domingo, 16 de dezembro de 2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 3º DOMINGO DO ADVENTO - 16.12.2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 3º DOMINGO DO ADVENTO – ALEGRA-TE JERUSALÉM – 16.12.2018

Caros Confrades,

Neste 3º domingo do advento, a liturgia retoma o tema da alegria sobre Jerusalém, servindo-se das palavras do profeta Sofonias. Alegra-te, Jerusalém, diz ele, o Senhor teu Deus está no meio de ti. O contexto em que o Profeta faz essa invocação é bem diferente do que se celebra no Advento, como explicarei em seguida, mas o texto aqui é utilizado para invocar o Senhor que está para chegar. Este domingo é também conhecido como o “domingo laetare”, em que a liturgia nos convida a ficarmos alegres com a aproximação do Natal. E a leitura do evangelho escrito por Lucas nos traz uma interessante sugestão de reflexão, na perspectiva do ano novo litúrgico, que nos conclama à revisão de nossas atitudes e a renovar nossos compromissos de cristãos.

O profeta Sofonias (3, 14-18) convida o povo a se alegrar, porque o Senhor afastou os inimigos de Jerusalém. Este profeta viveu antes do cativeiro da Babilônia, numa época em que o povo hebreu dividia suas preferências políticas entre os reinos do Egito e da Assíria, para fins de fazer aliança. Dentre as autoridades hebraicas, havia os simpatizantes da aliança com o Egito e os que defendiam a aliança com a Assíria, tendência esta que era a favorita do rei de Judá, na época de Sofonias (por volta do ano 630 a.C.), o rei Josias. Não demorou muito para que a Assíria fosse dominada pelos babilônicos e, com isso, pela aliança que tinham com a Assíria, os hebreus terminaram sendo levados cativos por Nabucodonosor. Então, Sofonias profetizou nessa época anterior ao domínio babilônico, conclamando o povo a alegrar-se, porque Javé é o valente guerreiro que salva seu povo. Era uma tentativa de exaltar o nacionalismo judaico diante das ameaças de dominação por povos estrangeiros. Hoje nós sabemos que essa alegria durou pouco tempo. Então, a liturgia retira o texto de Sofonias do seu contexto histórico para encaixá-lo na temática do Advento.

A segunda leitura, extraída de Paulo aos Filipenses, também está deslocada do seu contexto histórico, porque quando o Apóstolo recomendava aos cristãos de Filipos que se alegrassem sempre no Senhor, pois Ele está próximo, queria referir-se à segunda vinda de Cristo que, conforme era o entendimento da época, acreditava-se que seria 'em breve'. Outra vez, precisamos abstrair da situação concreta do texto para que possamos compreendê-lo na perspectiva da temática do Advento. O fato de Paulo exortar os Filipenses à alegria sobre a proximidade da vinda do Senhor passa a ser então apropriado dentro do roteiro do “domingo laetare”, nessa etapa de preparação para a celebração do Natal. Portanto, a liturgia faz uma espécie de silepse histórica, levando-nos a fazer um certo exercício mental para compreendermos dentro do contexto do Advento dois textos que se referem a outras circunstâncias. Na verdade, parece-me que a única justificativa é porque ambos contemplam o tema da alegria, que a liturgia pretende atribuir a este terceiro domingo.

Agora, afastando-nos do tema da alegria, examinemos o evangelho de Lucas (3, 10-18), que destaca a figura de profética de João Batista, pregando o batismo da conversão e batizando no Jordão. Diz Lucas que as pessoas convertidas procuravam João perguntando “o que devemos fazer” para viverem em coerência com a conversão. E João exortava a todos, de acordo com a atividade social exercida pelo bartizado, recomendando-lhes o fiel cumprimento da missão de cada um. Aos vendedores e compradores, ele dizia: quem tiver duas túnicas, dê uma a quem não tem; e quem tiver comida, faça o mesmo. Ou seja, saibam partilhar os bens com os mais pobres. Aos cobradores de impostos, esses que, desde aquele tempo, já eram vistos pelo povo como corruptos, pecadores públicos, João dizia: não cobreis mais do que foi estabelecido, ou seja, pratiquem a sua atividade com justiça, não façam extorsão. Aos soldados, esses que eram também considerados pessoas costumeiramente violentas e perversas, João dizia: não tomeis à força dinheiro de ninguém, nem façais falsas acusações, ou seja, não exerçam o poder com abuso de autoridade. E mais: ficai satisfeitos com o vosso salário, ou seja, controlem a ambição de sempre querer mais.

Meus amigos, o discurso de João até parece que está direcionado para a sociedade dos nossos dias. O tempo do Advento é uma época adequada para fazermos um exame das nossas atitudes e avaliarmos como está a fidelidade à nossa vocação. João Batista está mostrando que, para cada um de nós, o Menino Deus tem um pedido especial, qual seja, a de vivermos com dignidade a nossa missão no dia a dia. Se tivermos o cuidado de 'ouvir' a voz de Deus nas nossas consciências em cada decisão que tomamos na vida, poderemos perceber que, em cada situação, Ele nos pede e espera de nós uma atitude de compromisso com a solidariedade, com a justiça, sempre no sentido do melhor cumprimento das verdades que Ele ensinou. Essa leitura do evangelho de Lucas nos sugere que, antes de cada tarefa e diante de cada nova missão que assumamos, na vida pessoal ou profissional, façamos perante a nossa própria consciência aquela indagação: para podermos viver a cada dia a nossa constante conversão ao chamado de Cristo, o que devemos fazer? E fiquemos atentos para o que Deus falará ao nosso coração.

E João Batista, ciente de sua própria missão, quis deixar claro, para aqueles seus discípulos que viam nele a figura de um provável Messias, quem era ele, confessando humildemente: virá aquele que é mais forte do que eu e eu não sou digno de desamarrar os cadarços da Suas sandálias (Lc 3, 16) e Ele vos batizará no espírito santo e no fogo. E completa: Ele virá com uma pá para limpar sua eira e uma peneira para separar o trigo do carrapicho. Embora o texto apresentado na versão oficial da CNBB use a palavra pá na mão, no texto latino, a palavra é “ventilabrum”, cuja tradução mais própria seria “joeira”, palavra que não é comum na nossa cultura, e que é algo mais parecido com a peneira. A ideia é fazer aquilo que os produtores rurais fazem com o feijão, o milho, o arroz depois que eles põem pra secar, para separar os grãos quebrados dos inteiros, separar as palhas dos grãos. No nosso meio sertanejo, além da peneira, faz-se também a prática de “ventilar” o feijão, o milho, ou seja, passar pelo vento, pra separar os grãos das cascas, é outra técnica rudimentar que tem o mesmo objetivo.

A meu ver, seria essa a mensagem que João Batista queria transmitir. Eu não sou o Messias, mas ele está perto de chegar e virá com uma peneira pra separar os grãos perfeitos das cascas, os grãos inteiros dos quebradiços. Os grãos selecionados serão recolhidos ao celeiro, enquanto as palhas serão lançadas ao fogo (Lc 3, 17). Então, o caminho de preparação para a celebração do Natal coloca na nossa frente os desafios que devemos enfrentar para sermos dignos de vê-Lo nascer em nosso espírito, em nossas famílias, em nossa comunidade. Traz um alerta para que não relaxemos nos nossos compromissos de cristãos e uma oportunidade para fazermos um balanço sobre as práticas realizadas no período que termina. Ou seja, a liturgia nos remete à reflexão sobre o modo como realizamos, no dia a dia das nossas atividades, aquelas ações e práticas que devem espelhar o estilo de vida do verdadeiro cristão.


COMENTÁRIO LITÚRGICO - 2º DOMINGO DO ADVENTO - 09.12.2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 2º DOMINGO DO ADVENTO – LEVANTA-TE JERUSALÉM – 09.12.2018

Caros Confrades,

No segundo domingo do advento, a liturgia traz outra vez a figura da nova Jerusalém, agora na palavra do profeta Baruc. Este profeta, que era também escriba e antes fora secretário do profeta Jeremias, viveu durante o exílio da Babilônia e descreve a alegria de Jerusalém, com o retorno dos seus filhos. Outra leitura evoca o tema da pregação de João no deserto: endireitai os caminhos, aplainai as veredas. Ele veio materializar a profecia de Isaías (40, 3): a voz que clama no deserto.

O livro da profecia de Baruc teria sido sugerido pelo próprio Jeremias, quando aquele o acompanhara na fuga para o Egito, a fim de não serem compelidos a ir para a Babilônia. Depois da morte de Jeremias, Baruc passou a escrever também as suas profecias, certamente a partir do que aprendeu com o mestre, mostrando a presença de Javeh nos fatos históricos. Assim, ele diz que Jerusalém verá o retorno triunfante daqueles que foram levados cativos e humilhados algum tempo atrás. E o nome Jerusalém passará a significar “paz da justiça” e “glória da piedade”. A bem da verdade, é importante destacar que existem dúvidas entre os estudiosos sobre a autoria destes escritos, se teriam sido do próprio Baruc ou apenas atribuídos a ele. Trata-se de um livro deuterocanônico, isto é, que não estava na lista antiga dos livros bíblicos judaicos, tendo sido reconhecido como autêntico e incluído no rol somente tempos depois. De todo modo, o contexto referido é o mesmo em que viveu o profeta Jeremias, no tempo do cativeiro babilônico. O profeta Baruc declama a alegria de Jerusalém, ao ver o retorno de seus filhos que foram levados pelo inimigo: “Saíram de ti, caminhando a pé, levados pelos inimigos. Deus os devolve a ti, conduzidos com honras, como príncipes reais.” (Br 5,6) Por isso, ele diz: Levanta-te, Jerusalém, despe de uma vez por todas as vestes de luto e reveste-te para sempre dos adornos da glória. A Nova Jerusalém, a igreja de Cristo, está representada nesta figura desenhada pela profecia de Baruc.

