domingo, 22 de março de 2015

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 5º DOMINGO DA QUARESMA - A NOVA PROMESSA - 22.03.2015

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 5º DOMINGO DA QUARESMA – A NOVA PROMESSA – 22.03.2015

Caros Confrades,

Na liturgia deste 5º domingo da quaresma, as leituras apresentam como tema comum a renovação da promessa de Javeh ao povo de Israel, iniciando com a profecia de Jeremias, passando pela carta aos Hebreus e completando com o evangelho de João. É curioso observar como as palavras de Jeremias, proferidas mais de 600 anos antes de Cristo, têm uma aplicação plena na perspectiva messiânica da missão do Salvador. Ele se refere ao povo infiel à aliança do Sinai e anuncia que Javeh fará uma nova aliança e esta será definitiva.

A leitura de hoje do projeta Jeremias (31, 31-34) reflete uma situação sócio-religiosa complicada no meio do povo hebreu, seduzido pela idolatria e esquecido da promessa dos seus primeiros pais. A época é pouco antes da derrocada de Jerusalém e da escravidão dos hebreus na Babilônia. O profeta anuncia que Javeh está desencantado com aquele povo e por isso irá renovar a sua promessa, mas essa não será igual à anterior mercê da qual os hebreus foram retirados do Egito e conduzido pela mão pelo deserto e que os antepassados violaram, ou seja, não foram fiéis. A aliança anterior era escrita em tábuas de pedra, mas a nova aliança será diferente, como diz o profeta: “Esta será a aliança que concluirei com a casa de Israel, depois desses dias, diz o Senhor: imprimirei minha lei em suas entranhas, e hei de inscrevê-la em seu coração.” (31, 33) A aliança anterior, escrita na pedra, podia ser facilmente violada, mas a nova aliança escritas nas entranhas e no coração, esta jamais poderá ser esquecida. Jeremias está assim antecipando claramente o que Cristo iria afirmar tempos depois, quando veio realizar esta nova aliança. É interessante notar, nesse trecho, a oração temporal “depois desses dias”, que eram os dias do cativeiro que estava por chegar. Passados os 70 anos do cativeiro na Babilônia, os que voltaram depois para Jerusalém não eram mais os que foram para lá deportados, e sim os filhos e netos deles. Daí o profeta afirmar que a nova aliança acontecerá “depois desses dias”, porque Javeh estava ciente de que, com aquela geração, não havia mais outro recurso, senão o castigo.

Sob o aspecto cronológico, a palavra de Jeremias se referia ao cativeiro babilônico e ao retorno do povo posteriormente, para a reconstrução de Jerusalém. Contudo, sob o aspecto transistórico, a profecia se aplica à nova aliança proposta pelo Messias, cinco séculos e meio mais tarde. Essa nova promessa se concretizou com a vinda de Jesus, que veio atualizar e cumprir de forma perfeita a lei de Moisés. Então, a nova lei anunciada por Cristo já não seria escrita em lápides, como a lei mosaica, mas no coração e nas entranhas dos crentes. Só que os judeus não quiseram ouvi-lo e nem aceitaram a inscrição dela nas suas entranhas, por isso a nova aliança foi levada aos gentios, a todos os povos da terra, chegando até nós. A nova lei não faz mais distinção de raças nem de idiomas, mas congrega todos os homens de boa vontade. E para que venha a ser reconhecida e praticada por todos, ela não está escrita em um determinado idioma, mas no idioma universal do amor. Pelo batismo, a nova lei é impressa no nosso coração e assim, continua o profeta no vers. 34, não será mais necessário ensinar ao próximo, ao irmão: aqui está Deus, porque “todos me reconhecerão, do menor ao maior deles, diz o Senhor.” Essa foi a finalidade primordial da missão salvadora de Cristo: inscrever o novo mandamento no coração dos que crerem nele, renovando a promessa divina da salvação universal.

