sábado, 25 de fevereiro de 2023

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 1º DOMINGO DA QUARESMA - 26.02.2023

 

COMENTÁRIO LITURGICO – 1º DOMINGO DA QUARESMA – ORIGEM E SIMBOLISMO DO PECADO – 26.02.2023


Caros Confrades,


A liturgia deste 1º domingo da quaresma põe para nossa reflexão o tema da origem do pecado, através da narração bíblica da legendária árvore do bem e do mal, já tantas vezes tema de criações artísticas e sempre motivo de polêmica entre os leitores bíblicos. Logo a seguir, apresenta um trecho de Paulo igualmente polêmico, no qual ele faz um trocadilho sobre a origem do pecado, remetendo o argumento à árvore do paraíso, e lembrando a “tentação” sofrida pela mulher. Na sequência, o evangelho de Mateus vai abordar outro tema controvertido acerca das “tentações” de Cristo. Trata-se de assuntos que precisam ser entendidos com clareza, para evitarem-se discussões inúteis e questionamentos insolúveis. Mais do que narrar um fato, as leituras bíblicas trazem para nossa consideração a simbologia do pecado, para destacar a força da graça divina, que é infinitamente superior.


Na primeira leitura (Gen 2, 7 – 3, 7), temos aquela conhecida história sobre o “fruto proibido”, que teria sido ingerido por Eva e Adão, por influência da serpente. Como já inúmeras vezes tive ocasião de comentar, não se pode realizar interpretação literal dessa legenda, pois ela é simbólica e pedagógica. O seu objetivo é mostrar que a origem do pecado está, em primeiro lugar, na soberba humana de querer igualar-se a Deus e, em segundo lugar, na ousadia da desobediência. Sabe-se muito bem que serpente não fala e nunca falou, além do que a narrativa explora o aspecto da curiosidade feminina, envolvendo a ação da mulher na origem do pecado, fato que se transformou nessa, ainda hoje presente, discriminação social contra a mulher, persistente e resistente, apesar de todo o empenho do movimento feminista mundial. Nem mesmo a inclusão de dispositivos nas leis e na constituição acerca da igualdade dos gêneros consegue força para superar tão arraigado preconceito. As matrizes da cultura hebraica, associadas e reforçadas pela mentalidade greco-romana antiga, colocam raízes demasiado profundas neste comportamento masculino (machismo), que consegue sobreviver a todas as tentativas de extirpá-lo. Essa simbologia do pecado, escondida nos meandros mais obscuros do inconsciente coletivo, tem uma força de regeneração extremamente poderosa.


Podemos observar uma explicação didática da simbologia do pecado no trecho paulino da Carta aos Romanos (5, 12-19). Foi muito importante a adesão da elite romana ao cristianismo primitivo, fruto do apostolado de Paulo, motivo pelo qual ele procurou explicar muito claramente esse tema complexo e difícil para seu público romano constituído, em grande parte, de pessoas instruídas na cultura grega. Paulo era um judeu fervoroso, ortodoxo, então ele conhecia bem a Torah e os seus ensinamentos, inclusive a história do paraíso do Éden. Utilizando-se de seus conhecimentos da cultura grega, ele compôs um raciocínio lógico bastante criativo, fazendo uma espécie de trocadilho paralelo entre a história da árvore do bem e do mal e a redenção operada por Cristo, ao contrapor o pecado e a graça personificados, nas figuras de Adão e de Cristo. “Como a falta de um só acarretou condenação para todos os homens, assim o ato de justiça de um só trouxe, para todos os homens, a justificação que dá a vida. ” (Rm 5, 18). Pela culpa de Adão, o pecado entrou no mundo; pela ação redentora de Cristo, a graça venceu o pecado. Por um homem (Adão), veio o pecado; por um homem (Cristo), veio a graça. Paulo nem precisou fazer referência à participação de Eva no episódio da origem do pecado, talvez até propositalmente omitiu isso, para não complicar ainda mais a situação social das mulheres em Roma, pois elas já eram postas em segundo plano na sociedade romana. Esse texto de Paulo, não obstante o seu didatismo, trouxe enormes dificuldades teológicas para a sua interpretação, sendo ainda hoje motivo de inquietação por parte de teólogos que não conseguem ultrapassar a sua estrita literalidade. Com certeza, Paulo não tencionava defender uma “tese científica” sobre a origem da humanidade, mas apenas construir um argumento teológico servindo-se da lógica filosófica grega, muito conceituada entre os romanos, para demonstrar que o cristianismo era uma religião compatível com a filosofia grega. A sua tese de “por um só homem” tem gerado memoráveis polêmicas quando confrontada com as teorias da evolução das espécies, opondo de forma desnecessária a Bíblia e a ciência. Sem adentrar nos detalhes dessa problemática, eu sustento o entendimento teológico de que o pecado se origina da própria natureza humana imperfeita e, nessa linha de pensamento, a graça que Cristo veio nos trazer com a sua encarnação não configura um “restabelecimento” ou retorno a uma situação anteriormente vivida no paraíso bíblico e que fora perdida por causa das ações mal sucedidas dos antepassados, mas se trata de uma situação futura, dentro do processo de aperfeiçoamento contínuo da própria criação divina.