O profeta Baruc também antecipou as palavras que seriam repetidas por João Batista, no deserto da Judeia, na sua pregação preparatória do Messias que estava para chegar: “Deus ordenou que se abaixassem todos os altos montes e as colinas eternas, e se enchessem os vales, para aplainar a terra, a fim de que Israel caminhe com segurança, sob a glória de Deus.” (Br 5, 7) Foi a mesma temática recolocada por João Batista, quando pregava: “'Esta é a voz daquele que grita no deserto: 'preparai o caminho do Senhor, endireitai suas veredas.” (Lc 3, 4) Na visão de Baruc, ele se referia à Jerusalém geográfica, capital do reino de Judá. Mas dentro do simbolismo trans-histórico, que está presente na adequação entre o antigo e o novo testamentos, João explicava que os caminhos a serem preparados não eram as estradas de pedra da Palestina, mas as vias internas do coração de cada um. Desse modo, João convertia os judeus para um novo sentido a ser encontrado nas palavras da promessa de Javeh e por isso João Batista é considerado o último profeta do Antigo Testamento.

Na carta de Paulo aos Filipenses (Fl 1, 4-11), o Apóstolo se congratula com a comunidade de Filipos, a primeira onde ele pregou o evangelho, de modo que a sua lembrança dos filipenses era sempre cheia de muito carinho e gratidão. A cidade de Filipos recebera este nome em homenagem a Filipe da Macedônia, seu conquistador, e era uma das comunidades mais queridas por Paulo. Lá ele encontrou muita receptividade, quando foi pregar o evangelho pela primeira vez, desde quando tomou rumo diferente do apóstolo Barnabé, e obteve muitas conversões. Foi a partir de Filipos que o cristianismo começou a se espalhar pela Europa, até porque quando escreveu essa carta Paulo já estava preso e ele não tinha mais condições de sair pregando, como fizera antes. Os filipenses foram os continuadores do seu apostolado e Paulo os considerava uma espécie de comunidade modelo do cristianismo.

Os filipenses também estimavam muito Paulo, por causa do intenso trabalho que ele realizara lá, de modo que quando chegou a Filipos a notícia da sua prisão, a população organizou uma coleta e a mandou para Paulo, pois sabiam que ele passava necessidades. Daí que Paulo retribui, na carta, toda a amizade e afeição que os filipenses lhe dedicavam. E principalmente por saber que os filipenses se tornaram ardorosos divulgadores do cristianismo, então isso deixava Paulo ainda mais entusiasmado com os resultados do seu trabalho naquela comunidade. Daí ele dizer: “Deus é testemunha de que tenho saudade de todos vós, com a ternura de Cristo Jesus. E isto eu peço a Deus: que o vosso amor cresça sempre mais. ” E lhes recomenda que permaneçam fiéis até o “dia de Cristo”, ou seja, até a sua segunda vinda. Essa referência constante de Paulo à “segunda vinda” de Cristo bem denota o entendimento que ele tinha (e os cristãos da época) sobre este retorno de Cristo em breves dias. No nosso caso, o Advento nos convida a nos prepararmos para a chegada comemorativa daquele que vem, não apenas uma ou duas vezes, mas vem a nós todas as vezes que o buscamos. Com a liturgia do advento, nós fazemos essa preparação para o retorno de Cristo, espiritualmente, na vida da Igreja e nas nossas vidas de cristãos.

O evangelista Lucas, como de costume, muito detalhista, faz referências históricas bem precisas sobre a época em que João exerceu sua profecia: No ano décimo quinto do império de Tibério César, foi a palavra de Deus dirigida a João, no deserto. Tibério iniciou seu reinado no ano 14 d.C., portanto, o décimo quinto ano seria o ano 29. Pouco tempo depois, quando Jesus tinha 30 anos, ele foi batizado por João e assim iniciou sua vida de pregador. Essa referência histórica de Lucas fundamenta a contagem do tempo para o estabelecimento da data do nascimento de Jesus. E Lucas diz que João percorreu toda a região do Jordão, pregando o batismo da conversão, para o perdão dos pecados, a metanóia, ou seja, a mudança de mentalidade, aplicando um novo modo de compreender os textos sagrados, fazendo a passagem do antigo para o novo testamento. Na liturgia, o tempo do advento, em todos os anos, nos conclama a essa renovação interior, a viver a conversão pregada por João, a despertar para o cumprimento da promessa de Javeh aos patriarcas, fato que está para acontecer. Lucas se refere também às outras autoridades da época: Pilatos, governador da Judéia; Herodes, governador da Galiléia; Filipe, governador da Ituréia; Lisânias, governador de Abilene; Anás e Caifás, os sumos sacerdotes do templo. Ao contextualizar assim historicamente o início da vida missionária de Jesus, Lucas nos dá um testemunho bastante preciso não apenas deste fato, mas também da confirmação histórica da vida terrena de Jesus, pois esses personagens, cuja presença é bem viva nos textos dos evangelhos, tem existência real indubitavelmente confirmada. Ainda assim, há pessoas que duvidam se Jesus Cristo realmente existiu...

Podemos observar na exortação de Paulo aos filipenses uma correlação com a pregação de João Batista, acerca da preparação dos caminhos, da seguinte forma. João se refere às ações iniciais da conversão, enquanto Paulo se refere à continuidade desta. A conversão do coração não é algo que acontece apenas uma vez na vida, não é um fenômeno único, mas permanente, renova-se a cada dia. Quando Paulo diz que aquele que começou em vós uma boa obra (a conversão), há de levá-la à perfeição, quer dizer, há de sustentá-los na fé perseverantes até o final. A isso chamamos de conversão contínua e que representa o crescimento espiritual, tanto no conhecimento quanto no discernimento. Essa é a mensagem que, a cada ano, o tempo do advento vem nos trazer.

A exortação de Paulo aos Filipenses, assim como a pregação de João Batista, se aplicam a todos nós. A preparação do Natal do Senhor é um tempo oportuno de renovação das nossas esperanças e dos nossos compromissos de cristãos, no sentido de tornar o nosso mundo um lugar melhor para todos.

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COMENTÁRIO LITÚRGICO - 1º DOMINGO DO ADVENTO - 01.12.2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 1º DOMINGO DO ADVENTO – O FINAL E O COMEÇO – 01.12.2018

Caros Confrades,

Antes do final do ano civil, o calendário da Igreja Católica dá início ao seu novo ano litúrgico, que costumeiramente coincide com a primeira semana de dezembro do ano anterior, de acordo com a posição do dia de Natal no calendário civil, pois o ano litúrgico se inicia quatro semanas antes do Natal. A organização litúrgica da Igreja Católica distribui, no período de doze meses, toda a história da salvação, que historicamente demorou vários séculos, fazendo-nos reviver, a cada ano, todos os fatos marcantes da intervenção de Deus junto aos homens. Esta prática de dividir a Bíblia em porções correspondentes ao número de semanas do ano já existia entre os judeus, desde os tempos de Esdras, porém o calendário judeu se limita à Torah. No calendário litúrgico católico, as leituras litúrgicas abrangem toda a história da salvação, desde a aliança de Javeh com Abraão até a morte e ressurreição de Cristo e a vinda do Espírito Santo. Com a liturgia de hoje, 1º domingo do advento, tem início o ano litúrgico de 2019. De acordo com as regras da instrução oficial do Secretariado da Liturgia, este ano litúrgico é identificado com a letra C. Isso porque as leituras bíblicas são divididas em três grupos temáticos, repetindo-se a cada três anos.

Neste primeiro domingo do advento, a liturgia nos leva a refletir sobre as coisas que hão de vir, ou seja, os fenômenos indicadores do “final dos tempos” (adventura), bem como sobre o Menino que vai chegar (adveniens), convidando-nos a preparar o coração para recebê-lo com espírito renovado. É curioso esse contraponto que a liturgia faz entre o “final” e o “começo”, colocando as leituras com temas escatológicos e apocalípticos (evangelho de Lucas) junto da leitura do profeta Jeremias, anunciando aquele que vai chegar, para fazer valer a lei e a justiça sobre a terra, isto é, o Messias. Essa junção de temas conflitantes vem marcar a constante renovação que deve ocorrer em nossas vidas, demonstrando que o fim pode ser sempre um novo começo. O advento recorda a primeira vinda de Jesus, em forma humana e no tempo histórico; as coisas futuras recordam a segunda vinda de Jesus, não mais como criança nem no plano cronológico, mas como supremo juiz.

Esse tema da segunda vinda de Jesus, conforme abordamos em comentários anteriores, foi muito caro aos primeiros cristãos, que esperavam isto como algo iminente, de modo que alguns até deixaram de trabalhar, porque ele estava já chegando. O apóstolo Paulo era um dos que esperavam ver a segunda vinda de Jesus. Porém com a demora desse retorno, a compreensão foi mudando de perspectiva e, ao longo dos tempos, passou por diversos quadros interpretativos. Agora, muitos séculos depois e com a evolução do conhecimento humano, já não se deve pensar numa “data” determinada no calendário, nem mesmo num dia incerto e indefinido, como está escrito no evangelho (Lc 21, 35). Na minha modesta opinião, sou levado a crer que não cabe mais pensar num evento de dimensões cósmicas, como consta com detalhes na narração do evangelho lido neste domingo (Lc 21, 25), e sim numa circunstância que se realizará na dimensão atemporal, no plano da eternidade, quando ultrapassarmos o umbral da materialidade. Quando adentrarmos a dimensão da eternidade, encontraremos o Filho do Homem sentado sobre as nuvens, com todo o seu poder e glória, julgando e premiando os seus seguidores de coração sincero.

