segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

COMENTÁRIO LITÚRGICO - FESTA DA SAGRADA FAMILIA - 30.12.2012


COMENTÁRIO LITÚRGICO – FESTA DA SAGRADA FAMÍLIA – 30.12.2012

Caros amigos,

Neste último domingo do ano, a liturgia celebra a festa da Sagrada Família de Nazaré. A data não está ligada ao dia 30, mas ao domingo que ocorre entre o Natal e o Ano Novo, recaindo no dia 31 quando o dia de natal cai no domingo, porque o próximo domingo então será o dia 1 de janeiro.

A celebração da Sagrada Família nos leva a refletir sobre a estrutura da organização familiar sob os diversos aspectos, além do religioso, como também o sócio-cultural e o jurídico, e nestes dois últimos aspectos, estamos observando uma mudança bastante significativa neste início de século XXI. Com efeito, o modelo familiar tradicional, constituído por um homem,uma mulher e seus filhos, está agora competindo com outras modalidades que não existiram anteriormente, quais sejam, as famílias compostas por pessoas do mesmo sexo, com seus filhos adotados, e ainda as famílias de um só: pai e filhos de diferentes mães, mãe e filhos de diferentes pais. A religião católica tem bravamente resistido a essas mudanças, que são consequências diretas da maior assimilação dos comportamentos sexuais alternativos na nossa sociedade, condição que torna aceitável também, nesse enlastecimento cultural, as uniões homoafetivas, até já reconhecidas juridicamente como equivalentes à união estável entre homem e mulher. Não pretendo fazer aqui um juízo de valor, deixo isso para a consideração de cada um. A análise que faço é apenas para destacar que a instituição social mais antiga que se conhece, que é a família tradicional, está passando por uma reforma substancial, o que caracteriza, sem nenhuma dúvida, aquilo que o Papa João XXIII chamou de 'sinal dos tempos'.

A liturgia deste domingo coloca a família de Nazaré como o modelo da família perfeita, inclusive com as eventuais vicissitudes que se observam em todos os grupos familiares: o 'pito' que Maria deu em Jesus menino, decorrente da estressante procura por Ele, após o retorno de mais de um dia de caminhada. Um puxão de orelhas na hora certa (agora proibido pela lei dos castigos corporais) nunca fez mal a ninguém, desde os tempos bíblicos.

Na primeira leitura, temos um trecho do livro do Eclesiástico (Eclo, 3, 3-17). De início, convém chamar a atenção para a diferença entre os dois livros bíblicos do Eclesiástico e do Eclesiastes, que tem nomes muito parecidos. Por isso, para diferenciá-los melhor, costuma-se chamar o Eclesiastes de Qohélet e o Eclesiástico de Sirácide ou Ben Sirac. Este último, o da leitura deste domingo, teve o nome tirado do seu autor, um judeu chamado Jesus Ben Sirac, que escreve uma meditação sobre a felicidade, partindo da sabedoria tradicional do povo hebreu. Este livro não fazia parte da antiga Torah judaica, sendo por isso considerado deuterocanônico. Ele foi incluído no cânon da Bíblia Católica após muitas discussões sobre a pertinência disso, porque nem todos os Padres da Igreja antiga assim o consideravam. Foi um dos motivos do protesto de Lutero, que não concordava com a sua inclusão. Consta que até São Jerônimo, o tradutor oficial da Bíblia-versão vulgata, não estava muito convencido disso, mas depois teria mudado de ideia. Pela força da tradição de seu uso nos templos cristãos desde os albores do cristianismo, foi incluído no cânon católico.

A leitura traz sobretudo conselhos aos filhos sobre o respeito aos pais, que tem a aprovação e a bênção de Javé. O cuidado dos filhos com os pais idosos, mesmo quando já sem lucidez, além de obrigação moral deles, torna-se também motivo de santificação, para perdão dos pecados, cuja recompensa será devolvida por Javé. O conteúdo do texto se aplica perfeitamente na nossa sociedade, como aliás se aplicou em todas as épocas, porque a relação pais e filhos foi sempre um dos pontos fundamentais de sustentação da sociedade e as admoestações da sabedoria antiga são, podemos dizer, perenes e supra culturais.

A segunda leitura, de Paulo a Colossenses (Cl 3, 12-21) exorta todos os membros daquela comunidade ao exercício da caridade, da tolerância e do amor fraterno, como regra básica para a harmonia que deve marcar a vivência dos cristãos. Em seguida, traz conselhos específicos para os casais e seus filhos: “Esposas, sede solícitas para com vossos maridos, como convém, no Senhor. Maridos, amai vossas esposas e não sejais grosseiros com elas. Filhos, obedecei em tudo aos vossos pais, pois isso é bom e correto no Senhor. Pais, não intimideis os vossos filhos, para que eles não desanimem. ” (Cl 3, 18-21). Até parece que Paulo faz um complemento ou uma atualização da leitura do Sirácide, texto que ele devia muito bem conhecer.

No evangelho de Lucas (Lc 2, 41-52), temos mais um daqueles detalhes da vida de Jesus que somente este evangelista veio a saber, por conta da sua convivência cotidiana com Maria. Inicia Lucas dando amostras da fidelidade da família de Nazaré ao cumprimento da Lei de Moisés, afirmando que os pais de Jesus iam todos os anos a Jerusalém, para a festa da Páscoa. Nos anos anteriores, com certeza, não acontecera nada diferente. Mas naquele ano, quando Jesus completara 12 anos de idade, deu-se o inesperado: ele se desgarrou do grupo e isso não foi percebido pelos seus pais. Como se supõe, José e Maria viajavam a pé e deviam andar em grandes caravanas de pessoas residentes em Nazaré e em cidades próximas. Desse modo, o grupo viajante era composto de muita gente e as crianças maiores circulavam entre os parentes e conhecidos, de modo que a ausência de Jesus não foi notada de imediato. Provavelmente foi na primeira dormida, por não ter ele voltado para o grupo dos pais, que eles se preocuparam. Por isso, diz Lucas que eles haviam caminhado um dia inteiro quando perceberam a ausência do menino e voltaram para procurá-lo.

Cada um de nós, pela experiência de pais e mães, pode imaginar a aflição de José e Maria por terem 'perdido' o menino numa cidade estranha, cheia de estrangeiros, certamente tendo também muita gente de maus costumes (porque isso há em todo lugar), e o que se passava na cabeça e no coração deles? E ainda demorou um tempo enorme: três dias de buscas, que devem ter parecido uma eternidade. Jerusalém, a metrópole em tempos de festa da Páscoa, devia ser assim como ficam as nossa cidades romeiras de Canindé e Juazeiro do Norte, na época dos festejos. Quem já esteve lá nesses períodos, pode fazer melhor a ideia do que se passa. Vê-se que, apesar de toda a fé, que certamente nunca lhes faltou, a situação psicológica de José e Maria era de grande estresse e angústia, tanto que, ao encontrarem o menino no local mais improvável (a sinagoga), ao invés de se sentirem aliviados, Ele recebeu um puxão de orelhas de Maria: porque você fez isso conosco?

Eu fico aqui imaginando a cena de Maria contando essas histórias para Lucas. Com certeza, um grande exercício de paciência deste, porque penso que somente a muito custo Maria concordava em revelar certos detalhes. E para ela falar no 'pito' que deu no menino após a angustiante procura, deve ter sido permeado de reticências, as quais Lucas ia completando com o conhecimento que ele tinha da personalidade de Maria. E a resposta de Jesus até parece indelicada, pois o mais esperado seria um pedido de desculpas. No entanto, Ele chegou a ser até arrogante ao dizer: eu estava cuidando das coisas do meu Pai... e Maria deve ter engolido em seco, porque ela sabia de quem se tratava, mais do que ninguém.

Algo que ficamos aqui a imaginar também é o seguinte: por que Lucas silencia, a partir daqui, sobre a infância de Jesus? Será que Maria não contou mais nada? Será que ele não achou outros fatos relevantes a serem narrados? Será porque daí em diante o menino fora enviado para alguma 'escola' rabínica, como afirmam alguns, referindo-se à comunidade dos essênios? Eu penso que Maria deve ter contado para Lucas outros detalhes, no entanto, a juízo dele, não suficientemente relevantes para o propósito da sua mensagem. Dizer que o Menino estava conversando com os Doutores da Lei, que se admiravam da sua sabedoria, indica que Jesus já estudava as escrituras naquele tempo, ou seja, ele já frequentava alguma escola rabínica. Embora filho de Deus, mas tendo assumido a condição humana, Jesus não 'nasceu sabendo' as escrituras, ele precisou estudar. E sabemos que de fato estudou, porque quando ele iniciou sua missão no deserto, após o batismo por João, ele já tinha conhecimento da Lei de Moisés como os doutores do seu tempo. Por isso, penso que Lucas considerou desnecessário dizer que Jesus estudava a Torah, porque assim o faziam os adolescentes que eram preparados nas sinagogas para serem os futuros mestres da lei. Jesus devia fazer parte desse grupo preparatório, aliás, o próprio nome 'sinagoga' sugere isso (syn+agoge=aprender em conjunto). E Lucas faz questão de dizer que, após esse fato, o menino foi obediente em tudo aos seus pais.

Que a Sagrada Família de Nazaré continue inspirando as nossas famílias e oriente também os modelos familiares alternativos, sempre no seguimento dos ensinamentos cristãos.

Renovados votos de Feliz Ano Novo

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO DO ADVENTO – PREVISTO E ESPERADO – 23.12.2012


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO DO ADVENTO – PREVISTO E ESPERADO – 23.12.2012

Caros Confrades,

Neste quarto domingo do Advento, a liturgia comemora a visita de Maria à sua prima Isabel, que foi um momento marcante na economia da nossa salvação, como dizem os teólogos.

Antes de abordar o tema mariano, eu gostaria de ressaltar aqui a espetacular previsão do profeta Miquéias, com um grau de acerto de cem por cento, sobre o local onde nasceria o Messias: Belém de Judá. Miquéias era natural também do reino de Judá, mas de outra cidade, Mirasti, não tão distante de Belém e era contemporâneo do profeta Isaías, tendo vivido por volta de 700 anos antes de Cristo. Ele é um dos chamados 'profetas menores', porque o seu livro tem apenas sete capítulos, por isso nos cursos de teologia, o seu estudo é feito apenas superficialmente, dedicando-se mais tempo aos 'profetas maiores'. Contudo, foi Miquéias o único dos profetas a afirmar que Belém seria o berço terreno do Messias.

