico, a fé cristã ganhou mesmo foro e entusiasmo no meio da “grande multidão formada por todos os povos e nações”. E os nossos romeiros são o exemplo mais evidente da concretização dessa memorável profecia joanina.

Em certo trecho lido hoje do Apocalipse (Ap 7, 13), João dialoga com um ancião, que lhe perguntou: quem são essas pessoas? João não soube responder e o próprio ancião completou: São os que vieram da grande tribulação, lavaram e alvejaram as suas roupas no sangue do Cordeiro. Ora, só podiam ser esses brasileiros nordestinos, que saíram da grande tribulação da seca e foram fortalecer a sua fé batismal nos lugares sagrados ciceronianos. Fico imaginando a grandiosa festa que acontecerá no horto de Juazeiro quando o Papa, em dia não muito distante, proclamar a santidade do Padre Cícero, agora que já não existe mais nenhum óbice canônico, com a retirada das penalidades que lhe haviam sido impostas. Todos sabemos que o povo já proclamou santo o Padre Cicero, independentemente de qualquer pronunciamento oficial eclesiástico. Mas quando o reconhecimento oficial acontecer, então a comemoração deverá ser inenarrável. Aguardemos.

Meus amigos, podemos afirmar que a romaria é uma forma de manifestação visível da autêntica comunhão dos santos: a Igreja peregrina se unindo com a Igreja celestial através da fé. Quem nunca esteve presente numa romaria não consegue avaliar o grau de seriedade com que o romeiro se comporta. Uma coisa é a reportagem que se vê pela televisão, outra coisa é o fenômeno que se observa e a energia que se sente emanar dessas pessoas. No Apocalipse, João fala de uma multidão que ninguém podia contar. Pois bem, ele não estava exagerando. Somente o contingente de romeiros de Juazeiro já seria suficiente para confirmar a previsão apocalíptica. Se acrescentarmos as outras milhares de comunidades de igrejas cristãs presentes nos diversos lugares do planeta, vamos concluir que incontável é pouco. E se considerarmos ainda as comunidades cristãs separadas, que o Papa Francisco está em busca de reunir, como fez há poucos dias junto à comunidade luterana da Suécia, vamos compreender quão realista foi a profecia de João, pois dentro de uma perspectiva ecumênica, todos os que foram validamente batizados, foram assinalados na testa com o sinal da salvação.

A segunda leitura, que também é da autoria de João, complementa o tema acima, quando afirma que desde já somos filhos de Deus, embora ainda não tenha se manifestado em nós o que seremos. Essa manifestação somente ocorrerá no futuro, “quando Jesus se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque o veremos tal como Ele é.” (1Jo 3, 2). Ou seja, pelo batismo, somos assinalados e já podemos ser chamados filhos de Deus, embora essa condição só se resolva de modo pleno na futura morada de todos nós. Este foi o grande presente que Deus nos deu, diz João, o de sermos chamados Seus filhos desde já. E isso é possível por causa da redenção trazida por Cristo, que apagou todos os nossos pecados e nos abriu as portas da morada divina. Essa verdade de fé é descrita na teologia como a tensão do “já e ainda não”, isto é, já somos filhos de Deus, porém, ainda não o somos plenamente. O teólogo Francis Scraeffer, no seu livro “A verdadeira espiritualidade” (p. 89), assim explica essa doutrina: “A salvação, no sentido em que essa palavra é usada na Bíblia, é mais ampla do que a justificação. Na salvação, há passado, futuro e, com o mesmo grau de realidade, há presente. A obra infinita realizada por Cristo na cruz traz mais do que justificação ao cristão. No futuro, haverá a glorificação. Quando Cristo retornar, haverá a ressurreição do corpo e a eternidade; mas há também um aspecto em que a salvação é presente. A santificação constitui nosso atual modo de relacionamento com o Senhor, é a nossa conjugação verbal presente na vida de comunhão com Deus”. Achei interessante esse texto e o reproduzi aqui porque, em outras igrejas cristãs, prega-se a justificação do fiel em Cristo, mas o teólogo explica que o conceito de salvação vai muito além da simples justificação, porque inclui desde a forma da vida atual, no mundo corporal, e se prolonga até a vida definitiva, sendo coerente com a passagem da carta de João citada acima (3, 2). Esse conjunto de palavras expressa de uma forma dinâmica o estado da nossa vida de fé que, por ora nos deixa ver as coisas como encobertas por um véu, como diz Paulo na carta a Coríntios:” …porque agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido” [1Coríntios 13].

A riqueza litúrgica da festa da comunhão dos santos se completa com o famoso sermão da montanha, no qual Cristo chama a todos de bem-aventurados. Dizer que somos bem-aventurados é o mesmo que dizer que somos santos. Em latim, bem aventurados = 'beati' (plural de beatus) é a mesma palavra que em português se traduz por 'felizes', tanto assim que algumas traduções do evangelho usam esta palavra nos textos. Curiosamente, Cristo chama de bem-aventurados todos aqueles que, pelo status social, seriam pessoas desventuradas. O cântico litúrgico da festa de hoje, reproduzindo uma passagem do cap. 3 do Livro da Sabedoria, identifica os conceitos de “justo”, “feliz” e “santo”: a vida dos justos está nas mãos de Deus, “Depois de terem sofrido um pouco, receberão grandes bens, pois Deus os provou e achou dignos de si.” (Sb 3, 5). Aqui se encaixa o conceito de “felizes os que sofrem, porque serão consolados”. Lembro que o Frei Higino costumava dizer, nas suas conferências, repetindo um bordão de São Francisco: um frade triste é um triste frade. A felicidade, a santidade, a bem-aventurança, a justiça estão sempre de mãos dadas. Ser santo não é isolar-se de todos e passar o dia rezando e meditando, sem viver na comunidade. Assim seria muito fácil alcançar a santidade. O grande desafio da santidade é aturar as maledicências, as incompreensões, a má vontade de algumas pessoas com quem convivemos e ainda assim mantermos a serenidade, a alegria e o bom humor. Fazendo assim, nem é necessário desfiar as contas do rosário seguidas vezes para alcançar o patamar da autêntica santidade.

O Papa Francisco, como sempre surpreendente, neste domingo celebrou a missa na Basílica de São Pedro com a presença de diversos prisioneiros e ex-prisioneiros de diversos países, incluindo os respectivos familiares e funcionários que trabalham nos presídios, dentro das comemorações do Jubileu do Recluso, até consagrou hóstias fabricadas por prisioneiros de Milão. Em Roma, o Dia de Todos os Santos é celebrado na data própria, 1 de novembro, mas a missa de hoje do Papa ainda se situa no contexto da comunhão dos santos, pois afinal os reclusos (considerando aqui aqueles que estão conscientes do seu erro e desejam emendar-se) também são chamados a fazer parte da “grande multidão” narrada no Apocalipse. A lembrança dos excluídos não pode nos passar despercebida no dia em que se comemora a festa de todos os santos, porque todos somos chamados para a santidade e, mesmo aqueles que eventualmente se desviaram do caminho, não foram segregados desse chamamento. Aproveitemos a data para repensar o nosso conceito de santidade.

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