Na primeira leitura, o profeta Jeremias diz que “naqueles dias, farei brotar a semente da justiça que fará valer a lei... e Jerusalém terá uma população confiante... e será designada como 'o Senhor é a nossa justiça'”. (Jr 33, 15). A Igreja é a nova Jerusalém, lembrando aquela que um dia foi destruída, mas Deus a restaurou com o nome de Justiça. Isso ocorrerá 'naqueles dias' que não se sabe quando serão, mas que, com certeza, será na Jerusalém celeste. Dizer que o seu nome será “o Senhor é nossa justiça” significa que devemos considerar que a justiça divina não tem comparação com a justiça dos homens. A justiça de Deus é, na verdade, a sua misericórdia, o seu infinito amor para conosco, porque se Ele fosse nos julgar, do modo como nós costumamos julgar os nossos semelhantes, coitados de nós.

Então, no advento, a cada ano, nós reiniciamos a nossa preparação para esse futuro encontro com o Filho do Homem em seu tribunal da misericórdia, através dos atos litúrgicos que nos rememoram a vida histórica de Cristo, para que estejamos sempre vigilantes, como Ele próprio ensinou. Na segunda leitura, carta de Paulo aos cristãos Tessalonicenses (1Ts 4,1), o apóstolo os exorta a viverem como foi ensinado a eles, para agradar a Deus, seguindo as instruções que lhes foram passadas em nome do Senhor Jesus. Paulo estava preocupado com os Tessalonicenses, porque em sua visita àquela cidade, houve uma ríspida discussão entre ele e os judeus, fato que levou Paulo a fugir da cidade. Depois, ele mandou para ali Timóteo, para sondar o ambiente e ficou muito feliz com a informação deste de que os tessalonicenses continuavam fiéis à mensagem cristã. Por isso, Paulo os exorta a continuarem com aquele mesmo fervor religioso, preparando-se para o retorno de Cristo que, segundo o entendimento da época, se daria dentro de pouco tempo.

O evangelho de Lucas (Lc 21, 25-36) traz a clássica narrativa daqueles fatos que são indicativos do “final dos tempos”: “Haverá sinais no sol, na lua e nas estrelas. Na terra, as nações ficarão angustiadas, com pavor do barulho do mar e das ondas.” Em relação à conduta das pessoas, o texto do evangelho é assustadoramente dramático: “Os homens vão desmaiar de medo, só em pensar no que vai acontecer ao mundo, porque as forças do céu serão abaladas.” Os cristãos de todas as épocas, mas sobretudo dos primeiros tempos, tremiam diante dessas leituras e alguns até deixaram de trabalhar, porque a volta do Senhor estava próxima. Ora, Jesus disse diversas vezes que somente o Pai sabe esse dia, nem Ele sabia, como é que uns pobres mortais poderão adivinhá-lo? Por isso, mais importante do que tremer com a expectativa daquele “dies irae, dies illae” (como dizia o antigo cântico gregoriano), o que nós devemos fazer é seguir o que Jesus recomendou: “Tomai cuidado para que vossos corações não fiquem insensíveis por causa da gula, da embriaguez e das preocupações da vida, e esse dia não caia de repente sobre vós; pois esse dia cairá como uma armadilha sobre todos os habitantes de toda a terra.” (Lc 21, 34-35). Esse dia é aquele em que iremos nos encontrar diante do tribunal da misericórdia e desse dia ninguém conseguirá escapar. Daí que a preocupação de Cristo conosco é para que não nos deixemos dispersar pelos prazeres materiais e pelas preocupações da vida, para que a nossa fé esteja sempre atenta. Mais do que impressionar-se com o abalo das forças celestes, a nossa preocupação deve estar voltada para a nossa própria conduta, para a nossa fidelidade com os compromissos do nosso batismo. Cristo sabe o quanto isso é difícil para cada um de nós, frente a tantas distrações e encantamentos que a realidade material lança sobre nós. Daí o conselho que ele nos dá: ficai atentos e orai a todo momento, para terdes força pra ficar de pé diante do Filho do Homem.

É curioso como, ao longo do tempo, as pessoas leram essa passagem do evangelho e se concentraram na descrição dos fenômenos cósmicos, que na verdade estão fora do nosso controle, e esqueceram dessa outra parte em que Jesus nos exorta a agir com moderação, sem nos deixarmos seduzir pelos apelos dos prazeres corporais, pois isso sim depende de nós. Então, o ensinamento de Cristo para que fiquemos vigilantes sempre não se refere a um tempo futuro e indefinido, mas ao nosso tempo existencial. A nossa fé n'Ele deve ser renovada a cada dia, para que nossa expectativa não se volte para um fim catastrófico do mundo, mas para um fim sereno dos nossos dias, porque estes têm um prazo até certo ponto previsível. E será nesse momento que precisaremos ter forças para ficar de pé diante do Filho do Homem. A nossa força será medida pela nossa perseverança. Desse modo, quando o advento nos convida a estar vigilantes porque não sabemos o dia nem a hora, a nossa atenção não deve se voltar para “o Filho do Homem, vindo numa nuvem com grande poder e glória”, mas para o dia em que cada um de nós deveremos ficar em pé diante d'Ele.

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sábado, 24 de novembro de 2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO - FESTA DE CRISTO REI - 25.11.2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 34º DOMINGO COMUM – FESTA DE CRISTO REI – 25.11.2018.

Caros Leitores,

Neste 34º domingo comum, encerra-se o ano litúrgico católico, com a festa de Cristo Rei do Universo. Esta celebração foi instituída em 1925, pelo Papa Pio XI, com um objetivo religioso-político, no período histórico que mediou entre as duas grandes guerras mundiais e num contexto de grande ascensão do ateísmo no mundo, com a vitória dos regimes comunistas na Ásia. O objetivo do Papa era, ao mesmo tempo, contrapor-se à teologia modernista, muito em voga no início do século XX, na Europa, e também chamar a atenção da comunidade internacional para a figura de Cristo, o soberano acima de todos os dirigentes políticos.

A motivação teológica desta festa litúrgica se concentra na 'segunda vinda' de Cristo, quando ele virá concretizar as profecias que falam de sua eterna glória e do seu grande poder, como a que lemos na primeira leitura de hoje, retirada do profeta Daniel. O profeta teve uma visão terrível de quatro grandes animais que desciam do céu e foi dado a cada um grande poder de destruição. Depois, veio um ancião sentado num trono de fogo, e logo depois veio o filho do homem: “eis que, entre as nuvens do céu, vinha um como filho de homem, aproximando-se do Ancião de muitos dias, e foi conduzido à sua presença. Foram-lhe dados poder, glória e realeza, e todos os povos, naçðes e línguas o serviam: seu poder é um poder eterno que não lhe será tirado, e seu reino, um reino que não se dissolverá.” (Dn 7, 13-14). Na sequência da leitura, que não está na liturgia, o próprio Daniel ficou espantado com a visão e pediu que lhe fosse explicado aquilo, então ele soube que os animais eram reis de grande poder que surgiriam ali, mas seriam submetidos pelo poder daquele que virá por último. Tal figura protagoniza a vinda de Cristo, corroborada assim no Apocalipse: “Jesus Cristo, a testemunha fiel, o primeiro a ressuscitar dentre os mortos, o soberano dos reis da terra.” (Ap 1, 5). E ainda no evangelho de Marcos: “Então vereis o Filho do Homem vindo nas nuvens com grande poder e glória. Ele enviará os anjos aos quatro cantos da terra e reunirá os eleitos de Deus, de uma extremidade à outra da terra.” (Mc 13, 26-27). Embora a liturgia de hoje não tenha escolhido este trecho do evangelho de Marcos, ele se encaixa totalmente no contexto das duas leituras anteriores.

Conforme eu já tive oportunidade de expressar aqui neste espaço virtual, na minha opinião pessoal (que não é doutrina oficial da Igreja Católica, mas um comentário reservado meu), eu não concordo com essa exaltação dada pela liturgia à figura de Cristo Rei do Universo. Em toda a sua pregação, Ele nunca quis ser exaltado como chefe, ele sempre repreendeu os discípulos e pessoas da comunidade, quando queriam enaltecê-lo, assim como repreendia os discípulos, quando entre si disputavam quem seria o maior, dizendo que o maior de todos deve ser o que serve a todos. Ele deu muitos exemplos disso. Então, fica me parecendo essa homenagem a Cristo Rei como um contrassenso a tudo o que ele pregou. Fico com a impressão de que Ele rejeitaria tal homenagem, se tivessem lhe perguntado antes. Além do mais, essa imagem do rei é algo que recorda os tempos antigos e medievais, nos quais a figura real era algo que fazia parte do dia a dia das pessoas, porque a autoridade maior em toda parte era a de um rei. Mas no nosso tempo, a figura do rei perdeu muito a sua importância, politicamente existem poucos reis. Na época em que o Papa instituiu essa festa, ainda havia reinados na Europa, mas estes se extinguiram com a 2a guerra mundial. Por outro lado, o arquétipo real tornou-se entre nós algo folclórico, presente nos folguedos populares, de modo que a imagem do rei já não transmite um significado de algo verdadeiro, mas faz parte muito mais do mundo da fantasia.