Portanto, nessa nova linha de raciocínio, não teríamos a sequência graça original→ pecado original→ nova graça cristã, mas apenas natureza humana originalmente imperfeita (e por isso passível de ser atingida pelo pecado) e natureza humana socorrida pela graça divina trazida por Cristo, com a qual o ser humano tem a ajuda suficiente para superar as imperfeições naturais e se plenificar cada vez mais. Ao desenvolver-se, por via de consequência, o ser humano leva para toda a criação esse processo evolutivo. Aí, sim, vale a observação de Paulo em Romanos 5, 20: “onde abundou o pecado, superabundou a graça.” Esse trecho, que não está incluído na leitura deste domingo, é exatamente o versículo seguinte de onde termina o texto lido na liturgia.


A leitura do evangelho de Mateus 4, 1-11 traz a narração das “tentações” de Jesus no deserto, onde ele jejuou durante 40 dias. Vale recordar nesse contexto a simbologia do número 40. Dentro do contexto bíblico, o número 40 aparece sempre antecedendo um fato muito importante, não significa contagem matemática de 40 dias, mas do tempo oportuno para o poder de Deus se manifestar através de alguma obra grandiosa. Por sua vez, as tentações de Jesus representam os 'perigos' que a sua natureza divina poderia representar em situações de extrema pressão psicológica como ser humano que era. Para cumprir os desígnios do Pai e para cumprir o plano salvífico, Jesus precisava passar por todo aquele padecimento enquanto pessoa humana. De fato, nós sabemos que Jesus enfrentou diversos desafios, que para Ele teriam sido facilmente resolvidos se usasse o poder divino, mas ele não podia fazer assim. As chamadas “tentações” foram, na verdade, uma espécie de treinamento que ele realizou para comportar-se plenamente conforme a natureza humana.


Então, quais foram mesmo as grandes 'tentações' de Jesus? 1. Transforma essas pedras em pão... tentação do poder; 2. Eu te darei todos os reinos... tentação da riqueza; 3. Joga-te daqui para baixo... tentação do orgulho/vaidade. Quantas vezes, os fariseus tentaram Jesus para que Ele realizasse um “milagrezinho” na presença deles. Herodes foi um que disse na cara de Jesus: “você é uma piada”, porque insistiu pra Jesus atravessar a piscina dele andando sobre a água (cf Lucas 9, 7 e 23, 6), e Jesus não fez. Portanto, se quisermos encontrar a figura de satanás tentando Jesus, não busquemos essa no deserto, onde ele jejuou, mas nos diversos fariseus que o tentaram em vão. O próprio Judas, que certamente vira Jesus fazer vários milagres, não conseguia acreditar que Ele fosse suportar todas aquelas humilhações impostas pelos chefes dos sacerdotes e iria 'dar a volta por cima', até pagou pra ver, mas perdeu a aposta. Desculpem-me, meus amigos, talvez alguns não concordem com o que vou escrever, mas muitas vezes, a figura de satanás é utilizada para encobrir nossas próprias fraquezas e nossa personalidade imperfeita. As grandes tentações que nos afetam não nos vêm de um agente exterior, mas da nossa “trindade” interior: id, ego e superego (tomando emprestada a terminologia de Freud), que são as verdadeiras “donas” da nossa personalidade.


