domingo, 24 de novembro de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 34º DOMINGO COMUM - FESTA DE CRISTO REI - 24.11.2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 34º DOMINGO COMUM – FESTA DE CRISTO REI – 24.11.2013.

Caros Confrades,

Como é praxe, neste 34º domingo comum, que encerra o ano litúrgico, a Igreja celebra a festa de Cristo Rei do Universo. Recordando um pouco a história, esta celebração foi instituída em 1925, pelo Papa Pio XI, no período histórico que mediou entre as duas grandes guerras mundiais e num momento de grande descrença nas religiões e a consequente ascensão do ateísmo no mundo, situação muito parecida com a que nos encontramos hoje. Conforme já tive oportunidade de manifestar em ocasião anterior, a mim parece que esse destaque à figura de Jesus como rei não condiz com a vivência histórica que ele teve, bem como também não combina com o momento político mundial, no qual os reinos são praticamente inexistentes. Trata-se de uma figura apelativa para o romantismo de uma época em que a figura do rei representava o grande pai de todos, imagem que de modo algum é comparável aos nossos governantes modernos. Estou até curioso para ler os sermões do Seráfico Papa referentes ao domingo de hoje, a fim de ver se ele se mantém ligado à tradição triunfalista da Igreja, o que não é bem o estilo dele.

Passando à nossa reflexão acerca das leituras litúrgicas de hoje, vemos na primeira leitura, um trecho do segundo livro de Samuel (2Sm 5, 1-3), no qual é narrada a unção de Davi como rei de Israel. O rei Davi é uma das figuras mais emblemáticas do Antigo Testamento, juntamente com o filho dele, Salomão, outro grande governante, os dois fizeram histórias e lendas junto ao povo de Israel. Tão simbólica foi a missão do rei Davi que os profetas anunciaram que o Messias tão esperado de Israel nasceria de uma família da sua estirpe. Com efeito, tanto José, esposo de Maria, quanto ela própria eram da “casa de Davi”. As profecias antigas diziam que o Messias nasceria de uma mulher descendente de Abraão, da tribo de Judá e da família de Davi. Portanto, essa leitura do segundo livro de Samuel relaciona a realeza de Davi com a realeza de Cristo. Cristo é rei por ser descendente do mais importante rei de Israel. Essa é a ligação feita pelos teólogos desde a Idade Média, o que se justificava bem naquela época, em que a realeza era a forma de governo dominante, praticamente a única existente. E dentro da regra da hereditariedade, para alguém ter direito ao trono real, era necessário demonstrar que o herdeiro era descendente de um rei. No entanto, logo nos primórdios do cristianismo, o evangelista Mateus já buscava demonstrar, através das citações genealógicas, o vínculo familiar que unia Cristo ao rei Davi, afirmando assim o cumprimento das profecias. Mateus faz isso de uma forma bastante cuidadosa, quando no seu texto (Mt 1, 1-17) detalha a listagem genealógica de Jesus, elencando três períodos de 14 gerações, a partir de Abraão até chegar a Ele. De Abraão a Davi são 14 gerações, de Davi até o cativeiro da Babilônia, outros 14, e do final do cativeiro até o Messias são mais 14. De acordo com os biblistas, isso tem uma explicação matemática, porque a correspondência das letras hebraicas do nome de Davi com os números, somando-as, dá 14 como resultado. A soma é assim: em hebraico, escreve-se Dawid, com w. Na numerologia hebraica, o D=4 e o W=6, já as vogais não existiam no hebraico, por isso não entram na soma. Então, o total será D+W+D=4+6+4=14. Como os Confrades podem perceber, numerologia também faz parte da Bíblia e Mateus devia ser um especialista na matéria.

Temos na segunda leitura um trecho da carta aos Colossenses (Cl 1, 12-20), na qual Paulo faz um grande discurso apologético acerca da divindade de Cristo. “Ele é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação, pois por causa dele foram criadas todas as coisas no céu e na terra, as visíveis e as invisíveis, tronos e dominações, soberanias e poderes. Tudo foi criado por meio dele e para ele.” (2Cl 1, 15-16) Observa-se que Paulo não economiza nos qualificativos, ao contrário, faz uma suprema exaltação da figura de Cristo, embora não use o título de rei. Jesus é o princípio de todas as coisas e o primogênito dentre os mortos e alcançar a glória da ressurreição. O texto de Paulo é um autêntico hino à realeza de Cristo, sem citá-la. Com certeza, Paulo escreveu isso sem conhecer o texto do evangelho de Mateus (as cartas de Paulo são mais antigas), pois talvez se o tivesse conhecido, teria mencionado também a ascendência real de Cristo na sua origem terrena. O discurso de Paulo se direciona para a ascendência de Cristo no plano divino, mostrando a estreita relação d'Ele com o Pai: “porque Deus quis habitar nele com toda a sua plenitude e por ele reconciliar consigo todos os seres.” (2Cl 1, 19-20) Portanto, embora não mencione a palavra rei”, Paulo deixa isso subentendido nos vários conceitos utilizados para realçar a Sua personalidade divina. Nesse contexto, Paulo também relaciona a figura de Cristo como Cabeça da Igreja, cujo corpo somos nós, criando assim a doutrina do corpo místico de Cristo, largamente aplicada na teologia e na catequese.