Eu ainda vejo nisso outro agravante. A celebração de Cristo Rei do Universo nos leva a questionar o alcance desse reinado. Até onde nos é dado saber, Cristo veio trazer a salvação aos seres humanos, isto é, habitantes da terra. As leituras bíblicas, escritas numa época em que a compreensão de universo se restringia ao limite geomórfico, fazem referência aos 'reinos da terra'. Mas, em 1925, quando a festa foi estabelecida, já se tinha o conceito de universo bem mais estendido, e por isso o título da festa é Cristo Rei do Universo, já deveria ser vista não apenas como do planeta terra. Num comentário anterior, eu externei aqui uma opinião sobre o que eu suponho que se deva entender por “fim do mundo”, desmistificando aquela narração funcionalista do fim dos tempos, com as estrelas caindo e os mortos saindo dos túmulos, imagens que foram bastante exploradas pelos artistas medievais. Ora, sabe-se hoje que o universo tem uma dimensão inefável, ilimitada, incomensurável, a cada dia a ciência faz afirmações de descobertas sobre a existência de outros planetas em condições idênticas às da terra, com grande probabilidade de que haja vida inteligente por lá. Pois bem. Se houver esses mundos, então a mensagem de Cristo também teria chegado lá? Cristo teria se encarnado lá também e teria pregado seu evangelho ali? Até hoje, toda a teologia foi elaborada com base no pressuposto de que somente na terra existe vida inteligente. Como ficará a doutrina religiosa quando forem (e isso acontecerá, embora não se saiba quando) finalmente encontrados outros seres inteligentes, com a mesma estrutura mental dos habitantes da terra? Ora, a referência a Cristo Rei do Universo (e não apenas da terra) supõe que a Sua pessoa e a sua mensagem estariam presentes em todos os confins do cosmos. Não há resposta cabal para este questionamento. Porém, por pura dedução de lógica, partindo da afirmação teológica de que Deus criou tudo o que existe e que no Filho, nascido do Pai antes de todos séculos, todas as coisas foram feitas, podemos concluir que, se existirem outros mundos semelhantes ao nosso, ali também será encontrada a mensagem cristã.

Lembremo-nos da profecia de Daniel (primeira leitura), na sua visão dos animais ferozes, que representavam os reis que surgiriam ali naquela parte da terra. A sua abrangência era limitada, porque não podia ser diferente do conhecimento que havia naquela época. Ao longo da história, diversos estudiosos tentaram associar essas figuras metafóricas das profecias bíblicas com alguns personagens reais. E fora do contexto bíblico, são muito famosas as centúrias de Nostradamus, as quais são recorrentemente interpretadas em confronto com os fatos históricos. Então, partindo disso, considerando a compreensão que se tem hoje do universo, precisamos repaginar a nossa crença nessas verdades escatológicas, que os textos bíblicos lançam apenas na perspectiva geoestacionária. A festa de Cristo Rei está relacionada com a “segunda vinda” de Cristo e essas narrativas também estão na perspectiva da profecia danielina e precisam ser reinterpretadas. E para isso precisamos ultrapassar também o conceito de “rei” como conhecemos concretamente e historicamente. O “reinado” de Cristo (isso ele mesmo disse) não é deste mundo, então não podemos pensar sobre ele numa dimensão material, cosmológica, ainda que nas gigantescas proporções do universo apresentado pela ciência. O universo onde Cristo efetivamente “reina” repousa no coração, na intuição, no discernimento, na adesão dos seus fiéis e não deve ser imaginado como um local onde se estabeleceria esse trono fictício. O “reino” de Cristo ultrapassa os limites da temporalidade e somente será possível compreendê-lo se nos dispusermos a ir além da imaginação e da limitação da nossa racionalidade.

Meus amigos, precisamos sempre adaptar a nossa fé religiosa às novas configurações temporais. Isso às vezes pode chocar alguém, por isso peço desculpas se não concordarem com essa forma de pensar e teologia da esperança. A segunda vinda de Cristo, creio eu, somente será perceptível para nós quando ultrapassarmos os umbrais do tempo e do espaço, o que ocorrerá com a nossa morte. Mas, apesar de discordar desse aparato suntuoso que a liturgia sugere com a festa de Cristo Rei, eu creio também que Jesus é verdadeiramente o soberano da verdade, da justiça, da paz, da igualdade e da fraternidade e que, para isso, ele não precisa de um manto real nem de um cetro nem de um trono, porque o seu manto é a verdade, o seu trono é a justiça e o seu cetro é a paz que ele vem trazer todos os dias a todos nós.

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domingo, 18 de novembro de 2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 33º DOMINGO COMUM - 18.11.2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 33º DOMINGO COMUM – A PARUSIA – 18.11.2018

Caros Leitores,

No 33º domingo comum, aproximando-se o final do ano litúrgico, a liturgia nos convida a refletir sobre o final dos tempos, a parusia, a segunda vinda de Cristo, que virá para julgar os vivos e os mortos. Esses tema foi muito explorado pelos artistas medievais, que deixaram registrada, em magníficas pinturas, cada um ao seu modo, a interpretação que fizeram das palavras do evangelho de Marcos, acerca do dia do juízo: o sol escurecerá, a lua não mais dará sua luz, as estrelas cairão... Com os conhecimentos científicos de atualidade, constata-se que se trata de uma visão alegórica do final dos tempos, todavia, ainda paira na mentalidade de grande parte da nossa população a imagem dessa gigantesca hecatombe, de modo que cada desastre natural que ocorre facilmente é associado a essa profecia. Precisamos, pois, repaginar o nosso entendimento sobre essas coisas futuras.

Na leitura da profecia de Daniel (Dn 12, 1-3), aparece a figura imponente de Miguel, o defensor que virá resgatar todos aqueles cujos nomes se acharem inscritos no livro, os quais brilharão como estrelas por toda a eternidade, os justos, aqueles que foram sábios e ensinaram aos outros o caminho da virtude. Os que não tiverem procedido corretamente em vida, serão lançados no opróbrio eterno. Alguns trechos do livro de Daniel são classificados, pelos biblistas, como literatura apocalíptica, isso ocorre também com passagens do livro de Ezequiel, possibilitando a interpretação alegórica. Podemos constatar que Jesus se serve dessas mesmas expressões na sua catequese ao povo, em forma de parábolas, para explicar aos seus ouvintes acerca do juízo final. Sempre foi uma grande curiosidade dos seres humanos, em todas as épocas, saber o que acontecerá após a morte ou no fim dos tempos. Em verdade, é o caso de perguntarmos: haverá mesmo um final dos tempos objetivamente falando? Na filosofia, Kant já explicou, de forma incontestável, que o tempo não existe fora de nós, sendo uma percepção subjetiva humana. Então, a expressão final dos tempos deve ser entendida como fim do mundo ou o final do universo. Ocorre que com a indizível e imensurável dimensão que o universo se apresenta para os astrônomos e astrofísicos, pode-se colocar em dúvida se o universo realmente se extinguirá, ainda que num futuro distante. A ciência comprova que o universo se encontra em constante expansão, ou seja, em evolução contínua e dando origem a novos corpos celestes, de modo que falar em ‘fim do mundo’ é algo incabível na concepção científica atual. Só por essa breve referência ao problema, já se pode avaliar a complexidade da ideia que envolve a expressão “final dos tempos”.

No evangelho de Marcos (Mc 13, 24-32), lemos aquela descrição assustadora e detalhada de Jesus aos discípulos, sobre as coisas futuras, palavras que sempre foram, ao longo da história, entendidas literalmente. Porém, se nós as lermos com uma mentalidade serena, à luz do que hoje se conhece acerca do universo, mesmo quem não for especialista no assunto perceberá que se trata de eloquente alegoria. “O sol escurecerá...” quando eu era aluno do curso ginasial (isso já tem uns bons 50 anos), eu li uma matéria que dizia assim: daqui a dois milhões de anos, o sol esfriará. Nunca esqueci disso. Essa deve ser a tendência natural, se imaginarmos que o sol é um corpo celeste que realiza intensa reação atômica, a tendência é que, com o passar do tempo (muito tempo mesmo), sua energia irá regredindo progressivamente. Mas sabe-se, por outro lado, que o nosso sol é apenas uma estrela de quinta grandeza e que existem inumeráveis sóis no universo, o que significa que se, acaso, o nosso sol escurecesse, em termos siderais, isso não faria grande diferença. Pura alegoria, portanto.

“As estrelas começarão a cair do céu...” essa era a concepção cosmológica dos povos antigos, que entendiam o firmamento como uma semiesfera, onde estariam penduradas as estrelas. Nos dias de hoje, nem uma criança do ensino fundamental pensa mais assim. Os riscos que, teoricamente, existem são de eventuais colisões de corpos celestes. “A lua não mais brilhará...” é outra frase que não resiste à mínima crítica, porque todos sabemos que a lua não tem luz própria, mas reflete a luz solar. Ora, essas frases só podem ser compreendidas metaforicamente. Eu fico boquiaberto quando ouço pessoas que, publicamente, afirmam que a Bíblia está cheia de erros, por causa dessas passagens. Essas pessoas não conseguem pensar alegoricamente e nem percebem que as expressões bíblicas reproduzem uma mentalidade e um conhecimento científico de diversos séculos antes de nós e que precisam ser devidamente aculturados para fazerem sentido na nossa época.

Agora, passando para as outras expressões contidas nesse mesmo contexto, no evangelho de Marcos, obrigatoriamente também concluiremos que elas devem ser entendidas metaforicamente: “vereis o Filho do Homem vindo nas nuvens”..., “enviará os anjos aos quatro cantos da terra e reunirá os eleitos de Deus de uma extremidade a outra...”, “essa geração não passará até que isso aconteça”... São frases que precisam ser relidas e reinterpretadas no seu significado cultural e religioso, na mesma proporção em que fizemos com as afirmações de conteúdo cosmológico. Com certeza, Jesus não aparecerá sentado numa nuvem, os anjos não tocarão trombetas ensurdecedoras para despertarem os mortos e os reunirem aos vivos, pois se forem somadas as quantidades de seres humanos de todas as épocas, veremos que não haveria espaço físico suficiente na terra para conter tanta gente. A geração que não passará não é a geração cronológica, mas a “gens” humana. E aqui está a afirmação mais grave. Eu entendo aqui que a ganância dos seres humanos vai terminar por inviabilizar a vida terrestre. No ritmo que as coisas estão acontecendo, isso parece que não vai demorar muito. A sucessão de desastres ecológicos provocados pela irracionalidade e a ambição de alguns irresponsáveis irá, isso é certo, por um fim na humanidade. E aí sim, teremos o “final dos tempos”. Não do modo literal como está descrito no texto do evangelista Marcos, mas no sentido de que, com a extinção dos seres humanos, o tempo realmente se extinguirá, porque não haverá mais seres humanos com consciência e racionalidade para reconhecê-lo e contabilizá-lo.