Na segunda leitura, extraída da Carta aos Hebreus, lemos: “Cristo, nos dias de sua vida terrestre, dirigiu preces e súplicas, com forte clamor e lágrimas, àquele que era capaz de salvá-lo da morte.” (Heb 5, 7) Esta mesma mensagem está contida no evangelho de João (12, 27), quando Cristo comenta com os discípulos: “Agora sinto-me angustiado. E que direi? `Pai, livra-me desta hora!'? Mas foi precisamente para esta hora que eu vim.” E nós todos conhecemos a célebre oração de Cristo no Getsêmani: 'Pai afasta de mim este cálice, porém, não se faça a minha vontade, e sim a Tua.' E complementando este pensamento, retornamos ao texto da Carta aos Hebreus (5, 8): “Mesmo sendo Filho, aprendeu o que significa a obediência a Deus por aquilo que ele sofreu.” Nesses trechos, percebemos a integração do pensamento do autor da carta aos Hebreus (não é o apóstolo Paulo, como tempos atrás se pensava) com o testemunho de João, acerca dos sofrimentos de Cristo no período que antecedeu a sua paixão. Essas leituras, selecionadas para o último domingo da quaresma, quando se aproximam as comemorações da paixão, morte e ressurreição de Cristo, servem também como reforço teológico para que não caiamos nos mal entendidos das antigas heresias, como por exemplo, os gnósticos que afirmavam que Cristo, sendo Deus, não poderia sofrer e assim a crucificação de Cristo teria sido uma espécie de encenação, pois Ele não estaria sofrendo realmente. Ora, meus amigos, o evangelista João faz questão de expor um longo diálogo de Cristo explicando aos seus discípulos o que iria ocorrer com Ele e ainda que tipo de morte Ele teria de padecer (Jo 12, 23-27), exatamente para que ninguém viesse a ter dúvidas de que o padecimento de Cristo, além de ter sido real, foi ainda mais agravado porque Ele, sendo Deus, sabia antecipadamente de tudo pelo que ia passar.

Na leitura do evangelho de João, há referência a alguns gregos, que queriam conhecer Jesus. Com certeza, eles eram pessoas de boa fé, que tinham ouvido falar nos feitos miraculosos de Jesus e demonstravam interesse por sua doutrina. É o que lemos em Jo 12, 20-21: “Havia alguns gregos entre os que tinham subido a Jerusalém, para adorar durante a festa. Aproximaram-se de Filipe, que era de Betsaida da Galiléia, e disseram: 'Senhor, gostaríamos de ver Jesus.'” Tendo subido a Jerusalém naquele ano, para a festa da Páscoa, que seria a sua última, Jesus já era bastante conhecido pelas histórias que circulavam a respeito dele e muitas pessoas tinham interesse em conhecê-lo, o que causava grande incômodo e desespero para os chefes dos fariseus, que não podiam impedir isso. A fama que Jesus alcançara colocava em risco o poder e a autoridade deles, como mestres e líderes religiosos, levando-os a convocarem às pressas uma reunião com o objetivo de deliberarem o que fazer diante disso.

Certamente faz referência a isso a expressão contida no texto de João (12, 31), onde lemos uma frase bem enigmática, que está assim traduzida: “agora o chefe deste mundo vai ser expulso”. O 'chefe' deste mundo? Quem seria este? Se observarmos o texto grego original de João, lá consta o seguinte: 'ó arkhon tou kosmos', onde arkhon significava, para os gregos, o arconte, ou seja, um magistrado, um tirano, um déspota. Provavelmente, João queria se referir aos chefes religiosos do povo, que tramavam a morte de Jesus na ocasião. Jesus sabia das maquinações que eram tramadas contra ele exatamente por aqueles a quem competia mostrar ao povo o caminho da verdadeira fé no Deus da promessa, no entanto, utilizavam esse poder em seu próprio proveito. E prossegue no vers. 32: “e Eu, quando for elevado da terra, atrairei todos a Mim.” João conclui: ele estava se referindo ao modo como deveria morrer. E eu penso que podemos concluir mais além: literalmente, ele estava profetizando que a Sua cruz passaria a ser o símbolo maior da nova lei que seria impressa nos corações dos fiéis e que a Sua cruz estaria presente em todos os cantos do mundo.

Prezados leitores, no próximo domingo, iniciaremos a semana santa. As leituras deste domingo nos colocam no limiar dessas singulares comemorações que, embora celebradas todos os anos, nunca são repetidas. Ou pelo menos, nós não podemos nunca pensar que se trata de mera repetição. A mensagem de Cristo renova, a cada vez, a promessa divina feita no passado aos patriarcas realizada plenamente por Ele e a cada vez nos desafia, como Seus verdadeiros seguidores, a imitá-Lo na fidelidade e na obediência ao plano de Deus para cada um de nós. Na celebração das festas pascais, que se avizinham, aproveitemos para reavivar nos nossos corações a promessa que Cristo veio escrever no mundo com a sua Cruz e que foi impressa em cada um de nós através do nosso batismo.