Há fatos notórios e intrigantes contidos nos diversos livros da Bíblia, escritos por pessoas diferentes e que se encaixam com grande precisão, demonstrando bem o dedo de Javé conduzindo as ações humanas para a realização de suas promessas a Abraão. Consideremos que cerca de 700 anos antes, Miquéias profetizou a chegada do Messias em Belém. No entanto, José e Maria moravam em Nazaré, onde casaram e ela estava grávida. Entra então o dedo de Javé através do governador da Síria, Quirino (Lc 2,2), determinando mais um recenseamento. Sim, mais um recenseamento, porque era comum naquela época, quando um novo território era conquistado, o conquistador convocava todos os habitantes para fazer a 'contabilidade pública', saber quantos eram, quantos bens possuíam, quanto de impostos poderiam pagar, onde estavam residindo... Assim aconteceu quando o rei Arquelau, da Síria, foi vencido pelos romanos e Quirino era o magistrado supremo na região da Ásia, tendo ordenado o recenseamento, o qual, conforme estudos históricos, se deu entre os anos 8 e 6 a. C. Os historiadores até comentam que há uma imprecisão na referência do evangelista Lucas, porque quem executou este recenseamento teria sido Herodes, o governador local, mas Lucas se refere a Quirino, porque era a autoridade romana máxima da região. Bem, esses detalhes são apenas para esclarecer, porque o que interessa é a intervenção de Javé na história dos homens, para possibilitar o cumprimento da profecia de Miquéias.

A esse fato, associa-se a visita dos magos do oriente, que chegaram ao palácio do rei Herodes e perguntaram onde estava o rei dos Judeus recém-nascido... para Herodes aquilo foi um choque, pois ele não tivera nenhum filho e ele ali era o 'rei'. De todo modo, reuniu os sacerdotes e adivinhos para saber do que se tratava, porque Herodes estava em terra estranha e aquilo podia ser um sinal de alguma insurreição popular, cultuando um descendente real da tradição daquele povo, e ele tinha toda razão. Logo logo os sacerdotes lembraram da profecia de Miquéias e então os magos foram orientados para irem até lá. Essa história dos magos é permeada de controvérsias, as quais não nos interessam aqui nesse contexto. Aqui destacamos apenas a intervenção de Javé na história humana, conduzindo os destinos do povo no rumo da salvação, conforme a aliança, fato que Santo Agostinho destacou muito bem na sua teologia da história.

Na segunda leitura, da carta aos Hebreus, o escritor sagrado faz referência ao nascimento de Cristo, dizendo que Javé não se satisfazia com os holocaustos e oferendas, sacrifícios do pecado, por isso mandou seu próprio Filho para tornar-se a oferenda definitiva, sacrificando-se de uma vez por todas e suprimindo todos os demais holocaustos. Ele veio para cumprir a promessa: “Eis que eu venho. No livro está escrito a meu respeito: Eu vim, ó Deus, para fazer a tua vontade.' ” (Heb 10, 7) O “livro” onde isso está escrito não é outro senão “to biblos”, simplesmente “o livro” escrito pelos profetas. São vários os profetas, mas o livro é um só, porque todos os seus escritores colocaram ali um conteúdo que se integra e se correlaciona, daí que não interessam os nomes dos autores materiais, já que um só é o seu autor intelectual: Javé. Apenas para esclarecer aos colegas, esta carta era antigamente atribuída a Paulo e se dizia “carta de São Paulo aos Hebreus”, mas atualmente os biblistas chegaram à conclusão de que não foi Paulo o seu autor, e visto que não se sabe quem foi, diz-se apenas 'carta aos Hebreus”.

No evangelho de Lucas (Lc 1, 39-45), lemos o relato muito popular da visita de Maria a Isabel, um dos fatos bíblicos mais retratados pelos pintores e artistas em geral, ao longo da história. A narração de Lucas é bastante rica em detalhes, o que estimula a imaginação dos artistas dos mais variados modos. E Lucas foi aquele agente privilegiado, pela sua convivência com Maria após a morte de Cristo, tendo sido escolhido por Deus para recolher d'Ela os segredos mais reveladores da vinda de Cristo, que não teriam sido conhecidos pela humanidade se não fosse essa situação privilegiada de ser ele uma pessoa letrada e da total confiança de Maria. Imagino que Maria deve ter confidenciado esses fatos aos poucos, ao longo de muito tempo, porque tudo indica que Ela era uma pessoa super reservada e introvertida. Só a graça de Deus fez com que Lucas assumisse essa função de confidente e cuidador de Maria, para ilustração de todos nós.

Bem, diz Lucas que Maria foi apressadamente à região das montanhas, para visitar sua prima Isabel, que estava nos dias próximos do parto. Maria também estava grávida, embora de pouco tempo, mas uma viagem longa e com as condições de transporte daquela época não pode ter sido assim tão rápida. Penso que Lucas se refere 'apressadamente' para significar que Maria tinha receio de chegar lá já depois do nascimento do filho de Isabel, João Batista. Tem aquela tradição que diz que Isabel mandou acender uma grande fogueira em frente da sua casa lá no alto, para que Maria e os parentes, que moravam no vale fossem avisados, algo como os sinais de fumaça usados pelos indígenas de algumas nações. Evidentemente isso não tem embasamento documental, mas de qualquer modo, deu origem às fogueiras juninas, que ainda hoje costumamos fazer.

Ao se encontrarem, Isabel fez aquele célebre discurso teológico, que se tornou o tema da oração mais típicamente mariana: bendita es tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre. Com certeza, Lucas relata esses detalhes para destacar o reconhecimento da divindade de Cristo, mesmo antes do seu nascimento. Isabel, como as mulheres daquele tempo, não era uma pessoa letrada e devia frequentar a sinagoga como todos os judeus, mas devia ser uma dona de casa simples, como era também Maria. Por certo, o discurso teológico de Isabel foi recomposto por Lucas, a partir de sucintas narrações feitas por Maria, que na sua humildade e tendo sido ela e Isabel as únicas pessoas a testemunharem o evento, não iria fazer de si mesma um cântico de exaltação, mesmo colocando as palavras na boca de Isabel. Diz Lucas que Isabel ficou cheia do Espírito Santo ao proferir essas palavras, mas nós sabemos que esse texto foi escrito muito tempo depois da morte de Cristo e que a primeira manifestação do Espírito Santo foi no batismo de Cristo, quando ele já era adulto, nas águas do Jordão. Portanto, podemos concluir que foi, de fato, Lucas quem ficou cheio do Espírito Santo e se incorporou na figura de Isabel ao compor o quadro literário da visita das primas.

Meus amigos, são muitas as simbologias que acompanham a festa do Natal, desvirtuada pela cultura capitalista em direção ao ideal do consumo. No entanto, a liturgia procura nos concentrar nos verdadeiros acontecimentos que ilustram a história da nossa salvação. Já foi comentada a imposição de Constantino acerca da data de 25 de dezembro para a celebração do Natal, como forma de encobrir com o manto cristão a festa pagã do deus saturno (saturnalia), que acontecia nesta época da passagem do solstício de verão, entre os dias 17 e 23 de dezembro, festas acompanhadas de lautos banquetes e distribuição de presentes. Independentemente dessa origem, para nós cristãos, o que interessa é nos voltarmos para o nascimento de Cristo, que aconteceu uma vez para sempre na história, mas que se repete constantemente em nossos corações, quando renovamos nosso compromisso de viver segundo o evangelho.

Nesse espírito, quero renovar sinceros votos de Feliz Natal a todos.

domingo, 16 de dezembro de 2012

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 3º DOMINGO DO ADVENTO – O QUE DEVEMOS FAZER – 16.12.2012


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 3º DOMINGO DO ADVENTO – O QUE DEVEMOS FAZER – 16.12.2012

Caros Confrades,

Neste 3º domingo do advento, a liturgia se reveste de festa, pela proximidade cada vez maior do Natal do Senhor. É o domingo 'laetare', ou seja, alegrar-se e as leituras reproduzem este lema. É um dos poucos domingos do ano em que as vestimentas litúrgicas tem o tom rosa, em vez do roxo, para demonstrar uma mudança da atitude espiritual de penitência para a demonstração de alegria. E canta-se no salmo a conhecida estrofe de Isaias 43, 5: ele está tão próximo que nos toma pela mão.

Na primeira leitura, do profeta Sofonias (3, 14-18), ele conclama o povo a se alegrar, porque o Senhor afastou os inimigos de Jerusalém. Este profeta viveu antes do cativeiro da Babilônia, quando o povo hebreu dividia suas preferências políticas entre o Egito e a Assíria, tendências que eram defendidas pelas autoridades da época, cada grupo entendendo que a aliança com um ou com outro seria a melhor. A tendência majoritária era para preferir a aliança com a Assíria. Sofonias profetizou na época do rei Josias, por volta do ano 630 a.C., que se aproveitou de um período de fraqueza do reino da Assíria para reforçar o nacionalismo dos hebreus. Não demorou muito para que a Assíria fosse dominada pelos babilônicos e, com isso, pela aliança que tinham com a Assíria, os hebreus terminaram sendo levados cativos por Nabucodonosor. Então, Sofonias se refere a esse interregno de autonomia que houve antes do domínio babilônico, conclamando o povo a alegrar-se, porque Javé é o valente guerreiro que salva seu povo. Foi uma alegria para o povo, embora se saiba que foi por pouco tempo.

Na segunda leitura, Paulo exorta a Filipenses que se alegrem sempre no Senhor, pois Ele está próximo. Naquele tempo, havia o entendimento de que a segunda vinda de Cristo era 'em breve', então muitas pessoas ficavam esperando isso a qualquer momento, sem entender o sentido próprio e escatológico dessa promessa. Na verdade, a catequese da época sugere que os próprios apóstolos achavam mesmo que Cristo retornaria enquanto eles ainda estivessem vivos, eles aguardavam isso a qualquer momento e repassavam isso para as comunidades. Algumas pessoas até deixavam de trabalhar, só esperando o retorno do Messias, o que foi criticado por Paulo na carta a Tessalonicenses (2 Ts 3, 10), pois Jesus não marcou o dia. Nesta carta de Filipenses, ele chama também os cristãos à alegria, porque o cristão não pode ser triste. Que a vossa bondade seja conhecida de todos os homens, adverte o apóstolo.

Agora, afastando-nos um pouco desse tema da alegria, gostaria de destacar o evangelho de Lucas (3, 10-18), que se refere novamente à figura de João Batista, pregando o batismo da conversão e batizando no Jordão. Diz Lucas que as pessoas convertidas procuravam João perguntando “o que devemos fazer” para viverem em coerência com a conversão. E João exortava a cada um, de acordo com a atividade social por ele exercida. Aos vendedores e compradores, ele dizia: quem tiver duas túnicas, dê uma a quem não tem; e quem tiver comida, faça o mesmo. Ou seja, saibam partilhar os bens com os mais pobres. Aos cobradores de impostos, esses que eram (já desde aquele tempo) mal vistos pelo povo por serem considerados perdulários, corruptos, pecadores públicos semelhantes às meretrizes, João dizia: não cobreis mais do que foi estabelecido, ou seja, pratiquem a sua atividade com justiça, não façam extorsão. Aos soldados, esses que eram também considerados pessoas não confiáveis e costumeiramente violentos e perversos, João dizia: não tomeis à força dinheiro de ninguém, nem façais falsas acusações, ou seja, não exerçam o poder com abuso de autoridade. E mais: ficai satisfeitos com o vosso salário, ou seja, controlem a ambição de sempre querer mais.

