segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 2º DOMINGO DA QUARESMA - A OBEDIÊNCIA DE ABRAÃO - 25.02.2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 2º DOMINGO DA QUARESMA – A OBEDIÊNCIA DE ABRAÃO – 25.02.2018

Caros Confrades,

As leituras deste 2º domingo da quaresma trazem para a nossa reflexão o tema da obediência de Abraão associada com a fé que dela provém, tida como modelo para todos os seus descendentes. Javeh pediu a Abraão que sacrificasse seu próprio filho, fato que não se concretizou. Porém, tempos depois, o Pai entregou o seu próprio Filho para ser sacrificado, em razão da sua fidelidade para com a promessa, sendo a figura de Isaac uma preconização do sacrifício de Cristo. Evidentemente, Deus não devia fidelidade a Abraão, mas o cumprimento de sua promessa era um compromisso com Ele próprio, que em nenhuma hipótese poderia deixar de ser cumprido.

Na primeira leitura (Gn 22), temos o clássico exemplo de Abraão, que foi solicitado a imolar seu único filho, a maior prova de fé contida no Antigo Testamento, mercê da qual Javeh selou com ele a sagrada aliança e prometeu-lhe uma incontável descendência. Trata-se de um episódio marcante no contexto bíblico, para ressaltar a obediência que provém da fé. A confiança de Abraão em Javeh era tamanha, que não hesitou em seguir a ordem de imolação. Posteriormente, Jesus vai dizer, no episódio do centurião que disse “senhor, eu não sou digno de ires à minha casa, basta dizeres uma palavra para curar o meu servo”, que nunca tinha visto um exemplo de tanta fé, desde Abraão.

De acordo com leituras que tenho feito alhures, há uma linha de comentários exegéticos que interpreta o clássico texto do Gênesis de um modo não convencional. Afirmam que esse ritual de imolação do filho primogênito era uma praxe entre os antigos povos pagãos, como forma de agradar os seus deuses, oferecendo sacrifícios humanos. Então, no episódio de Javeh que, inicialmente teria solicitado a imolação de Isaac e depois voltou atrás, o escritor sagrado estaria chamando a atenção para o fato de que Javeh é diferente dos deuses dos povos pagãos. Ademais, esses estudiosos levantam a hipótese de que nem teria sido necessário que Javeh solicitasse o sacrifício do filho a Abraão, mas que este já iria fazer isso mesmo, seguindo o ritual que era costumeiro entre os povos daquele tempo. Então, Javeh interferiu, para demonstrar que Ele não era igual aos deuses pagãos e ainda para ensinar ao povo hebreu que Ele não queria nem aceitava sacrifícios humanos. Daí eu fiquei imaginando que esse episódio pode ser uma espécie de “legenda” bíblica, um gênero literário que tem por objetivo dar um ensinamento através de uma história envolvente e emotiva. Semelhante ao caso de Jó, um personagem cuja existência é duvidosa. Assim como o episódio do assassinato de Abel por Caim. A palavra “legenda” é um termo latino que significa “um texto que deve ser lido” por conter um ensinamento importante, mas não necessariamente que o episódio narrado tenha de fato ocorrido.

Fazendo uma análise psicológica dessa narrativa, à luz dos conceitos modernos, vemos em Javeh a imagem daquele pai terrível, autoritário, austero e até sádico, tendo pedido a Abraão que lhe sacrificasse o filho único, sabendo de antemão que não iria permitir a concretização do sacrifício. Esse tipo de comportamento paterno era bastante comum no modelo familiar tradicional, em que o pai tinha uma autoridade soberana e inalcançável, a quem tanto a mãe da família como os filhos e filhas deviam obediência cega e indiscutível, resquício tardio dessas antigas tradições dos povos orientais. Nos filmes e novelas de época, vemos exemplos de pais despóticos, que eram muito mais temidos do que amados. Talvez, nunca amados. Felizmente, no moderno conceito de família, essa figura paterna distante e autoritária vem sendo substituída pela figura do pai afável, que prefere dialogar e não impor sua vontade, tornando-se parceiro e cúmplice dos filhos e filhas, atuando em conjunto com a esposa, tornando-se um ponto de apoio e de referência para a prole. Percebemos, então, que essa figura do Javeh impondo a Abraão uma dolorosa e angustiante decisão e mantendo-o naquela expectativa por longo tempo corresponde a um estereótipo de pai que era padrão nas sociedades mais antigas, quando ainda não eram conhecidas as teorias psicológicas e pedagógicas desenvolvidas nos tempos modernos. Cristo veio ensinar que a verdadeira imagem do Pai é a que ele mostrou, não a que a tradição apresentava.

Neste pequeno episódio, então, temos várias lições que nos são transmitidas por essa narrativa pedagógica: 1. a fé inquebrantável de Abraão, a sua obediência confiante; 2. o fato de que Javeh não quer sacrifícios humanos; 3. a fidelidade de Javeh ao cumprimento de sua promessa; 4. a imagem de Abraão como um antepassado digno de ser admirado e imitado por seus descendentes em todos os tempos. Desse modo, tenha ocorrido ou não o impactante episódio, as lições a ele associadas serão igualmente válidas e servem de permanente exemplo.