Importa aqui assinalar também que Jesus, naquela ocasião e de forma profética, se referia à destruição de Jerusalém, por causa da infidelidade do povo judeu e pelo fato de não o terem reconhecido como o Messias esperado. A Jerusalém histórica, com efeito, foi destruída pelo exército romano no ano 70 anos depois de Cristo. A “grande tribulação” a que Jesus se referiu no seu discurso metafórico se reportava, em primeiro lugar, à profanação do templo de Salomão pelos romanos, o que iria causar (como de fato causou) grande comoção para os judeus. Mas após a destruição dessa Jerusalém de pedras e tijolos, ergueu-se outra Jerusalém simbólica, atemporal e espiritual, que é a Igreja de Cristo, que veio substituir e firmar-se sobre as ruínas do templo salomônico.

Aqui nesse contexto se encaixa o texto da segunda leitura, da carta aos Hebreus (Hb 10, 11-12): “Todo sacerdote se apresenta diariamente para celebrar o culto, oferecendo muitas vezes os mesmos sacrifícios, incapazes de apagar os pecados. Cristo, ao contrário, depois de ter oferecido um sacrifício único pelos pecados, sentou-se para sempre à direita de Deus.” Os cultos ofertados no templo de Salomão não têm comparação com a oferenda de Cristo, que foi única e definitiva. A redenção operada por ele transformou aquela Jerusalém de pedras e tijolos em um templo imperecível, que não está mais situado num espaço geográfico, mas no coração de todos aqueles que creem. E os salvos não estão mais inscritos “num Livro”, como disse o profeta Daniel, mas estão espalhados por todos os confins da terra, reunidos sob a presença mística de Cristo, que afirmou: onde houver dois ou mais reunidos em meu nome, eu estarei ali presente. Não é mais necessário se deslocar até uma Jerusalém geográfica ou até o templo físico, porque a Jerusalém celeste e o templo espiritual estão onde estiverem os cristãos unidos em sua fé. Essa é a grande diferença. Essa é a verdadeira realidade que representa o conjunto das coisas futuras.

Se observarmos bem, o discurso de Cristo é fundamentalmente de cunho ecológico, bem atualizado para a linguagem do nosso mundo atual. O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não passarão. Aquela concepção cosmológica de céu e terra não faz mais nenhum sentido para a mentalidade moderna. São céu e terra passados. Mas essa geração não passará até que tudo isso aconteça. Infelizmente, estamos presenciando, sob diversas formas de condutas de pessoas sem escrúpulo da geração humana, ações devastadoras que nos induzem a pensar que “as folhas da figueira da parábola estão ficando verdes e os frutos não demorarão a aparecer”. Que Deus dê a essas pessoas a chance de se conscientizarem disso, antes que seja tarde demais.

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domingo, 11 de novembro de 2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 32º DOMINGO COMUM - 11.11.2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 32º DOMINGO COMUM – O ÓBULO DA VIÚVA – 11.11.2018

Caros Leitores,

Neste 32º domingo comum, a liturgia traz para nossa reflexão dois episódios envolvendo viúvas: uma do tempo do profeta Elias e outra do tempo de Cristo. Em ambos os casos, observa-se a mesma atitude, que representa um louvável exemplo de generosidade e de desprendimento. A liturgia reúne esses dois fatos marcantes, ocorridos em épocas históricas bem distantes uma da outra, chamando a nossa atenção também para a superação do preconceito, que naquela época era forte contra as viúvas, enquanto no nosso tempo adquire formas diversificadas. Somos convidados a vencer o preconceito, não apenas pelo aspecto jurídico e legalista, porque este só alcança a conduta exterior, mas e principalmente pelo aspecto caritativo-cristão, que parte do íntimo do nosso coração.

Na primeira leitura, retirada do Livro dos Reis (1Rs 17, 10-16), temos o episódio protagonizado pelo profeta Elias, numa época de grande seca na região do Sinai, onde se encontrava estacionado o povo hebreu, levando a população a passar grandes necessidades de abastecimento de alimentos. O Profeta percorria a região, a mandado de Javeh, a fim de exortar o povo contra a idolatria, que o contaminava facilmente, quando estavam em contato com os povos do deserto. Ao chegar na cidade de Sarepta, o Profeta pediu pão a uma mulher que colhia lenha, ao que ela respondeu que só tinha um pouco de farinha e de azeite, pra fazer o último pão que comeriam, ela e o filho, porque depois disso não teriam mais o que comer e o único jeito era esperar a morte. Elias pediu que ela fizesse aquele último pão para ele, assegurando que Javeh não deixaria que faltasse o necessário para ela e o filho, até que sobreviesse novamente a fartura. Assim aconteceu.

Se aquela não fosse uma mulher de fé, ela não teria acreditado no Profeta, teria negado a ele aquele último pão, com o qual iria saciar a fome provisória dela e do filho, encaminhando-se em seguida para a inanição. Mas, não. Ela acreditou no Profeta e deu a ele o seu último alimento. E aconteceu o milagre, conforme Elias predissera: sua farinha era reposta e seu azeite era renovado a cada dia, e assim ela teve alimento por muitos dias além. O Profeta comeu e seguiu o seu caminho, mas a promessa de Deus foi cumprida, porque a viúva fez a sua oferta de coração sincero.

Tempos depois, um episódio semelhante envolvendo outra viúva é narrado pelo evangelista Marcos (Mc 12, 41-44), numa ocasião em que Jesus se encontrava no templo e observava as ofertas que os judeus faziam, de acordo com o costume de doar o dízimo para o culto. Os ricos depositavam moedas grandes e pesadas, que faziam eco ao caírem no fundo do cofre. Provavelmente, havia o costume de deixar o dobrão cair subitamente, para chamar a atenção dos transeuntes sobre o tamanho da oferta. Daí a pouco, chegou uma pobre viúva que colocou só duas moedinhas, que nem fizeram barulho ao cair no cofre. Jesus observava os doadores e logo ressaltou para os discípulos a diferença entre as ofertas: os primeiros, os ricos, doavam o que lhes sobrava, enquanto a viúva doara tudo o que possuía; os ricos faziam a oferta de forma ostensiva e com barulho, destacando o cumprimento da sua obrigação, enquanto a viúva fazia a doação com humildade e discrição, não por obrigação, mas por devoção, doava de coração o próprio coração. E Jesus completou: a oferta dessa mulher com duas moedinhas sem valor foi muto maior do que a dos anteriores, que fizeram tanto barulho, porque Deus não olha a quantidade, mas a qualidade da nossa oferta.

O evangelista não relata os eventos futuros relacionados a este fato, mas com certeza Deus proveu aquela pobre mulher com maiores bênçãos e retribuições, assim como deve ter recusado as ofertas dos outros fanfarrões, os quais, nas palavras do próprio Jesus “receberão a pior condenação” (Mc 12, 40). A teologia do dízimo utiliza o exemplo da viúva para fortalecer a convicção de que todos os paroquianos são responsáveis pela manutenção do templo e dos serviços religiosos, fazendo doações espontâneas e regulares, evitando-se a 'cobrança' de espórtulas para celebração dos sacramentos, como era a prática tradicional. Apenas os casamentos requintados, que são na verdade muito mais acontecimentos sociais do que cerimônias religiosas, são taxados aos que os requisitam.

O direito canônico não estipula valores para o dízimo, assim como não imprime qualquer tipo de sanção para os fiéis nesse sentido. No Antigo Testamento, havia o entendimento de que o dízimo seria a décima parte das colheitas e dos ganhos auferidos. No entanto, pelo comentário que Jesus faz acerca da oferta da viúva, podemos concluir que, mais importante do que a quantidade da oferta do dízimo é a qualidade da oferta que cada um faz. Muitos pregadores das organizações eclesiais ditas evangélicas aproveitam-se dessa norma veterotestamentária para cobrar dos fiéis os 10% do salário de cada um e muitos contribuem assim mesmo, de forma crédula e ingênua, supondo estarem adquirindo um 'terreninho' no céu. Outras pessoas criticam as ofertas e contribuições feitas pelos católicos, alegando que a Igreja é muito rica e devia vender suas propriedades e distribuir aos pobres a arrecadação. Com certeza, essas pessoas não conhecem os serviços de assistência popular realizados nas paróquias, os quais não seriam possíveis sem estruturas materiais e sem suporte monetário. O dízimo é uma contribuição para o serviço do templo, que não precisa se expressar apenas em valor financeiro, mas pode também ser ofertado em forma de serviço ou de colaboração com as atividades paroquiais. Esse serviço voluntário é essencial para que o trabalho evangelizador possa atingir um número maior de pessoas, sobretudo os mais necessitados. Na concepção atual, a palavra dízimo foi desassociada do seu étimo de corresponder à décima parte dos bens para significar o tamanho do seu coração. De nada valeria entregar para a sua Paróquia matematicamente dez por cento das suas rendas, se aquilo não fosse uma atitude de fé, diferente de mera obrigação.