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domingo, 15 de março de 2015

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 4º DOMINGO DA QUARESMA - O UNGIDO, O MESSIAS - 15.03.2015

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO DA QUARESMA – O UNGIDO, O MESSIAS – 15.03.2015

Caros Confrades,

A liturgia do 4º domingo da quaresma possui um tema comum que aparece nas três leituras, que é a figura do ungido. Em cada uma das leituras, o vocábulo é diferente, mas o significado comum dentre eles é o mesmo. Na primeira leitura, aparece o personagem Ciro, rei dos Persas, a quem Isaías (44, 29) chama de ungido; na carta de Paulo aos Efésios, por diversas vezes, é citado o nome de Cristo; no evangelho de João, no seu diálogo com Nicodemos, Jesus relembra a figura salvadora da serpente elevada na vara, como preconização do Messias que salva pela Sua cruz. É curioso observarmos que o vocábulo Messias (em hebraico mashiach) foi traduzido na língua grega por kristós, ambos com o significado de consagrado, ungido. Ciro, o libertador do povo hebreu cativo na Babilônia, foi ungido por Javeh para derrotar o inimigo escravizador; Cristo, o ungido pelo Pai, nos salva do pecado em um ritual semelhante ao que Moisés usou no deserto para salvar o povo da serpente venenosa. O Antigo e o Novo Testamento se entrelaçam de episódios e sinais.

Na primeira leitura retirada do livro de Paralipômenos ou Crônicas, o escritor sagrado destaca a infelidelidade do povo a Javeh, substituindo-O pelos ídolos das nações pagãs e profanando o sagrado templo, por isso, obteve como consequência a morte e a escravidão, assim como a destruição de Jerusalém. Foi o tempo do cativeiro da Babilônia. Nesse contexto, Javeh enviou o profeta Isaías, para catequizar o povo e fazê-los compreender que o castigo era resultado da sua infidelidade, mas que a misericórdia do Senhor estava sempre pronta a perdoar, esquecer tudo e devolver a liberdade deles. Por fim, Isaias mostrou ao povo que Javeh se utilizou da força do exército de Ciro, rei dos Persas, para vencer o dominador babilônico e restituir-lhes a liberdade. É o que se contém em Isaías 44, 29: “ASSIM diz o SENHOR ao seu ungido, a Ciro, a quem tomo pela mão direita, para abater as nações diante de sua face, e descingir os lombos dos reis, para abrir diante dele as portas ”. E na leitura deste domingo, nas Crônicas, lemos que o rei Ciro baixou um Edito que ele mandou publicar de viva voz e afixar em todo o reino, confirmando a promessa de Javeh: 'Assim fala Ciro, rei da Pérsia: O Senhor, Deus do céu, deu-me todos os reinos da terra, e encarregou-me de lhe construir um templo em Jerusalém, que está no país de Judá. Quem dentre vós todos, pertence ao seu povo? Que o Senhor, seu Deus, esteja com ele, e que se ponha a caminho'. (II Cro 36, 23) Foi a concretização da tão sonhada liberdade do povo hebreu. O próprio Ciro não precisou fazer nenhum esforço para a reconstrução de Jerusalém, porque disso os hebreus se encarregaram e puderam retornar ao seu país, após setenta anos de escravidão. Na verdade, se fizermos as contas, os que retornaram não foram os mesmos que partiram, mas a segunda ou a terceira geração deles, se considerarmos o espaço de vinte anos entre uma geração e outra. Aqueles que violaram o templo e praticaram infidelidades e foram por isso submetidos ao cativeiro já não mais existiam no momento da libertação.