Na segunda leitura, Paulo lembra aos Romanos (Rm 8, 31) que Javeh poupou Isaac, porém o Pai não poupou seu Filho, mas o entregou para ser sacrificado por todos nós. Por contraditório que possa parecer, as duas atitudes opostas têm o mesmo objetivo. Explico. Ao recusar o sacrifício de Isaac, Javeh estava dando cumprimento à promessa feita a Abraão; ao entregar seu próprio Filho para ser sacrificado, o Pai estava também fazendo o cumprimento final da mesma promessa, porém em escalas diferentes. O sacrifício de Isaac era desnecessário e não traria uma imagem de Javeh diferente dos deuses pagãos, pois O assemelharia a estes. O sacrifício de Cristo, além de necessário, trouxe o testemunho da fidelidade à toda prova e do amor desmedido do Pai para com o povo da promessa, através de um ato extremado e de incomparável significação. A morte de Isaac seria o fim, mas a morte de Cristo foi apenas um trânsito para a sua ressurreição, a abertura do portão da glória para todos os descendentes de Abraão.

Nesse contexto, a liturgia nos traz, na leitura do evangelho de Marcos (9, 2), a narração da transfiguração de Jesus diante de Pedro, Tiago e João. Neste eloquente episódio, Jesus deu uma das mais contundentes demonstrações de sua divindade, ainda que somente a três discípulos privilegiados. Podemos vislumbrar nesta cena paradisíaca um reforço pedagógico de Jesus, para que os discípulos, principalmente Pedro, não perdessem a esperança quando Ele fosse visto submetendo-se ao sacrifício extremo. Na hora em que ele fosse preso e humilhado e parecesse que tudo estaria desmoronando, a lembrança da transfiguração gloriosa deveria fazer o contraponto necessário para manter viva a certeza da ressurreição, que viria depois. E no final do espetáculo miraculoso, veio a confirmação dessa mensagem, quando “da nuvem saiu uma voz: Este é o meu Filho amado. Escutai o que ele diz!'” Jesus proibiu aos três de falarem aquilo para alguém, até que ele ressuscitasse dos mortos. E os discípulos ficaram matutando “o que significa ressuscitar dos mortos”, porque naquele momento, eles não tinham a menor ideia do que iria acontecer e somente muito tempo depois compreenderam.

Reflitamos agora sobre os outros dois personagens com os quais Jesus dialogava: Moisés e Elias. Moisés representa a confirmação da aliança, no Sinai, através da outorga da Lei. Ele foi também o primeiro profeta, no sentido literal do vocábulo: aquele que fala em nome de Javeh. Elias representa os profetas posteriores, que foram muitos. Eu ficava pensando: por que Elias? Por que não Isaías, que Jesus cita muito mais vezes. Até que eu me lembrei de um fato singular. Elias foi o protagonista da ressurreição do filho único da viúva, que o hospedava em Sarepta. Com uma ardente prece de fé a Javeh, Elias deitou-se sobre a criança morta e esta voltou a viver. Com a transfiguração, Jesus estava também demonstrando a forma que ele passaria a ter após a ressurreição. Daí que a figura de Elias evocava um episódio de ressurreição, grandiosa resposta que ele recebera de Javeh, após uma também extraordinária demonstração de fé.

A figura do Cristo transfigurado, mostrando a ligação entre ele e a mais antiga tradição da lei dos profetas, vem confirmar a unidade da Escritura, integrando o antigo e o novo testamentos, uma união da antiga com a nova aliança. Naquela ocasião, Jesus se transfigurou apenas para três testemunhas. Mas agora, Ele se mostra a todos nós cristãos, iluminando a nossa quaresma e nos ensinando que tempo de penitência não é tempo de tristeza, mas de muita esperança.

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segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 1º DOMINGO DA QUARESMA - 18.02.2018

COMENTÁRIO LITURGICO – 1º DOMINGO DA QUARESMA – O NÚMERO 40 – 18.02.2018

Caros Leitores,

A liturgia deste 1º domingo da quaresma destaca, no evangelho de Marcos, a simbologia do número 40, que ocorre algumas vezes nas Escrituras, associando o tempo em que Jesus jejuou, preparando-se para a sua missão evangelizadora ao tempo quaresmal. Na carta de Pedro, há outra menção ao símbolo quadragesimal com a analogia entre a arca de Noé e o batismo, enquanto instrumentos pelos quais Deus realiza a nossa salvação. Os escritores sagrados do Antigo Testamento gostam de fazer alusões numerológicas, o que denota ser uma característica da cultura hebraica. Nos casos citados acima, a simbologia do número 40 põe em tela os dias que Jesus passou no deserto a jejuar, enquanto se preparava para a sua missão, e a duração do dilúvio que, segundo a narrativa bíblica, também foi de 40 dias e 40 noites.

Etimologicamente, o nome 'quaresma' é proveniente do termo latino 'quadragesima', que significa o mesmo que a palavra portuguesa quadragésimo(a), numeral ordinal correspondente a 40. Portanto, a quaresma está também incluída na simbologia do 40. Dentro do cenário bíblico, o número 40 aparece sempre antes da ocorrência de algo grandioso. O povo de Deus perambulou 40 anos no deserto até chegar à terra prometida. Moisés passou 40 dias/noites no monte Sinal até receber de Deus as tábuas da lei. No dilúvio, choveu sem parar durante 40 dias, até chegar a bonança. Jonas concedeu aos ninivitas o tempo de 40 dias para se arrependerem e fazerem penitência. Jesus jejuou durante 40 dias no deserto. Após a ressurreição, Jesus ainda passou 40 dias aparecendo aos apóstolos, preparando a vinda do Espírito Santo, até ir definitivamente para o Pai. São várias as 'quaresmas' na Bíblia, no entanto, é mais comum a gente lembrar somente do tempo em que passamos preparando a Páscoa do Senhor a cada ano.

É neste contexto da simbologia do número 40 que devemos compreender o tempo de jejum de Jesus no deserto. Nem sempre os 40 dias indicados nas leituras bíblicas indicam 40 dias do calendário, porque aqui tratamos de uma mensagem simbólica, significando que o número 40 sempre indica que um grande acontecimento está sendo preparado. O tempo quaresmal nos prepara para a grande solenidade da Páscoa, a maior festa da fé cristã.