Na segunda leitura, extraída da carta aos Hebreus (Hb 9, 24-28), o hagiógrafo faz referência à oferta que Cristo fez de si próprio e que se diferencia completamente daquelas que eram historicamente feitas pelos sacerdotes do Antigo Testamento. Estes precisavam entrar no templo todos os anos e repetir suas preces rituais, oferecendo a Javeh o sangue alheio, ou seja, as oferendas dos animais sacrificados, que eram os “dízimos” apresentados pelos mais abastados. Porém, Cristo entrou no tabernáculo apenas uma vez e ofereceu o seu próprio sangue, por isso, ele não precisará mais repetir a oferta, porque esta é completa e definitiva. “Foi agora, na plenitude dos tempos, que, uma vez por todas, ele se manifestou para destruir o pecado pelo sacrifício de si mesmo.” (9, 26) A liturgia faz o contraponto entre as ofertas dos sacerdotes do Antigo Testamento com a oferta de si próprio por Cristo, na mesma linha de raciocínio que Jesus fez o contraponto entre a oferta feita pelos fariseus no templo e a oferta da viúva pobre: aqueles fizeram uma oferta imperfeita (o que lhes sobrava) e não agradável a Javeh, mas estoutra fez a oferenda perfeita (o próprio coração). O autor da carta aos Hebreus inspirou-se, certamente, no comentário que Jesus fez aos discípulos acerca da oferenda da viúva: “'Em verdade vos digo, esta pobre viúva deu mais do que todos os outros que ofereceram esmolas. Todos deram do que tinham de sobra, enquanto ela, na sua pobreza, ofereceu tudo aquilo que possuía para viver'.

A personagem singela e discriminada da viúva, exaltada por Jesus, nos leva a refletir sobre as discriminações que a sociedade também faz a algumas pessoas, nos tempos atuais. Na antiguidade, as viúvas pertenciam à classe mais baixa da sociedade, porque os direitos dos povos antigos não lhes garantiam nenhuma participação nos bens hereditários, que eram distribuídos entre os herdeiros diretos do falecido (filhos, netos, parentes consanguíneos), as viúvas eram excluídas da partilha. Por isso, elas eram as pessoas mais pobres da sociedade, fato que associado à condição feminina daqueles tempos as colocava em singular estado de miséria. Ao exaltar a contribuição da viúva, que ofertara tudo o que tinha para sobreviver e seria recompensada por Deus, Jesus nos ensina a respeitar e valorizar as pessoas, independentemente de sua condição social.

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segunda-feira, 5 de novembro de 2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO - SOLENIDADE DE TODOS OS SANTOS - 04.11.2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO – TODOS OS SANTOS – COMUM UNIÃO - 04.11.2018

Caros Leitores,

A liturgia comemora neste domingo a festa de Todos os Santos. Essa festa é necessária, porque dada a grande quantidade de pessoas canonizadas oficialmente pela Igreja e outras muito mais que, embora não estejam ainda no rol oficial, foram seguidores exemplares de Cristo, não seria possível fazer celebrações destacadas de todos os santos distribuindo-os pelos dias do ano. Além disso, esta solenidade litúrgica nos traz para a reflexão a verdade teológica da 'comunhão dos santos', que nós rezamos no Credo, e faz parte dos enunciados básicos da fé católica. Esta comunhão (melhor explicada no termo latino 'communio'), ou seja, a comum união de todos os cristãos, inclui não apenas aqueles que já estão no reino de Deus (a comunidade gloriosa) mas também aqueles que ainda estão a caminho, isto é, nós (comunidade operosa), que vivemos no meio das vicissitudes do tempo a proclamar com nossa vida cristã a nossa fé na ressurreição.

É bem significativo refletir sobre o dogma religioso da comunhão dos santos e sobre o próprio significado do termo 'santos', porque nós habitualmente designamos com essa palavra aqueles cristãos que foram canonizados, ou seja, aqueles que tiveram suas virtudes publicamente reconhecidas pela Igreja Católica e são colocados como modelos para todos. Não podemos, porém, esquecer que o apóstolo Paulo, na carta aos Romanos (8, 32) utiliza o termo 'santos' como sinônimo de cristãos e, portanto, todos nós somos santos. Ou, pelo menos, somos destinados para a santidade. Ser santo não significa nunca cometer algum deslize, não significa viver com o terço ou a Bíblia na mão ou recitando os salmos, não equivale a nunca ter raiva de alguém nem nunca ter cometido qualquer desobediência à lei de Deus. Os cristãos são santos porque foram santificados pelo sangue de Cristo, na Sua morte e ressurreição. A teologia ensina que a principal vocação do cristão é à santidade, nós todos nos encontramos neste caminho de busca da santidade. A tradição cultural religiosa comumente nos leva a fazer uma relação paradoxal entre eles e nós: eles, os santos; nós, os pecadores. De fato, teologicamente, não é assim. Tanto aqueles que foram canonizados são santos, quanto também os cristãos falecidos na graça de Deus e nós, que peregrinamos do “vale de lágrimas” e que tomamos os canonizados como modelo de nossa vida cristã. Quando o jovem perguntou a Jesus: Mestre, o que devo fazer para entrar na vida eterna? Jesus respondeu: observa os mandamentos (Lc 18, 18). Esta pergunta, com outras palavras, pode muito bem ser entendida assim: Mestre, o que devo fazer para ser santo? A resposta é a mesma: observa os mandamentos.

A comunhão dos santos é, portanto, um conceito equivalente ao que Paulo expressa nas suas cartas com o nome de 'corpo místico', do qual Jesus é a cabeça e nós somos os membros. Este corpo místico na sua forma visível é a Igreja e engloba todos os fiéis seguidores dos mandamentos de Cristo, de antes, de hoje, de ontem e de depois, todos formando uma unidade na diversidade dos carismas, mas mantendo-se unidos no Espírito. É nesse contexto que devemos entender a primeira leitura da liturgia de hoje, retirada do Apocalipse de João, onde ele fala no número dos que foram marcados na fronte (Ap 7, 4) para serem salvos, cujo quantitativo era de cento e quarenta e quatro mil. Numa linguagem direta, João se refere às doze tribos de Israel, num montante de doze mil de cada uma, para chegar a esse total. João era judeu e talvez tivesse a esperança de que os seus irmãos de raça ainda viessem aderir à mensagem de Cristo. Historicamente, sabe-se que isso não ocorreu, ao menos, não ocorreu ainda. Mas ele previu, logo a seguir, (Ap 7, 9) “uma multidão imensa de gente de todas as nações, tribos, povos e línguas, e que ninguém podia contar.” É aqui que nós entramos e essa multidão é tão imensa, que João nem teve como quantificar, e nem poderia. E todos também estavam marcados para serem salvos, uma vez que “estavam de pé diante do trono e do Cordeiro; trajavam vestes brancas e traziam palmas na mão. Todos proclamavam com voz forte: "A salvação pertence ao nosso Deus, que está sentado no trono, e ao Cordeiro".” (Ap 7, 9-10) Unindo num mesmo contexto as lições dos apóstolos João e Paulo, podemos concluir sem medo de errar: todos igualmente santos, todos igualmente irmãos, todos igualmente face a face com o Criador.

Na segunda leitura, o mesmo apóstolo João, na sua primeira carta (1Jo 3,2) usou uma expressão semelhante à de Paulo para dizer que todos somos santos: sermos chamados filhos de Deus. Ora, como poderia um filho de Deus não ser santo? Daí ele afirmar: “Caríssimos, desde já somos filhos de Deus, mas nem sequer se manifestou o que seremos!” Ou seja, nós já somos e ainda nem sabemos como é ser isso, pois nós abraçamos pela fé esse grande mistério revelado por Cristo, embora tal situação vá se consolidar somente no futuro. Assim, pela fé, nós já somos filhos de Deus, embora sem sabermos com clareza do que somos, pois isso somente se manifestará totalmente quanto O virmos face a face, quando então Ele será tudo em todos. A teologia tem uma expressão interessante para explicar isso: “já e ainda não”, é a grandeza do mistério que nós conseguimos alcançar com a nossa fé. Nós já somos santos, mas ainda não sabemos bem como é isso. Mas já somos. Isso só é possível para quem crê. Daí João ter escrito em 1Jo 3,1: este é o grande presente de amor que o Pai nos deu, o de podermos ser incluídos no rol dos seus filhos já desde agora, quando Ele ainda não se manifestou plenamente para nós.

A riqueza litúrgica da festa da comunhão dos santos se completa com o famoso sermão da montanha, no qual Cristo chama de bem aventurados todos os que estão submetidos a algum tipo de tribulação. Dizer que somos bem aventurados é o mesmo que dizer que nós somos santos. Em latim, bem aventurados se diz 'beati' (plural de beatus), que é a mesma palavra que em português se traduz por 'felizes', tradução que também aparece em algumas versões do texto sagrado. Curiosamente, Cristo chama de bem aventurados todos aqueles que, pela aparência social, seriam pessoas desventuradas. Havia um entendimento tradicional entre os judeus do farisaísmo de que as pessoas abençoadas por Deus (portanto, bem aventuradas) eram aquelas bem aquinhoadas de bens, que já recebem logo neste mundo uma recompensa abundante. Assim, perante essa visão farisaica, bem aventurados eram os ricos, os poderosos, os belos, os vencedores, os beneficiados pela sorte e pela esperteza. Os demais eram considerados pessoas amaldiçoadas, esquecidas por Deus, que desde logo já estavam sofrendo um castigo que continuariam a sofrer na outra vida.

Contrariando esse ponto de vista, Jesus por diversas vezes ressaltou as virtudes dos pobres e humildes, em contraposição à arrogância e ao orgulho dos ricos. Cito somente dois casos: do rei que preparou o banquete e os convidados não compareceram, tendo ele convidado os mendigos e os moradores de rua para se refestelarem. E ainda o caso da pecadora que lavou os pés dele com lágrimas na presença dos fariseus (não confundir com a figura de Maria Madalena, esta foi de quem Ele expulsou sete demônios – Lc 8, 2). No sermão da montanha (Mt 5), ele vai dizer quem são os verdadeiros bem aventurados: os pobres, os aflitos, os mansos, os famintos, os misericordiosos, os puros, os pacíficos, os perseguidos, os injuriados, todos aqueles a quem a tradição social excluía como os mais desprezíveis. E arremata: alegrai-vos e exultai porque grande será a vossa recompensa.