Meus amigos, eu percebi uma ligação entre esse trecho do evangelho e uma mensagem divulgada na sala de debates recentemente pelo nosso colega Batista Rios, por meio de um arquivo que demonstrava o nascimento do Menino Deus nas vidas das pessoas, em circunstâncias bem específicas de cada um. João Batista está aqui fazendo algo semelhante, mostrando que, para cada um de nós, o Menino Deus tem um pedido especial e uma tarefa bem condizente com as atividades do nosso dia a dia. Se tivermos o cuidado de 'ouvir' a voz de Deus nas nossas consciências em cada decisão que tomamos na vida, poderemos perceber que, em cada situação, Ele nos pede e espera de nós uma atitude de compromisso com a solidariedade, com a justiça, com o exercício do domínio que cada um tem sobre determinadas tarefas sempre no sentido do melhor cumprimento das verdades que Ele ensinou. Essa leitura do evangelho de Lucas nos sugere que, antes de cada tarefa e diante de cada nova missão que assumimos, na vida pessoal ou profissional, façamos perante a nossa própria consciência aquela indagação: para podermos viver a cada dia a nossa constante conversão ao chamado de Cristo, o que devemos fazer? E fiquemos atentos para o que Deus falará ao nosso coração.

O caminho de preparação para a celebração do Natal coloca na nossa frente os desafios que devemos enfrentar para sermos dignos de vê-Lo nascer em nosso espírito, em nossas famílias, em nossa comunidade. Infelizmente, os apelos comerciais e as figuras associadas ao consumismo ocupam a maior parte das atenções das pessoas nesse período, que devia ser dedicado à reflexão e ao exame interior das nossas atitudes praticadas no ano que finda. Esse é o verdadeiro sentido do advento, da espera do que vai chegar.

Quando a liturgia coloca para nossa reflexão, no primeiro domingo do advento, o tema 'vigiai porque não sabeis o dia nem a hora', isso não é uma ameaça nem uma intimidação para nos amedrontar. Ao contrário. É um alerta para que não relaxemos nos nossos compromissos de cristãos e uma oportunidade para fazermos um balanço sobre as práticas realizadas no período que termina. Porque para o cristão que está sempre vigilante com a sua opção pelos ensinamentos de Cristo, a vinda do Senhor justo juiz não deve causar temor, mas alegria, como já diz o conhecido ditado popular “quem não deve, não teme”. Neste domingo, a liturgia nos remete à reflexão sobre o modo como realizamos, no dia a dia das nossas atividades, aquelas ações e práticas que devem espelhar o estilo de vida do verdadeiro cristão.

E João Batista termina seu discurso de exortação com uma mensagem forte: eu não sou digno de desamarrar os cadarços da Suas sandálias (Lc 3, 16) e Ele vos batizará no espírito santo e no fogo. E arrepia: Ele virá com uma peneira para limpar sua eira e separar o trigo do carrapicho. Chamou-me a atenção a tradução do texto da CNBB, ao dizer que “Ele virá com uma pá na mão”, então fui consultar os textos originais. No texto latino de São Jerônimo, a palavra é “ventilabrum” e no texto grego original a palavra é “ptyon”, verifiquei nos dicionários e nada tem a ver com o que nós chamamos de “pá”, aquele instrumento de cavar o solo ou de juntar o basculho. A tradução mais próxima do original seria “joeira”, palavra que não é comum na nossa cultura, então a mais parecida é a peneira. É aquilo que os produtores rurais fazem com o feijão, o milho, o arroz depois que eles põem pra secar, para separar os grãos quebrados dos inteiros, separar as palhas dos grãos. Quem colheu café em Guaramiranga se lembra do local onde se punham os grãos maduros para que secassem, espalhando todos os dias com aquele grande rodo de madeira. Depois que seca, a casca começa a largar. No nosso meio sertanejo, além da peneira, faz-se também “ventilar” o feijão, o milho, ou seja, passar pelo vento, pra separar os grãos das cascas, é outra técnica rudimentar que tem o mesmo objetivo.

Então, no caso do discurso de João Batista, Ele virá com uma peneira pra separar os grãos perfeitos das cascas, os grãos inteiros dos quebradiços. Os grãos selecionados serão recolhidos ao celeiro, enquanto as palhas serão lançadas ao fogo (Lc 3, 17). Neste caso, portanto, “o que devemos fazer” é tornar-nos grãos maduros e perfeitos, para sermos selecionados na hora do peneiramento.


domingo, 9 de dezembro de 2012

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 2º DOMINGO DO ADVENTO – VEREDAS APLAINAI – 09.12.2012


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 2º DOMINGO DO ADVENTO – VEREDAS APLAINAI – 09.12.2012

Caros Confrades,

Estamos no segundo domingo do advento e a liturgia de hoje coloca como tema central a pregação de João no deserto: endireitai os caminhos, aplainai as veredas. Ele veio materializar a profecia de Isaías (40, 3): a voz que clama no deserto.

Na primeira leitura, temos o texto do profeta Baruc, falando sobre a alegria do retorno dos exilados a Jerusalém. Baruc foi um dos profetas da época do exílio. Ele era secretário do profeta Jeremias e encarregado de escrever o que o profeta dizia, para ser apresentado às autoridades. Como sabemos, naquela época eram poucas as pessoas ilustradas, que sabiam ler e escrever. Baruc era um destes poucos. Depois da morte de Jeremias, ele passou a escrever também as suas profecias, certamente aprendeu com o mestre a interpretar os fatos históricos, mostrando neles a presença de Javeh. Assim, ele diz que Jerusalém verá o retorno triunfante daqueles que foram levados cativos e humilhados algum tempo atrás. E o nome Jerusalém passará a significar “paz da justiça” e “glória da piedade”. A bem da verdade, é importante destacar que existem dúvidas entre os estudiosos sobre a autoria destes escritos, se teriam sido do próprio Baruc ou apenas atribuídos a ele. De todo modo, o contexto referido é o mesmo em que vivem o profeta Jeremias, no tempo do cativeiro babilônico.

A profecia de Baruc antecipou as palavras que seriam repetidas por João, no deserto, na sua pregação preparatória do Messias que estava para chegar: “Deus ordenou que se abaixassem todos os altos montes e as colinas eternas, e se enchessem os vales, para aplainar a terra, a fim de que Israel caminhe com segurança, sob a glória de Deus.” (Br 5, 7) Foi a mesma temática recolocada por João Batista, quando pregava: “'Esta é a voz daquele que grita no deserto: 'preparai o caminho do Senhor, endireitai suas veredas.” (Lc 3, 4) Dentro do simbolismo que está presente na adequação entre o antigo e o novo testamentos, João explicava que os caminhos a serem preparados não eram as estradas de pedra da Palestina, mas as vias internas do coração de cada um. Aqueles que entendiam o verdadeiro sentido da pregação de João, se convertiam e dele recebiam o batismo, nas águas do Jordão.

O evangelista Lucas diz que João percorreu toda a região do Jordão, pregando o batismo da conversão, para o perdão dos pecados. Ao invocar as palavras proféticas dos antigos, ele transferia o significado literal dos textos para a vida cotidiana daquelas pessoas, e o mesmo se aplica a cada um de nós, hoje. O tempo do advento, em todos os anos, é um momento de renovação interior, de reviver a conversão pregada por João e de nos despertar para a promessa que Jesus fez, quando subiu ao céu, conforme a liturgia celebrou no último domingo do ano litúrgico (festa de Cristo Rei), quando trouxe para a nossa reflexão os textos que se referem à segunda vinda de Cristo. Visto que não sabemos o dia nem a hora, então, a cada ano, aproveitando o ciclo natural da contagem dos dias, a liturgia condensa dentro desse período todo o ciclo da história da nossa redenção, revivendo os grandes momentos deste sublime mistério. É a forma mais eficaz de unir a nossa vida religiosa com a nossa vida cotidiana, integrando essas duas realidades através da catequese litúrgica.

Na segunda leitura, temos um trecho da carta de Paulo aos Filipenses, carta que ele escreveu quando estava preso, provavelmente em Éfeso ou a caminho de Roma. A cidade de Filipos recebera este nome em homenagem a Filipe da Macedônia, seu conquistador, e era uma das comunidades mais queridas por Paulo. Lá ele encontrou muita receptividade, quando foi pregar o evangelho, e obteve muitas conversões. Foi a partir de Filipos que o cristianismo começou a se espalhar pela Europa, até porque nessa época Paulo já estava preso e ele não tinha mais condições de sair pregando, como fizera antes. Os filipenses foram os continuadores do seu apostolado.

Os filipenses também estimavam muito Paulo, por causa do intenso trabalho que ele realizara lá, de modo que quando chegou a Filipos a notícia da sua prisão, a população organizou uma coleta e a mandou para Paulo, pois sabiam que ele passava necessidades na prisão. Daí que Paulo retribui, na carta, toda a amizade e afeição que os filipenses lhe dedicavam. E principalmente por saber que os filipenses se tornaram ardorosos divulgadores do cristianismo, então isso deixava Paulo ainda mais entusiasmado com os resultados do seu trabalho naquela comunidade.

Essa amizade especial de Paulo aos Filipenses está expressa logo no início da carta (1, 6), quando ele diz: “Tenho a certeza de que aquele que começou em vós uma boa obra, há de levá-la à perfeição até ao dia de Cristo Jesus. Deus é testemunha de que tenho saudade de todos vós, com a ternura de Cristo Jesus.” De acordo com os estudiosos, esta carta teria sido escrita em Roma, pouco tempo antes da morte de Paulo, o que explica a forma carinhosa e agradecida com que ele se dirige aos seus discípulos filipenses.

Se observarmos bem, a exortação de Paulo guarda relação com a exortação de João Batista, acerca da preparação dos caminhos, da seguinte forma. João se refere às ações iniciais da conversão, enquanto Paulo se refere à continuidade desta. A conversão do coração não é algo que acontece apenas uma vez na vida, não é um fenômeno único, mas permanente, renova-se a cada dia. Quando Paulo diz que aquele que começou em vós uma boa obra (a conversão), há de levá-la à perfeição, quer dizer, há de sustentá-los na fé perseverantes até o final. Por isso, ele continua na exortação: “que o vosso amor cresça sempre mais, em todo o conhecimento e experiência, para discernirdes o que é o melhor.” É isso o que chamamos de conversão contínua e que representa o crescimento espiritual, tanto no conhecimento quanto no discernimento. O conhecimento é algo que se adquire com o estudo, mas o discernimento se adquire com a experiência e com a maturidade, com aquela sabedoria que decorre da nossa própria vida cotidiana, conscientemente orientada no seguimento da doutrina cristã.

É pelo discernimento que devemos estar sempre atentos aos fenômenos sociais, que mudam em cada época, ou como dizia o papa João XXIII, atentos aos sinais dos tempos, para não ficarmos estagnados e presos ao passado. A mesma exortação de Paulo aos Filipenses se aplica a todos nós. Pode até ser o tema da nossa oração desta semana: que Deus nos inspire para que o nosso amor cresça sempre mais, pelo conhecimento e pela experiência, para sabermos sempre discernir o que é melhor.


domingo, 2 de dezembro de 2012

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 1º DOMINGO DO ADVENTO – NOVA JERUSALÉM – 02.12.2012


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 1º DOMINGO DO ADVENTO – NOVA JERUSALÉM – 02.12.2012

Caros Confrades,

Com a liturgia de hoje, 1º domingo do advento, tem início o ano litúrgico de 2013, de acordo com o calendário eclesiástico. Assim, conforme disse o Padre Júlio Cesar na missa paroquial, é o momento de desejarmos Feliz Ano Novo litúrgico a todos.