Na primeira leitura (Gn 9, 8), lemos o testemunho do povo hebreu acerca da aliança de Deus com a nova humanidade, representada por Noé e por aqueles que com ele foram salvos do dilúvio, destacando a promessa de que essa catástrofe nunca mais ocorreria. Esta mesma idéia foi repetida por Pedro na sua primeira carta (1Pd 3, 18), dirigida aos judeus da diáspora, na qual o Apóstolo lembra aos seus compatriotas o episódio do dilúvio e a figura de Noé, associando a imagem da arca salvadora com o sacramento do batismo da salvação. “Nesta arca, umas poucas pessoas - oito -foram salvas por meio da água. A arca corresponde ao batismo, que hoje é a vossa salvação.” Há uma nítida diferença de estilo entre a carta de Pedro e as cartas de Paulo, pois Pedro era pessoa de poucas letras e suas lições são mais simples, enquanto Paulo tinha formação na escola do judaísmo. Diz Pedro que Jesus foi pregar até para os “espíritos na prisão”, referindo-se àqueles que blasfemaram na época de Noé e por isso não entraram para a arca, perecendo no dilúvio. A prisão, neste caso, seria o mundo das profundezas, a região dos mortos, aonde Jesus teria ido após a sua ressurreição. De acordo com a tradição, nas profundezas (nos infernos) estariam as almas dos fiéis, aguardando a vinda do Salvador. Pois bem, mesmo sendo pessoas que haviam zombado de Noé e blasfemado contra Deus, ainda assim o batismo da salvação trazido por Cristo se destina também a estes.

A leitura do evangelho de de Marcos (1, 12-15), num texto muito sucinto, relata que, após ter sido batizado por João Batista, o Espírito conduziu Jesus ao deserto, onde ele jejuou durante 40 dias e ali foi tentado por Satanás. Essas tentações de Jesus nós devemos entender num sentido também alegórico, sem a presença daquela terrível imagem de Satanás, construída pelos artistas medievais. As tentações pelas quais Cristo passou diziam respeito ao embate que se transcorria no seu íntimo em relação às suas duas naturezas divina e humana. Com efeito, enquanto Filho de Deus, ele era “tentado” a resolver as dificuldades que iria enfrentar de uma forma miraculosa, mas ele deveria evitar isso, ele deveria se comportar como uma pessoa humana comum, ou seja, devia prevalecer a natureza humana. Portanto, essas “tentações” seriam esse conflito interior que ele sentia, na relação entre as naturezas divina e humana, fato que ele devia ter sempre em mente, para não se deixar desviar de sua missão.

Então, quais foram mesmo as grandes 'tentações' de Jesus? 1. Transforma essas pedras em pão... tentação do poder; 2. Eu te darei todos os reinos... tentação da riqueza; 3. Joga-te daqui para baixo... tentação do orgulho/vaidade. Meus amigos, Jesus Cristo tinha consciência da sua natureza divina e também tinha conhecimento de tudo o que ele iria enfrentar na sua missão de pregar a boa nova. Então, durante o jejum, ele fez uma preparação psicológica para viver como homem comum, pensar como homem comum, agir como homem comum, deixando em segundo plano a sua condição divina. Ele sabia que iria passar fome algumas vezes. Então, seria muito mais cômodo para ele fazer um 'milagrezinho' e transformar um pedaço de pedra ou de pau numa iguaria deliciosa. Mas para ser um homem comum, ele não podia jamais agir assim. Ou seja, ele só poderia utilizar o poder que a sua condição divina lhe dava quando fosse necessário, de acordo com o desígnio do Pai, para corroborar a sua pregação e demonstrar a glória do Pai. Esse foi o grande desafio para Jesus em todos os momentos, até aquele momento crucial em que ele pede para “deixar passar aquele cálice” sem que ele bebesse, no entanto, que prevalecesse a vontade do Pai.

Este mesmo raciocínio vale para as outras ocasiões tentadoras. Estando diante daquela multidão ávida por presenciar um feito extraordinário, Jesus não poderia 'cair na tentação' de demonstrar sua condição divina apenas para ser aplaudido por aquela gente, por vaidade ou orgulho próprio. Ao contrário, quando ele fazia algum milagre, usava uma forma bastante discreta e sempre destacando a fé do beneficiado. Os fariseus estavam o tempo todo a provocá-lo para ele provar que era filho de Deus. Jesus nunca fazia milagres nessas ocasiões, muito menos para provar nada perante os fariseus, porque estes deviam acreditar na sua mensagem pelo conteúdo dela, não por uma demonstração de poder.

Portanto, Jesus passou 40 dias a jejuar e meditar no deserto, antes de começar suas pregações, para se conscientizar sempre mais da necessidade que ele tinha de ser um homem igual aos outros, no jeito de morar, de vestir, de andar, de se alimentar, de sofrer, de se alegrar, de falar, de demonstrar seus sentimentos, etc, tudo como um ser humano comum. Ele sabia desde o princípio e mais do que qualquer pessoa o final que o aguardava, os padecimentos atrozes que teria de suportar, para cumprir a promessa do Pai, para a nossa salvação. No seu jejum no deserto, tudo isso deve ter passado pela mente de Jesus e para tudo isso ele estava se preparando, porque iria iniciar a sua atividade primordial, aquela para qual Ele tinha vindo ao mundo.