Caros amigos, vejamos então a nossa responsabilidade de cristãos enquanto chamados, vocacionados à santidade. Cada um de nós, na variedade das tarefas cotidianas, exercemos, do modo como Deus nos chama, a nossa vocação para a santidade. Não importa se um dia seremos canonizados, se teremos nossas virtudes reconhecidas e seremos colocados num altar, servindo como exemplo para os demais cristãos. Isso nem é necessário, porque o que nós somos e fazemos apenas a Deus interessa. Ocorre, porém, que devemos ter consciência de que nós já somos, embora ainda não tenhamos chegado lá. Isso significa que toda a nossa vida é um aprendizado, um treinamento contínuo, um exercício interminável na tentativa de superarmos nossas deficiências e nos livrarmos dos nossos pecados. O que Deus quer e espera de nós é que vivamos constantemente na busca daquilo que nos falta para alcançarmos a santidade plena. E o modo de irmos nos aproximando disso é praticando continuamente a caridade e o amor ao próximo.

Que nós sejamos fiéis ao ensinamento de Cristo e possamos nos aproximar sempre mais da perfeição que conduz à santidade.

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domingo, 28 de outubro de 2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 30º DOMINGO COMUM - 28.10.2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 30º DOMINGO COMUM – IGREJA EM SAÍDA – 28.10.2018

Caros Leitores,

Na liturgia deste 30º domingo comum, a leitura do profeta Jeremias faz alusão ao “resto de Israel”, uma expressão também usada pelo profeta Isaías (10, 20), referindo-se aos israelitas que foram libertados do cativeiro da Babilônia e haviam de retornar a Jerusalém. O “resto” significa o povo sobrevivente, aqueles que foram submetidos ao jugo do inimigo e agora retornam à liberdade. Num certo sentido, todos nós, que caminhamos no meio das tribulações da vida, fazemos parte deste “resto” do povo de Deus, a caminho da casa do Pai. O Papa Francisco tem enfatizado, em seus discursos, a imagem da Igreja “em saída”, ou seja, em constante atividade de evangelização, contrastando com a imagem tradicional da Igreja burocrática, embarreirada pelos seus muros e acomodada em seu lugar de conforto. O seguimento de Cristo exige presença e ação no mundo, para que o cristão seja sempre fermento, sal e luz.

A palavra inspirada do profeta Jeremias é bastante significativa tanto no contexto histórico do povo hebreu, quanto no caminhar geral de toda a humanidade. Diz ele: “Eis que eu os trarei do país do Norte e os reunirei desde as extremidades da terra; entre eles há cegos e aleijados, mulheres grávidas e parturientes: são uma grande multidão os que retornam ” (Jr 31, 8). Num primeiro momento, a profecia se dirige aos cativos da Babilônia, mas no momento seguinte, se refere a todos os crentes localizados em todos os confins da terra e esse grupo inclui pessoas sadias e pessoas em situações especiais, porque as vicissitudes da existência afetam as pessoas de diversas maneiras. Mas essas provações não devem abalar a fé do cristão, pois mesmo estando cego, aleijado, parido, necessitado de cuidados, todos serão conduzidos por um caminho reto para a terra prometida. A descrição do profeta Isaías sobre o “resto de Israel” é também bastante ilustrativa: “Um resto voltará, um resto de Jacó, para o Deus forte. Ainda que teu povo fosse inumerável como a areia do mar, dele só voltará um resto. A destruição está resolvida, a justiça vai tirar a desforra." (Is 10,20) . Isaías é mais enfático em relação àqueles que não aceitarão a salvação oferecida por Javeh. Embora, em tese, toda a humanidade seja convidada à salvação, no entanto, nem todos atenderão e assim a redenção trazida por Cristo não alcançará a todos, mas apenas ao “resto”, aos sobreviventes da tentação. E por que isso ocorrerá? Porque Deus não interfere na liberdade das pessoas, Ele oferece a salvação, mas espera que haja adesão da vontade, espera que o crente exercite a sua fé na Sua palavra.

A segunda leitura, da carta aos Hebreus, faz referência ao sacramento da salvação, que é mediado pelo sumo sacerdote. Trata-se de uma alusão indireta à comunidade eclesial, onde o crente pratica a sua fé e recebe os meios para superar os desafios que a vida cotidiana interpõe no nosso meio. O sacrifício expiatório de Cristo é rememorado pelo sumo sacerdote. Ele é retirado do meio do povo e, por isso, conhece as dificuldades e os entraves do existir temporal, portanto, sabe compreender as fraquezas dos irmãos, porque ele é também afetado por essa fraqueza. Então, ao oferecer o sacrifício da cruz, ele reza tanto pelos pecados dos outros, quanto por seus próprios pecados. Cristo encarregou seus apóstolos, e esses os seus sucessores, para continuarem a guiar o “resto” do povo pelos caminhos do mundo, mostrando onde ficam as torrentes de água e ensinando o caminho reto que conduz ao destino esperado. A carta aos Hebreus faz referência ao sacerdócio de Melquisedec, personagem que é interpretado como sendo o precursor do sacerdócio de Cristo e, por intermédio de Cristo, esse mesmo sacerdócio se reproduz nos presbíteros ordenados. Aquele refrão que antigamente era cantado nas missas solenes de ordenação é bastante forte e emblemático: tu es sacerdos in aeternum, secundum ordinem Melchisedech. O sacerdote é, desse modo, aquele que deve liderar o povo sobrevivente das tormentas do cotidiano, o “resto” da humanidade salva por Cristo, aqueles “144 mil assinalados”, de que fala o Apocalipse. Daí decorre a necessidade de que o fiel se integre na comunidade eclesial, porque essa condução pelo caminho reto é obra coletiva, não se resolve individualmente.

Na leitura do evangelho de Marcos, temos o conhecido episódio da cura do cego de Jericó (10, 46-52), personagem este que simboliza a multidão referida pelo profeta Jeremias, na primeira leitura. Entre os sobreviventes, há cegos, aleijados, gestantes e parturientes. A liturgia coloca para nossa reflexão a figura do cego, simbolizando nele todos aqueles que estão expostos aos perigos e às tentações do mundo infiel, aos estratagemas da ideologia do poder e do dinheiro, às seduções da corrupção e da injustiça, ou seja, todos nós. O cego de Jericó é o protótipo do cristão santo e pecador, crente e duvidoso, sadio, mas nem tanto, pois que precisa que Jesus lhe abra os olhos, para que possa ver melhor o mundo onde habita e progredir na fidelidade à mensagem cristã.

Vejamos uma breve notícia de cunho histórico e geográfico. Jericó é uma das cidades mais citadas nos evangelhos, porque era já naquela época uma das cidades mais importantes da Palestina. Sua conquista pelos hebreus, sob o comando de Josué, quando estavam retornando do Egito, foi uma das mais memoráveis (quando as muralhas caíram), então esta cidade era um ícone da nacionalidade hebraica, um lugar muito visitado. Geograficamente, situa-se a 27 km de Jerusalém e a 10 km do Mar Morto, sendo considerada pelos historiadores uma das cidades mais antigas do mundo, pois há evidências de ter moradias lá desde pelo menos 9.000 anos antes de Cristo. Este fato fazia com que muitas pessoas passassem diariamente por Jericó e, com isso, havia muitos pedintes na entrada da cidade, como ainda hoje se vê nas nossas cidades que são alvo romarias religiosas.

Pois bem. Jesus passava por Jericó, a caminho de Jerusalém, onde o desfecho da sua vida iria acontecer. Na entrada da cidade, havia um grupo de cegos pedindo esmolas aos viajantes. O Padre Uchoa, que foi meu professor de Bíblia, comentava que havia verdadeiros bandos de pedintes nas entradas das grandes cidades, explorando a caridade pública, além de vendedores de quinquilharias e souvenirs diversos, tal como vemos nas cidades turísticas, em geral. Em Jericó, devia ser algo assemelhado. Ao saber que Jesus estava passando, um cego de nome Bartimeu começou a gritar: “Filho de Davi, tem piedade de mim”. De tanto gritar e insistir, Jesus mandou chamá-lo. Diz o evangelista que ele deu um pulo, largou o manto onde recolhia as moedas que lhe jogavam como esmola e foi até onde Jesus se encontrava. “Que queres que eu te faça?”, perguntou Jesus. (Mc 10, 51) E ele respondeu: Mestre, eu quero ver. E Jesus disse: Assim será, a tua fé te curou. E ele passou a enxergar e saiu acompanhando Jesus. Ao sair do comodismo do seu lugar de pedinte, o cego Bartimeu assumiu uma nova realidade de vida, iniciou um novo caminho, armou-se de disposição para seguir o Mestre.

Neste diálogo de Jesus com o cego Bartimeu, podemos ver um exemplo de que o milagre divino não se opera sem a colaboração do beneficiário. Por certo, junto com Bartimeu, havia outros cegos, aleijados e necessitados, porém não foram beneficiados com o fato milagroso, porque não creram. Jesus fez questão de dizer a ele que foi “a tua fé que te curou”. O poder divino de Jesus não agiria na sua deficiência, se não houvesse a sua cooperação com a fé, a sua disponibilidade para aceitar, a sua coragem para assumir aquela nova situação. É óbvio que Jesus, pelo seu conhecimento divino, sabia quem estava a gritar por Ele, sabia que era uma pessoa das mais pobres e excluídas da sociedade. E também pela sua sabedoria divina, Jesus conhecia a intensidade da fé daquele mendigo, sabia o que estava subentendido naquela prece insistente: “Tem piedade de mim”. É como se ele dissesse: com o teu poder, tira-me dessa situação. E Jesus retribuiu a sua oração com o milagre da cura, mas foi logo avisando: foi a tua fé que te curou, ou seja, persevera com esta fé, ela te renderá a salvação, mantém a fé operante e firme, pela fé tu és incluído no rol dos sobreviventes. Inspirada neste e noutros exemplos similares é que a teologia da graça divina ensina que, embora Deus dê a todos a graça, esta somente age no coração dos que a aceitam e a ela aderem. Ou por outras palavras, o efeito do poder divino na nossa vida será proporcional à intensidade da nossa fé.