Na segunda leitura, de Paulo aos Efésios, ele destaca a figura central de Cristo (o ungido do Pai) para nos libertar de outra escravidão, não aquela do tipo político, como os hebreus do passado, mas a escravidão do espírito, através do pecado, quando afirma: “Por causa do grande amor com que nos amou, quando estávamos mortos por causa das nossas faltas, ele nos deu a vida com Cristo. É por graça que vós sois salvos! ” (Ef 2, 4) Neste outro momento da história do povo de Deus, a libertação chegou novamente ao povo de Deus de forma plena na pessoa de Cristo, em cuja ressurreição, o Pai nos ressuscitou a todos e nos garantiu um assento no céu. Nesta leitura, temos também uma afirmação paulina, que é motivo de divergência entre os teólogos, em relação àquilo que é necessário para a salvação. Lutero divergiu da doutrina eclesiástica ao afirmar que a salvação advém pela fé, ela basta. Mas a teologia ensina que somente a fé não é suficiente, mas é necessário que a fé se manifeste através de obras de caridade. No cap 2, vers 8, Paulo diz que “é pela graça que sois salvos, mediante a fé. E isso não vem de vós; é dom de Deus! Não vem das obras, para que ninguém se orgulhe. ” Até aqui, tem-se a impressão de que Lutero estava com a razão. Porém, no versículo seguinte, Paulo continua e completa: “nós fomos criados em Jesus Cristo para as obras boas, que Deus preparou de antemão para que nós as praticássemos.” Ora, meus amigos, o que Paulo está dizendo? Que a fé é uma graça que Deus nos dá e, com ela, faremos boas obras e assim teremos acesso à salvação, ou seja, tudo se inicia com a fé, porém essa fé precisa ser operante. De acordo com Paulo, sem a graça que Deus nos dá, não teríamos a fé e sem a fé não teríamos a salvação. Eu entendo que, quando ele falou antes que a salvação não vem das obras, para que ninguém se orgulhe, referia-se às obras puramente humanas, que não são motivadas pela fé. Essas não valem, mas as obras humanas banhadas pela graça que Deus nos dá, essas frutificam. Então, podemos concluir que são igualmente inúteis para a salvação tanto as obras puramente humanas, aquelas que não são inspiradas pela graça, quanto a fé inoperante, aquela que fica retida no interior do crente e não se concretiza em boas obras. Portanto, é pela graça de Deus que temos a salvação, mas esse prêmio somente nos é dado se, pela fé, realizarmos boas obras, aquelas que Deus preparou de antemão para que nós as praticássemos.

Na leitura do evangelho de João, lemos aquele conhecido diálogo de Cristo com Nicodemos. Este, assim como José de Arimatéia, eram fariseus que reconheciam em Cristo o Messias, mas não assumiam isso em público, com medo da represália dos membros do seu grupo. Tanto que Nicodemos só se encontrava com Cristo em ambiente reservado, para conversar a sós. No início desse diálogo, que não aparece na leitura de hoje, Jesus havia dito a Nicodemos que, para conhecer o reino de Deus, é necessário nascer de novo (Jo 3, 3), e Nicodemos ficou todo embaraçado com essa afirmação, pois ele interpretou isso literalmente e sabia ser impossível a alguém retornar para o ventre da mãe depois de adulto. Então Jesus Cristo foi pacientemente explicar a ele a diferença entre nascer pela carne e nascer pelo Espírito. Foi quando Jesus lembrou a ele, que era um mestre da lei, o episódio da serpente elevada numa vara por Moisés, no deserto, que curava aqueles que olhavam para ela com fé. “Do mesmo modo como Moisés levantou a serpente no deserto, assim é necessário que o Filho do Homem seja levantado, para que todos os que nele crerem tenham a vida eterna.

Aqui estava exemplificado o significado de nascer de novo, nascer pelo Espírito, isto é, crer que Jesus é Messias enviado do Pai: “Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho unigênito, para que não morra todo o que nele crer, mas tenha a vida eterna. ” Os hebreus do tempo de Moisés, que eram picados pela serpente, livravam-se da morte corporal olhando para a serpente-símbolo da salvação. Pois bem, o Messias será elevado do solo assim como a serpente, como novo símbolo da salvação, a fé nessa mensagem é o renascer. O evangelista não esclarece o que Nicodemos fez depois que ouviu isso. Mas o fato é que Cristo estava, com isso, mandando um recado aos fariseus através de Nicodemos. Vejam, eu vou ser elevado do solo assim como Moisés fez com a serpente no deserto, para salvação do povo. (Jo 3, 16) Quem crer, será salvo, “mas quem não crê, já está condenado, porque não acreditou no nome do Filho unigênito.” (Jo 3, 18) E a condenação se dá porque preferiram acreditar nas trevas do que enxergar a luz. Nós não temos condição de saber o que ocorreu com Nicodemos, se finalmente ele conseguiu renascer pelo Espírito. Eu acredito que ele tenha compreendido isso, sobretudo depois dos eventos que sucederam à morte e ressurreição de Cristo, fatos que ele deve ter testemunhado. Mas nós, nos dias de hoje, não podemos ter essa dúvida que passou pela cabeça de Nicodemos, porque para nós os fatos já estão bastante esclarecidos, e não podemos continuar compreendendo a mensagem de Cristo literalmente, de modo fundamentalista, depois de tantos ensinamentos que a teologia, em todos esses anos, vem desenvolvendo. Em Nicodemos, essa atitude ambígua até podia ser justificada, mas quanto a nós, não tem desculpa.