Meus amigos, se até Jesus que era divino e humano passou por “tentações”, quanto mais nós, que somos pessoas limitadas e imperfeitas. Com base nessas narrativas, a tradição ensinava que Satanas nos tenta, induzindo-nos ao pecado. Contudo, podemos perceber que a fonte das nossas tentações são as nossas fraquezas, a nossa imperfeição, o nosso orgulho, a nossa vaidade e, principalmente, a nossa sede de poder, de ter sempre mais, de querer sempre mais. Jesus venceu as tentações através do jejum e da oração e isso é uma indicação também para nós. Os conceitos fundamentais da nossa quaresma foram explanados na liturgia da quarta feira de cinzas: a oração, o jejum e a esmola. A oração e o jejum dizem respeito a atitudes interiores nossas; a esmola diz respeito à nossa ação concreta em benefício dos irmãos carentes. A salvação não é alcançada apenas com atitudes internas de conversão, mas esta deve ser acompanhada de gestos concretos de solidariedade e de serviço. Tal é o objetivo da Campanha da Fraternidade, que todos os anos é realizada neste tempo.

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sábado, 10 de fevereiro de 2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 6º DOMINGO COMUM - CURA PELA HUMILDADE - 11.02.2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 6.º DOMINGO COMUM – CURA PELA HUMILDADE – 11.02.2018

Caros Leitores,

A liturgia deste 6º domingo do tempo comum nos convida a refletir sobre a importância da humildade, como condição necessária para recebermos os favores divinos. A humildade cristã não significa que uma pessoa deva ser subserviente ou sem determinação para vencer na vida, mas quer dizer o reconhecimento e a aceitação da própria incompletude e do inerente estado de necessidade em que todos nós vivemos. Por outras palavras, significa descer do pedestal do orgulho, da autossuficiência, da arrogância e ter consciência das próprias falhas e impotências, propondo-se a superá-las. A liturgia de hoje lembra dois milagres de cura de pessoas doentes que só ocorreram porque essas pessoas tiveram a humildade suficiente para admitir a sua condição de inferioridade, e se dispuseram a buscar a superação.

Para a primeira leitura, a liturgia propõe duas leituras a escolher, sendo uma delas retirada do Levítico (13, 1), que trata das exigências daquela época para a pessoa portadora de lepra, que devia se apresentar ao sacerdote e depois afastar-se do convívio social, usar roupas rasgadas e passar a morar fora dos limites da cidade, para evitar contagiar os outros. A outra é retirada do livro dos Reis (2Rs 5, 9) e se refere à cura de Naamã, o sírio, por parte do profeta Eliseu. Ambas consideram a condição da pessoa contagiada por lepra. Devemos ter em mente que o livro do Levítico, assim como o livro dos Números, são, na verdade, tópicos da legislação hebraica que foram colocados na Torah como regras divinas, quando de fato são regras de convívio social, padronização de costumes. A lei hebraica, portanto, excluía da sociedade as pessoas portadoras de lepra. Era como se fosse uma regra de saúde pública. A lepra era uma doença para a qual não existiam remédios e a cura dificilmente acontecia. Ao mesmo tempo, era uma doença de alto contágio e até bem pouco tempo o tratamento dessa moléstia ainda seguia esses padrões de isolamento. Atualmente, não existe mais esta segregação por causa da lepra, que passou a ser uma doença muitas vezes curável e, em geral, controlada por medicamentos.

Pois bem. A primeira sugestão foi a escolhida pela CNBB, mas comentarei o conteúdo da segunda sugestão, por considerar mais significativo. Na leitura do livro dos Reis (2Rs 5, 9), lemos o episódio da cura de Naamã, o sírio, pelo profeta Eliseu. Logo no início do trecho, observa-se o contraste da pompa que acompanhou a chegada de Naamã com a simplicidade da atitude do profeta. “Naamã chegou com seus cavalos e carros, e parou à porta da casa de Eliseu. Eliseu mandou um mensageiro para lhe dizer: 'Vai, lava-te sete vezes no Jordão, e tua carne será curada e ficarás limpo'.” Dá para imaginar o aparato da comitiva de uma autoridade estatal daquele tempo. Naamã era chefe dos exércitos do rei da Síria e tinha na sua casa uma escrava hebreia, que informou à mulher dele que havia um profeta em Israel que tinha poderes para curá-lo. Então, a visita de Naamã revestia-se de um caráter oficial, pois ele vinha com uma carta de recomendação do rei da Síria ao rei de Israel. Se fosse nos dias de hoje, ele viria num carro preto oficial, antecedido por batedores motorizados com as sirenes buzinando em alto som e aquele cortejo de veículos de autoridades diplomáticas. É essa a figura que me vem à mente com a descrição de que Naamã chegou com seus carros e cavalos e parou à porta de Eliseu.

A atitude de Eliseu foi paradoxal. Ele nem ao menos saiu de casa para vê-lo, apenas mandou um recado para Naamã: vai e lava-te sete vezes no rio Jordão. Naamã ficou a um só tempo irritado e decepcionado: “'Eu pensava que ele sairia para me receber e que, de pé, invocaria o nome do Senhor, seu Deus, e que tocaria com sua mão o lugar da lepra e me curaria.” E foi-se embora resmungando, ia voltar para casa, quando um dos servos, com muita propriedade, argumentou: senhor, se o profeta tivesse mandado fazer algo difícil, tu farias, porque não fazes uma coisa fácil dessas? E aqui entra a humildade de Naamã, que foi imprescindível para a sua cura. Ele não se deixou dominar pelo orgulho ferido de ter sido desdenhado pelo Profeta e seguiu a recomendação, ficando curado. Se, ao invés, ele tivesse resistido no seu brio de autoridade desrespeitada (aquilo que, no Brasil, representa a frase “você sabe com quem está falando?”), com certeza teria voltado para a sua terra enfermo e teria apressado a sua morte. Depois de curado, foi oferecer seus presentes ao profeta Eliseu, que os recusou, porque o homem de Deus não recebe paga pelo exercício do seu múnus sagrado. É pena que os nossos pastores de hoje, quando leem essas passagens da Bíblia, passam por cima e não ponderam para colocarem na sua prática.