Por isso, podemos dizer que, para o milagre acontecer nas nossas vidas, embora o poder de Deus seja pleno e absoluto, nossa participação através da fé é indispensável, porque o poder de Deus não se sobrepõe à nossa vontade, e a fé é a manifestação mais completa do ato da vontade humana.

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sábado, 20 de outubro de 2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 29º DOMINGO COMUM - 21.10.2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 29º DOMINGO COMUM – A RECOMPENSA – 21.10.2018

Caros Leitores,

Neste 29º domingo comum, último domingo do mês de outubro, a liturgia celebra o Dia Mundial das Missões, reverenciando todos aqueles que, no mundo tudo, levam a palavra de Cristo aos irmãos mais distantes, especialmente para aqueles que ainda não conhecem a Redenção. Todos nós somos convidados a ser missionários e, pelo batismo, fomos ungidos para esta missão. Todavia, é uma missão a ser exercida com humildade e na caridade, por isso, ninguém deve gloriar-se com os resultados ou entristecer-se com os eventuais fracassos, porque nessa tarefa interessa apenas a fidelidade ao mandamento de Jesus. Nesse contexto, a liturgia nos põe como tema de reflexão o diálogo de Tiago e João com Jesus, sobre a recompensa pela opção que fizeram, encomendando desde já um “lugar” que cada um queria ter no reino de Deus. Foi quando Jesus disse que será melhor recompensado aquele que melhor servir.

Inicialmente, faço uma observação exegética sobre o trecho do evangelho lido neste domingo, retirado de Marcos 10, 35-45. Fazendo um estudo comparativo entre os evangelhos, podemos cotejar essa passagem com o texto análogo de Mateus 20, 20, onde é narrado o mesmo episódio. No evangelho da liturgia de hoje (Mc 10, 35), lemos: “Tiago e João, filhos de Zebedeu, foram a Jesus e lhe disseram:”. No evangelho de Mateus (20, 20), lemos: “Então, aproximou-se d'Ele a mãe dos filhos de Zebedeu com seus filhos, adorando-o e pedindo algo a Ele.” A análise desses dois pequenos trechos nos mostra que devemos ter muito cuidado com a leitura fundamentalista da Sagrada Escritura, porque os textos às vezes se mostram incoerentes. Afinal, quem foi fazer o pedido a Jesus: os filhos de Zebedeu sozinhos ou acompanhados da mãe deles? Por que Marcos não menciona a mãe dos apóstolos, enquanto Mateus a inclui? Embora não seja esse um detalhe significativo no contexto da mensagem de Jesus, no entanto, é por causa de detalhes como esse que algumas pessoas dizem que a Bíblia é cheia de imprecisões e mentiras.

Os biblistas explicam essa divergência dizendo que os textos de Marcos e de Mateus possuem origens geográficas e históricas diferentes. Os estudos históricos confirmam que os ensinamentos de Jesus, durante vários anos, existiam nas comunidades apenas em forma oral, passando a ser escritos somente uns 20 a 30 anos após a morte d'Ele. Havia muitos textos esparsos e os evangelistas os colheram e, com base neles, compuseram seus evangelhos, procurando observar a ordem cronológica dos acontecimentos. Podemos verificar que, também na Bíblia, funciona aquela máxima popular que diz: quem conta um conto aumenta um ponto. Desse modo, embora o evangelho de Mateus venha em primeiro lugar no cânon bíblico, contudo o texto de Marcos é mais antigo. Ainda sobre o evangelho de Mateus suscita polêmica entre os estudiosos, inclusive dúvidas sobre a sua autoria. O seu texto original foi escrito em aramaico e só depois traduzido para o grego, enquanto os demais foram escritos originalmente em grego. Não vou adentrar aqui na polêmica acerca do texto desse evangelho que, segundo os estudiosos, devia ter como título “genealogia de Jesus”, escrito por um autor desconhecido. Quem tiver interesse sobre o assunto, procure livros específicos, que abordam a questão com profundidade.

Pois bem, passemos agora ao tema da leitura, o pedido que os filhos de Zebedeu fizeram a Jesus: que um deles tivesse assento à direita e outro à esquerda, no reino da Sua glória. Jesus ficou intrigado com aquilo e falou: vocês têm certeza do que estão pedindo? Vocês estão dispostos a beber o mesmo cálice que eu? Eles confirmaram e, por fim, Jesus arrematou: 'Vós bebereis o cálice que eu devo beber, e sereis batizados com o batismo com que eu devo ser batizado. Mas não depende de mim conceder o lugar à minha direita ou à minha esquerda. É para aqueles a quem foi reservado'. (Mc 10, 39) E diz mais o evangelista que os outros dez ficaram indignados quando souberam do pedido dos dois irmãos, provavelmente, eles também queriam pedir aquilo, mas não tiveram coragem. Ademais, por que razão haveriam aqueles dois de ser privilegiados com um lugar de honra? Foi quando Jesus os repreendeu, dizendo que a autoridade cristã não é símbolo de honraria, mas de serviço. (Mc 10, 43)

Esse diálogo de Cristo com os discípulos nos deixa algumas lições importantes. Primeiro: será que nós sabemos pedir? Quando oramos, quando fazemos nossos pedidos a Deus, que tipo de oração fazemos? Será que caímos no mesmo disparate dos filhos de Zebedeu, reprovado por Jesus? Pois é, muitas vezes, a nossa oração contém uma dose significativa de egoísmo. Pedimos preferencialmente algo bom para cada um de nós, para os nossos parentes e amigos, esquecendo que o próprio Cristo ensinou que devemos buscar, em primeiro lugar, o Reino de Deus e que o resto nos será dado por acréscimo. Em geral, as orações dirigidas a Deus são pedidos de favorecimentos, de bens materiais, de bem-estar, de uma conquista profissional, etc. Sem deixar de falar numa prática ainda mais extravagante que é a de fazer um “negócio” com Deus, uma certa 'promessa': se eu conseguir tal coisa, vou fazer tal tarefa. Meus amigos, quanta pretensão. Se passássemos a vida toda fazendo penitências, nem assim mereceríamos um único favor divino, por menorzinho que seja, Deus nos dá tudo gratuitamente, sem precisar de nada de nós e sem nós merecermos, ele age por plena e inefável benevolência. As nossas orações, portanto, devem ser muito mais para agradecer do que para pedir.

Em segundo lugar, lembremos que a oração modelar para nós deve ser inspirada no exemplo dado pelo próprio Jesus: quando orardes, dizei algo assim: Pai, santificado seja o Teu nome, venha o Teu reino, faça-se a Tua vontade... é o tipo da oração altruísta, a oração que agrada a Deus. De orações egoístas, Deus se distancia, vira o rosto para o outro lado. Quando Jesus perguntou aos dois filhos de Zebedeu: vocês estão dispostos a 'beber o mesmo cálice' que eu beberei e eles confirmaram, Jesus disse: mas isso não garantirá o atendimento ao que estais pedindo, pois não é assim que se conquista um lugar no Reino. E arremata: o lugar é para aqueles a quem foi reservado. (Mc 10, 40)

Esta resposta de Jesus é, a um só tempo, enigmática e esperançosa. Enigmática, porque ele não revelou quem são esses a quem está reservado o melhor lugar. Esperançosa, porque a reserva pode ser para qualquer um deles e qualquer um de nós. Como podemos interpretar esse enigma-esperança? A resposta, a meu ver, está na frase seguinte do evangelho (Mc 10, 45): o Filho do Homem não veio para ser servido, mas pra servir... ou seja, quem seguir o exemplo de Jesus na prestação do serviço aos irmãos, é para estes que o lugar está reservado. Foi isso que Ele deu a entender quando ensinou: quem quiser ser grande, que seja o servo; quem quiser ser o maior, que seja o escravo. Então, o 'lugar reservado' se destina a quem realizar o 'serviço' tal como Ele realizou, isto é, com humildade e sem reserva, dando tudo de si até o fim das suas forças. Esta será a nossa melhor recompensa.

Meus amigos, o recado de Cristo está dado para todos nós. O lugar está reservado para quem for capaz de seguir o exemplo dele no serviço aos irmãos, superando as tendências naturais e sociais associadas ao ganho de prestígio e de honrarias, especialmente quando exercemos profissões que são consideradas relevantes socialmente. Humildade não significa vestir trapos e andar descalço, mas é uma atitude que mora dentro do coração. Tomando emprestado palavras do Papa Francisco aos peregrinos em Roma, vejamos o que ele pensa: “À vista de tantos que lutam por obter o poder e o sucesso, por dar nas vistas, frente a tantos que querem fazer valer os seus méritos, as suas realizações, os discípulos são chamados a fazer o contrário. Por isso adverte-os: «Sabeis como aqueles que são considerados governantes das nações fazem sentir a sua autoridade sobre elas, e como os grandes exercem o seu poder. Não deve ser assim entre vós. Quem quiser ser grande entre vós, faça-se vosso servo» (10, 42-43). Com estas palavras, Jesus indica o serviço como estilo da autoridade na comunidade cristã. Quem serve os outros e não goza efetivamente de prestígio, exerce a verdadeira autoridade na Igreja. Jesus convida-nos a mudar a nossa mentalidade e a passar da ambição do poder à alegria de se ocultar e servir; a desarraigar o instinto de domínio sobre os outros e exercer a virtude da humildade. Todos nós, que acompanhamos pela imprensa as notícias sobre a atuação do Papa, sabemos que essas palavras dele não são apenas discurso mas a sua prática concreta, pois ele assim vivencia no seu cotidiano. Que nós tenhamos a ousadia e a coragem de seguir o seu exemplo de autêntico cristão.

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