Que Deus nos ilumine, nesse tempo quaresmal, para termos a mente aberta à orientação da Sua divina graça.

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domingo, 8 de março de 2015

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 3º DOMINGO DA QUARESMA – CASA DE ORAÇÃO – 08.03.2015

Caros Confrades,

As leituras da liturgia do 3º da quaresma trazem para a nossa reflexão alguns aspectos interessantes relativos ao cumprimento da lei de Moisés, sobretudo a crítica de Jesus à maneira segundo a qual os fariseus a cumpriam, isto é, absolutamente literal e sem qualquer adesão interior. Aborda também uma questão muito sensível no relacionamento do catolicismo com outras religiões, aquele que diz respeito ao preceito de guardar o sábado (sétimo dia). Ao final, Jesus dá a chave para a compreensão dessas questões polêmicas: a casa do meu Pai é casa de oração.

Temos na primeira leitura, do livro do Êxodo (20, 1-17) a declaração divina dos mandamentos dados a Moisés no monte Sinai. São preceitos fortes: “Eu sou o Senhor teu Deus que te tirou do Egito, da casa da escravidão. Não terás outros deuses além de mim. Não farás para ti imagem esculpida nem figura alguma”, mas também generosos: “uso da misericórdia por mil gerações com aqueles que me amam e guardam os meus mandamentos.” O curioso na leitura desse texto é porque os hebreus se fixaram muito mais na primeira parte (da exigência, do castigo) do que na segunda parte (da misericórdia). Cumprir os mandamentos, para eles, era seguir à risca o que estava escrito, cumprindo externamente aqueles preceitos, como se isso bastasse e como se Javeh não fosse capaz de saber o que se passava no interior dos seus corações. Não terás outros deuses, não farás imagens esculpidas de mim, não pronunciarás em vão o meu nome, descansarás no sétimo dia (sábado), não matarás, não cometerá adultério, não desejarás os bens do outro... vemos aqui um misto de regras de caráter religioso com regras de comportamento social, como é praxe encontrar-se em todas as culturas antigas, quando ainda não havia a separação entre direito e religião. Os dez mandamentos são assim um compênio simplificado de normas religiosas, morais e sociais, com as quais os líderes dos hebreus exerciam o poder e o controle social do povo no deserto.

De todos esses preceitos, comentarei apenas dois: não farás imagens esculpidas e descansarás no sétimo dia, por serem dois pontos que os não católicos alegam contra o catolicismo, que não segue a Biblia. Todos sabem que, desde tempos remotos, os templos cristãos usavam figuras e imagens esculpidas. Em tese, essa atitude contraria a determinação divina. Porém, basta analisarmos o texto de forma contextualizada, para percebermos que a proibição de esculpir imagens está associada à adoração delas. Ou seja, se observarmos bem, o que Javeh pretende evitar não é o ato de esculpir imagens de figura alguma (vers. 4), mas no ato de prostrar-se e adorar esses 'deuses' (vers. 5). Trata-se de um mandamento só: não esculpir imagens de figuras (deuses, imagens =eídolon, em grego), para que o povo não venha a praticar a 'eidolon-latreia', ou seja, a idolatria ou a adoração dos ídolos. O ciúme de Javeh se foca na eventualidade de ser 'substituído' por figuras criadas pelos homens e não na proibição das esculturas em si mesmas. Nós sabemos, pelos relatos bíblicos, que por diversas vezes, isso aconteceu. Inclusive, quando Moisés desceu do Sinai para anunciar a lei, encontrou os hebreus cultuando um bezerro de ouro. Portanto, numa visão teleológica, a questão principal é a proibição da idolatria. A proibição das esculturas seria apenas uma espécie de precaução, para que as pessoas não sejam “tentadas” a colocar a sua fé nas imagens, e não no Criador.

Ora, nós todos sabemos que as imagens sacras adotadas no catolicismo não têm essa mesma característica dos 'ídolos' do antigo testamento, porque não são elas objeto de adoração, elas apenas evocam, para nosso exemplo e edificação, cristãos que podem ser considerados como modelos a serem seguidos, pelas suas reconhecidas virtudes e piedade, e que por isso foram canonizados. As imagens religiosas não são objetos de culto, embora estejam presentes no recinto do culto. Não se pode negar que uma significativa parcela dos fiéis, de instrução religiosa mais elementar, de fato adoram as imagens, mas essa não é a postura teológica doutrinária. Trata-se de um equívoco da catequese tradicional, que se incrustou na mentalidade religiosa do nosso povo e vai demorar bastante tempo para se ver este problema resolvido. Contudo, isso não significa que o catolicismo desobedece a Bíblia. Afirmar isso significa manter uma compreensão puramente literal e formalista da Escritura, a qual não é recomendada por nenhum teólogo consciente do nosso tempo, nem mesmo pelos não católicos.