Na leitura do evangelho de Marcos (Mc 1, 40), temos outro exemplo de cura de pessoa portadora de lepra. Esse homem era um segregado, de acordo com a lei de Moisés. Isolado da sociedade, ele era obrigado a gritar “impuro, impuro”, quando alguém se passava. Ao ver Jesus passar, ele se aproximou e pediu humildemente: “Se queres tens o poder de curar-me.” Diz Marcos, no versículo 41 que: “Jesus, cheio de compaixão, estendeu a mão, tocou nele, e disse: 'Eu quero: fica curado!” E imediatamente ele ficou limpo. Pela lei hebraica, um leproso que alcançasse a cura devia apresentar-se ao sacerdote, para que ele atestasse isso e então ele fosse readmitido para viver novamente junto com as demais pessoas. Jesus era um judeu correto e cumpridor da lei, mesmo sabendo que estava acima dela. Ao tocar no leproso, por exemplo, ele superou a lei mosaica, que dizia que quem tocasse numa pessoa impura se tornaria impura também. Ele tocou e não ficou impuro. Porém, em relação ao beneficiado pela cura, ele recomendou: “Vai, mostra-te ao sacerdote e oferece, pela tua purificação, o que Moisés ordenou, como prova para eles!'” Jesus disse várias vezes que não veio contestar a lei, mas cumpri-la de modo mais perfeito. No caso, o cumprimento da lei significa o reconhecimento da autoridade constituída (o sacerdote) e a oferta do sacrifício pela purificação, que para as pessoas pobres, o custo era de dois pombinhos. Mas o que ressalta nesse contexto é a atitude de humildade do leproso, quando foi pedir que Jesus o curasse: chegou perto de Jesus, e de joelhos pediu.

Obviamente, não basta ficar de joelhos, numa atitude externa de humildade, se esse gesto não provém do íntimo da pessoa. Quando o evangelista diz que Jesus ficou tomado de compaixão por aquele leproso, não foi certamente pelo tom de voz dele nem pela atitude de ajoelhar-se, e sim pelo que Ele percebeu no íntimo do coração do doente. Jesus não fez nenhum milagre favorecendo nenhum fariseu, porque estes se consideravam donos da verdade e doutores da lei, eles se consideravam a priori justos e salvos, a figura de Jesus era contraditória para eles. Da mesma forma como Naamã se queixou porque pensava que o profeta Eliseu “sairia para recebê-lo”, como se faz quando chega uma autoridade, assim também os fariseus pensavam que, quando o Messias chegasse, reconheceria a autoridade deles como mestres da lei e se apresentaria a eles e iria cumprimentá-los e render-lhes homenagens. Se Jesus não fazia isso, então Ele não era o Messias.

O Papa Francisco, na sua alocução dominical aos peregrinos que rezam com ele o Angelus do meio dia, na Praça de São Pedro, fez uma análise bem interessante dessa atitude humilde do leproso e das consequências que disso lhe advieram. Disse o Papa: “O episódio da cura do leproso acontece em três passos curtos: a invocação do enfermo, a resposta de Jesus, as consequências de cura milagrosa. O leproso suplica para Jesus “de joelhos” e lhe diz: “Se quiser, você pode me purificar” (v. 40). A esta oração humilde e confiante, Jesus responde com uma atitude profunda da sua alma: a compaixão, que significa" sofrer- com- o outro". O coração de Cristo manifesta a compaixão paterna de Deus por aquele homem, aproximando-se dele e tocando-o. Este particular é muito importante. Jesus “estendeu a mão e tocou-o ... e imediatamente desapareceu dele a lepra e foi purificado" (V. 41). A misericórdia de Deus supera todas as barreiras e a mão de Jesus toca o leproso. Ele, Jesus, pega a nossa humanidade enferma e nós pegamos Dele a sua humanidade saudável e que cura. Isso acontece cada vez que recebemos com fé um sacramento: o Senhor Jesus nos “toca” e nos presenteia a sua graça. Neste caso pensamos especialmente no Sacramento da Reconciliação, que nos cura da lepra do pecado.” (www.zenit.org)

A lição da liturgia de hoje, resumindo, é a oração humilde e confiante como sendo a chave para obter de Deus a cura para as nossas enfermidades do corpo e do espírito.

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COMENTÁRIO LITÚRGICO - 5º DOMINGO COMUM - MENTE SÃ, CORPO SÃO - 04.02.2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 5º DOMINGO COMUM – MENTE SÃ, CORPO SÃO – 04.02.2018

Caros Leitores,

A liturgia deste 5º domingo comum nos convida a refletir sobre as enfermidades, tanto às doenças do corpo quanto às doenças do espírito. Nos dias de hoje, como no passado, é firme a convicção de que a máxima latina “mens sana in corpore sano” permanece em pleno vigor, na medida em que cada vez mais se descobre o quanto as preocupações e achaques mentais terminam por transformarem-se em enfermidades no corpo (somatização), causando aquelas doenças graves, de causas genéricas e de cura desconhecida, ou seja, se a mente não está sã, o corpo também não estará são. Hoje, muito mais do que no passado, os profissionais da área da saúde com frequência atestam que a fonte e a causa de grande parte dos males que acometem o corpo decorrem de perturbações de ordem mental e espiritual. É nesse ponto que a fé e a religião podem ter uma função importante no processo de cura.