No evangelho de Lucas (Lc 23, 35-43), lemos um trecho da narrativa dos eventos relativos à paixão de Cristo, quando Ele dialoga com os ladrões, que foram crucificados ao Seu lado. O mau ladrão debocha dele, desafiando-O a salvar-se e a salvar também os outros dois condenados. Por outro lado, o bom ladrão repreende o comparsa e confessa seu arrependimento, pedindo que Jesus o acolha no Seu reino. Esse diálogo é bem conhecido, porque é sempre repassado na liturgia da Semana Santa e foi sempre muito reproduzido também na catequese tradicional. Mas a leitura desse trecho sempre me faz recordar dois pensamentos. O primeiro diz respeito a uma discussão que eu ouvi, certa vez, na redação do jornalzinho do Seminário, quando dois colegas discutiam o significado da expressão latina que reproduzia o dito de Pilatos, quando foi perguntado pelos fariseus por que escrevera aquele letreiro aposto na cruz (INRI-Iesus Nazarenus Rex Iudeorum), ao que Pilatos teria respondido “quod scripsi, scripsi” (o que escrevi, escrevi – literalmente). O segundo pensamento diz respeito a quem teria escutado e transmitido esse diálogo entre Jesus e os ladrões. Sabemos que os apóstolos haviam debandado, junto à cruz estavam apenas João, Maria e algumas mulheres, que olhavam à distância. Pois bem, João não relata esse diálogo no seu texto. Os outros dois evangelistas, Marcos e Mateus, apenas se referem aos malfeitores crucificados com ele, sem mencionarem o diálogo, que só aparece no texto de Lucas. Ora, sabemos que Lucas, sendo médico, cuidou de Maria e por certo ouviu dela relatos intimistas referentes à vida de Jesus, que os outros escritores não tomaram conhecimento. Por essa linha de raciocínio, podemos concluir como provável que tal diálogo tenha sido escutado e memorizado por Maria, mãe de Jesus, que posteriormente o segredou a Lucas. Não me parece crível que algum dos soldados que participaram da execução tenha se preocupado com isso. E se João tivesse prestado atenção nesses detalhes, certamente também os teria relatado. Mas o olhar e o ouvido da Mãe captaram coisas que passaram despercebidas a todas as outras pessoas. É impressionante essa capacidade que as mães têm para perceber mensagens até subliminares no comportamento dos filhos.

Meus amigos, apesar de discordar desse aparato que a liturgia atribui à figura de Cristo como rei, entendo que Ele é verdadeiramente o soberano da verdade, da justiça, da paz, da igualdade e da fraternidade e que, para isso, ele não precisa de um manto real nem de um cetro nem de um trono, porque o seu manto é a verdade, o seu trono é a justiça e o seu cetro é a paz que Ele vem nos trazer todos os dias, ensinando-nos a viver em fraternidade e harmonia. É disso que a sociedade precisa e compete a nós, cristãos, dar exemplo público dessa fraternidade e harmonia de Cristo nas nossas vivências cotidianas.


domingo, 17 de novembro de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 33º DOMINGO COMUM - VIGILÂNCIA E PRONTIDÃO - 17.11.2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 33º DOMINGO COMUM – VIGILÂNCIA E PRONTIDÃO – 17.11.2013

Caros Confrades,

A liturgia deste 33º domingo comum, o penúltimo do ano eclesiástico, nos convida a refletir sobre aquelas coisas que ocorrerão no final dos tempos, o que nós aprendemos no catecismo com o nome de “novíssimos”, a segunda vinda de Cristo. No próximo domingo, com a festa de Cristo Rei do universo, encerrar-se-á o ano litúrgico de 2013. Então, teremos o tempo do advento e o início do ano novo eclesiástico.