O outro ponto polêmico entre o catolicismo e outras religiões é o descanso sabático. Afirma-se que o catolicismo desobedece a Bíblia porque ali está dito que “o sétimo dia é dedicado ao Senhor teu Deus”. De início, quero dizer que considero coerente a obediência dessa regra pela religião judaica atual, porque eles não reconhecem nem aceitam o Novo Testamento. Mas para as religiões cristãs, ao meu ver, ao reconhecerem o Evangelho de Cristo, não vale essa justificativa, porque o Antigo Testamento deve ser compreendido na perspectiva do Novo Testamento, seguindo o ensinamento de Cristo, que não veio abolir a lei, mas cumpri-la com perfeição (Mt 5, 17). No princípio do cristianismo, os cristãos e judeus convertidos guardavam o dia do sábado (shabat) como o dia do descanso, tal como está posto na lei. Todavia, com o avanço do entendimento da fé nas primeiras comunidades, com o surgimento das primeiras propostas doutrinárias, os cristãos foram percebendo que o melhor cumprimento da lei do descanso, instituída por Deus, devia ser compreendido na perspectiva daquilo que Jesus falou aos judeus, conforme está escrito no evangelho de João (2, 19), lido hoje: “'Destruí este Templo, e em três dias o levantarei.'” É o próprio João quem interpreta essa metáfora, logo depois, no vers. 21: “Jesus estava falando do Templo do seu corpo.” Meus amigos, o evangelho de João foi escrito pouco antes da morte dele, que se deu no ano 100 d.C., isto é, só muitos anos depois os líderes cristãos compreenderam essa analogia. Nos outros evangelhos em que essa narrativa aparece (Mt 21,12; Mc 11,15; Lc 19,45), evangelhos escritos antes do evangelho de João, não consta esse detalhe. O que se conclui dessa análise é que, com o passar do tempo, os cristãos perceberam que o cumprimento mais perfeito da Lei não devia ficar vinculado ao templo de pedra dos judeus, mas ao templo corpóreo de Cristo ressuscitado.

A partir daí, foi amadurecendo a ideia de que o dia do descanso (sétimo dia) não devia mais ficar vinculado à lei mosaica (shabat), mas ao novo sentido dado a esta pela ressurreição de Cristo, ocorrendo então a troca do sábado pelo domingo como o dia do preceito divino. Esta prática foi consolidada no Concílio de Laodicéia (364 d.C.), que oficializou a mudança. Alguns estudiosos não católicos afirmam que a mudança foi feita por ordem do Papa e que o Papa não tem mais autoridade do que a Bíblia. Quem afirma isso, não sabe o que significa um Concílio nem consegue entender que o próprio Cristo deixou uma velada recomendação neste sentido, conforme explicado acima. Pretender justificar a guarda do sábado, porque assim está na lei de Moisés, equivale a não saber interpretar a escritura no seu dinamismo histórico, é o mesmo que desconhecer todo o esforço de Cristo, no sentido da correta compreensão da vontade do Pai. Quando Jesus expulsou os vendedores do templo, alegando que eles haviam transformado a casa do Pai numa “spelunca latronum” (covil de ladrões), Ele estava dando um recado indireto aos judeus acerca do modo de cumprir a lei. Aqueles vendedores eram, na verdade, facilitadores do cumprimento da lei de Moisés, a qual determinava as oferendas que os judeus deviam fazer no templo, nas festas rituais: os ricos ofereciam bois, a classe média oferecia ovelhas, os pobres ofereciam pombas. Para que as pessoas (que vinham de longe, muitas vezes) não tivessem que viajar tangendo seus animais pelo caminho, os comerciantes vendiam na porta do templo (ou até dentro do recinto). Aquilo não era um “mercado” comum, era uma prática religiosa para favorecer o cumprimento do preceito. Ao expulsá-los, Jesus estava querendo dizer: meu Pai não precisa de bois, nem de ovelhas, nem de pombas, Ele quer os vossos corações. Jesus estava descumprindo a lei de Moisés? Literalmente falando, sim. Mas no sentido do cumprimento mais perfeito do preceito, ele estava dando a alternativa mais correta para agradar a Deus.