Quado se fala em sofrimento, a figura emblemática que logo nos chega à lembrança é a de Jó, pois toda a tradição hebraico-cristã tem nesse personagem o protótipo do justo sofredor. Vários estudiosos da Bíblia colocam em dúvida a existência concreta desse personagem, que mais se assemelha a um protagonista de um romance de natureza didático-religiosa, em cuja figura o seu autor (ou seus autores, porque isso também é controverso) pretende desmistificar uma certa noção que havia naquela época acerca da doença e do sofrimento como castigo. O livro de Jó é classificado dentre os livros sapienciais e esses são os livros que colecionam os ditos e ensinamentos dos antigos sábios hebreus. A finalidade do livro de Jó é demonstrar que o sofrimento não é consequência do pecado, ou seja, não se deve correlacionar a ideia de que os pecadores sofrem por seus pecados, mas os justos não devem sofrer. Assim era a antiga crença hebraica. Então, a figura de Jó, o justo que sofre, perde tudo que possui e depois readquire tudo novamente, é o símbolo da pedagogia do sofrimento, isto é, da visão do sofrimento como um período de reflexão para nos levar a um estado de vida mais purificado e mais santificado.

Diz assim a primeira leitura: (Jo 7,2) “tive por ganho meses de decepção, e couberam-me noites de sofrimento. Se me deito, penso: Quando poderei levantar-me? E, ao amanhecer, espero novamente a tarde e me encho de sofrimentos até ao anoitecer.” Este trecho caracteriza muito bem a situação em que se encontra uma pessoa acometida de grave enfermidade crônica: a pessoa vê os dias se passando um após o outro e a sua situação não melhora. Parece que Deus se esqueceu dela. E a pessoa então se desmancha em queixumes e desesperanças, a vida torna-se um pesado fardo, algumas pessoas chegam a pedir a chegada da morte por não aguentarem tanto sofrimento. O livro de Jó ensinava os hebreus e continua a nos ensinar hoje a não cair no desespero diante das mazelas da vida, mas fortalecer a nossa fé através da oração confiante, porque Deus vela pelos que sofrem. A liturgia deste domingo procura exatamente chamar a atenção para esse fato de que o sofrimento é algo que faz parte da nossa existência humana e ainda conclamar os cristãos a terem solidariedade para com os enfermos, visitando-os e orando com eles. E também sem esquecer de valorizar aqueles profissionais que trabalham na área da saúde e que estão em permanente contato com pessoas enfermas, para que não enxerguem o ser humano doente como se fosse uma máquina com defeito, mas estejam sempre conscientes e dispostos a praticarem uma medicina humanizada. Com tantos recursos tecnológicos utilizados atualmente no campo da medicina, muitas vezes os cientistas da área são levados a confundir os seres humanos com as máquinas que lhes auxiliam no seu trabalho, esquecendo que o corpo é templo de Deus e morada do Espírito Santo. Esse é o sentido que deve ter o cristão acerca da enfermidade e do sofrimento.

Na segunda leitura, da primeira carta de Paulo aos cristãos de Corinto (1 Cor 9,16), ele comenta sobre as agruras suportadas por causa de sua missão de pregar o Evangelho: sem descanso, sem salário, sem reconhecimento, com perseguições, e mesmo assim, fazendo isso como uma necessidade interna que ele sentia. Por causa do Evangelho, ele se tornou um escravo de todos. O sofrimento a que Paulo se refere já não é tanto aquele decorrente de uma enfermidade corporal, mas decorre da sua própria missão e das preocupações associadas a ela. Diz ele (9, 18): “Em que consiste então o meu salário? Em pregar o evangelho, oferecendo-o de graça, sem usar os direitos que o evangelho me dá. ” Fico pensando em quais seriam esses “direitos” que o evangelho dá a ele e dos quais ele não usufrui. Suponho que seria a tranquilidade de estabelecer-se num certo local e dedicar-se aos fiéis daquela comunidade, assim como muitos líderes religiosos daquela época e de hoje fazem. Ao contrário, Paulo era aquele apóstolo itinerante, que não tinha um pouso nem uma morada. Cuidava de todas as igrejas, no entanto, não estava vinculado a nenhuma delas. Essa foi a sua opção para atender com fidelidade à missão de pregar o evangelho. Por isso, ele conclui no vers. 19: “Assim, livre em relação a todos, eu me tornei escravo de todos.” A preocupação com a pregação do evangelho era o sofrimento dele de cada dia.

No evangelho de Marcos (Mc 1, 29), vemos mais uma vez a intenção desse evangelista de mostrar o poder de Jesus, especialmente através da cura dos doentes e da expulsão dos demônios. Procurando entender essas expressões numa linguagem atual, poderíamos ler aí como se estivesse escrito a cura das doenças do corpo e do espírito. Conforme já foi mencionado em outros comentários, o entendimento daquela época acerca das doenças psicológicas era de que se tratava de possessão pelo demônio. O evangelista Marcos procura destacar o poder que Jesus tem sobre os males do corpo e do espírito devolvendo a saúde aos paralíticos e leprosos, mas também expulsando e proibindo os demônios de falarem ao povo quem é Ele. Jesus está fazendo milagres em Cafarnaum, no início de sua missão. Começou curando a sogra de Pedro, que estava com febre e apenas com o toque da sua mão, a curou. A notícia se espalhou e logo a frente da casa de Pedro estava tomada por uma multidão de enfermos e pessoas “possessas”, pedindo para serem curados, e Jesus curou a todos.