Todos os anos, nas quatro semanas que antecedem o Natal, a liturgia nos leva a refletir sobre as coisas que hão de vir (adventura), bem como sobre o Menino que vai chegar (adveniens), convidando-nos a nos preparar para O recebermos com o coração renovado. Sem entrar numa infindável e estéril discussão histórica sobre a data do Natal (segundo alguns, o nascimento de Cristo teria sido em março ou abril), independentemente do contexto paganizado com que foi estabelecido o dia 25 de dezembro para a celebração do nascimento de Cristo, o fato é que a comemoração deve ser a marca da nossa preparação espiritual, mais do que a referência a um dia específico. Ademais, o Natal nesta data é uma festa que reúne todo o mundo ocidental, esta grande concentração de energias mentais positivas é sempre um momento a ser preservado.

As leituras deste domingo fazem referência à segunda vinda de Cristo. A primeira já aconteceu historicamente; a segunda vinda é esperada desde que ele subiu aos céus na presença dos seus apóstolos e, ao longo dos tempos, passou por diversos quadros interpretativos. Depois de passados tantos séculos, já não se pensa mais numa data determinada no calendário, mas num dia incerto e indefinido, como está escrito no evangelho (Lc 21, 35). Dies illa, dies irae... dizia aquele antigo e temível cântico gregoriano, do qual muitos de vocês certamente se lembram, cantado diante da eça nas missas de finados. É curioso observar que, em latim, a palavra dia (dies) é utilizada no masculino e no feminino. Quando usada no masculino, refere-se a um dia certo; quando usada no feminino, refere-se a uma data incerta, como é o caso do 'dies illa'.

Na primeira leitura, o profeta Jeremias diz que “naqueles dias, farei brotar a semente da justiça que fará valer a lei... e Jerusalém terá uma população confiante... e será designada como 'o Senhor é a nossa justiça'”. (Jr 33, 15).
É a nova Jerusalém, aquela que um dia há de ser destruída e depois será restaurada com o nome de Justiça. Isso ocorrerá 'naqueles dias' que não se sabe quando serão. Na verdade, simbolicamente o profeta está se reportando à segunda vinda de Cristo, que virá restabelecer a justiça na terra, esta representada pela imagem da Jerusalém-justiça.

No advento, a cada ano, nós reiniciamos a nossa preparação para esta futura vinda de Cristo, no final dos tempos bíblicos, através dos atos litúrgicos que nos rememoram a vida histórica de Cristo, para que estejamos sempre vigilantes, como Ele próprio ensinou. Na segunda leitura, carta de Paulo aos cristãos Tessalonicenses (1Ts 4,1), o apóstolo os exorta a viverem como foi ensinado a eles, para agradar a Deus, seguindo as instruções que lhes foram passadas em nome do Senhor Jesus. É essa a mesma exortação que a Igreja, através da liturgia, nos dirige no tempo do advento.

O evangelho de Lucas (Lc 21, 25-36) traz a narrativa daqueles fatos que são indicativos da segunda vinda de Cristo: “Haverá sinais no sol, na lua e nas estrelas. Na terra, as nações ficarão angustiadas, com pavor do barulho do mar e das ondas.” Conforme já expus aqui neste espaço em comentários anteriores, essa descrição não deve ser pensada textualmente, mas no sentido metafórico. Em diversas épocas históricas, as pessoas já utilizaram essas palavras proféticas para associar com eventos naturais ou provocados pelo homem: catástrofes, guerras, revoluções... e ainda hoje muitas pessoas ficam impressionadas com os presságios de alguns que se dizem entendidos no assunto. Neste momento, as atenções estão voltadas para um presumível 'fim do mundo' no dia 21.12.2012, de acordo com as leituras de um antigo texto da civilização Maia. Outros já interpretam o mesmo texto como sendo uma mudança de era, um fenômeno cósmico que ocorre dentro de uma média de 3.600 anos. Há poucos dias, eu li uma matéria divulgada pelo site da NASA tentando acalmar as pessoas que escreveram para lá pedindo informações sobre esse cataclismo, algumas pessoas até afirmando que estão planejando suicidar-se antes do fato, para não passar por ele.

Ora, vejamos. Textualmente, no evangelho de Lucas (Lc 21, 26), até parece que estas coisas estão descritas: “Os homens vão desmaiar de medo, só em pensar no que vai acontecer ao mundo, porque as forças do céu serão abaladas.” Mas Jesus disse diversas vezes que somente o Pai sabe esse dia, nem Ele sabia, como é que uns pobres mortais poderão adivinhá-lo? Para nós, o que importa é a fé na salvação que Cristo trouxe, aconteça o que acontecer. O que Ele recomenda, e isso sim deve ser sempre lembrado é: “Tomai cuidado para que vossos corações não fiquem insensíveis por causa da gula, da embriaguez e das preocupações da vida, e esse dia não caia de repente sobre vós; pois esse dia cairá como uma armadilha sobre todos os habitantes de toda a terra.” (Lc 21, 34-35). Percebem, meus amigos, qual é a grande preocupação de Cristo conosco? É para que não nos deixemos dispersar pelos prazeres materiais e pelas preocupações da vida, para que a nossa fé esteja sempre atenta. E o que ele pede é simples: ficai atentos e orai a todo momento, para terdes força pra ficar de pé diante do Filho do Homem.

Meus amigos, o nosso conhecido e reverenciado Frei (Dom) Timóteo dizia uma frase que sempre me impressionou: há mais tempo do que vida. A nossa vida, de fato, é limitada no tempo, mas o tempo, esse não tem um limite previsível. Então, o ensinamento de Cristo para que fiquemos vigilantes sempre não se refere a um tempo abstrato e indefinido, mas ao nosso tempo existencial. A nossa fé n'Ele deve ser renovada a cada dia, para que não sejamos surpreendidos, não pelo fim do mundo, porque deste nós não sabemos nada, mas pelo fim dos nossos dias, porque estes têm um prazo até certo ponto previsível. Desde os tempos mais antigos, o salmista já dizia: a 70 anos vai a duração da nossa vida, a maior parte deles sofrimento e vaidade (Salmo 90, 10). Pela tabela mais recente do IBGE, a expectativa de vida do brasileiro é em média 74 anos.

Desse modo, quando o advento nos convida a estar vigilantes porque não sabemos o dia nem a hora, a nossa atenção não deve se voltar para “o Filho do Homem, vindo numa nuvem com grande poder e glória.” (Lc 21, 27), mas para o dia em que cada um de nós deveremos ficar em pé diante d'Ele, quando formos prestar conta da nossa existência.

Aproveitemos o tempo do advento para renovar cada vez mais a nossa fé na sua divina promessa.

domingo, 25 de novembro de 2012

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 34º DOMINGO COMUM – FESTA DE CRISTO REI – 25.11.2012.


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 34º DOMINGO COMUM – FESTA DE CRISTO REI – 25.11.2012.

Caros Confrades,

Neste 34º domingo comum, que encerra o ano litúrgico de 2012, a Igreja destaca a festa de Cristo Rei do Universo. Esta celebração foi instituída em 1925, pelo Papa Pio XI, com um objetivo religioso-político, no período histórico que mediou entre as duas grandes guerras mundiais e num contexto de grande ascensão do ateísmo no mundo, com a vitória dos regimes comunistas na Ásia, a fim de chamar a atenção da comunidade internacional para a figura de Cristo, o soberano acima de todos os dirigentes políticos.

A motivação teológica desta festa litúrgica se concentra na 'segunda vinda' de Cristo, quando ele virá concretizar as profecias que falam de sua eterna glória e do seu grande poder, como a que lemos na primeira leitura de hoje, retirada do profeta Daniel: “eis que, entre as nuvens do céu, vinha um como filho de homem, aproximando-se do Ancião de muitos dias, e foi conduzido à sua presença. Foram-lhe dados poder, glória e realeza, e todos os povos, naçðes e línguas o serviam: seu poder é um poder eterno que não lhe será tirado, e seu reino, um reino que não se dissolverá.” (Dn 7, 13-14). Tal figura real está corroborada no Apocalipse: “Jesus Cristo, a testemunha fiel, o primeiro a ressuscitar dentre os mortos, o soberano dos reis da terra.” (Ap 1, 5). E ainda no evangelho de Marcos: “Então vereis o Filho do Homem vindo nas nuvens com grande poder e glória. Ele enviará os anjos aos quatro cantos da terra e reunirá os eleitos de Deus, de uma extremidade à outra da terra.” (Mc 13, 26-27). Embora a liturgia de hoje não tenha escolhido este trecho do evangelho de Marcos, ele se encaixa totalmente no contexto das duas leituras anteriores.

Eu vou dizer aqui a vocês um opinião pessoal, que não é a doutrina oficial da Igreja Católica, de modo que peço que leiam isso como um comentário reservado meu. Eu não concordo com essa ênfase dada pela liturgia à figura de Cristo Rei do Universo. Em toda a sua pregação, Ele nunca quis ser exaltado como chefe, ele sempre repreendeu os discípulos, quando estes buscavam se sobressair de alguma forma, dizendo que aquele que quer ser o maior, deve ser o que serve. Ele deu muitos exemplos disso. Então, fica me parecendo essa homenagem a Cristo Rei como um contrassenso a tudo o que ele pregou. Dá a impressão que Ele rejeitaria tal homenagem, se tivessem lhe perguntado antes. Além do mais, essa imagem do rei é algo que recorda os tempos antigos e medievais, nos quais a figura real era algo que fazia parte do dia a dia das pessoas, porque a autoridade maior em toda parte era a de um rei, até na própria Bíblia, nomeiam-se vários reis de Israel. Mas no nosso tempo, o arquétipo real é algo bastante folclórico, presente nos folguedos populares, a imagem do rei já não transmite um significado de algo verdadeiro, mas opera bem mais no mundo da fantasia.

Eu ainda vejo nisso outro agravante. A celebração de Cristo Rei do Universo nos leva a questionar o alcance desse reinado. Até onde nos é dado saber, Cristo veio trazer a salvação aos homens terráqueos, as leituras bíblicas de hoje fazem referência aos 'reis da terra', por que não seria, então, a festa Rei do Mundo, compreendendo-se no conceito de mundo os 'reinos da terra'? Certa vez, o nosso confrade Cambraia me fez um questionamento, que já havia passado antes na minha cabeça e para o qual eu não conheço uma resposta teológica. É o seguinte. Cada vez mais a ciência faz afirmações sobre a existência de outros planetas em condições idênticas às da terra, com grande probabilidade de que haja vida inteligente por lá. Pois bem. Se houver, então a mensagem de Cristo também teria chegado lá? Cristo teria se encarnado lá também e teria pregado seu evangelho também ali? Até hoje, toda a teologia foi elaborada com base no pressuposto de que somente na terra existe vida inteligente. Como ficará a doutrina religiosa quando forem (e isso será, embora não se saiba quando) finalmente encontrados outros seres inteligentes, com a mesma estrutura mental dos habitantes da terra? Ora, a referência a Cristo Rei do Universo (e não apenas da terra) supõe que a Sua presença e a sua mensagem estariam presentes em todos os confins do cosmos. Não tenho resposta para este questionamento. Apenas, por pura dedução de lógica, imagino que, se existirem outros mundos semelhantes ao nosso, com grande probabilidade, lá também existiriam os mesmos problemas que enfrentamos aqui. Então, existe a possibilidade de que a mensagem cristã tenha sido transmitida também ali. De que modo? Isso precisaremos ter contatos imediatos de centenas de graus para poder alcançar.