Meus amigos, veio-me a lembrança agora uma frase emblemática do filósofo austríaco Edmund Husserl, que insistia sempre: “voltemos às coisas mesmas”. Este apelo de Husserl corresponde ao início da filosofia fenomenológica, por ele defendida, instruindo-nos a reconhecer e valorizar as nossas próprias percepções e não procurarmos a todo custo racionalizar os acontecimentos, buscar explicações lógicas e racionais para tudo, através da generalização conceitual abstrata. Trago esta frase para este contexto pela mensagem que ela encerra. Encaremos de frente o nosso próprio ser, sem ocultações ou subterfúgios. Voltemo-nos para nós mesmos e tenhamos coragem de assumir nossas fraquezas, deixemos de culpar o demônio pelos males que fazemos, pois somente assim estaremos criando condições de superar a nós mesmos. A literatura transformou essa autoanálise em tentação e na figura do tentador. Mas nós devemos ir além dessa metáfora tradicional. Se sairmos disso, seremos capazes de reciclar também a nossa noção de pecado.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 18 de fevereiro de 2023

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 7º DOMINGO COMUM - 19.02.2023

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 7º DOMINGO COMUM – PERDÃO SEM MEDIDA – 19.02.2023


Caros Confrades,

Neste 7º domingo comum, a liturgia nos recorda que somos santuários vivos de Cristo, que habita em nós. E a característica própria do cristão é o amor os irmãos, mesmo aqueles que são maldosos e causam ofensas. Por isso, é preciso aprender a perdoar sem medida. No evangelho de Mateus, Jesus pergunta: o que vocês fazem a mais do que os pagãos? Amar os amigos e fazer o bem a quem lhe faz bem, isso não é grande coisa, os pagãos também fazem assim. Para fazer diferente, o cristão deve amar os inimigos e fazer o bem aos que lhe fazem o mal.


Na primeira leitura, do livro do Levítico (19, 1-18), Moisés transmite ao povo o recado dado por Javé: sede santos assim como eu sou santo e, recordando o primeiro mandamento, repete o refrão da santidade: amarás o teu próximo como a ti mesmo. Anos depois, Jesus Cristo irá dizer aos discípulos que este é o primeiro e o maior mandamento. Mas a lei de Moisés ainda era muito restritiva em relação a este amor ao próximo, pois considerava o próximo apenas os compatriotas, os amigos, permitindo o ódio aos inimigos. Na sua pregação, Jesus veio ampliar o conceito do próximo, estendendo-o inclusive aos não compatriotas, como é o caso famoso da parábola do Bom Samaritano. Aqui está a grande e essencial diferença entre a lei antiga e a nova lei, entre o cumprimento restrito da lei e o cumprimento desta com sabedoria, conforme tema abordado no comentário do domingo passado. O escritor do Levítico dizia: não procures vingança nem guardes rancor dos teus compatriotas (v. 18), referindo-se ao povo de Israel apenas. Jesus vai dizer: teus compatriotas são todos os teus semelhantes, porque a pátria a ser considerada, neste caso, é o céu. E a exortação de não guardar rancor nem procurar vingança se estende a todos, sem medida.


Na continuação da primeira carta aos Coríntios (1Cor 3, 16-23), Paulo continua o ensinamento já abordado no domingo anterior, dizendo que os cristãos não se devem deixar levar pela sabedoria das coisas do mundo, mas pela sabedoria que provém de Deus. E como isso será possível? Porque nós somos santuários de Deus e o Espírito de Deus habita em nós. Aquele que se inebria com a sabedoria mundana é um insensato e destrói em si próprio esse templo onde Deus habita, tornando-se habitação do mal. Assim ele diz no versículo 18: “Ninguém se iluda: Se algum de vós pensa que é sábio nas coisas deste mundo, reconheça sua insensatez, para se tornar sábio de verdade.” Quem não abomina essa sabedoria insensata e fugaz, fundada apenas em conceitos e experiências materiais, ao contrário, a cultua, este fecha a porta ao Espírito de Deus e não será capaz de compreender a sabedoria verdadeira. O Senhor conhece os pensamentos dos sábios (da terra) e sabe que são vãos. O cristão deve buscar a verdadeira sabedoria, aquela que vem do alto e que foi ensinada por Cristo, atualizando o verbete da lei, reconhecendo em todos (judeus e gentios) a mesma irmandade. Diz Paulo, no v. 23, tudo vos pertence, mas vós sois de Cristo e Cristo é de Deus.