Estejamos atentos para compreender a palavra de Deus em plenitude, não só na sua literalidade.

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domingo, 1 de março de 2015

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 2º DOMINGO DA QUARESMA - A OBEDIÊNCIA E A FÉ - 01.03.2015

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 2º DOMINGO DA QUARESMA – A OBEDIÊNCIA E A FÉ – 01.03.2015

Caros Confrades,

As leituras deste 2º domingo da quaresma trazem para a nossa reflexão o tema da obediência associada com a fé que dela provém. Javeh pediu a Abraão que sacrificasse seu próprio filho, fato que não se concretizou. Porém, tempos depois, o Pai entregou o seu próprio Filho para ser sacrificado, em razão da sua fidelidade para com a promessa, sendo a figura de Isaac uma preconização do sacrifício de Cristo. Evidentemente, Deus não devia fidelidade a Abraão, mas o cumprimento de sua promessa era um compromisso com Ele próprio, que em nenhuma hipótese poderia deixar de ser cumprido.

Na primeira leitura (Gn 22), temos o clássico exemplo de Abraão, que foi solicitado a imolar seu único filho, a maior prova de fé contida no Antigo Testamento, mercê da qual Javeh selou com ele a sagrada aliança e prometeu-lhe uma incontável descendência. Trata-se de um episódio marcante no contexto bíblico, para ressaltar a obediência que provém da fé. A confiança de Abraão em Javeh era tamanha, que não hesitou em seguir a ordem de imolação. Posteriormente, Jesus vai dizer, no episódio do centurião que disse “senhor, eu não sou digno de ires à minha casa, basta dizeres uma palavra para curar o meu servo”, que nunca tinha visto um exemplo de tanta fé, desde Abraão.

Fazendo uma análise psicológica dessa narrativa, à luz dos conceitos modernos, vemos em Javeh a imagem daquele pai terrível, autoritário, austero e até sádico, tendo pedido a Abraão que lhe sacrificasse o filho único, sabendo de antemão que não iria permitir a concretização do sacrifício. Esse tipo de comportamento paterno era bastante comum no modelo familiar tradicional, em que o pai tinha uma autoridade soberana e inalcançável, a quem tanto a mãe da família como os filhos e filhas deviam obediência cega e indiscutível. Nos filmes e novelas de época, vemos exemplos de pais despóticos, que eram muito mais temidos do que amados. Talvez, nunca amados. Felizmente, no moderno conceito de família, essa figura paterna distante e autoritária vem sendo substituída pela figura do pai afável, que prefere dialogar e não impor sua vontade, tornando-se parceiro e cúmplice dos filhos e filhas, atuando em conjunto com a esposa, tornando-se um ponto de apoio e de referência para a prole. Percebemos, então, que essa figura do Javeh impondo a Abraão uma dolorosa e angustiante decisão e mantendo-o naquela expectativa por longo tempo corresponde a um estereótipo de pai que era padrão nas sociedades mais antigas, quando ainda não eram conhecidas as teorias psicológicas e pedagógicas desenvolvidas nos tempos modernos. Cristo veio ensinar que a verdadeira imagem do Pai é a que ele mostrou, não a que a tradição apresentava.

No sermão da missa deste domingo, o Monsenhor Manfredo Ramos fez um comentário, que eu achei bastante curioso. Citando exegetas, ele lembrou que esse ritual de imolação do filho primogênito era praxe entre os antigos povos pagãos, como forma de agradar os seus deuses, oferecendo sacrifícios humanos. Então, no episódio de Javeh que, inicialmente teria solicitado a imolação de Isaac e depois voltou atrás, o escritor sagrado estaria chamando a atenção para o fato de que Javeh é diferente dos deuses dos povos pagãos. Ademais, esses estudiosos levantam a hipótese de que nem teria sido necessário que Javeh solicitasse o sacrifício do filho a Abraão, mas que este estava seguindo o ritual que era costumeiro entre os povos daquele tempo. Então, Javeh interferiu, para demonstrar que Ele não era igual aos deuses pagãos e ainda para ensinar ao povo hebreu que Ele não queria nem aceitava sacrifícios humanos. Daí eu fiquei imaginando que esse episódio pode ser uma espécie de “legenda” bíblica, um gênero literário que tem por objetivo dar um ensinamento através de uma história envolvente e emotiva. Semelhante ao caso de Jó, um personagem cuja existência é duvidosa. Assim como o episódio do assassinato de Abel por Caim. A palavra “legenda” é um termo latino que significa “um texto que deve ser lido” por conter um ensinamento importante, mas não necessariamente que o episódio narrado tenha de fato ocorrido. Neste pequeno episódio, então, temos várias lições que eram transmitidas ao povo por esse meio pedagógico: a fé inquebrantável de Abraão, a sua obediência confiante, o fato de que Javeh não quer sacrifícios humanos, a fidelidade de Javeh ao cumprimento de sua promessa, a imagem de Abraão como um antepassado digno de ser admirado e imitado por seus descendentes em todos os tempos. Desse modo, tenha ocorrido ou não o impactante episódio, as lições a ele associadas serão igualmente válidas e servem de permanente exemplo.