Paro aqui, não vou avançar nessa linha de raciocínio, pois não quero ser enfadonho nem pedra de tropeço para os nossos Confrades que não concordam com isso. Mas deixo o tema para futuras reflexões.

A leitura do evangelho de hoje, retirada de João 18, 33ss, também me deixa cheio de indagações. Trata do diálogo de Cristo com Pilatos, quando este pergunta se Jesus é rei e Ele responde: “Tu o dizes: eu sou rei. Eu nasci e vim a mundo para isto.” Pensemos no seguinte. Nenhum dos discípulos de Cristo testemunhou o seu julgamento no tribunal de Pilatos. Quem teria, então, reportado esse diálogo com tantos detalhes? Sabemos que o verdadeiro julgamento de Cristo ocorreu no sinédrio, sob a chefia de Anás e Caifás, quando Jesus foi julgado conforme a lei dos judeus. Essa lei era, ao mesmo tempo, religiosa e política, pois naquela época não havia a separação entre estado e religião (como acontece hoje em alguns países ainda). Ocorre que os judeus não formavam um estado independente, pois estavam sob a dominação dos romanos, então era preciso que aquele julgamento fosse homologado pela autoridade romana, para que Jesus pudesse ser executado. Só que Pilatos não entendeu nada. Quando disseram a ele que Jesus queria ser rei e se colocar no lugar de César (o imperador romano), Pilatos ter-lhe-ia perguntado: então, tu és rei? Ao que Jesus respondeu: o meu reino não é deste mundo... Pilatos achou tudo aquilo muito estranho, insólito fanatismo dos judeus, mas como os romanos eram muito tolerantes com os costumes e regras locais em todos os povos por eles conquistados, não entendeu e também não interferiu, lavou as mãos e disse: vão lá e façam conforme a lei de vocês.

Todos sabem da história, não preciso repetir. No meio daquele tumulto da multidão insuflada pelos chefes dos sacerdotes, Pilatos ainda foi condescendente com Jesus, colocou uma votação entre Ele e Barrabás, um conhecido assassino, Barrabás ganhou. Agora, avaliem. No meio desse tumulto, quem teria ouvido o diálogo de Cristo com Pilatos, para depois reproduzi-lo com riqueza de detalhes? Provavelmente, alguns soldados da guarda e só. Isso leva à conclusão que o diálogo foi construído pela comunidade cristã, como de resto assim foram os textos evangélicos, inspirados em tradições que foram se espalhando nos anos seguintes à morte de Cristo. De todo modo, a figura do rei entra como componente desta cena por causa foi a acusação que os sacerdotes fizeram contra Jesus, para que Pilatos entendesse, porque dizer que o 'crime' d'Ele era afirmar ser filho de Deus, para Pilatos não significaria nada. Portanto, ao meu ver, o contexto desse breve diálogo sobre a realeza de Cristo foi puramente acidental. Certamente, após a sua ressurreição, começaram a se construir as imagens de Cristo glorioso, semelhante a um rei do modelo que eles conheciam, com vestes luxuosas, coroa na cabeça, cetro na mão, sentado num trono, etc.

Meus amigos, até peço desculpas por ter desenvolvido o tema deste comentário com um viés diferente do que costumo fazer, abordando as leituras do domingo e tirando conclusões para a nossa caminhada. Apesar de discordar desse aparato vistoso que a liturgia sugere com a festa de Cristo Rei, devo dizer que Ele é verdadeiramente o soberano da verdade, da justiça, da paz, da igualdade e da fraternidade e que, para isso, ele não precisa de um manto real nem de um cetro nem de um trono, porque o seu manto é a verdade, o seu trono é a justiça e o seu cetro é a paz que ele vem trazer todos os dias a todos nós. Que nós aprendamos a contemplar a realeza de Cristo destituída desses petrechos medievais, concentrando-nos no verdadeiro mundo onde ele deve sempre reinar, que é nos nossos corações.


domingo, 18 de novembro de 2012

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 33º DOMINGO COMUM – COISAS FUTURAS – 18.11.2012


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 33º DOMINGO COMUM – COISAS FUTURAS – 18.11.2012

Caros Confrades,

Neste 33º domingo comum, o penúltimo do ano eclesiástico, a liturgia nos convida a refletir sobre as coisas que estão por vir, aquilo que a teologia chama de 'parusia', isto é, a glorificação de Cristo no final dos tempos. O próximo domingo, que será o último do ano litúrgico, celebrará a festa de Cristo Rei do universo. Então, teremos o tempo do advento e o início do ano novo eclesiástico. Tal como acontece com outras religiões, o ano religioso não coincide com o ano civil comum.

As leituras deste domingo se referem aos acontecimentos futuros, que foram profetizados já no Antigo Testamento, e que o evangelho de Marcos retoma com aquela descrição bem explorada pela catequese tradicional como o nome de juízo final: o sol vai se escurecer, e a lua não brilhará mais, as estrelas começarão a cair do céu e as forças do céu serão abaladas. Então vereis o Filho do Homem vindo nas nuvens com grande poder e glória. (Mc 13, 24-26). Essa imagem descrita pelo evangelista foi tema de diversos quadros pintados na Idade Média e na Renascença européia. Lembro bem que, nos corredores do Seminário, havia reproduções de vários deles, com aquelas significativas exortações de 'vigiai porque ninguém sabe o dia nem a hora'.

No comentário que fiz, por ocasião da celebração dos fiéis defuntos, expus algumas ideias sobre o meu entendimento acerca desse episódio, de modo que não vou repeti-las aqui. Sugiro a quem não leu ou não lembra que leia o texto na página da internet http://cmachadobr.blogspot.com onde coleciono todos os comentários. Farei aqui outras referências.

No Antigo Testamento, o profeta Daniel já havia profetizado algo parecido, que o evangelista aproveita no seu texto, aplicando a Jesus Cristo, com o intuito de relacionar a profecia à Sua pessoa. Disse o profeta: Eu estava olhando nas minhas visões noturnas, e eis que vinha com as nuvens do céu um como filho de homem; e dirigiu-se ao ancião de dias, e foi apresentado diante dele. E foi-lhe dado domínio, e glória, e um reino, para que todos os povos, nações e línguas o servissem; o seu domínio é um domínio eterno, que não passará, e o seu reino tal, que não será destruído. (Dn 7, 13-14) Portanto, o evangelho de Marcos não está trazendo novidade neste aspecto, porque essa descrição era já conhecida na tradição hebraica. A novidade, de fato, é a aplicação dessa figura a Cristo. Tanto assim que a liturgia de hoje nem colocou este texto de Daniel como leitura, mas um outro trecho, do cap. 12, 1-3, no qual ele diz:  será um tempo de angústia, como nunca houve até então, desde que começaram a existir nações. Muitos dos que dormem no pó da terra, despertarão, uns para a vida eterna, outros para o opróbrio eterno. Mas os que tiverem sido sábios, brilharão como o firmamento; e os que tiverem ensinado a muitos homens os caminhos da virtude, brilharão como as estrelas, por toda a eternidade. Vê-se, pois, que o trecho do evangelho deste domingo, que fala sobre as coisas futuras, como se fosse algo novo dito por Cristo, de fato, é uma reprodução parafraseada do que fora dito pelo profeta Daniel.
A descrição dos astros que caem e do sol que escurecerá já estava prevista em Isaías (Is 13,10): “Porque as estrelas e constelações dos céus não darão a sua luz; o sol, logo ao nascer, se escurecerá, e a lua não fará resplandecer a sua luz.” E também em Isaías (Is 34,4): “Por esse tempo os céus, em cima, como que se derreterão e desaparecerão; serão como um rolo que se enrola. As estrelas cairão como folhas da videira e como caem as folhas da figueira.” Novamente, observa-se que o evangelho de Marcos faz adaptações dos textos de Isaías, colocando as palavras na boca de Jesus.
Inclusive a comparação feita por Marcos com os ramos da figueira, vê-se que já estava presente no texto acima de Isaías. A imagem da figueira era algo muito comum para os hebreus, porque essa árvore, que é típica da região, tem uma característica curiosa: fica totalmente seca no tempo do inverno e, quando vem se aproximando a primavera, é a primeira planta que começa a brolhar. Então, os hebreus já sabiam, pela sua tradição, que quando os ramos da figueira começam a aparecer é porque a primavera está chegando. Da mesma forma que o nosso sertanejo tem também as suas 'experiências' para adivinhar se haverá muita chuva ou seca na próxima estação.

Os biblistas afirmam que quando Jesus afirmou esta geração não passará até que tudo isto aconteça (Mc 13,30), Ele estava se referindo à destruição de Jerusalém, que veio a ocorrer alguns anos após a morte dele, prognosticando Jesus mais um grande castigo para o povo de Israel por não terem acreditado que ele era o Messias. Portanto, meus amigos, não devemos nos deixar impressionar com os sinais das grandes tribulações, que a todo momento alguns 'profetas' dos tempos atuais estão a apregoar. A próxima, conforme amplamente divulgado, estaria por acontecer no próximo mês de dezembro. Ora, o evangelho de Marcos diz (e isso não estava nas profecias do AT): Quanto àquele dia e hora, ninguém sabe, nem os anjos do céu, nem o Filho, mas somente o Pai. (Mc 13,32) Esta afirmação é até contraditória, pois como é que o Filho, sendo Deus, não saberia? A interpretação dessa passagem, pelos biblistas, é no sentido de que essa verdade não fazia parte da revelação do Pai que ele veio trazer aos homens, isso continua sendo um segredo divino.

Nesse contexto, fecha o raciocínio o texto da carta aos Hebreus, que está na segunda leitura: Todo sacerdote se apresenta diariamente para celebrar o culto, oferecendo muitas vezes os mesmos sacrifícios, incapazes de apagar os pecados. Cristo, ao contrário, depois de ter oferecido um sacrifício único pelos pecados, sentou-se para sempre à direita de Deus. (Hb 10, 11-12) Vejam bem o que está escrito: Cristo sentou-se para sempre à direita de Deus, ou seja, com a sua morte e ressurreição, ele encerrou as suas atividades temporais no tempo humano, daí em diante, prevalece o tempo de Deus. Daí porque Ele não podia revelar o dia e a hora, porque esse tempo não tem dia nem hora, ele já está acontecendo, só que isso ocorre em outra 'moradia', aquela que existe junto do Pai, onde se encontram os eleitos de Deus, aqueles cujo nome está escrito no 'livro' eterno dos “que tiverem ensinado a muitos homens os caminhos da virtude,” (Dn 12, 3), dos 144 mil assinalados, de que fala João no Apocalipse. O sacerdote comum se apresenta diariamente no templo para celebrar o culto (e nós vamos dele participar), porque estamos no tempo finito. Mas quando penetrarmos no tempo de Deus, o infinito, não será mais necessária essa repetição, porque Cristo já fez isso uma vez por todas.