Prosseguindo também na mesma temática do domingo passado, o evangelho de Mateus (5, 38-48), nos mostra outra vez Cristo ensinando, com toda a sua criatividade pedagógica, o verdadeiro sentido da lei mosaica, que Ele não veio abolir, mas aperfeiçoar. Neste domingo, Ele nos traz dois novos exemplos, que se somam aos que já comentamos antes.


No primeiro exemplo de hoje, diz Ele: “ouviste o que foi dito aos antigos: olho por olho e dente por dente” (Mt 5, 38). Esse preceito multimilenar está presente em todas as culturas antigas e simboliza o conceito mais primitivo de justiça que os seres humanos formularam, isto é, a justiça proporcional ou vingança controlada. Os estudiosos apontam que essa regra do “olho por olho, dente por dente” veio do Código de Hamirábi, um rei que governou a Babilônia cerca de dois mil anos antes de Cristo. Esse preceito foi incorporado nas culturas da época, havendo referências a ele entre os hebreus, gregos e romanos. Na primeira lei romana escrita, conhecida como Lei das XII Tábuas, essa regra já fora inserida para os casos em que não houvesse acordo, estabelecendo que uma pessoa não podia “cobrar” da outra mais do que o prejuízo causado, dando início assim ao conceito de equidade, que foi aperfeiçoado por Aristóteles e se encontra hoje nos direitos de todos os povos. Jesus faz referência, portanto, a um preceito bastante conhecido e amplamente praticado pelos judeus.


Pois bem, diz Jesus: os antigos ensinaram isso – olho por olho, dente por dente. Eu, porém, vos digo: “não tomem como modelo as pessoas más”. É assim que eu prefiro traduzir a frase que está em Mt 5, 39. O original grego transliterado é: “mê antistenai tô ponero”, frase que São Jerônimo traduziu em latim como “non resistere malo” e a CNBB traduziu como “não enfrenteis quem é malvado”. Com todo respeito, parece-me que São Jerônimo se equivocou na tradução do verbo grego “antistenai” e traduziu por “resistire”, que em português seria “resistir”. Mas, pelo meu entendimento, o verbo grego tem o sentido de “não vos compareis” com os maus, isto é, não façais como os maus, não imitem o comportamento deles. Da forma como está traduzido (não enfrenteis quem é malvado) dá uma ideia de fraqueza, de acovardamento, como se o cristão devesse ter medo dos maus, não reagir aos maus, não enfrentar o malvado. Mas a mim parece que, quando Cristo aconselhou “oferecer a outra face” para quem te bate no rosto, ele quis dizer outra coisa: os maus agem de forma agressiva, vocês, porém, não devem tomar esse comportamento como exemplo, façam diferente deles, não por medo, mas por convicção. Em resumo, não se equiparem aos maus, não repitam suas ações deles, não se comportem como eles. Esse deve ser, segundo penso, o significado metafórico da recomendação de Cristo sobre “oferecer a outra face”. Se você revidar a um bofete, você estará repetindo o mau exemplo dado por quem lhe ofendeu. Então, não retribua a violência com violência, mas com o amor, isto é amar sem medida, perdoar sem medida.


Esta mesma lição nós encontramos em Paulo aos Romanos (12, 20), quando ele diz: “se teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver sede, dá-lhe de beber, assim amontoarás brasas sobre a sua cabeça”. Fora do contexto bíblico, o jogador Pelé ensinava aos jogadores mais jovens: quando algum adversário te empurrar, não faça resistência, caia e ele cairá junto contigo. Porque ele espera que você resista, então ele será surpreendido. Em todas essas situações, o ensinamento é o mesmo, ou seja, não tomem como exemplo o adversário, façam o oposto, faça o que ele não espera, surpreenda-o e assim você terá uma atitude superior, uma atitude de bem, um testemunho de ser verdadeiro seguidor do ensinamento de Cristo.


