domingo, 25 de agosto de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 21º DOMINGO COMUM - A SALVAÇÃO UNIVERSAL - 25.08.2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 21º DOMINGO COMUM – A SALVAÇÃO UNIVERSAL – 25.08.2013

Caros Confrades,

As leituras litúrgicas deste 21º domingo comum nos convidam a refletir sobre o tema da salvação, que é universal, ou seja, Deus não escolheu apenas um grupo, ainda que numeroso, para distribuir com este a sua graça. A graça divina é infinita e está disponível para todas as pessoas de boa vontade, todos os que procuram a Deus com o coração sincero.

A primeira leitura, retirada do livro de Isaías (66, 18-21- deuteroIsaías) é de uma clareza extraordinária. É impressionante a visão de futuro do profeta Isaías, a precisão dos detalhes com que ele aponta os acontecimentos da salvação: “virei para reunir todos os povos e línguas; eles virão e verão minha glória.” (Is 66, 18) E mais adiante: “Escolherei dentre eles alguns para serem sacerdotes e levitas.” (Is 66, 21) Apenas para recordar outros comentários que fiz aqui, o deutero Isaías é a parte do livro que narra os fatos após o retorno dos hebreus da Babilônia, quando foram libertados do cativeiro. Então, o profeta anuncia como será o futuro da humanidade. Obviamente, ele escrevia para as pessoas do seu tempo. Porém, numa perspectiva escatológica, o profeta se refere a todos nós, quando diz: “...para as terras distantes, e, para aquelas que ainda não ouviram falar em mim e não viram minha glória.” (Is 66, 19) Com isso, o profeta estava anunciando ao povo hebreu que a aliança de Javeh com Abraão não se referia apenas a eles, ou seja, quando Ele disse que a descendência de Abraão seria mais numerosa do que as estrelas do céu, isso significava o alcance universal da promessa, ultrapassando os limites da nação hebraica. E o profeta complementa: dentre estes estrangeiros, escolherei alguns para serem sacerdotes e levitas, ou seja, esses que ainda não Me conhecem também serão meus anunciadores. É curioso como alguns pregadores fundamentalistas insistem em contar o número de pessoas a quem Javeh dirigiu a mensagem da salvação, ligando essa ideia aos 144.000 assinalados do Apocalipse (Ap 7,1). A imagem transcrita por João contém um enigma a ser decifrado e comporta divergências. Ao contrário, a profecia de Isaías é clara e direta: a mensagem da salvação é dirigida a todos os povos, inclusive àqueles que ainda não conhecem Javeh, mas que virão a conhecê-lo, através dos seus mensageiros. O momento histórico vivido pelo povo de Israel, retornando à pátria após livrar-se do cativeiro babilônico, era de grande euforia e isso se refletia no desejo de levar a todos os povos a misericórdia e a fidelidade de Javeh.

Na segunda leitura, retirada da Carta aos Hebreus, este tema da salvação universal também está presente, embora não numa perspectiva de ufania, como em Isaías, mas numa dimensão do castigo disciplinar, da correção educativa. Os confrades já devem saber, só para recordar, essa Carta era, antigamente, atribuída a São Paulo, mas após estudos recentes, a autoria do apóstolo foi excluída, embora não se tenha certeza de quem a escreveu. Por isso, na Bíblia, ainda consta no fim da listagem das cartas de Paulo, mas com a ressalva acima. O seu autor exorta os hebreus sobre a hospitalidade, a fraternidade, a tolerância com todos. Havia entre os hebreus uma tradição antiga que interpretava o sofrimento como castigo divino, de modo que uma pessoa desventurada era tida como alguém que não gozava da amizade de Javeh. Vemos diversas passagens no evangelho em que Cristo recrimina os fariseus por causa dessa ideia (por ex: Jo 9, 1-3). O autor da Carta aos Hebreus vem repetir essa mesma lição de Cristo em outro contexto, dizendo que quando Deus castiga alguém, isso não significa que Deus não ame aquela pessoa, mas Ele faz isso como um recurso pedagógico, para reconduzi-la ao caminho da verdade. Assim diz: “não te desanimes quando ele te repreende; pois o Senhor corrige a quem ele ama e castiga a quem aceita como filho'.” (He 12, 6) E complementa: qual o filho a quem o pai não corrige, quando aquele erra? Por outras palavras, o sofrimento não deve ser entendido como sinal de que alguém foi excluído da graça divina, pois esta é dirigida a todas as pessoas. Daí a advertência em He 12, 13: “acertai os passos dos vossos pés', para que não se extravie o que é manco, mas antes seja curado.” Isso quer dizer que as pessoas que sofrem, as mais necessitadas não devem ser alijadas, mas trazidas para o convívio fraterno, para que não se percam, mas sejam socorridas. “É para a vossa educação que sofreis, e é como filhos que Deus vos trata. ” (He 12, 7) Exemplo dessa linha pedagógica nós encontramos também nas cartas de Paulo, quando trata da questão dos judaizantes (por ex: Romanos 14, 5), pois o povo hebreu tinha aquela ideia de que, por serem descendentes de Abraão e, portanto, os legítimos herdeiros da promessa, eles eram os primeiros da fila, ou seja, eles serviam de exemplo para os demais. A Carta aos Hebreus, assim como as outras lições de Paulo, vêm mostrar que esse raciocínio é ilegítimo, pois pode até ocorrer o oposto, isto é, os últimos serem os primeiros, conforme está no evangelho de Lucas (13, 30).