Em suma, a mensagem que devemos retirar das leituras deste domingo é a de que nós devemos estar sempre atentos e firmes na nossa fidelidade ao evangelho de Cristo, fortalecidos na fé e praticando as nossas obras de caridade, pois é isso que Ele espera de nós. Se permanecermos assim, todas as tribulações que possam advir não nos abalarão pois, como disse o profeta Daniel, se levantará Miguel, o grande príncipe, defensor dos filhos de teu povo (Dn 12,1) e nada nos afetará. Que para tanto nos ilumine o Seu Santo Espírito.


domingo, 11 de novembro de 2012

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 32º DOMINGO COMUM – A OFERTA E O CORAÇÃO – 11.11.2012


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 32º DOMINGO COMUM – A OFERTA E O CORAÇÃO – 11.11.2012

Caros Confrades,

Neste 32º domingo comum, a liturgia traz para nossa reflexão dois episódios envolvendo viúvas: uma do tempo do profeta Elias e outra do tempo de Cristo. Em ambos os casos, Deus se manifesta de forma extraordinária, fazendo multiplicar a oferta delas, que é dada com o coração. Na Paróquia da Glória, da qual eu faço parte, esta semana foi dedicada à conscientização da comunidade sobre a importância do dízimo, como gesto concreto de participação na Igreja local. Suponho que nas demais paróquias também deve ter havido movimento idêntico.

Na primeira leitura, retirada do Livro dos Reis (1Rs 17, 10-16), temos o episódio miraculoso protagonizado pelo profeta Elias, numa época de grande seca na região do Sinai, onde se encontrava estacionado o povo hebreu, levando o povo a passar grandes necessidades de abastecimento. Ao chegar na cidade de Sarepta, o Profeta pediu pão a uma mulher que colhia lenha, ao que ela respondeu que só tinha um pouco de farinha e de azeite, pra fazer o último pão que comeriam, ela e o filho, porque depois disso iriam passar fome até morrer. E Elias pediu que ela fizesse aquele último pão para ele, assegurando que Deus não deixaria que faltasse o necessário para ela e o filho, até que sobreviesse novamente a fartura.

Se aquela não fosse uma mulher de fé, ela não teria acreditado no Profeta, teria negado a ele aquele último pão, com o qual iria saciar a fome provisória dela e do filho, encaminhando-se em seguida para a inanição. Mas, não. Ela acreditou no Profeta e deu a ele o seu último alimento. E aconteceu o milagre, conforme Elias predissera: sua farinha era reposta e seu azeite era renovado a cada dia, e assim ela teve alimento por muitos dias além. O Profeta comeu e seguiu o seu caminho, mas a promessa de Deus foi cumprida, porque a viúva fez a sua oferta de coração puro.

Situação semelhante é narrada pelo evangelista Marcos (Mc 12, 41-44), numa ocasião em que Jesus se encontrava no templo e observava as ofertas que os judeus faziam, de acordo com o costume de doar o dízimo para o templo. Os ricos depositavam moedas grandes e pesadas, que faziam eco ao caírem no fundo do cofre. Provavelmente, havia o costume de o ofertante dizer em voz alta o 'quantum' estava doando. Logo depois, chegou aquela mulher pobre e colocou só duas moedinhas, que nem fizeram barulho ao cairem no cofre. Mas havia ali duas grandes diferenças, ressaltadas por Jesus em comentário com os discípulos: primeiro, que os ricos doavam o que lhes sobrava, enquanto a mulher doava tudo o que possuía; segundo, que os ricos faziam aquilo de forma ostensiva e com alarde, pelo cumprimento da obrigação legal, enquanto a viúva fazia a doação com humildade e discrição, não tanto por obrigação, mas por devoção, doava de coração o próprio coração. E Jesus completou: a oferta dessa mulher com duas moedinhas sem valor foi muto maior do que a dos anteriores, que fizeram tanto barulho, porque Deus não olha a quantidade mas a qualidade da nossa oferta.

O evangelista não menciona este fato, mas com certeza Deus proveu aquela pobre mulher com maiores bênçãos e retribuições, assim como deve ter recusado as ofertas dos outros fanfarrões, os quais, nas palavras do próprio Jesus “receberão a pior condenação” (Mc 12, 40). A liturgia do dízimo utiliza o exemplo da viúva para fortalecer a convicção de que todos os paroquianos são responsáveis pela manutenção do templo e dos serviços religiosos, evitando-se a 'cobrança' de espórtulas para celebração dos sacramentos, como é o caso da Paróquia da Glória, fazendo doações espontâneas e regulares. Apenas os casamentos requintados, que são na verdade muito mais acontecimentos sociais do que cerimônias religiosas, são taxados aos que os requisitam.

Uma questão que se coloca nesse contexto é acerca do valor a que deve corresponder o dízimo. De acordo com a norma vigente no tempo dos fariseus, o dízimo era a décima parte das colheitas e dos ganhos auferidos. No entanto, o comentário que Jesus faz acerca da oferta da viúva nos revela que, mais importante do que a quantidade é a qualidade da oferta que cada um faz. Muitos pregadores das organizações eclesiais ditas evangélicas aproveitam-se dessa norma veterotestamentária para cobrar dos fiéis os 10% do salário e muitos contribuem assim mesmo de forma crédula e ingênua, supondo estarem adquirindo um 'terreninho' no céu. Como se o céu fosse um local geográfico e estivesse loteado para venda por bens materiais. O dízimo é a sua contribuição para o serviço do templo, que não precisa se expressar em valor monetário apenas, mas pode também ser ofertado em forma de serviço ou de colaboração com as atividades paroquiais. Em todas as comunidades, há as equipes que desenvolvem atividades diversas, onde cada um pode cooperar, de acordo com os seus talentos. Na concepção atual, a palavra dízimo foi desassociada do seu étimo de corresponder à décima parte dos bens para significar o tamanho do seu coração. De nada valeria entregar para a sua Paróquia matematicamente dez por cento das suas rendas, se aquilo não fosse uma atitude de fé, diferente de mera obrigação.

Lembremo-nos da grave advertência que Jesus fez contra os fariseus: “'Tomai cuidado com os doutores da Lei! Eles gostam de andar com roupas vistosas, de ser cumprimentados nas praças públicas; gostam das primeiras cadeiras nas sinagogas e dos melhores lugares nos banquetes. ” Devemos nos vigiar continuamente para que essa repreensão não se dirija também a nós. As pessoas que nos conhecem observam muito o nosso comportamento, como que a conferirem se a nossa fé é testemunhada por nossas ações, ou se somos daqueles que dizem e não fazem. Por diversas vezes, Jesus recriminou o comportamento estereotipado dos fariseus, que agiam de forma mecânica e ritual, mas suas atitudes não eram acompanhadas com o coração. Por diversas vezes, ele escarneceu: de que adianta guardar o sábado, de que adianta fazer longos jejuns, de que adianta cobrir a cabeça de cinzas e vestir roupas esfarrapadas? O Pai não olha pra isso, ele vê o que se passa no íntimo.

E aqui entra também a advertência que Paulo fez aos Gálatas e continua fazendo a todos nós: Não se deixem enganar: de Deus não se zomba. Pois o que o homem semear, isso também colherá. Quem semeia para a sua carne, da carne colherá destruição; mas quem semeia para o Espírito, do Espírito colherá a vida eterna. (Gálatas 6:7-8) Infortunadamente, vemos às vezes alguns cristãos que são assíduos frequentadores dos tempos e dos ofícios religiosos, no entanto, as suas atitudes no dia a dia fora do templo contradizem aquelas fervorosas demonstrações de fé. Infelizmente, percebemos nos ambientes religiosos indesejáveis picuinhas e 'disputas de territórios', que só contribuem para dividir, em vez de unir. Não podemos deixar que se aplique a nós aquele outro lamento de Jesus: esse povo me louva com os lábios, mas tem o coração longe de mim.

Examinemos, portanto, atentamente qual a relação que está ocorrendo entre a nossa oferta e o nosso coração, para que não nos advenham frutos destrutivos, mas sementes de eternidade.


domingo, 4 de novembro de 2012

COMENTÁRIO LITÚRGICO – COMEMORAÇÃO DE TODOS OS SANTOS – 04.11.2012


COMENTÁRIO LITÚRGICO – COMEMORAÇÃO DE TODOS OS SANTOS – 04.11.2012

Caros Confrades,

A liturgia deste domingo abre espaço para a comemoração de Todos os Santos, que ordinariamente se faz no dia 1 de novembro, associado à comemoração dos fiéis defuntos, no dia 2. As duas datas comemorativas são propositalmente colacionadas pela liturgia em dias vizinhos, porque a união das duas celebra o dogma religioso da 'comunhão dos santos', que nós rezamos no Credo. Pela lógica litúrgica, a comemoração de todos os santos devia anteceder a dos fiéis defuntos, mas pelo nosso calendário litúrgico pátrio, terminaram as datas se invertendo.

É o caso de refletirmos sobre o sentido dessa lógica litúrgica e também sobre o significado do termo 'santos'. São Paulo, na carta aos Romanos (8, 32) utiliza o termo 'santos' para designar os cristãos. Os cristãos são santos porque foram santificados pelo sangue de Cristo, na Sua morte e ressurreição. A teologia ensina que a principal vocação do cristão é à santidade, nós todos nos encontramos neste caminho de busca da santidade. A tradição cultural de denominarmos 'santos' somente aqueles que foram elevados às honras dos altares tende a fazer um paradoxo entre eles e nós: eles, os santos; nós, os pecadores. Em verdade, teologicamente, não é assim. Aqueles que foram 'canonizados', isto é, tiveram suas virtudes reconhecidas oficialmente pela Igreja, são os santos-modelos, são aqueles que a Igreja coloca como exemplos para que nós sigamos. Mas todos nós conhecemos pessoas vivas ou já falecidas que exalam o odor da santidade, mesmo sem terem o reconhecimento oficial. Apenas para dar um exemplo, faz poucas semanas, nos lembramos aqui neste espaço do exemplo do Frei Serafim de Viana. Eu não conheço uma só pessoa que tenha convivido com o Frei Serafim que discorde do seu exemplo de santidade.

Então, a lógica litúrgica da comemoração das duas festividades em dias vizinhos é para nos lembrar que todos estamos em comunhão (comum união): nós que ainda somos peregrinos, aqueles que tiveram seus méritos reconhecidos oficialmente pela Igreja e os fiéis defuntos todos, dos quais somente Deus conhece o íntimo e pode avaliar. Antigamente, a liturgia fazia alusão também “às almas do purgatório”, expressão hoje propositalmente omitida, porque se trata de um tema teológico controverso. Conforme expressei no comentário que fiz anteontem, por ocasião da celebração dos fiéis defuntos, não é válido pensar que alguém 'passe 'x' anos no purgatório', porque quando ultrapassamos a barreira da materialidade, lá não se contam dias nem meses nem anos. Certamente, o Justo julgador divino providencia para todos um ritual de purificação, que não nos é dado conhecer como é, mas também por certo esse ritual não tem nada que ver com fogo ou com uma tal ou qual duração.