Complementa esta lição o outro exemplo dado por Cristo, na sequência do evangelho de Mateus (5, 43): os antigos diziam – ama teu próximo e odeia teu inimigo. Eu, porém, vos digo: amai vossos inimigos, orai pelos que vossos perseguidores. Meus amigos, com essa, Cristo pegou pesado e nos colocou o maior desafio do evangelho. Amar os amigos e odiar os inimigos é fácil, todos fazem isso. Mas se for assim, que diferença haverá entre o cristão e o não cristão? O cristão tem que ser diferente: amar os amigos e os inimigos, fazer o bem a quem faz o mal. O escritor James C. Hunter, no conhecido livro “O monge e o executivo”, faz uma interpretação interessante desse ensinamento de Cristo. Diz ele que na frase “amar os inimigos”, o significado do verbo “amar” é diferente da frase “amar os amigos”. Explicando melhor, seria assim: em relação aos amigos, amar tem o sentido de sentimento, afeto; em relação aos inimigos, amar tem um sentido puramente comportamental, ético. Então, a frase “amar os inimigos” quer dizer comportar-se de um modo ético mesmo com aquelas pessoas que fizeram algum mal a você, isto é, não exercitar a vingança, não ficar esperando uma ocasião futura para ir à desforra. Amar os inimigos significaria, dessarte, ser ético com todos, tratar as pessoas más da mesma forma como se deve tratar qualquer pessoa, com ética e dignidade, mesmo que intimamente a sua vontade seja de esganar o adversário.


Parece-me que o escritor tem certa razão. No texto grego, o verbo que está traduzido por “amai” é “agapate”, verbo com o mesmo radical da palavra “ágape”. Quando eu estudei antropologia teológica, aprendi que os gregos conheciam três significados para o verbo “amar”: 1 – amor erótico (eros); 2 – amor amizade (filia); 3 – amor fraternidade (ágape). Esse terceiro sentido se refere à convivência humana, ao modo respeitoso como as pessoas devem tratar umas às outras, independente de quem seja. Então, seguindo o raciocínio de J. Hunter, podemos concluir que a ordem de amar os amigos tem o sentido 2, enquanto amar os inimigos tem o sentido 3. Eu continuo pensando que a doutrina de Cristo não faz essa distinção, no entanto, pode ser uma forma de atenuar o rigor do desafio que Cristo nos deixou e, assim fazendo, quem sabe, aos poucos chegaremos a encarar o desafio de forma completa.

Que o divino Mestre nos socorra com engenho e arte, para conseguirmos colocar em prática os seus ensinamentos.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos



domingo, 5 de fevereiro de 2023

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 5º DOMINGO COMUM - 05.02.2023

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 5º DOMINGO COMUM – A LUZ E O SAL – 05.02.2023


Caros Confrades,


Neste 5º domingo comum, a liturgia coloca para nossa reflexão a figura da luz, exemplificando com o brilho da autora, que ilumina a terra. A luz que brilha sobre nós, semelhante à aurora, é exatamente a luz da graça divina, que recebemos de Deus no nosso batismo e que deve permanecer viva e brilhante, de modo a iluminar os atos da nossa vida e, ao mesmo tempo, deve funcionar como guia para clarear sobre os irmãos, especialmente aqueles mais fracos na fé. O evangelho associa a figura da luz com outro elemento essencial para a nossa vida, que é o sal. Um e outro são metáforas dos compromissos que nós, batizados, assumimos como autênticos discípulos de Cristo.