A terceira leitura é exatamente do evangelista Lucas (13, 22-30), no trecho em que narra a pergunta feita por alguém a Jesus: é verdade que são poucos os que se salvam? Curiosamente, o evangelista não identifica quem foi o autor da pergunta, mas por se tratar de um tema muito preocupante para os fariseus, podemos supor que tenha sido um deles. E também pelo estilo da resposta dada por Jesus, deve ter sido um fariseu o perguntador, por causa dos exemplos que Ele dá. Como costuma acontecer, Jesus nunca responde diretamente às perguntas, mas faz isso através de exemplos e de situações ilustrativas. Neste caso, Ele usa o exemplo da porta estreita, afirmando indiretamente que não existe um número determinado de pessoas aptas à salvação, mas que quem quiser salvar-se deverá escolher a porta estreita. Ele diz ainda que muitos tentarão entrar por essa porta e não conseguirão. Isso quer dizer que a salvação é um dom divino dirigido a todos, mas embora seja gratuito, exige atitude de quem quer salvar-se. Portanto, a salvação não alcança quem fica de braços cruzados, pensando que já foi escolhido, e não cuida de fazer a sua parte. Por isso, Ele cita uma situação hipotética: o patrão fechou a porta e quando o servo pede para abrir, o patrão responde que não o conhece. O servo insiste: eu comi e bebi junto contigo... mas o patrão continua dizendo: não sei de onde sois.

Vemos assim Cristo ensinando que a salvação é dada por Deus a todas as pessoas de forma gratuita, no entanto, o interessado tem de cumprir algumas condições, daí a imagem da porta estreita, ou seja, a prática da justiça, o exercício da caridade. A porta larga seria aquela dos que pensam estarem salvos a priori, apenas pela fé, sem precisar fazer mais nada. Quem acredita já estar salvo pelo sangue de Cristo e se firma nessa presunção, descuidando-se dos seus deveres de cristão, de testemunhar o amor de Cristo através das suas ações ouvirá do Mestre, diante da porta fechada: não sei de onde sois. Foi por isso que Jesus advertiu que muitos tentarão entrar na porta da salvação e não conseguirão, estes são os que se contentam com uma religião de exterioridades, como acontecia com os fariseus. Estes entendiam que bastava o cumprimento da lei, bastava jejuar, dar esmolas, ir ao templo nos dias de preceito, fazer suas orações e pronto. Isso é o que Jesus exemplifica como a porta larga. As pessoas que possuem o coração cheio de orgulho, inchado pela prática da injustiça, obeso pelo desprezo para com os irmãos, esses não conseguirão passar pela porta estreita. Esse puxão de orelhas de Jesus era dirigido contra os fariseus naquele tempo e hoje é dirigido também a nós. A nossa participação nesse projeto se encontra descrito na passagem de Lc 13, 29: Virão homens do oriente e do ocidente, do norte e do sul, e tomarão lugar à mesa no Reino de Deus. Aqui está, novamente, o conceito da salvação universal, do convite dirigido a nós para sentarmos à mesa do evangelho, cujo lugar foi recusado por aqueles a quem o convite foi feito em primeiro lugar.