A comunhão dos santos é, portanto, um conceito equivalente ao que Paulo expressa nas suas cartas com o nome de 'corpo místico de Cristo', do qual a Igreja é a cabeça. Este corpo místico engloba todos os fiéis aos mandamentos de Cristo, de antes, de hoje e de depois, todos formando uma unidade na diversidade dos carismas, mas mantendo-se unidos no Espírito. É nesse contexto que devemos entender também a primeira leitura, retirada do Apocalipse de João, onde ele fala no número dos que foram marcados na fronte (Ap 7, 4) para serem salvos, cujo quantitativo era de cento e quarenta e quatro mil. Aqui está outro exemplo de que não podemos interpretar literalmente o texto sagrado. Talvez, na época de João, cento e quarenta e quatro mil fosse um número grande demais para ser pensado, porém nos dias de hoje tornou-se um número insignificante.

Além disso, João se refere a doze mil de cada uma das doze tribos de Israel para chegar a esse total. Talvez, naquela época, ele tivesse a esperança de que os judeus todos fossem aderir à mensagem de Cristo, o que de fato não ocorreu. Mas ele previu também (Ap 7, 9) uma multidão imensa de gente de todas as nações, tribos, povos e línguas, e que ninguém podia contar. Nós estamos nessa multidão incontável de seguidores de Cristo, que João nem teve coragem de quantificar, e nem poderia. E todos também marcados para serem salvos, uma vez que “Estavam de pé diante do trono e do Cordeiro;
trajavam vestes brancas e traziam palmas na mão. Todos proclamavam com voz forte: "A salvação pertence ao nosso Deus, que está sentado no trono, e ao Cordeiro".
” (Ap 7, 9-10) Todos igualmente santos, se trouxermos para este contexto a expressão de São Paulo.

O mesmo apóstolo João, na sua primeira carta (1Jo 3,2) usou uma expressão semelhante à de Paulo para dizer que todos somos santos: o de sermos chamados filhos de Deus. Ora, como poderia um filho de Deus não ser santo? Daí ele afirmar: “Caríssimos, desde já somos filhos de Deus, mas nem sequer se manifestou o que seremos!” Ou seja, nós já somos e ainda nem sabemos como é ser isso, pois nós só sabemos disse agora enquanto mistério revelado por Cristo. Assim, pela fé, nós já somos, embora sem sabermos com clareza do que somos, pois isso somente se manifestará totalmente quanto O virmos face a face, quando então Ele será tudo em todos. A teologia tem uma expressão interessante para explicar isso: já e ainda não. Nós já somos, mas ainda não sabemos como é isso. Mas já somos. Isso só é possível para quem tem fé. Daí João ter escrito em 1Jo 3,1: este é o grande presente de amor que o Pai nos deu, o de podermos ser incluídos no rol dos seus filhos já desde agora, quando Ele ainda não se manifestou plenamente para nós.

A riqueza litúrgica da festa da comunhão dos santos se completa com o famoso sermão da montanha, no qual Cristo chama a todos de bem aventurados. Dizer que somos bem aventurados é o mesmo que dizer que somos santos. Em latim, bem aventurados = 'beati' (plural de beatus), que é a mesma palavra que em português se traduz por 'felizes', tanto assim que algumas traduções do evangelho usam esta palavra nos textos. Curiosamente, Cristo chama de bem aventurados todos aqueles que, pela aparência social, seriam pessoas desventuradas. Havia um entendimento tradicional entre os judeus do farisaísmo de que as pessoas abençoadas por Deus (portanto, bem aventuradas) já recebem logo neste mundo os Seus dons de forma abundante. Assim, perante essa visão farisaica, bem aventurados eram os ricos, os poderosos, os belos, os vencedores, os beneficiados pela sorte e pela esperteza. Os demais eram considerados pessoas amaldiçoadas, esquecidas por Deus, que desde logo já estavam sofrendo um castigo que continuariam a sofrer na outra vida.

Contrariando esse ponto de vista, Jesus por diversas vezes ressaltou as virtudes dos pobres e humildes, em contraposição à arrogância e ao orgulho dos ricos. Cito somente dois casos: do rei que preparou o banquete e os convidados não compareceram, tendo ele convidado os maltrapilhos e os sem-teto para se refestelarem. E ainda o caso da pecadora que lavou os pés d'Ele com lágrimas na presença dos fariseus (não confundir com a figura de Maria Madalena, esta foi de quem Ele expulsou sete demônios – Lc 8, 2). No sermão da montanha (Mt 5), ele vai dizer que são bem aventurados: os pobres, os aflitos, os mansos, os famintos, os misericordiosos, os puros, os pacíficos, os perseguidos, os injuriados, todos aqueles a quem a tradição social excluía como os mais desprezíveis. E arremata: alegrai-vos e exultai porque grande será a vossa recompensa.

Caros amigos, vejamos então a nossa responsabilidade de cristãos enquanto chamados, vocacionados à santidade. Não importa se um dia teremos nossas virtudes reconhecidas e seremos colocados num altar, servindo como exemplo para os demais cristãos. Isso nem é necessário, porque o que nós somos e fazemos apenas a Deus interessa. Ocorre, porém, que devemos ter consciência de que nós já somos, mas ainda não chegamos lá. Isso significa que toda a nossa vida é um aprendizado, um treinamento contínuo, um exercício interminável na tentativa de superarmos nossas deficiências e nos livrarmos dos nossos pecados. O Padre Manfredo Ramos, no sermão da missa de hoje, disse uma definição de Santo Agostinho sobre o pecado que eu achei perfeita: pecado é aquilo que falta em nós para conseguirmos praticar a caridade na medida certa. O que Deus quer e espera de nós é que vivamos constantemente na busca dessa parte que nos falta. E o modo de irmos nos aproximando disso é praticando continuamente a caridade e o amor ao próximo.

Que nós sejamos fiéis ao ensinamento de Cristo e possamos nos aproximar sempre mais da perfeição que conduz à santidade.


sexta-feira, 2 de novembro de 2012

DIA DE FINADOS - 02.11.2012


REFLEXÕES A PROPÓSITO DO DIA DE FINADOS

Caros Confrades,

A comemoração dos fiéis defuntos, celebrada nesta sexta feira, nos remete a um tema que o antigo catecismo chamava de 'novíssimos': morte, juízo, inferno, paraíso. O evangelho lido na missa de hoje é aquela conhecida narração de Mateus, ilustrando a vinda gloriosa de Jesus, no final dos tempos, rodeado de anjos e ao som de trombetas, mandando todos fazerem fila, uns à direita (as ovelhas) e outros à esquerda (os cabritos).

Esta narrativa foi visualizada por diversos artistas, ao longo dos tempos, sob as mais variadas formas em obras de arte memoráveis, todas buscando retratar o juízo final segundo o relato evangélico. No entanto, é o caso de perguntarmos: será realmente assim com essa forma teatral o julgamento final da humanidade? Ou será que cada um que chega ao final do bom combate, como diz São Paulo, vai logo se encontrando com o divino Julgador e recebendo sua sentença? Será esse julgamento realizado logo em seguida à morte ou teremos de aguardar por 'um dia em que Jesus há de voltar' e mandar todos os mortos saírem das sepulturas?

Ao meu ver, a resposta as essas indagações dependerá do modo como compreendemos a eternidade. Há um costume cultural de se tentar descrever as realidades eternas com o mesmo esquema espacio-temporal das realidades terrenas. É o que eu chamo de visão antropomórfica da eternidade. Mas se nós imaginarmos que a eternidade é o oposto da temporalidade, iremos perceber que o eterno está fora do tempo e assim na eternidade não se passam dias, meses e anos, como acontece na dimensão temporal. Eternidade é o presente permanente, não há nem passado nem futuro. Na vida terrena, nós temos o antes, o agora e o depois; na eternidade, tudo é agora, sempre agora. É impossível imaginar como seria esse agora permanente, mas o fato é que, ultrapassado o portal da matéria, o tempo não mais existe.

Se nós raciocinarmos assim, iremos concluir que a narrativa do evangelista Mateus é uma descrição metafórica de uma realidade sobrenatural, que não pode ser interpretada literalmente. O que está ali descrito representa um modo cultural de repassar a ideia do julgamento a que cada um irá se submeter, ao terminar o seu curso terreno, quando deverá prestar contas dos talentos recebidos. Não significa um 'roteiro' antecipado do que irá suceder. Alguém poderia contestar dizendo que foi Jesus quem afirmou aquilo. Ora, na verdade, Jesus falou tudo o que está nos evangelhos, é o que a Igreja crê, e Jesus não poderia falar diferentemente, porque aquelas pessoas não iriam entender. Mas Jesus também disse que falava sempre em parábolas, portanto, devemos compreender essas afirmações parabolicamente.

Vamos imaginar como seria este episódio conforme está escrito, literalmente. Jesus virá em sua glória sentado no seu trono. Em que local ele iria aparecer? Na Palestina, onde ele veio um dia? Na Europa, onde está o Papa? No Brasil, a maior nação católica do mundo? Em qualquer lugar que seja, como será possível fazer filas com tanta gente? E as pessoas que residem em outras localidades, como iriam se deslocar? A população atual da terra é da ordem de 6 bilhões de pessoas e está sempre crescendo. Se isso fosse hoje, contando ainda com os mortos que iriam sair dos sepulcros, haveria espaço para caber tanta gente? Só por essas breves indagações, dá pra perceber que é inviável a realização do juízo final exatamente da forma como está descrito no evangelho, ou seja, a narrativa de Mateus é simbólica, não fatual. Então, temos que imaginar alternativas de como será esse 'dia'.

Seguindo a linha de raciocínio que expus acima, no sentido de que a eternidade é o oposto da temporalidade, então devemos imaginar que o julgamento final não ocorrerá num 'certo dia no futuro', como o texto bíblico literalmente dá a entender. Isso porque na eternidade, não há hora, nem dia, nem mês, nem ano, portanto, o mais razoável de se pensar é que logo em seguida à morte, cada um se apresenta diante de Deus e recebe a sua sentença, pois Deus já nos terá julgado, como de fato, Ele nos julga constantemente. Não há 'um dia' para isso, pois essa expressão, nesse contexto, deve ser compreendida como o agora permanente da eternidade.

Há ainda outra consideração a fazer, uma reflexão feita pelo Padre que celebrou a missa hoje na Igreja da Glória (Padre Julio César), com a qual em concordo plenamente. Lembremo-nos das referências sobre os critérios de julgamento, quando Jesus disse: eu tive fome e me deste (ou não me deste) de comer; eu tive sede e me deste (ou não me deste) de beber, etc... e conclui: todas as vezes que fizestes (ou deixastes de fazer) isso a um desses pequeninos, foi a mim que fizeste (ou que negaste), dependendo se está se referindo às ovelhas ou aos cabritos. Sobre isso, disse o Padre: Deus não vai perguntar quantas missas você assistiu, quantos terços você rezou, quantas vezes você comungou, quantas orações por dia você fez, quantas confissões você fez, etc... todas essas práticas são ótimas e recomendadas, no entanto, elas devem se complementar com a prática da caridade. Em resumo, Deus vai nos perguntar como foi a nossa caridade para com o próximo. Isso significa que milhares de missas, milhares de comunhões, milhares de terços e orações rezadas durante a vida, se não forem acompanhadas da ação caritativa, de nada adiantaram.