Na segunda leitura, Paulo lembra aos Romanos (Rm 8, 31) que Javeh poupou Isaac, porém o Pai não poupou seu Filho, mas o entregou para ser sacrificado por todos nós. Por contraditório que possa parecer, as duas atitudes opostas têm o mesmo objetivo. Explico. Ao recusar o sacrifício de Isaac, Javeh estava dando cumprimento à promessa feita a Abraão; ao entregar seu próprio Filho para ser sacrificado, o Pai estava também fazendo o cumprimento final da mesma promessa, porém em escalas diferentes. O sacrifício de Isaac era desnecessário e não traria uma imagem de Javeh diferente dos deuses pagãos, pois O assemelharia a estes. O sacrifício de Cristo, além de necessário, trouxe o testemunho da fidelidade à toda prova e do amor desmedido do Pai para com o povo da promessa, através de um ato extremado e de incomparável significação. A morte de Isaac seria o fim, mas a morte de Cristo foi apenas um trânsito para a sua ressurreição, a abertura do portão da glória para todos os descendentes de Abraão.

Nesse contexto, a liturgia nos traz, na leitura do evangelho de Marcos (9, 2), a narração da transfiguração de Jesus diante de Pedro, Tiago e João. Neste eloquente episódio, Jesus deu uma das mais contundentes demonstrações de sua divindade, ainda que somente a três discípulos privilegiados. Podemos vislumbrar nesta cena paradisíaca um reforço pedagógico de Jesus, para que os discípulos, principalmente Pedro, não perdessem a esperança quando Ele fosse visto submetendo-se ao sacrifício extremo. Na hora em que ele fosse preso e humilhado e parecesse que tudo estaria desmoronando, a lembrança da transfiguração gloriosa deveria fazer o contraponto necessário para manter viva a certeza da ressurreição, que viria depois. E no final do espetáculo miraculoso, veio a confirmação dessa mensagem, quando “da nuvem saiu uma voz: Este é o meu Filho amado. Escutai o que ele diz!'” Jesus proibiu aos três de falarem aquilo para alguém, até que ele ressuscitasse dos mortos. E os discípulos ficaram matutando “o que significa ressuscitar dos mortos”, porque naquele momento, eles não tinham a menor ideia do que iria acontecer e somente muito tempo depois compreenderam.

Reflitamos agora sobre os outros dois personagens com os quais Jesus dialogava: Moisés e Elias. Moisés representa a confirmação da aliança, no Sinai, através da outorga da Lei. Ele foi também o primeiro profeta, no sentido literal do vocábulo: aquele que fala em nome de Javeh. Elias representa os profetas posteriores, que foram muitos. Eu ficava pensando: por que Elias? Por que não Isaías, que Jesus cita muito mais vezes. Até que eu me lembrei de um fato singular. Elias foi o protagonista da ressurreição do filho único da viúva, que o hospedava em Sarepta. Com uma ardente prece de fé a Javeh, Elias deitou-se sobre a criança morta e esta voltou a viver. Com a transfiguração, Jesus estava também demonstrando a forma que ele passaria a ter após a ressurreição. Daí que a figura de Elias evocava um episódio de ressurreição, grandiosa resposta que ele recebera de Javeh, após uma também extraordinária demonstração de fé.

A figura do Cristo transfigurado, mostrando a ligação entre ele e a mais antiga tradição da lei dos profetas, vem confirmar a unidade da Escritura, integrando o antigo e o novo testamentos, uma união da antiga com a nova aliança. Naquela ocasião, Jesus se transfigurou apenas para três testemunhas. Mas agora, Ele se mostra a todos nós cristãos, iluminando a nossa quaresma e nos ensinando que tempo de penitência não é tempo de tristeza, mas de muita esperança.

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