A teologia da revelação ensina que nós nascemos com a sombra do pecado original, uma falha da natureza humana, que não devemos atribuir ao Criador, que é perfeito, mas à nossa própria condição de humanidade, herdeiros de Adão e Eva. Para extirpar essa sombra, que carregamos como uma consequência da fragilidade humana, nós temos o remédio eficaz, que é a graça divina. Através da aspersão com a água batismal, nós somos purificados dessa mácula, todavia, essa purificação não funciona de modo automático, mas precisa ser renovada e reforçada com as nossas boas ações, o que só é possível quando nós abrimos nosso coração para receber a graça e, em consequência, orientamos nossa vontade para que a graça atue em nós e produza seus divinos efeitos. A referência a Adão e Eva é a linguagem simbólica pela qual o escritor sagrado personifica de um modo genérico as duas figuras humanas de homem e mulher, imperfeitos pela natureza, mas aperfeiçoados pela graça recebida do Criador. E o pecado original não deve ser identificado com aquela vetusta história da maçã, mas com a vulnerabilidade inerente à natureza humana, que nos impede de conseguirmos alcançar, sozinhos, a salvação. Para isso, todos nós dependemos essencialmente da graça e da misericórdia de Deus.


Na primeira leitura, o profeta Isaías exemplifica, de um modo bem didático, algumas ações humanas que tipificam aquilo que a teologia chama de “pecado original”: “Se destruíres teus instrumentos de opressão e deixares os hábitos autoritários e a linguagem maldosa, … a tua vida obscura será como o meio-dia.” (Is 58, 9) Esses instrumentos de opressão são aquelas forças instintivas que nos impelem para o egoísmo, o autoritarismo e a inveja, ou seja, uma tendência inata para agir de forma injusta com os irmãos. Aquele que consegue superar essas imperfeições decorrentes da nossa natureza desviada, esse andará na luz, a sua vida será clara como o meio-dia. Diz ainda Isaías em 58, 7: “Reparte o pão com o faminto, acolhe em casa os pobres e peregrinos, quando encontrares um nu, cobre-o, e não desprezes a tua carne [teu semelhante]. Então, brilhará tua luz como a aurora.” Lembremo-nos de que, na época do profeta, ainda não havia sido instituído o batismo da conversão, que somente surgiu com a pregação de João Batista. No entanto, Isaías já preconizava aquelas ações que seriam propostas pelo Batista para os que se preparavam para a chegada o Messias, aplainando os caminhos e capinando as veredas. E quando, tempos depois, Cristo instituiu o batismo sacramental, o batismo da salvação, os benefícios da graça batismal atuaram de modo pleno no tempo, incluindo presente, passado e futuro, de modo que os que viveram segundo a orientação do Profeta foram também alcançados pela graça da salvação. O sacrifício redentor de Cristo foi realizado num tempo histórico determinado, no entanto, os seus efeitos se estendem em plenitude para um tempo indeterminado (anterior e posterior), referendando todas as práticas de justiça que as pessoas efetivaram, como consequência de sua fé. Com sua morte e sua ressurreição, Cristo aspergiu seu sangue sobre todos, independentemente da época em que viverem ou viverão, alcançando a todos estes os benefícios decorrentes da consumação da antiga aliança de Javeh com o povo hebreu. A única condição para isso é a adesão que cada um deve fazer a esse “contrato” patriarcal, renovado e consolidado pela intervenção do Messias, cujo conteúdo é o compromisso batismal, e cuja assinatura é traçada pela água derramada em nossas cabeças.


Na segunda leitura, de Paulo aos Coríntios (1Cor 2, 1-5), o Apóstolo diz que foi àquela cidade para anunciar ao povo o “mistério de Deus”. Que mistério seria esse? O próprio Paulo responde: Jesus Cristo crucificado. E para esse anúncio, Paulo não usou discursos bonitos nem oratória erudita, mas apenas a linguagem comum, para que o conteúdo de sua pregação se destacasse, e não a sonoridade das palavras bonitas. Meus amigos, a palavra “mistério” significa aquilo que estava escondido e foi revelado. Paulo utiliza o termo para referir-se àquilo que antes era obscuro e incompreensível aos homens, mas que tornou-se claro e iluminado, pela força da luz de Cristo. Ele é a própria luz e é através dele que nós, seus discípulos, podemos iluminar o mundo. Pelos sacramentos, que Ele instituiu e nos deixou, sob a coordenação da comunidade eclesial, nós participamos da claridade que essa luz transmite. A partir do recebimento do batismo, abre-se para nós a porta de acesso aos demais sacramentos, isto é, aos diversos canais pelos quais Ele distribui a sua graça. Paulo fez isso na comunidade de Corinto e noutras cidades daquela região. Nos dias de hoje, a Igreja dá continuidade a essa tarefa de acolher os fiéis e conduzi-los ao ambiente onde essa graça continua a ser distribuída. Dentro da comunidade eclesial, a graça que recebemos deve ser potencializada para que, em nossa vida cotidiana fora do ambiente típico da sacralidade, as demais pessoas possam perceber a luminosidade do nosso ser através do nosso comportamento, do nosso modo de agir.