As leituras deste domingo trazem como tema a vigilância e a prudência, que devem marcar a vida do cristão, crente na promessa de Cristo de que retornará no final dos tempos e, como não se sabe quando será tal apoteose, deve-se estar sempre preparado. A conhecida descrição evangélica dos últimos tempos já foi objeto de interpretações variadas ao longo da história, em diversas ocasiões, as pessoas perceberam, nos fatos do seu tempo, a identificação com as predições de Cristo. Ainda hoje, isso ocorre. Sempre que alguma notícia sobre fatos absurdos ou abomináveis é divulgada, os “profetas” tentam identificar neles as catástrofes previstas por Cristo. Porém, o próprio Cristo disse que somente o Pai sabe quando será isso e nem ao Filho Ele o revelou. Naturalmente, ele assim se referia ao “filho do Homem”, isto é, à sua natureza humana.

É interessante observar que, desde o Antigo Testamento, já havia presságios dos Profetas acerca de agouros maus que estariam por acontecer. Na leitura de Malaquias (Ml 3, 19-20), este Profeta se refere ao “dia, abrasador como fornalha, em que todos os soberbos e ímpios serão como palha; e esse dia vindouro haverá de queimá-los, diz o Senhor dos exércitos, tal que não lhes deixará raiz nem ramo.” (Ml 3, 19). Desde que os Patriarcas antigos narraram que houve outrora uma grande inundação (dilúvio) e o mundo todo sucumbiu debaixo da água, as pessoas criaram a ideia de que, da próxima vez, o mundo seria destruído pelo fogo. Isso é uma crença muito antiga, mas ainda hoje é recorrente na nossa cultura religiosa popular. No ano de 1910, quando estava se aproximando da terra o cometa Halley, pelos poucos conhecimentos daquela época sobre esse fenômeno cósmico, as pessoas viam aquela imensa “bola de fogo” se tornando cada vez maior e ficaram esperando apenas o momento final da destruição da terra. De repente, aquela luz se desfez, porque a terra atravessou a cauda gasosa do cometa. Mas a notícia do fogo destruidor permanece viva.

Na segunda leitura, de Paulo aos Tessalonicenses (2Ts 3, 7-12), o Apóstolo bate cabeça com aquela comunidade, onde se havia espalhado a informação de que Jesus “estava para chegar”, na sua segunda vinda, e assim as pessoas já não faziam mais nada, abandonaram os trabalhos e viviam à toa, apenas aguardando o momento. Paulo manda-lhes um recado desaforado: eu (Paulo), que até poderia me prevalecer da função de pregador para obter o sustento pela comunidade, me dedico ao trabalho dia e noite, a fim de obter o meu sustento, então, quem não quer trabalhar, também não deve comer. Diz ele: “Bem sabeis como deveis seguir o nosso exemplo, pois não temos vivido entre vós na ociosidade. De ninguém recebemos de graça o pão que comemos. Pelo contrário, trabalhamos com esforço e cansaço.” (2Ts 3, 7-8). Uma interpretação falsa da promessa de Cristo estava atrapalhando a vida daquela comunidade, o que Paulo tentava esclarecer na sua correspondência. Conforme vimos no domingo passado, essa comunidade deu muito trabalho a Paulo. Circulou por lá uma carta anônima, que era atribuída a Paulo e muito o preocupou porque continha ensinamentos equivocados. Foi de lá que Paulo teve de sair fugido, porque os judeus a quem ele desagradara o procuravam para matá-lo. Enfim, uma comunidade trabalhosa, onde as pessoas tinham dificuldade em compreender a sua doutrina, mesmo tendo recebido instrução. Situações parecidas ocorrem ainda hoje, quando vemos pessoas que leem a Bíblia mas, em vez de buscar retirar da leitura o seu sentido mais coerente e produtivo, apegam-se a detalhes insignificantes, que deturpam a mensagem.