Meus amigos, isso é muito sério, isso nos põe um questionamento sobre o 'modelo' de prática religiosa que adotamos. Estamos olhando apenas para o alto? A nossa religião é exclusivamente uma comunicação com Deus? Ou olhamos para a frente e vemos Deus nos irmãos, e nos comunicamos com Deus através dos irmãos? Houve uma prática pedagógica religiosa do passado, que ainda está na cabeça de muitas pessoas que se dizem católicas, que compreende a religião apenas como uma devoção a Deus, a Maria, aos santos, aos anjos e arcanjos e termina por aí. A piedade só existe dentro do templo, a religião só é vivida individualmente, eu e Deus e isso basta. Vejamos bem que Jesus foi muito duro quando os 'cabritos' perguntaram: Mestre, quando foi que te vimos com fome e não te demos de comer, com sede e não te demos de comer, enfermo e não te visitamos? E ele respondeu: foi quando deixastes de fazer isso com os irmãos.

Portanto, meus amigos, esqueçamos essa teatralização do juízo final, procurando descobrir a verdadeira mensagem de Cristo transmitida através dessa encenação simbólica, pois o que Ele nos diz pode ser resumido em duas verdades: 1. Todos irão prestar contas ao Pai daquilo que receberam e do modo como fizeram uso disso. 2. O critério pelo qual nós seremos julgados é exatamente aquilo que Ele ensinou no novo mandamento, a saber, amar a Deus e aos irmãos. Nós seremos julgados pela medida do amor. Se vai haver um troar de trombeta no céu, se Ele vai aparecer brilhante e majestoso, se os mortos sairão das tumbas, se haverá duas grandes filas, etc... tudo isso é a roupagem metafórica da verdade mais elevada que Ele quis transmitir: o julgamento pela medida do amor. Ou seja, ele já disse qual é a Lei suprema e todos nós já a conhecemos. Não haverá surpresas de última hora, não haverá improvisações ou enganações. Tudo já está estabelecido.

A nossa grande esperança é que o Pai, conhecendo as nossas fraquezas, como justo Juiz irá avaliar não o que dizemos e fazemos, mas a nossa consciência, a nossa personalidade mais profunda. Nós até podemos enganar os outros, mas a Deus ninguém engana. E na Sua infinita misericórdia, Ele saberá atribuir a cada um a merecida recompensa. Certo dia, eu li uma mensagem escrita por um Padre, a qual me trouxe uma luz intelectual muito importante. Ele disse que a Igreja afirma que existe o inferno, mas não afirma que existe alguém lá, porque isso é mistério que só a Deus cabe conhecer. Já disse São Paulo: onde abundou o pecado, superabundou a graça (Rm 5, 20). Por que haveríamos de temer Aquele que sabe tudo de nós desde sempre? A incerteza é apenas da nossa parte, porque para Ele, tudo já está perfeitamente esclarecido.


domingo, 28 de outubro de 2012

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 30º DOMINGO COMUM – MILAGRE DA FÉ – 28.10.2012


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 30º DOMINGO COMUM – MILAGRE DA FÉ – 28.10.2012

Caros Confrades,

A liturgia do 30º domingo comum nos traz a história da cura de um cego por Jesus, na entrada da cidade de Jericó. Num certo sentido, o tema desta leitura é uma continuidade do comentário que fiz na semana passada, com o título de 'saber pedir', sobre como dirigimos nossas orações a Deus. Lá, Jesus advertia seus discípulos de que não sabiam o que estavam a pedir; aqui nós vemos o exemplo de uma pessoa simples, humilde, que consegue receber o objeto do seu pedido, porque soube pedir.

De acordo com o evangelista Marcos (10, 46-52), Jesus estava chegando a Jericó. Esta é uma das cidades mais citadas nos evangelhos, porque era já naquela época uma das cidades mais importantes da Palestina. Sua conquista pelos hebreus, quando estavam tomando posse da Terra Prometida, foi uma das mais memoráveis, então esta cidade era um ícone da nacionalidade hebraica, um lugar muito visitado. Geograficamente, situa-se a 27 km de Jerusalém e a 10 km do Mar Morto, sendo considerada pelos historiadores uma das cidades mais antigas do mundo, pois há evidências de ter moradias lá desde pelo menos 9.000 anos antes de Cristo. Este fato fazia com que muitas pessoas visitassem Jericó e, com isso, havia também muitos pedintes na entrada da cidade, por onde passavam as caravanas.

Pois bem. Jesus passava por Jericó, a caminho de Jerusalém, onde o desfecho da sua vida iria acontecer. Na entrada da cidade, havia um grupo de cegos pedindo esmolas aos viajantes. O Padre Uchoa, nosso professor de Bíblia, comentava que havia verdadeiros bancos de pedintes, muitas vezes, liderado por um deles, uma espécie de trabalho organizado e repartido. Faz lembrar as nossas cidades romeiras, onde também encontramos verdadeiros batalhões de pedintes, vendedores de objetos e de informações, espertalhões de diversas espécies. Lá devia ser algo assemelhado.

Ao saber que o grupo de Jesus, o nazareno, estava passando, um cego de nome Bartimeu começou a gritar: Filho de Davi, tem piedade de mim. Obviamente, os outros cegos também faziam seus pedidos aos passantes, mas Bartimeu dirigia-se em voz alta a Jesus: tem piedade de mim. Mandaram que ele se calasse, mas ele gritava ainda mais forte. Então, Jesus mandou chamá-lo. Diz o evangelista que ele deu um pulo, largou o manto onde recolhia as moedas que lhe jogavam como esmola e foi até onde Jesus se encontrava. “Que queres que eu te faça?”, perguntou Jesus. (Mc 10, 51) E ele respondeu: Mestre, eu quero ver. E Jesus disse: Assim será, a tua fé te curou. E ele passou a enxergar e saiu acompanhando Jesus.

Neste diálogo de Jesus com o cego Bartimeu, podemos ver um exemplo de oração eficaz. Quando o cego gritou para Jesus, ele já sabia a quem estava se dirigindo, a fama de Jesus já era conhecida em toda a região. Com certeza, Bartimeu já tinha conhecimento de outras pessoas a quem Jesus havia curado de cegueira e de outras moléstias. Ao saber que Jesus por ali passava, ele não podia perder aquela oportunidade, pois talvez não O encontrasse novamente. E hoje nós sabemos que não encontraria mesmo, porque Jesus já estava de passagem para Jerusalém. Então, ele se encheu de coragem e de determinação e ficou gritando: tem piedade de mim... até chamar a atenção de Jesus, no meio da multidão.

Pelo seu conhecimento divino, Jesus também sabia quem estava a gritar por Ele, como sabia que aquela seria mais uma oportunidade para confirmar a Sua missão em favor dos mais pobres e dos excluídos da sociedade. Pela sua sabedoria divina, Jesus já conhecia a intensidade da fé daquele mendigo, como já sabia também do que ele mais necessitava, mas o chamou para que ele expressasse seu pedido diretamente. “Tem piedade de mim”, repetia o cego, significando com isso a sua fé no poder de Jesus. É como se dissesse: com o teu poder, tira-me dessa situação. E Jesus retribuiu a sua oração com o milagre da cura, mas foi logo dizendo: foi a tua fé que te curou. Ora, meus amigos, o que Jesus quer ensinar-nos com isso? Que a verdadeira oração é aquela dirigida a Deus com fé, com fé verdadeira. O poder divino é imensurável e onipotente, mas não é suficiente para produzir nada em nós sem a ajuda da nossa fé.

Além do mais, o cego não pediu a Jesus bens materiais ou vantagens comodistas, pediu só o essencial: a cura da sua deficiência, pois com a superação desta, tudo o mais ele iria alcançar com o seu trabalho e com a sua vontade de vencer. Jesus deu a ele essa oportunidade e sinalizou para os ouvintes (também para nós aqui) que o seu poder divino só opera em resposta à fé irrestrita. Ou por outras palavras, o efeito do poder divino na nossa vida será proporcional à intensidade da nossa fé.

O evangelista narra ainda um detalhe que pode parecer irrelevante, mas tem também um grande significado. O mendigo largou o seu manto, o único bem material que ele possuía, para ir até Jesus e receber dele a graça miraculosa. Naquela região desértica, o manto é uma peça obrigatória para os moradores, por causa do rigor do frio noturno, em contraposição ao excesso de calor durante o dia. As pessoas usam o manto para se protegerem do frio. No caso dele, durante o dia, o manto servia para ele espalhar no chão à sua frente e recolher as moedas que os passantes lhe jogavam. Mas para ir encontrar-se com Jesus, ele largou o manto, deu um pulo e saiu correndo. A oportunidade de estar frente a frente com Jesus era mais importante do que toda a riqueza que ele possuísse, no caso, era bem modesta a sua fortuna, mas era tudo o que ele tinha.

Se nos lembrarmos, nesse contexto, da leitura bíblica de dois domingos atrás, quando foi narrada a história do jovem rico, que não concordou em doar seus bens aos pobres para seguir Jesus, vamos entender melhor quando Jesus disse que é muito difícil para um rico chegar à salvação. No caso do cego, se ele fosse um rico, talvez não tivesse a mesma atitude do Bartimeu, que largou literalmente tudo o que tinha, para reunir-se ao grupo dos seguidores de Jesus. Diz o evangelista que, ao recuperar a vista, o cego passou a segui-LO. O jovem rico teve a sua oportunidade de estar frente a frente com Jesus, mas não teve a coragem de abandonar seus pertences. Com a falta de adesão de sua vontade, Jesus não operou nele nenhum milagre.

Então, meus amigos, o que aprendemos desse episódio do cego Bartimeu é que os milagres não ocorrem apenas pelo poder de Deus. O 'saber pedir' a que Jesus se referia no domingo anterior diz respeito ao tamanho da fé que acompanha o nosso pedido. Ao falar sobre o tamanho da nossa fé, vem à mente aquele outro episódio do centurião, que pediu a Jesus para que curasse o seu filho, que estava à beira da morte, mas nem precisava ter o trabalho de ir até a casa dele: basta uma palavra Tua daqui mesmo e o meu filho ficará curado. Ao que Jesus comentou: nunca vi tamanha fé nem em Israel. Vai, teu filho está curado. Temos aí outro exemplo da oração eficaz: o pedido de um objeto especial, acompanhado de uma fé irrestrita. Por isso, podemos dizer que, para o milagre acontecer, embora o poder de Deus seja pleno e absoluto, nossa participação através da fé é indispensável. Por isso, dizemos também que o elemento operante do milagre é a fé, porque o poder de Deus não se sobrepõe à nossa vontade, e a fé é a manifestação mais completa do ato da vontade humana. Muitas pessoas seguiram Jesus naquele tempo, assim como hoje são também seguidores Seus, mas não tiveram, como hoje também não têm, milagres acontecendo em suas vidas. Ao que podemos concluir, isso acontece pela falta de uma fé do tamanho necessário para transformar o pedido em milagre.

Que o Divino Mestre nos ajude a compreender a importância da nossa fé e nos ajude a aumentá-la sempre mais.