Estes relatos do evangelista Marcos nos mostram a missão de Jesus como aquele que veio para retirar os sofrimentos das pessoas, corroborando aquele ensinamento já tratado no livro de Jó, acerca do sofrimento não como um castigo de Deus. Jesus veio mostrar o Pai como alguém que está ao lado dos que sofrem, para minimizar-lhes os sofrimentos, não para castigá-los ainda mais. Depois de curar os enfermos em Cafarnaum, Jesus quis ir com os discípulos para as cidades e aldeia da Galiléia, a fim de ali também pregar sua palavra, pois para isso foi que ele veio. Essa imagem literária da ida às cidades e aldeias vizinhas significa o universalismo da doutrina cristã. Jesus demonstrou que Ele não deveria ficar só em um determinado lugar e as pessoas virem a ele, mas que Ele mesmo deveria ir aonde as pessoas estivessem passando por necessidades. A escolha da região da Galileia tem esse significado de universalismo, porque ali moravam pessoas das mais diversas origens e nacionalidades. Foi esse exemplo de Jesus que o apóstolo Paulo seguiu, percorrendo o mundo de cidade em cidade e pregando o evangelho.

Há uma referência nesse evangelho de Marcos, que eu gostaria de destacar: a cura que Jesus faz da sogra de Simão, estando hospedado na casa deste (Mc 1, 30-31): “A sogra de Simão estava de cama, com febre, e eles logo contaram a Jesus. E ele se aproximou, segurou sua mão e ajudou-a a levantar-se. Então, a febre desapareceu.” Simão era casado e morava em Cafarnaum. O evangelho não refere que ele tinha filhos, o que não significa que não os tivesse. O evangelista faz referência à sogra de Simão assim de passagem, porque o interesse dele é mostrar o poder de Jesus para curar os enfermos, talvez por isso não entre em detalhes sobre os demais familiares. Assim como Simão, certamente outros discípulos também eram casados. Sabemos que Jesus não tinha uma moradia dele, mas hospedava-se nas casas dos amigos. Um local bastante conhecido para isso era a casa de Betânia, onde moravam Marta, Maria e Lázaro, mas é bem possível que ele também se hospedasse em casa de algum outro discípulo. Ressalto isso para defender que não há incompatibilidade entre o discipulado e o matrimônio, que o celibato não foi uma imposição que Jesus fez aos seus discípulos.

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COMENTÁRIO LITÚRGICO - 4º DOMINGO COMUM - FALAR COM AUTORIDADE - 28.01.2018

COMENTÁRIO LITURGICO – 4º DOMINGO COMUM – FALAR COM AUTORIDADE – 28.01.2018

Caros Leitores,

Neste 4º domingo do tempo comum, as leituras litúrgicas refletem sobre a missão dos profetas. Conforme já foi comentado aqui em ocasiões anteriores, o profeta não é aquele que adivinha coisas futuras, mas é o porta-voz, o arauto, o que fala em nome de Deus. Moisés foi o maior profeta do Antigo Testamento, pois quando ele se comunicava com Javeh, seu rosto ficava resplandescente, de modo que os hebreus não conseguiam olhar para ele. No entanto, Jesus Cristo é maior do que Moisés, maior do que qualquer profeta, porque Ele fala em seu próprio nome, fala como quem tem autoridade.

Na primeira leitura, do livro do Deuteronômio (Dt 18, 15-20), lemos a comunicação de Moisés ao povo, estando ele já bastante idoso e sentindo que sua morte se aproxima, dizendo que Javeh vai suscitar no seu meio um outro profeta semelhante a ele, a quem o povo deverá ouvir. “Farei surgir para eles, do meio de seus irmãos, um profeta semelhante a ti. Porei em sua boca as minhas palavras e ele lhes comunicará tudo o que eu lhe mandar.” (Dt 18, 18) E foi assim que Javeh sempre manteve no meio do seu povo um porta-voz, um profeta que transmitia as suas ordens. Contudo, o estilo de comunicação de Javeh com os demais profetas foi diferente do modo como Ele se comunicava com Moisés. Este foi o único com quem Javeh falava diretamente. Quanto aos demais, Javeh se manifestava em sonhos, eles não tiveram a face resplandescente como a de Moisés, o que atemorizava o povo. Porém, o profeta enquanto porta-voz tem a obrigação de ser fiel à revelação recebida e comunicá-la sem distorções. Daí a advertência: “o profeta que tiver a ousadia de dizer em meu nome alguma coisa que não lhe mandei ou se falar em nome de outros deuses, esse profeta deverá morrer ” (Dt 18, 20), este é um falso profeta.

Vemos, assim, que a missão do profeta é importante e perigosa. Importante, porque ele fala em nome da maior autoridade que pode existir; perigosa porque quando Javeh mandar, ele irá falar seja onde for, pra quem for, o que for e isso pode levá-lo a alguma situação de risco, como de fato já levou; e perigosa tb porque se ele falar algo que Javeh não mandou, ou se falar em nome de outros deuses, o próprio Javeh tomará satisfação com ele. Esse temor que o Javeh do Antigo Testamento suscitava no povo, através dos seus profetas, foi o que fez a tradição judaica deixar de pronunciar o “seu santo nome”, pois as ameaças eram fortes e as consequências imprevisíveis. Observando os tempos posteriores, até os dias de hoje, constatamos o quanto as pessoas que hoje se arvoram em “donos” de igrejas e de religiões perderam esse temor. Os falsos profetas de hoje conseguem, com recursos técnicos e econômicos, seduzir multidões e dominá-las, tornando-se com isso ricos e poderosos.