Na leitura de hoje do evangelho de Lucas (Lc 21, 5-19), Jesus faz aquela famosa previsão da destruição do templo de Jerusalém, que era entendida pelos judeus como a maior desgraça que lhes poderia acontecer. “Dias virão em que não ficará pedra sobre pedra. Tudo será destruído.'” (Lc 21, 6) Esse fato histórico se deu no ano 70, quando o exército romano invadiu Jerusalém e destruiu o templo. No entanto, perguntando os ouvintes a Jesus quando aquilo iria ocorrer, ele respondeu evasivamente: “cuidado para não serdes enganados...” (Lc 21, 8), porque muitas pessoas irão dizer que o tempo está próximo, mas não acreditem nessa gente. Muitas coisas irão acontecer: guerras, revoluções, tsunamis, terremotos, desastres ambientais, mas as piores são aquelas coisas perpetradas pela maldade dos homens: “'Um povo se levantará contra outro povo, um país atacará outro país. Haverá grandes terremotos, fomes e pestes em muitos lugares; acontecerão coisas pavorosas e grandes sinais serão vistos no céu.” (Lc 21, 10-11). Até parece com as notícias veiculadas diariamente na imprensa. Nas últimas semanas, circulou em Fortaleza a notícia de uma grande onda do mar, que chegaria no dia 24 de novembro (próximo domingo) em todo o nordeste brasileiro, inundando e destruindo tudo. Muitas pessoas apavoradas, principalmente aquelas que moram próximas da praia, já estão em polvorosa, algumas colocando suas casas à venda e planejando a mudança para o interior do Estado. Fico imaginando essas pessoas ouvindo as leituras litúrgicas deste domingo, irão concluir que até a Igreja está confirmando a notícia. Tudo isso é fruto do sensacionalismo midiático (eu diria terrorismo midiático), associado àquela vetusta catequese tradicional, que apelava sempre para a ameaça aos castigos, como forma de convencer as pessoas a praticarem o bem.
Precisamos compreender esse trecho do evangelho em concordância com os versículos que vêm a seguir, pelos quais Jesus diz que, antes que isso aconteça, a nossa fé passará por provações. “Antes, porém, que estas coisas aconteçam, sereis presos e perseguidos; sereis entregues às sinagogas e postos na prisão; sereis levados diante de reis e governadores por causa do meu nome. Esta será a ocasião em que testemunhareis a vossa fé.” (Lc 21, 12-13) Meus amigos, no sentido histórico, Jesus se referia aí às perseguições pelas quais passariam os Apóstolos e os primeiros cristãos, como de fato a história documentou. Mas no sentido trans-histórico, o texto se refere a nós, hoje. A nossa fé está a enfrentar contínuas provações, perseguições, ameaças dentro e fora do ambiente religioso. Hoje, eu li um texto terrível, escrito por uma pessoa que se diz católica e que nós podemos classificar como extremista e intolerante. Falando acerca da Teologia da Libertação, disse esse intelectual: ou expulsamos os traidores de dentro da Igreja, ou será impossível salvar o Brasil. Não estou aqui a defender a Teologia da Libertação, mas me refiro à atitude totalmente antirreligiosa de uma pessoa que se diz católica. Ou seja, as ameaças contra a fé não se originam apenas dos inimigos da religião, mas de dentro da própria comunidade eclesial. No extremo oposto, está o Papa Francisco que, quando indagado sobre a opinião dele acerca do homossexualismo, declarou: “quem sou eu para julgar essas pessoas?” Fico aqui imaginando o volume de ameaças que o Seráfico Papa recebe, de forma direta, dos seus próprios pares no Vaticano, e de forma indireta, de alguns grupos de fiéis, espalhados por todo o mundo.

Então, voltando ao tema que propusemos no início, a vigilância e a prontidão que devemos guardar não se refere apenas às ameaças externas, mas o inimigo pode estar no meio de nós. Qual é a conduta a seguir para nos mantermos vigilantes e preparados para enfrentar todas essas provações? Em primeiro lugar, a retidão de consciência e a boa vontade de progredir sempre mais como pessoa. Em segundo lugar, o estudo e a reflexão sobre a autêntica religião de Cristo. Não basta ler a Bíblia, é preciso conhecê-la e aprofundá-la pelo estudo sério e bem fundamentado, evitando-se extremismos e simplismos de toda ordem. A fé não se sustenta apenas com a oração. Esta é necessária, mas o estudo da doutrina e de suas fontes é igualmente indispensável.


domingo, 10 de novembro de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 32º DOMINGO COMUM - A CRENÇA NA VIDA ETERNA - 10.11.2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 32º DOMINGO COMUM – A CRENÇA NA VIDA ETERNA – 10.11.2013

Caros Confrades,

Neste 32º domingo comum, a liturgia ainda repercute a celebração dos fiéis defuntos, trazendo como tema a crença na vida eterna. Esse assunto sempre foi motivo de polêmica desde os povos mais antigos, encontrando defensores e opositores. Na Grécia antiga, os pitagóricos e os órficos acreditavam na vida após a morte e afirmavam a possibilidade da comunicação com os mortos, no que eram vigorosamente combatidos pela política oficial. Na cultura romana, a crença na vida após a morte estava presente nas tradições familiares, com os deuses “lares” e “penates”. Na tradição cristã, observam-se divergências não propriamente na crença na vida eterna, mas na forma de prestar culto aos mortos. O catolicismo tem como sua principal fonte doutrinária sobre esses rituais os dois livros de Macabeus, porém os protestantes consideram esses livros como apócrifos e discordam da doutrina católica. A primeira leitura da liturgia de hoje traz um trecho do segundo livro de Macabeus (7, 1-14);