O evangelho de Mateus (Mt 5, 13-16) associa duas metáforas muito poderosas: a luz e o sal. Desde os tempos mais remotos, as pessoas compreenderam a importância do sal para a vida humana. Chegou ao ponto de que, em eras primitivas, o pagamento de trabalhos realizados pelos operários era feito não com dinheiro, mas com sal (donde vem o termo “salarium”). Os minerais trazidos pelo sal são essenciais para o nosso organismo, de modo que a vida humana se tornaria inviável sem o consumo de porções (moderadas) de sal. Do mesmo modo como a vida humana seria inviável sem a luz, assim também seria sem o sal. Atuando de modos diferentes, mas sempre em caráter indispensável, a luz e o sal são insumos que tornam possível a vida humana, seja individual, seja social. Daí porque Cristo utilizou muitas vezes essas figuras como recursos pedagógicos para a sua catequese.


Ora, diz Jesus, imaginem se o sal viesse a perder a sua funcionalidade básica, com o que iríamos salgar os alimentos? Nos dias de hoje, a indústria química já consegue produzir materiais alternativos que geram efeito similar ao sal para o preparo dos alimentos a pessoas que possuem certas doenças agravadas com a ingestão do sódio, componente principal do sal. Mas na época de Cristo, isso não existia e ele falava para o povo daquela época, do modo que fosse mais compreensível para eles. Um sal que não produzisse seus efeitos não serviria para mais nada. Quando muito, seria usado como pedrisco para pavimentar os caminhos. Com isso Jesus vem nos dizer que um cristão que não desenvolver em si a graça que recebeu com o batismo, é como se a graça recebida não produzisse os efeitos que deveria gerar, portanto, haverá um desperdício da graça, pois um tal cristão não seria capaz de “salgar” a sociedade com o seu exemplo e o seu testemunho. Meus amigos, essa é uma séria advertência para que cada um de nós avalie de que modo a graça que recebemos está ou não produzindo seus frutos na nossa vida, para que não estejamos nos arriscando a ser esbanjadores da graça divina. No caso, essa graça inócua em nós, além de não contribuir para que superemos as vicissitudes próprias da nossa natureza imperfeita, ainda nos tornará réus de uma acusação muito grave, qual seja, de sermos desperdiçadores desse valioso dom.


Numa consideração analógica com a luz, a graça divina deverá nos tornar iguais a grandes lamparinas em noite de apagão. Ninguém acende uma lucerna e a coloca debaixo de uma vasilha, pois assim ela não cumprirá a sua finalidade. A graça divina que recebemos não deve ficar restrita ao nosso ser, à nossa subjetividade, mas deve ser compartilhada com os irmãos. Colocar a luz escondida significa agir egoisticamente, usar a lamparina para clarear apenas o nosso próprio caminho. Não foi para isso que Jesus veio abrir para nós a porta da salvação. Ninguém se salva sozinho, a salvação se realiza na comunidade. Houve uma época em que a catequese pregava: “salva a tua alma”... hoje em dia esse discurso mudou completamente para “salva o teu irmão e assim tu também serás salvo”. Por isso é que a luz deve ser colocada num local elevado, a fim de clarear o caminho para muitos, a fim de chamar a atenção dos incautos, daqueles que se encontram envolvidos com as coisas mundanas, daqueles onde a graça está dormitando, a fim de incentivá-los a também se tornarem luminares eficazes e generosos. Manter a luz escondida é uma contradição com ela própria, cuja existência só se justifica se for um ponto de orientação para todos, assim como o farol orienta os que viajam pelo mar.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos