domingo, 25 de janeiro de 2015

COMENTARIO LITÚRGICO - 3º DOMINGO COMUM - O TEMPO CHEGOU - 25.01.2015

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 3º DOMINGO COMUM – O TEMPO CHEGOU – 25.01.2015

Caros Confrades,

Na liturgia deste 3º domingo comum, as leituras possuem um tema comum: o tempo. Por mais que nos pareça algo muito concreto, na verdade, o conceito de tempo é abstrato. Falamos sempre do tempo como se fosse um objeto, algo corpóreo, contudo, o tempo é apenas uma produção da nossa atividade psicológica, é uma forma de conceituarmos essa sensação que nos vem acompanhada da evolução dos fatos numa corrente sucessiva. Para melhor controle, as pessoas aprenderam a contar o tempo, a quantificá-lo ou a dividi-lo em fatias (como diz o soneto de Drummond). Na língua portuguesa, o vocábulo “tempo” é polissêmico, por isso o utilizamos nas mais diversas situações, mas sabemos distinguir mentalmente o seu significado. A título de exemplo, no idioma grego, há palavras diferentes para falar do tempo cronológico (chrónos) e do tempo simbólico (kairós), entendido aqui o tempo simbólico como a oportunidade, o momento, a hora certa de fazer algo, ou como dizem os teólogos, o tempo favorável. É neste último sentido que compreendo a alusão ao tempo na liturgia de hoje: o tempo favorável para a ação de Deus na história. Esse tempo não vem com hora marcada, nós é que temos de encontrá-lo ou, se for o caso, construi-lo.

Na primeira leitura, o texto traz a lembrança da missão do profeta Jonas, em Nínive (Jn 3, 1-5). Deus mandara que ele pregasse ao povo de Nínive assim: Se não mudardes o vosso modo de vida, dentro de 40 dias, a esta cidade será destruída. O povo se converteu e Deus suspendeu o castigo que iria mandar. Nínive era a capital da Assíria, uma megalópole daquele tempo, talvez maior do que é Fortaleza nos dias de hoje, porque o texto afirma que eram necessários três dias para atravessar a cidade. Era um local de muitas perversidades, como em toda grande cidade. O profeta Naum a chamara de cidade sanguinária, cheia de mentiras e de roubo (Na 3,1), por isso Javeh iria transformá-la num deserto. Mas com a pregação do profeta Jonas, o rei e os cidadãos se converteram e fizeram penitência, assim o castigo foi evitado. Evidentemente, essa tarefa de Jonas não deve ter sido assim tão simples e de resultado imediato, conforme a descrição do texto, mas o que a liturgia quer destacar aqui é o tempo favorável, que os ninivitas reconheceram e souberam aproveitá-lo. A população da cidade dirigiu seus ouvidos à pregação do profeta e deu-lhe crédito. Devemos também considerar que havia ali um momento favorável, no sentido de que muitos dos habitantes da cidade ainda se recordavam da derrota do rei de Judá, Ezequias, para o rei de Nínive, Senaqueribe, e da humilhação sofrida pelo povo, por isso tiveram maior sensibilidade para ouvir o profeta.

Na segunda leitura, Paulo exorta os fiéis de Corinto para viverem o seu tempo favorável, cada um de acordo com o seu estado. (1Cor 7, 29-31) Contextualizando a leitura, nos versículos anteriores, Paulo fala sobre a vida dos casados, dos solteiros, das viúvas, dos escravos, dando conselhos a cada grupo para viverem na graça de Deus. A igreja de Corinto foi uma comunidade fundada por Paulo e os coríntios entenderam a sua pregação como se a volta de Cristo fosse acontecer logo naqueles dias. Alguns até não queriam mais nem trabalhar, deixaram tudo de lado só esperando a nova vinda de Cristo. Então, Paulo os adverte a viverem suas vidas, na perspectiva da eternidade. Cada um fique no estado em que foi chamado. Quem quiser ser como ele Paulo, que era celibatário, ele acha melhor, mas quem não conseguir viver assim, que procure um cônjuge, porque é melhor casar-se do que abrasar-se (7, 9). Sinceramente, eu não entendo por que a Igreja Católica não segue o conselho de Paulo e continua a exigir dos sacerdotes o celibato obrigatório. Além disso, a tradução oficial da CNBB não reproduz bem o sentido do texto paulino. Diz 'o tempo está abreviado', mas no texto latino, Paulo diz: 'tempus breve est', expressão que, ao meu ver, não tem o mesmo sentido. A tradução melhor seria “o tempo é breve”, isto é, passa muito rápido. Tempo abreviado dá um sentido de encurtado, diminuído e não me parece que seja este o sentido expresso no texto. O tempo breve nos conduz à consciência de que é preciso viver com os pés no hoje, mas com os olhos no futuro, porque nós não somos desde mundo e a nossa estadia aqui é passageira.

Na leitura do evangelho de Marcos (1, 14-20), temos a narrativa do chamado dos primeiros apóstolos: Pedro, André, João e Tiago. De acordo com este evangelista, Jesus teria chamado os quatro na mesma ocasião, mas se observamos o evangelho de João, lido no domingo passado, acerca do chamado de Pedro, veremos que não foi bem assim. No texto de Marcos, Jesus estava passeando pela beira do mar da Galiléia e viu Simão e André, seu irmão, e os chamou. No texto de João (1, 42), ele diz que André era discípulo de João Batista e viu quando este falou sobre Cristo: eis o Cordeiro de Deus, então passou a segui-lo e depois apresentou a Ele seu irmão Simão. Não devemos, porém, concluir com isso que o texto de Marcos seja impreciso ou incorreto. Como sabemos, no tempo de Cristo não havia jornalistas documentando fatos nem havia escribas acompanhando seus passos e registrando suas atividades. Ora, o evangelho de Marcos, cronologicamente o primeiro a ser escrito, deve ter sido redigido cerca de 40 anos antes do evangelho de João. Além disso, Marcos não foi testemunha ocular, mas utilizou-se da tradição oral e de textos esparsos que circulavam nas comunidades da região onde ele vivia, os quais por sua vez foram escritos a partir de tradições orais, histórias que passavam de boca em boca entre os primeiros cristãos. Por outro lado, João foi testemunha viva daqueles fatos e escreveu a sua própria experiência, não por ouvir dizer. Marcos e João escreveram em locais distantes entre si e servindo-se de fontes diferentes, de modo que o texto de João, até por ter sido escrito bastante tempo depois, é mais elaborado, mais pesquisado, mais coerente. Apesar das divergências, o que verdadeiramente importa não é se foi na beira do mar, como disse Marcos, ou num lugar qualquer da Galiléia, como disse João, mas o que interessa é que eles atenderam ao chamado, eles aceitaram a proposta de Cristo para mudarem de vida e em vez de ser pescadores de peixes, passaram a ser pescadores de gente. Cada um deles teve o seu tempo favorável de ouvir o chamado e aceitar a missão que lhes foi confiada.

O evangelho de Marcos lido neste domingo também faz referência ao início das atividades públicas de Jesus, o que ocorreu após a prisão de João Batista. Alguns domingos atrás, quando comemorou-se o batismo de Jesus, João Batista dizia ao povo que, após ele, viria alguém de quem ele não seria digno de desamarrar as sandálias. Então, a prisão de João Batista foi o tempo favorável para o início da missão profética que Jesus veio realizar. Jesus não iria fazer concorrência com João Batista, até porque este foi o agenciador da chegada d'Aquele, por isso não seria oportuno que ambos atuassem simultaneamente. Essa oportunidade chegou quando João Batista saiu de cena, abrindo-se o espaço para o anúncio da “boa nova”. E um detalhe significativo é que Jesus começou suas pregações na Galiléia, não foi em Jerusalém, a grande cidade da época. Por que na Galiléia? Porque aquela região era habitada por pessoas de diversas origens étnicas e de diversas nacionalidades. Isso teria ocorrido porque a população primitiva daquela região teria sido levada, em sua maior parte, cativa para a Assíria e a terra ficou desabitada, passando a ser ocupada por pessoas nômades de outras tribos, durante o tempo em que os hebreus permaneceram no cativeiro. Com o retorno do povo hebreu libertado, os novos habitantes se relacionaram bem com aqueles e por esse motivo o local era um misto populacional de diversas origens, razão porque era chamada de Galiléia das Nações. Então, Jesus escolheu iniciar a pregação do reino de Deus exatamente num local em que a população, além de ser pobre, não era constituída exclusivamente de hebreus, demonstrando logo no início o destino universal dos seus ensinamentos. É essa igreja dos pobres que o Concílio Vaticano II destacou em seus documentos, diferentemente daquela igreja elitizada, como ela passou a ser a partir do seu envolvimento com os imperadores romanos e com os senhores feudais da Idade Média. Esse é o sentido da “opção preferencial pelos pobres”, que tanto o Concílio quanto os documentos oficiais posteriores pretenderam resgatar, o que deu origem à doutrina muitas vezes mal entendida e não poucas vezes deturpada chamada “teologia da libertação”.

Esta mensagem acerca do tempo favorável, do momento e da oportunidade nos convida a estar sempre atentos aos “sinais dos tempos”, sempre reavaliando nosso modo de ser, pois Deus está se manifestando a nós de diversos modos nos acontecimentos e às vezes nós não percebemos e deixamos passar aquela oportunidade de praticar o bem.

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domingo, 18 de janeiro de 2015

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 2º DOMINGO COMUM - O CHAMADO - 18.01.2015

COMENTARIO LITURGICO – 2º DOMINGO COMUM – O CHAMADO – 18.01.2015

Caros Confrades,

Passado o tempo do natal, a liturgia retoma o tempo comum e neste 2º domingo comum, o tema litúrgico é o “chamado” ou a vocação de cada um. Vocação está associada à nossa missão, ao nosso objetivo de vida. Cada pessoa possui certas habilidades e tendências inatas, próprias do seu caráter e da sua personalidade, de modo que realizar a própria vocação corresponderá a descobrir esses talentos que Deus nos dá em maior abundância e fazer uso deles para o maior bem de nós mesmos, dos irmãos, da sociedade, do reino de Deus, para cujo desenvolvimento nós somos convocados a colaborar. A vocação requer escuta e compromisso. Escuta para que cada um possa identificar o que Deus espera de nós. Compromisso para cada um assumir a sua missão com honestidade e com vontade, na certeza de que a graça divina não deixará de nos favorecer.

Na primeira leitura, retirada do livro de Samuel (3, 10-19), lemos a vocação deste sacerdote e profeta, quando recebeu o primeiro chamado de Javeh. Ele era um jovem que nunca havia tido contato com o Senhor e por isso não identificou, de início, quem o estava chamando e apresentou-se ao sacerdote Eli, na suposição de seria ele o autor do chamado. Somente depois de ouvir algumas vezes a voz de Deus, instruído por Eli, Samuel conseguiu identificar a origem do chamamento. Isso também pode acontecer conosco, embora não sejamos jovens de idade como o Samuel da leitura, mas por vezes não conseguimos ouvir ou identificar o chamado que nos chega da parte de Deus. Este chamado nem sempre é assim tão claro e insistente, como sugere a leitura, às vezes, ele é sutil e delicado, como é o caso de quando vem através da voz do irmão necessitado, do próximo que pede a nossa ajuda, por exemplo. Tempos atrás, nós fomos conduzidos até o Seminário, por termos ouvido um chamado através dos nossos pais, parentes, sacerdotes ou através de acontecimentos marcantes, que nos impulsionaram até lá. O fato de termos saído do seminário não significa que nós renunciamos a seguir o chamado, mas apenas que Deus nos mostrou outras alternativas e nos deu outras oportunidades para servi-Lo, que não através da vida religiosa consagrada. Cada um prossegue no atendimento ao chamado, contribuindo para a maior glória de Deus nas tarefas do dia a dia de cidadãos, nos exemplos de vida pessoal e profissional, na fidelidade do seguimento do evangelho de Cristo.

É interessante observarmos que Javeh chamou Samuel enquanto ele dormia. No antigo testamento, não havia ainda a figura do “profeta”, ou melhor dizendo, essa palavra não existia nem o sentido que ela expressa. A palavra correspondente a “profeta” em hebraico, a língua original do antigo testamento, é “navi” e essas pessoas geralmente recebiam as mensagens divinas através de sonhos. Há vários exemplos na escritura sagrada sobre os sonhos dos “navis”, eram uma espécie de revelação que ele recebia, assim como aconteceu com Samuel. A palavra “profeta” surgiu na tradução da escritura para a língua grega, quando “navi” foi traduzido por “prophaités”, palavra derivada do verbo grego “phainow” (falar), então o profeta é aquele que fala em nome de alguém. No antigo testamento, o navi trazia um recado de Javeh, o qual ele havia recebido geralmente através de um sonho, daí porque foi traduzida essa palavra por “pro-phaités”. Visto que, no mais das vezes, os fatos abordados se referiam a eventos futuros, gerou-se uma tradição de que profeta é aquele que é capaz de prever acontecimentos, como se fosse um adivinho, sendo esse o significado semântico mais usual. Na verdade, profetas somos todos nós quando, através das nossas atitudes, nossas palavras e nosso testemunho demonstramos para os irmãos a nossa característica de cristãos e, mesmo sem proferir discursos ou pregações, somos eloquentes no agir e no fazer.

Na segunda leitura, da carta de Paulo aos Coríntios (1Cor 6, 13-20), o Apóstolo aborda a vocação matrimonial, advertindo os cristãos de Corinto para não se envolverem em atividades sexuais ilícitas, mantendo a fidelidade com os respectivos cônjuges, pois o homem que se une a uma prostituta faz do seu corpo um só com o corpo dela (6, 16) e isso contradiz a união espiritual que o cristão tem com o Senhor. Por isso, diz Paulo: fugi da fornicação. “Ou ignorais que o vosso corpo é santuário do Espírito Santo, que mora em vós e que vos é dado por Deus? E, portanto, ignorais também que vós não pertenceis a vós mesmos? De fato, fostes comprados, e por preço muito alto, ” (6, 19-20) ou seja, com a paixão e morte de Jesus. Portanto, continua, usem o seu corpo para a glória de Deus. É mais adiante, nessa mesma carta (cap. 13), que Paulo escreveu o seu belíssimo poema sobre o amor cristão, que é muito conhecido e repetido, e que começa com essa bela comparação: “Eu poderia falar todas as línguas que são faladas na terra e até no céu, mas, se não tivesse amor, as minhas palavras seriam como o som de um gongo ou como o barulho de um sino.” A vocação matrimonial é, talvez, o maior desafio que se coloca para o ser humano (homem e mulher), quando firmam um compromisso de vida em comum por toda a existência, o que só pode ser conseguido a assistência permanente da graça divina.

Na leitura do evangelho de João (1, 42), vemos a narração do chamado especial de Cristo dirigido a Pedro. Pelo que se deduz da narrativa joanina, André era discípulo de João Batista e passou a seguir a Cristo, depois que João O identificou. Após passar um dia na companhia de Jesus, André foi convidar seu irmão Simão para tornar-se também um seguidor. Logo que Simão foi apresentado a Jesus por André, Este foi logo dizendo: teu nome é Simão, mas serás chamado Kéfas. Este trecho do evangelho é marcado por digressões explicativas, pelo que se deduz que João escrevia para pessoas que não entendiam as palavras em hebraico. Ele explica que Rabi significa mestre, que Messias significa Cristo e que Kéfas significa pedra.

Observemos alguns aspectos interessantes da análise do vocábulo KÉFAS. No próprio texto do evangelho (1,42), o evangelista João se preocupa logo em traduzir kéfas. Lembremo-nos que o evangelho de João foi escrito por volta do ano 100 d.C. e nessa época a figura de Pedro já estava consolidada como chefe da Igreja. No texto latino, diz assim: quod interpretatur Petrus - Petrus está escrito com letra maiúscula (tradução literal: que se interpreta como Pedro). A palavra Kéfas não é grega, mas aramaica, uma variação do hebraico falada por Cristo. Segundo a internet, kéfas em aramaico significaria 'rochedo esburacado'. Por isso, João disse que Kéfas se interpreta como Petros, ele não disse que era sinônimo de pedra. E João fez isso cerca de 30 anos após a morte de Pedro, certamente lembrando a passagem de Mateus (13, 18). Apenas para recordar, o evangelho de Mateus foi escrito originalmente em aramaico e só depois traduzido para o grego. Portanto, deduz-se que foi através desta passagem de Mateus (13,18 - tu es Petros e sobre esta Petra edificarei a minha igreja)  que a palavra kéfas foi introduzida no idioma grego e deste, transferida para o latim.

Um outro aspecto tb interessante da palavra kéfas é que, por não ser grega nem latina, ela foi simplesmente transliterada nos dois idiomas - quero dizer: tanto em grego como em latim, foi copiada a sua pronúncia do aramaico. Mas por uma feliz coincidência, kéfas contém a primeira parte da palavra grega kefalé, que significa 'cabeça', então o chamado de Pedro foi especial porque Jesus o colocou, ao mesmo tempo, como fundamento e como cabeça do grupo. Esse é um polêmico ponto de divergência entre a Igreja Católica ocidental e a oriental, questão que vem se arrastando por vários séculos e que o Papa Francisco está cuidadosamente tentando superar, em busca da reunião de todas as comunidades eclesiais. A diferença no tratamento do problema está em que os Papas anteriores se apresentavam como “chefes” a quem todos deveriam manifestar obediência. No caso do Seráfico Papa, ele se apresenta como um irmão que tenta reatar os laços de fraternidade com outros irmãos. E isso mesmo ele faz também em relação às outras religiões não cristãs, como o judaísmo e o islamismo, cumprindo a previsão de Cristo de que todos formariam um só rebanho e teriam um só pastor. Esta é a vocação especial que Cristo reservou para ele.

Nesse contexto, cada um de nós é convidado a refletir de que modo, nas nossas vidas na familia, no trabalho, no lazer, no estudo, na educação dos filhos, prossegue com fidelidade sendo fiel ao chamado que nos foi dirigido.


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domingo, 11 de janeiro de 2015

COMENTÁRIO LITÚRGICO - BATISMO DO SENHOR - 11.01.2015

COMENTARIO LITURGICO – BATISMO DO SENHOR – 11.01.2015

Caros amigos,

Neste domingo após a Epifania, celebramos a festa do Batismo do Senhor. Na verdade, Jesus não precisava ser batizado, porque o seu “batismo” se deu quando ele foi apresentado no templo, de acordo com a lei de Moisés. Além disso, o batismo de João tinha por objeto o perdão dos pecados, para aplainar os montes e endireitar as veredas, ou seja, a “metanóia” ou a conversão ou a mudança de vida, sendo o mergulho do batismo o símbolo dessa mudança: o batizado ressurge das águas como um novo fiel, purificado dos seus pecados. Não era esse o caso de Jesus. Por isso, penso que o fato de Jesus ter entrado na fila para ser batizado por João, tinha dupla finalidade: primeiro, dar um caráter oficial àquela catequese preparatória do povo, feita por João, antes que Ele (Jesus) iniciasse a pregação da sua doutrina; segundo, fazer a sua apresentação pública, pois até então ele vivera anonimamente, e agora seria apresentado oficialmente como Filho de Deus, pois foi nessa ocasião que, pela primeira vez, ocorreu a manifestação da Trindade divina.

O tema do batismo é um dos que desperta mais polêmica entre a Igreja Católica e as demais igrejas cristãs, por diversas razões históricas, que todos conhecemos, porém penso que as querelas mais significativas se concentram em dois pontos: 1. o batismo de crianças recém-nascidas, fato que não ocorria no início do cristianismo, tendo sido introduzida como prática posteriormente; 2. o ritual do batismo por mera aspersão (derramamento de pouca água na cabeça do batizando) e não por imersão (mergulho na água), como era o batismo original de João.

Em relação a essa crucial polêmica, o fato histórico é que nem sempre o batismo foi realizado por imersão do fiel. No Novo Testamento, diversos relatos sobre o batismo sugerem uma outra forma de batizar, como por exemplo, em Atos 16, 33, quando Paulo batizou pessoas na prisão, certamente ali não tinha como fazer a imersão dos batizados. O batismo do próprio Paulo por Ananias (Atos 9, 18), realizado na casa de Judas, não deve ter sido por imersão. Do mesmo modo, o episódio ocorrido no dia de Pentecostes (Atos 2, 37-41), quando cerca de 3.000 pessoas foram batizadas após a pregação de Pedro, não deve ter sido por imersão. Ou seja, desde os primeiros tempos do cristianismo, já se praticava o batismo por aspersão, não tendo sido “invenção” dos padres medievais, como insinuou Lutero quando se opôs a essa prática, porque queria retornar ao fundamentalismo do texto. Aliás, Lutero não se opunha apenas ao ritual da aspersão, mas também ao fato de que a Igreja aprovava o batismo de crianças bem pequenas, ao invés de batizar apenas os adultos. Embora eu reconheça que há um certo exagero nessa antecipação do tempo batismal para a infência, creio que há razões teológicas que a justificam, entre as quais destaco duas fundamentais: 1. o fato de que a pessoa deve ser purificada do pecado (no caso da criança, o pecado original) o quanto antes possível, ou seja, logo após ao nascer, sem esperar a idade adulta; 2. embora a criança de pouca idade não saiba o que está ocorrendo, a Igreja age como mãe amorosa e faz isso por ser o melhor para o pequeno fiel, assim como toda mãe só quer o bem dos filhos, ficando com os pais e padrinhos a responsabilidade de ensinar a criança e conscientizá-la, quando tiver entendimento. É assim que o catecismo ensina, é assim a doutrina oficial da Igreja Católica.

Saindo dessas polêmicas histórico-doutrinárias e analisando agora sob o aspecto gramatical, o vocábulo batizar deriva do verbo grego BAPTIZÔ, que significa mergulhar, submergir, mas também lavar. Por exemplo, batismo já foi uma espécie de pena de morte, em que se mergulhava o condenado até ele morrer afogado. Em Lucas (11, 38), quando os fariseus se admiraram porque os discípulos de Jesus não lavavam as mãos antes de comer, a frase latina é “quare non baptizatus esset” (liberalmente, “porque não tinham se batizado”) e a frase grega é “ou proton ebaptiste”, demonstrando assim o significado do verbo “baptizô” no sentido de lavar. Ora, para lavar as mãos, não é necessário sempre as mergulhamos em água, muitas vezes apenas derramamos água sobre elas. Ou seja, além dos aspectos puramente doutrinários, há ainda o suporte favorável do estudo linguístico dos termos. Em algumas igrejas cristãs não católicas que eu conheço, prepara-se uma espécie de piscina ou tanque grande cheio de água para o ritual do batismo por imersão. Ao meu ver, trata-se de uma prática desvirtuada do sentido original do batismo de João, pois deveria ser realizado em uma fonte de água natural. Isso, sem esquecer os aspectos práticos da água esparramada, das vestes encharcadas, do constrangimento por que passam as pessoas, sobretudo as mulheres, que têm seus corpos expostos desnecessariamente... Ora, se é para seguir o ritual, então, que se o sigamos por completo. Pessoalmente, eu não vejo sentido nesse tipo de ritual, que pode ser simplificado sem perder o seu sentido e a sua finalidade. Em síntese, digo que a forma de realizar o batismo, se por imersão ou por aspersão, não é relevante, e sim a fé que deve motivar o fiel a receber o batismo. No caso de crianças pequenas, a fé é dos adultos que as levam a batizar e que se comprometem a catequizar o batizado na mesma fé que professam.

Acerca das leituras litúrgicas dessa festa, o evangelho de Marcos (1, 7-11) relata o batismo de Jesus por João, o qual dizia que depois dele viria alguém bem maior, de quem ele não era digno nem de desamarrar as sandálias. Culturalmente, o ato de desamarrar as sandálias era próprio dos servos, que assim o faziam com o seu amo, e João se colocava desse modo como inferior a um servo. E diz o evangelista: “Naqueles dias, Jesus veio de Nazaré da Galiléia, e foi batizado por João no rio Jordão. E logo, ao sair da água, viu o céu se abrindo, e o Espírito, como pomba, descer sobre ele.” A fama de João era conhecida em toda a Judéia, Galiléia, Samaria, em todas as comunidades, ele tinha muitos discípulos e seguidores. Então, Jesus saiu de Nazaré para ter com João propositalmente, para dar continuidade ao trabalho dele, fez uma espécie de homologação dos seus atos preparatórios e assumiu dali em diante a tarefa de cumprir a promessa do Pai. O evangelista Marcos não diz nada a respeito, mas Mateus (13, 14) relata que João reconheceu Jesus e não queria batizá-lo, exatamente por causa do seu discurso de acerca da superioridade de Jesus em relação a ele e só a muito custo concordou em fazê-lo. Ora, se Jesus tinha tido até então uma vida oculta, como foi que João soube de quem se tratava? Com certeza, foi o “espírito” quem lhe indicou isso.

Então, foi no batismo de Jesus o primeiro momento em que se manifestou a Trindade divina, que “ao sair da água, viu o céu se abrindo, e o Espírito, como pomba, descer sobre ele. E do céu veio uma voz: 'Tu és o meu Filho amado, em ti ponho meu bem-querer'”, isto é, o início da vida pública de Jesus foi oficialmente declarado pela presença das três pessoas divinas. Obviamente, naquele momento, as pessoas não compreenderam o que havia acontecido, mas posteriormente, após a ressurreição de Jesus, quando as comunidades dos primeiros fiéis fizeram a rememoração dos acontecimentos da Sua vida, de onde provêm os textos primitivos que deram origem aos evangelhos, puderam compreender o alcance desse fato deveras significativo.

Curiosamente, tenho observado que, nos dias atuais, está-se tornando comum o batismo de pessoas adultas, como era bem no princípio do cristianismo. Lembro que, na Páscoa de 2014, aqui na Paróquia da Glória, um grupo de 21 pessoas (homens e mulheres) adultas receberam o batismo na Vigília Pascal, como era o costume mais primitivo. Hoje mesmo eu ouvi o Pároco convidando os adultos ainda não batizados para se inscreverem no curso preparatório. Ora, isso significa que há pessoas adultas que frequentam a missa e não são batizados. Ninguém põe em dúvida que a opção pelo batismo na idade adulta é muito mais significativa do que o batismo das crianças, porque tem-se um ato de vontade do próprio fiel e não de seus pais. Então, aquela antiga polêmica do batismo de crianças já não tem mais tanta importância nem desperta mais tanta polêmica, como foi no passado.

Que o divino Espírito nos inspire a viver o nosso batismo no dia-a-dia da nossa caminhada existencial, testemunhando diuturnamente, através do nosso comportamento, o compromisso assumido na pia batismal.


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domingo, 4 de janeiro de 2015

COMENTÁRIO LITÚRGICO - EPIFANIA DO SENHOR - LUZ DAS NAÇÕES - 04.01.2015

COMENTÁRIO LITÚRGICO – EPIFANIA DO SENHOR – LUZ DAS NAÇÕES - 04.01.2015

Caros Confrades:

Celebramos, na liturgia deste domingo, de forma antecipada, a festa da Epifania do Senhor, cuja data é mesmo 6 de janeiro. A tradição popular sempre se refere a três Reis Magos, porém não há evidências de que eles eram reis e nem de que eram três. O evangelho de Mateus fala apenas que “alguns magos” vieram do oriente. Talvez pela alusão aos três presentes ofertados, deduziu-se que eram três, no entanto, os presentes fazem parte do simbolismo que o evangelista quis atribuir à pessoa do Messias, a luz das nações. E ainda a expressão “magos” não se vincula à magia, no sentido que hoje se atribui a essa palavra, mas ao fato de que eles seriam estudiosos dos fenômenos cósmicos, algo que no passado se chamava de astrologia, isto é, o conhecimento adquirido através do estudo dos astros. E foi assim que eles observaram um incomum alinhamento dos planetas e compreenderam que aquilo era o sinal de um grande evento, combinando esse fato com alguns oráculos antigos. A epifania do Senhor designa a universalidade da salvação trazida por Cristo.

No passado, o Deus do antigo testamento fizera uma aliança com um povo determinado e fizera-lhe promessas de se disseminarem por toda a terra. No modo de pensar daquele tempo, eles entenderam isso pela ótica da materialidade e da genealogia, contudo, com a chegada do Messias, a promessa se cumpriu e não foi pela trilha da genética e da hereditariedade cromossômica, mas seguiu a rota da vocação à santidade, oferecida a todos os povos, através do evangelho. A presença dos magos vindos do oriente é o primeiro sinal da universalidade da salvação trazida por Cristo. O texto bíblico não informa de que cidade eles vieram, mas apenas que vieram de terras distantes no oriente, guiados pela estrela. O evangelho fala somente que os 'magos' seguiram a estrela, a qual lhes teria indicado o local onde encontrariam Aquele de quem as profecias antigas faziam menção. Sim, eles eram pessoas de fé e de ciência, numa época em que essas duas realidades se confundiam numa só. Muito provavelmente, eles eram sacerdotes de uma religião diferente, talvez do zoroastrismo, religião fundada por Zaratustra, cerca de 1.500 anos antes de Cristo e praticada na região que hoje corresponde ao Irã. Para os propósitos do evangelista Mateus, não interessa efetivamente quem eram nem mesmo se eram aquilo, mas o objetivo é mostrar que o Messias, em primeiro lugar, é aquele a quem os profetas mais antigos se referiram e, em segundo lugar, que a sua vinda não se restringia a um determinado povo ou a pessoas de uma determinada região geográfica, mas além daqueles da antiga aliança, alcançaria também gentios e pagãos, realizando a promessa divina de um modo novo e inesperado.

Na primeira leitura, do livro de Isaías (deutero-Isaías, cap 60, 1-6), aparece claramente o sentido da universalidade do Messias, quando o Profeta se refere a Jerusalém como um local onde se congregam povos de diversas origens: “Os povos caminham à tua luz e os reis ao clarão de tua aurora. Levanta os olhos ao redor e vê: todos se reuniram e vieram a ti.” Jerusalém já não é mais a capital apenas do povo hebreu, mas de todas as nações. “Com eles virão as riquezas de além-mar e mostrarão o poderio de suas nações”, desse modo, o Profeta vaticina a transformação de Jerusalém numa cidade onde haverá a confraternização de todos os povos, pois eles se dirigem a ela não com o objetivo de domínio ou de fazer negócios, mas para proclamar a glória do Senhor. Na figura alegórica do Profeta, vislumbra-se a Jerusalém de Judá como a antecipação da Jerusalém celeste, ou seja, a Igreja de Cristo, que se estenderá a todos os povos e a todos os lugares. E se existirem povos em outros planetas e em outras galáxias, também para eles se destina a missão dada por Cristo: “ide e ensinai a todos os povos”. Da mesma forma que, até a Idade Média, quando não se conheciam as terras do continente americano, pensava-se apenas no mundo europeu, mas logo que se descobriram outras paragens, os missionários trouxeram a mensagem cristã para a nossa região, assim também, quando novas comunidades de seres inteligentes forem encontradas, competirá a nós a tarefa de missionar as novas regiões, cumprindo o mandamento de Cristo.

Vemos, na carta de Paulo aos Efésios (3, 2-6), um testemunho interessante do Apóstolo acerca do “mistério” que lhe foi comunicado por revelação, qual seja, “os pagãos são admitidos à mesma herança, são membros do corpo, são associados à mesma promessa em Jesus Cristo, por meio do Evangelho.” Ora, o próprio Paulo não conheceu a Jesus Cristo, não ouviu Seus ensinamentos, não participou do processo pedagógico do grupo de galileus, aos quais Jesus tentou ensinar, durante três anos, a sua mensagem, a sua “nova lei”. Ele próprio, Paulo, era um pagão, um gentio, e a revelação que ele recebeu de Cristo diz respeito exatamente ao fato de que a salvação não está restrita ao povo da antiga aliança, isto é, os pagãos também são chamados para fazerem parte do povo de Deus. Foi isso que os fariseus nunca entenderam na pregação de Jesus, foi por isso que não o reconheceram como o Messias, porque pensavam a salvação em termos nacionalistas e étnicos, porque liam as escrituras de uma forma meramente literal e fechada e isso os impedia de ver, no texto sagrado, um novo sentido mais amplo e mais flexível. Paulo recebeu esses ensinamentos por revelação e tratou de transmiti-los através da sua pregação, do seu exemplo, dos seus escritos, da sua própria vida, devotada ao evangelho. A só presença de Paulo e a sua atividade missionária comprovam essa nova dimensão da antiga aliança, ensinada por Cristo. O evangelho de Mateus fala dos magos vindos do oriente; as cartas de Paulo se destinam aos gentios do ocidente; a junção das duas perspectivas nos dá a dimensão maior da envergadura que comporta a mensagem cristã.

Sobre a leitura do evangelho (Mt 2, 1-12), é curioso observar que nem Lucas nem Marcos se referem ao episódio da visita dos “magos”, sobretudo Lucas, que foi o evangelista portador dos maiores detalhes particulares da infância de Cristo. É de se imaginar que a visita de “magos” vindos do estrangeiro nos primeiros dias após o nascimento de Jesus devia ter sido um fato importante, no entanto, Lucas não obteve essa informação. Ademais, se fizermos as contas, a provável chegada desses magos teria encontrado o Menino Jesus já com alguns meses de idade, considerando que a visão da “estrela” teria ocorrido no nascimento e considerando a distância de onde eles se encontravam, uma viagem no lombo de camelos deveria demorar pelo menos uns três meses até Belém. Como se vê, existem muitas incongruências envolvendo essa narrativa da vinda dos magos, de modo que nunca se saberá com certeza o que há de realidade nesses fatos e por isso, mais uma vez, fica evidenciado que não se deve ler e interpretar a Bíblia de forma literal. Mas visto que os evangelhos não são propriamente registros históricos e sim proclamações de fé das comunidades primitivas, o que mais importa nessa narrativa é a doutrina da universalidade da salvação.

O evangelista Mateus tem um propósito deliberado de demonstrar que Jesus é o Messias prometido, aquele de quem falam as profecias. Ele faz todo um esforço para compor a narrativa, unindo os fatos com os textos proféticos, harmonizando-os e integrando-os. Daí que ele vai buscar um texto antigo do profeta Miquéias (Mq 5, 2) e o insere no contexto do diálogo de Herodes com os “magos”, quando os sacerdotes e doutores da lei revelaram a cidade de Belém como a terra natalícia do Messias. Diz o Profeta: “E tu, Belém Efrata, posto que pequena entre os milhares de Judá, de ti me sairá o que governará em Israel.” O codinome “efrata” associado a Belém, de acordo com os estudiosos, é uma referência aos descendentes de Efraim (os efratas), que teriam sido os fundadores da cidade. Efrata era também o nome da esposa de Caleb, um dos líderes do povo de Israel, juntamente com Josué, após a morte de Moisés. De acordo com a tradição judaica, Efrata seria um nome correspondente a Míriam, que é o nome original de Maria, a mãe de Jesus. Gramaticalmente, “efrata” é também um substantivo que significa “terra frutífera”, terra boa de plantar. Por sua vez, a palavra Belém (em hebraico, bait +lehem=casa do pão) indica um local de grande fartura, onde existe alimento em abundância. Verifica-se, desse modo, um grande acúmulo de significados, cada qual o mais interessante, associado à cidade de Belém, os quais a qualificam como um local privilegiado. Daí porque o Profeta diz que, embora pequena cidade, ela não é menos importante do que as maiores, porque dela sairá aquele que irá governar Israel. Vê-se, com isso, que o evangelista Mateus era também um profundo conhecedor das antigas escrituras.

Meus amigos, no meio de tantas informações, nem sempre coerentes, o que nos interessa é destacar o símbolo da universalidade da mensagem cristã, quando os tempos se completaram e o Verbo se encarnou.

Cordial abraço a todos e votos de Feliz Ano Novo.