Antes, uma breve explicação. O nome Macabeu era o apelido dado a Judas, filho de Matatias, que foi sucessor daquele no comando do exército rebelde de Israel, no tempo em que o povo hebreu estava dominado pelos selêucidas. Não eram escravos, mas eram submissos politicamente ao rei Antíoco. O grande problema trazido por essa dependência dizia respeito à não observância da lei de Moisés, por imposição dos dominadores. Matatias organizou um exército formado por pessoas que não concordavam com essa dominação e permaneciam fiéis à lei mosaica, e enfrentou o exército do opressor com tática de guerrilhas, vencendo sucessivamente até retomar Jerusalém e fazer a rededicação do Templo, que havia sido profanado. Com a morte de Matatias, assumiu o comando das tropas o filho dele de nome Judas, que por suas atitudes sempre firmes e exitosas foi apelidado de “macabeu”, que significa “martelo”. Ele era o martelo que detonava sobre as cabeças dos inimigos. Os dois livros de Macabeus não estão na Bíblia hebraica, mas seu conteúdo é considerado de grande valor histórico, por relatar um período importante da história de Israel. A Igreja Católica o colocou no seu cânon, tendo sido esse um dos motivos do “protesto” de Lutero.

O trecho lido na liturgia de hoje, narra o episódio em que uma mulher e seus sete filhos, que eram fiéis seguidores do judaísmo, e foram levados à presença do rei, que os obrigara a comer carne de porco, o que era proibido pela lei de Moisés. Todos se recusaram e foram assassinados um após o outro, inclusive a mãe deles. Mas, à parte essas cenas sangrentas, o objetivo da leitura é demonstrar a fé que essa família tinha na vida eterna. Todos deram testemunho perante o rei selêucida e seus comparsas sobre a fidelidade à lei de Moisés, preferindo a morte a transgredir a lei. Diz a leitura que o rei e seus acompanhantes ficaram admirados com a coragem de um dos filhos da viúva, um adolescente, que ao ser torturado, fez uma emocionante profissão de fé: “E disse, cheio de confiança: 'Do Céu recebi estes membros; por causa de suas leis os desprezo, pois do Céu espero recebê-los de novo'. ” (2Mc 1, 11) Não faz parte do trecho lido, mas o redator destaca que a mãe deles os incentivou a cada um para que se mantivessem firmes na fé, confiantes na promessa da vida eterna. A tradição não guardou os nomes desses heróis do judaísmo, mas o seu exemplo continua edificante. Comer a carne de porco podia parecer algo insignificante, se comparado ao resultado que os esperava, mas a sua firmeza na fé era tamanha que suportaram todos os suplícios, para não violarem a lei. Por falar nisso, ainda hoje, entre os protestantes, a carne de porco é um alimento proibido, em obediência à lei de Moisés. A hermenêutica teológica católica não recomenda essa interpretação restrita e literal dos textos sagrados, devendo o fiel dar preferência à mensagem neles contida.

A segunda leitura é retirada da carta de Paulo aos Tessalonicenses (2Ts 2,16-3,5). Conforme os biblistas, a primeira carta aos fiéis de Tessalônica teria sido uma das primeiras escritas por Paulo. Naquela cidade, Paulo teve um entrevero com os judeus, o que o obrigou a fugir de lá para não sofrer violência deles. Daí por que, na segunda carta, Paulo escreveu assim: “Rezai também para que sejamos livres dos homens maus e perversos pois nem todos têm a fé! Mas o Senhor é fiel; ele vos confirmará e vos guardará do mal.” (2Ts 3, 2-3) Essa polêmica com os judeus de Tessalônica fez com que circulassem por lá boatos sobre uma carta falsa de Paulo, que teria chegado depois. Por esse motivo, a segunda carta aos Tessalonicenses tem sua autoria posta em dúvida por alguns estudiosos protestantes, porém entre os teólogos católicos, tais dúvidas não são relevantes. A grande questão se situa no fato de que, na primeira carta, Paulo falava que Cristo estava para voltar, o que fez os tessalonicenses interpretarem como se isso fosse ocorrer naqueles dias. Alguns até ficaram sem trabalhar e sem fazer mais nada, só esperando o retorno de Cristo. Na segunda carta, Paulo os tranquiliza dizendo que a vinda de Cristo não seria assim de surpresa, porém antecedida por muitos sinais. Os dissidentes encontram nessas duas passagens motivos para duvidar da sua autenticidade, como se Paulo estivesse ensinando doutrinas diferentes. Ao meu ver, essa polêmica é resultado da interpretação puramente literal dos textos, sem a necessária contextualização histórica. A relação com o tema litúrgico está justamente na exortação de Paulo para que todos perseverem firmes na fé, esperando a nova vinda de Cristo.