É ainda oportuno, nesse contexto, lembrar o caso dos fanáticos do islamismo, que se utilizam da sua religião (que em essência é muito parecida com a tradição judaico-cristã) numa interpretação literal e temerária da violência expressa nos textos, e realizam atos bárbaros de homicídios, com publicidade nos meios de comunicação, como uma forma de demonstrar poder e impor o medo nas demais culturas. Ouso dizer que, fazendo analogia com o texto do Deuteronômio, esses fanáticos não falam em nome de Alá, mas em nome da própria insanidade, servindo-se do véu religioso dos textos para finalidades totalmente contraditórias. É bem verdade, é forçoso admitir, que em outras épocas, as autoridades cristãs da Europa, também em nome da religião e sob o mesmo pretexto, praticaram barbaridades com os povos do oriente médio, na época das cruzadas. No entanto, é imperioso analisar esses fatos trágicos dentro de uma visão histórica e crítica, sem transformá-los em motivação para a prática de novos crimes. Creio que, assim como Javeh ameaçou, também Alá adotará severas providências contra tal fanatismo irracionalista.

Na leitura do evangelho de Marcos (1, 21-28), temos o relato do ensinamento que Jesus fazia na sinagoga de Cafarnaum e o povo o considerava um profeta, mas achava que era um profeta diferente. Ora, vimos na liturgia comemorativa do batismo de Jesus o que Ele dissera, a respeito de João Batista, que este era mais do que um profeta, portanto, o próprio Jesus não poderia ser qualificado como profeta. Diz o evangelista que “Todos ficavam admirados com o seu ensinamento, pois ensinava como quem tem autoridade, não como os mestres da Lei.” (Mc 1, 22) Ora, eles não sabiam ainda, mas a diferença estava exatamente no fato de Jesus não falava em nome de Javeh, mas falava em nome próprio, porque Ele era um com o Pai. Daí porque, mesmo perante um povo acostumado a ouvir profetas, a voz de Jesus soava de um modo diferente dos outros, de um modo novo, inaugurado por Ele. Outro detalhe que chama a atenção na leitura é que isso ocorreu num dia de sábado, portanto, Jesus igual a todos os judeus guardava o sábado, comparecia à sinagoga aos sábados. Não é essa a única referência dos evangelhos ao fato de que Jesus cumpria o preceito religioso tradicional dos judeus. Embora tendo autoridade e falando com autoridade, Jesus não deixava de cumprir a lei nem se aproveitava de sua autoridade para diversificá-la.

Na sequência da leitura desse texto (Mc 1, 23-25), o evangelista faz um relato intrigante sobre um dos presentes na sinagoga, que estava “possuído por um espírito mau”. Há pessoas inadvertidas que, interpretando literalmente esse texto, enxergam aí uma prova de que, nos tempos de Jesus, já havia o “espiritismo”, ou seja, como se o evangelho estivesse validando a doutrina que hoje leva essa denominação. Muitos biblistas de hoje afirmam que essa referência aos espíritos maus, encontrada diversas vezes nos evangelhos, diz respeito a pessoas com doenças psíquicas. Não raras vezes, ocorrem nos dias de hoje casos de pessoas portadoras de algum desequilíbrio mental que adentram os templos na hora das celebrações e precisam ser contidas ou retiradas, porque passam a fazer ações incompatíveis com o local. E ninguém hoje diz que essas pessoas estão “possuídas por um espírito mau”, porque sabemos (ou ao menos supomos) que se trata de uma enfermidade. Mas naquela época, não se tinha esse conhecimento e a explicação dada era a da possessão por um espírito maligno.

Pois bem, de acordo com o texto, esse homem interpelou Jesus, dizendo: 'que queres tu, Jesus Nazareno, vieste aqui para nos destruir?' Vamos tentar contextualizar essa afirmação, sem pensar em espíritos maus. O que significaria esse “nos destruir”. Lembremo-nos que, naquela época, a Galiléia estava dominada pelos romanos e a população tinha medo dos soldados, pelas violências que eles praticavam contra os que se rebelavam. Jesus era identificado por muitas pessoas como sendo um líder rebelde, como alguém que estaria provocando um levante político naquele momento contra os romanos. Então, essa pessoa pode ter dito isso com esse referencial, isto é, tinha um viés político a sua fala. Quando Jesus disse a esse interlocutor: “'Cala-te e sai dele!' Então o espírito mau sacudiu o homem com violência, deu um grande grito e saiu”, neste momento, Jesus operou a cura da enfermidade psicológica daquela pessoa. E agora, vocês podem perguntar: por que então o “espírito mau” possuidor daquele homem teria dito: “Eu sei quem tu és: tu és o Santo de Deus'”? Meus amigos, lembremo-nos de que os atos praticados por Jesus não foram documentados no momento, não havia repórteres nem escribas acompanhando seus passos. Esses fatos miraculosos foram transmitidos oralmente, de boca em boca, de cidade em cidade, durante muitos anos antes de serem escritos. Penso que aqui vale a regra “quem conta um conto aumenta um ponto”. O objetivo do evangelho de Marcos era mostrar que Jesus é Filho de Deus, portanto, é possível que esse episódio, certamente verídico, tenha tido uma descrição adaptada ao objetivo do seu escritor. Os biblistas afirmam que o evangelho de Marcos não foi escrito para povos judeus, mas para povos gentios, isto é, pessoas de cultura grega, de costumes gregos. Através da descrição de obras maravilhosas feitas por Jesus, o evangelista queria demonstrar a Sua origem divina. Portanto, ao meu ver, o texto citado não contém qualquer suporte a doutrinas ou ensinamentos sobre espíritos, mas tem a finalidade de mostrar a divindade de Jesus através de seus feitos miraculosos.

Meus amigos, quando nós fomos batizados em Jesus Cristo, nós recebemos dele a missão profética de ser sinal para os irmãos, de ser luz do mundo e sal da terra. Reflitamos sobre a maneira como cada um de nós está pondo em prática a nossa missão profética, examinando a nossa fidelidade com esse compromisso.

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