Na leitura do evangelista Lucas (20, 27-38), vemos Jesus explicar aos saduceus a doutrina da ressurreição, sobre a qual eles duvidavam e colocavam questões. Os saduceus eram os judeus da aristocracia, aqueles que ocupavam os cargos políticos mais elevados, inclusive como membros do Sinédrio. Apoiavam os romanos e preocupavam-se mais com a política do que com a religião. Diferentemente dos fariseus, que sempre tentavam colocar Jesus em dificuldades, os saduceus foram interrogá-lo sobre a doutrina da ressurreição, porque compreendiam a vida eterna da mesma forma como a vida atual. Jesus vai, então, explicar que após a morte “os que forem julgados dignos da ressurreição dos mortos e de participar da vida futura, nem eles se casam nem elas se dão em casamento (27, 35)“, isto é, a vida futura não pode ser comparada com as relações da vida terrena. E faz lembrar a eles, que assim como os fariseus, também cumpriam à risca a lei de Moisés, que a doutrina da ressurreição já está presente na Torah, basta eles entenderem: “Que os mortos ressuscitam, Moisés também o indicou na passagem da sarça, quando chama o Senhor de 'o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó'. ” (Lc 27, 37) Ou seja, o Deus de Israel não é Deus dos mortos, mas dos vivos. Abraão, Isaac e Jacó estão vivos em Javeh porque ressuscitaram. Embora não tenha utilizado essa palavra, no entanto, Moisés já ensinara sobre a ressurreição. Portanto, o que Jesus estava dizendo não era uma coisa nova, inventada por ele, mas algo que já estava contido na lei mosaica, bastando uma leitura mais atenta e com a mente mais aberta.

Meus amigos, essa doutrina da vida eterna, da ressurreição, é um dos pontos chaves do cristianismo. Paulo foi muito enfático em 1Cor 15, 14, quando afirmou que se Cristo não ressuscitou, vã é a nossa fé. A ressurreição de Cristo é a chave para a nossa crença na vida eterna. No Antigo Testamento, a vida futura era apenas presumida, por conta da aliança e da promessa de Javeh, motivo pelo qual os hebreus acreditavam que os seus Patriarcas permaneciam vivos e Moisés ensinou isso na sua pregação. Mas no Novo Testamento, com a ressurreição de Cristo, essa crença é confirmada por inúmeros fatos e testemunhos do seu aparecimento e da catequese que ele continuou a ministrar aos apóstolos, até o dia de Pentecostes. A partir da ressurreição de Cristo, a crença na vida eterna não é apenas uma presunção, mas uma verdade que inclui uma certeza de que aqueles que forem fiéis ao Evangelho também ressuscitarão. Daí porque os livros de Macabeus são postos no rol dos livros canônicos, por uma questão de coerência doutrinária. Na liturgia deste domingo, essas leituras são colocadas em conjunto para mostrar a compatibilidade entre elas acerca desse polêmico tema. Porém, devemos estar atentos à exortação de Jesus aos saduceus: na vida eterna, as relações pessoas serão de outra ordem, para isso, não servem de parâmetros as regras sociais de convivência entre as pessoas. Lá, todos serão iguais a anjos (Lc 27, 36), por esse motivo a doutrina do espiritismo não se coaduna com a doutrina católica sobre a vida eterna, por fazer uma simples transferência dos modos relacionais na vida terrena e na vida espiritual.


domingo, 3 de novembro de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - IMENSA MULTIDÃO - 03.11.2013 - FESTA DE TODOS OS SANTOS

COMENTÁRIO LITÚRGICO – IMENSA MULTIDÃO (TODOS OS SANTOS) – 03.11.2013

Caros Confrades,

A liturgia deste domingo traz a comemoração da festa de Todos os Santos, transferida do dia 1 para hoje, conforme acordo entre a CNBB e o Governo. Tomei como tema a referência feita na leitura do Apocalipse sobre a visão joanina de “uma grande multidão de gente de todas as nações, tribos, povos e línguas, que ninguém podia contar.” Essa multidão, que se sucedeu à visão daqueles assinalados, os membros das doze tribos de Israel, somos nós, os cristãos espalhados pelos quadrantes do universo conhecido, e que poderão ser ainda mais, se pensarmos na possibilidade de outros mundos habitados.

Nesta semana, eu estava lendo no jornal sobre a romaria de finados, em Juazeiro, com um número estimado de 600 mil pessoas, dos diversos Estados do nordeste. Foi do que me recordei, ao fazer a leitura de hoje do texto apocalíptico de João. Alguns daqueles romeiros diziam: eu venho aqui há vinte anos seguidos... trinta anos seguidos... Uma senhorinha revelou: eu comecei vindo aqui trazendo o meu filho menino, hoje é ele quem me traz. Meus amigos, com o que podemos relacionar essa multidão de fiéis, senão com a imensa multidão descrita no texto de João, tanta que ninguém podia contar? Alguém poderá contradizer: ah, mas isso não é fé cristã, é cultura, é fanatismo religioso. Seja qual for o nome que queiramos dar, para as pessoas que experimentam isso, é a mais autêntica fé que eles sabem expressar. Vê-se isso nos seus semblantes, nas suas atitudes. Falando hoje com o Frei Barbosa, Pároco do Santuário de Juazeiro, ele dizia que alguns caminhões de romeiros foram interceptados pelas patrulhas rodoviárias, por falta de segurança. Mas o romeiro explica de um jeito tipicamente seu: romaria tem que ser em pau-de-arara. E pau-de-arara é sinônimo de desconforto e de insegurança, quem segura tudo é a fé dos romeiros.

Logo a seguir, na leitura litúrgica de hoje do Apocalipse (Ap 7, 13), João dialoga com um ancião, que lhe perguntou: quem são essas pessoas? João não soube responder e o próprio ancião completou: São os que vieram da grande tribulação, lavaram e alvejaram as suas roupas no sangue do Cordeiro. Ora, só podiam ser nordestinos, que saíram da grande tribulação da seca e foram fortalecer a sua fé batismal nos lugares sagrados ciceronianos. Hoje, no sermão da missa, o Monsenhor Manfredo Ramos comentou que, nos primeiros dez séculos do cristianismo, quem proclamara os santos era o povo, não havia a proclamação oficial pelo Papa, a conhecida canonização. Somente a partir do primeiro milênio, o Papa atraiu para si essa tarefa. Todos sabemos que o nosso povo já proclamou santo o Padre Cicero, independentemente de qualquer pronunciamento oficial eclesiástico. Se olharmos o fato pela antiga tradição da proclamação dos santos, o povo nordestino está seguindo a regra primitiva, mesmo que a hierarquia oficial não tome conhecimento disso.

Meus amigos, essa é a autêntica comunhão dos santos, a Igreja peregrina se unindo com a Igreja celestial através da fé. Quem nunca esteve presente numa romaria não consegue avaliar o grau de seriedade com que o romeiro se comporta. Uma coisa é a reportagem que se vê pela televisão, outra coisa é o fenômeno que se observa e a energia que se sente emanar dessas pessoas. No Apocalipse, João fala no número dos que foram marcados na fronte (Ap 7, 4) para serem salvos, cujo quantitativo era de cento e quarenta e quatro mil. Ora, somente em Juazeiro, nesta semana, este número estava mais do que quadruplicado. A previsão de João deve ser, portanto, calculada com a correção do fator multiplicador do tempo decorrido, sendo mais coerente a passagem do versículo 9, onde ele diz que ninguém podia contar a multidão. Nós não somos descendentes genéticos das doze tribos de Israel, mas todos nós lavamos e alvejamos nossas roupas no sangue do Cordeiro, portanto, também fomos assinalados para a salvação. Se nós computarmos as diversas comunidades de igrejas cristãs, então esse número se torna deveras incontável. Dentro de uma perspectiva ecumênica, todos os que foram validamente batizados, foram assinalados na testa com o sinal da salvação.

A segunda leitura, que também é da autoria de João, complementa o tema acima, quando afirma que desde já somos filhos de Deus, embora ainda não tenha se manifestado em nós o que seremos. Essa manifestação somente ocorrerá no futuro, “quando Jesus se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque o veremos tal como Ele é.” (1Jo 3, 2). Ou seja, pelo batismo, somos assinalados e já podemos ser chamados filhos de Deus, embora essa condição só se resolva de modo pleno na futura morada de todos nós. Este foi o grande presente que Deus nos deu, diz João, o de sermos chamados Seus filhos desde já. E isso é possível por causa da redenção trazida por Cristo, que apagou todos os nossos pecados e nos abriu as portas da morada divina. Essa situação é descrita na teologia como a tensão do “já e ainda não”, isto é, já somos filhos de Deus, porém, ainda não o somos plenamente. O teólogo Francis Scraeffer, no seu livro “A verdadeira espiritualidade” (p. 89), assim explica essa doutrina: “A salvação, no sentido em que essa palavra é usada na Bíblia, é mais ampla do que a justificação. Na salvação, há passado, futuro e, com o mesmo grau de realidade, há presente. A obra infinita realizada por Cristo na cruz traz mais do que justificação ao cristão. No futuro, haverá a glorificação. Quando Cristo retornar, haverá a ressurreição do corpo e a eternidade; mas há também um aspecto em que a salvação é presente. A santificação constitui nosso atual modo de relacionamento com o Senhor, é a nossa conjugação verbal presente na vida de comunhão com Deus”. Achei interessante esse texto e o reproduzi aqui porque, em outras igrejas cristãs, prega-se a justificação do fiel em Cristo, mas o teólogo explica que o conceito de salvação está muito acima da simples justificação, porque inclui desde a forma da vida atual, no mundo corporal, e se prolonga até a vida definitiva, sendo coerente com a passagem da carta de João citada logo acima (3, 2), “quando Jesus se manifestar”. Essa doutrina do “já e ainda não” foi um dos temas que achei mais interessantes no decorrer do curso de teologia. Esse conjunto de palavras expressa de uma forma dinâmica o estado da nossa vida de fé que, por ora nos deixa ver as coisas como encobertas por um véu, como diz Paulo na carta a Coríntios:” …porque agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido” [1Coríntios 13].

A riqueza litúrgica da festa da comunhão dos santos se completa com o famoso sermão da montanha, no qual Cristo chama a todos de bem aventurados. Dizer que somos bem aventurados é o mesmo que dizer que somos santos. Em latim, bem aventurados = 'beati' (plural de beatus), que é a mesma palavra que em português se traduz por 'felizes', tanto assim que algumas traduções do evangelho usam esta palavra nos textos. Curiosamente, Cristo chama de bem aventurados todos aqueles que, pelo status social, seriam pessoas desventuradas. Esse assunto se encaixa com o tema do evangelho do domingo comum, que cedeu o lugar para a festa de Todos os Santos, e que narra o episódio em que Jesus foi hospedar-se na casa de Zaqueu. Este era um cobrador de impostos, portanto, um publicano, um pecador público, um excluído do mundo religioso pela hipocrisia dos fariseus. No entanto, pela sua fé, ele ganhou a condição de “beatus”, quando Jesus mandou que ele descesse da árvore, pois Ele queria hospedar-se na sua casa. Ora, pensavam os fariseus ao verem aquilo, com tantas pessoas honradas e dignas nesta cidade, porque Jesus vai escolher a casa de um publicano para visitar? Pois é, dentro da lógica humana (e do próprio Zaqueu, que não imaginava que isso fosse acontecer), ele estaria fora dos “beati” referidos no sermão da montanha. Mas dentro da lógica de Cristo, a ele foi ofertada a salvação e ele muito que aceitou.

O Papa Francisco, no sermão que fez neste domingo para os fiéis que estavam na Praça de São Pedro, lembrou que o nome Zaqueu, em hebraico, significa “Deus recorda”, e fez o seguinte comentário: Não existe profissão ou condição social, não há pecado ou crime de qualquer gênero que possa cancelar da memória e do coração de Deus um filho sequer. “Deus recorda”, sempre, não esquece nenhum daqueles que criou; Ele é Pai, sempre à espera vigilante e amorosa de ver renascer no coração do filho o desejo de retornar à casa. E quando reconhece este desejo, mesmo que simplesmente manifestado, e tantas vezes quase inconsciente, imediatamente põe-se a seu lado, e com o seu perdão lhe torna mais leve o caminho da conversão e do retorno.O convite que Jesus fez a Zaqueu, ignorando que ele era um pecador público, assim como o sermão da montanha, no qual Ele exalta as virtudes contrárias ao que o mundo aceita, enche de esperança a todos nós, que ainda estamos na “grande tribulação” e, portanto, sujeitos às maiores adversidades no cumprimento fiel à nossa vocação cristã. A celebração de Todos os Santos nos coloca nessa corrente de fé em que, vivendo o “já”, preparamos aquilo que “ainda não” alcançamos.

Permaneçamos fiéis ao ensinamento de Cristo e para que possamos ser dignos de participar das suas promessas de santidade.