A porta estreita, então, não significa sofrimento, privação, tristeza, escassez, como outrora se interpretou, como se fosse necessário padecer e privar-se das coisas materiais a fim de obter a salvação. Os bens materiais são dons divinos e eles somente atrapalham a nossa vocação para o Reino de Deus quando servem para o nosso egoísmo e para a nossa ganância, porém se forem colocados ao serviço da comunidade, se forem objeto da partilha e instrumentos da prática do bem, eles não causarão embaraço ao projeto de Deus. Que o Divino Mestre nos ajude a encontrar sempre a porta estreita do amor ao próximo, por onde chegaremos à salvação, a que todos almejamos.


domingo, 18 de agosto de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 20º DOMINGO COMUM - FESTA DA ASSUNÇÃO DE MARIA - 18.08.2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO 20º DOMINGO COMUM – FESTA DA ASSUNÇÃO DE MARIA – 18.08.2013

Caros Confrades,

Mais uma vez, como sói acontecer, o calendário litúrgico do domingo abre espaço para a celebração da festa da Assunção de Maria, uma concessão especial para o Brasil, autorizada pela CNBB, dentro do acordo com o Governo brasileiro acerca dos feriados religiosos. Visto que o dia próprio da festa, 15 de agosto, cai no meio da semana, transfere-se a celebração para o domingo seguinte. Mesmo no caso específico de Fortaleza, que celebra a festa da Assunção na data própria, por causa do feriado municipal, a festa litúrgica é transferida para o domingo, seguindo a orientação nacional da CNBB.

As leituras litúrgicas deste domingo referem-se, portanto, à figura de Maria, destacando a sua função única e inigualável no plano salvífico do Pai, o que mereceu a elevação de verdade teológica fundamental (dogma de fé) o fato de Maria ter sido elevada ao céu em corpo e alma. Esta verdade, proclamada pelo Papa Pio XII, em 1950, foi o último dogma de fé instituído pela Igreja Católica. Naquela época, de acordo com uma visão triunfalista do catolicismo que imperava, tal proclamação era uma demonstração de poder religioso e de autoafirmação do catolicismo perante as outras religiões. Devemos considerar que a humanidade, sobretudo a população européia, vivia ainda atordoada com o pesadelo da segunda guerra mundial, recém-terminada, sofrendo as duras consequências do caos oriundo dos dezesseis anos de destruição das suas principais cidades e da morte de milhares de inocentes. Sob o aspecto interno da convivência com as demais religiões, o catolicismo tentava se proteger do modernismo e das correntes teológicas reformistas, sobretudo a teologia bíblica, movimentada por recentes descobertas arqueológicas, que revolucionaram os estudos das escrituras. A Igreja Católica, até então, tentava abrir caminho no meio desse conturbado ambiente teológico, procurando apoio na sua tradição mais antiga. Assim é que o dogma da Assunção de Maria foi proclamado pelo Papa sem uma fundamentação bíblica direta, mas de forma indireta e louvando-se na tradição que vinha do tempo dos Apóstolos.

Certa vez, o Monsenhor Landim, sacerdote que exerceu importantes funções na Arquidiocese de Fortaleza, já falecido, me contou que era recém-ordenado na época das discussões teológicas que antecederam a proclamação do dogma. Ele me disse que o professor de teologia do Seminário da Prainha (agora não me recordo do nome desse professor) era contrário àquela proclamação, por achar desnecessário e por falta de fundamentação bíblica. As opiniões dos professores eram divididas, uns a favor, outros contra. Então, houve a proclamação papal e os alunos foram perguntar a esse professor que tinha opinião contrária o que ele tinha a dizer. O professor respondeu simplesmente: agora, não tenho mais nada a dizer, só devo aceitar aquilo que a Igreja proclamou.

O mesmo Monsenhor também me disse que o Papa Pio XII teria ficado muito em dúvida acerca da proclamação, pois embora houvesse tido o parecer favorável do Órgão competente da Cúria Romana, ele (o Papa) não estava bastante convencido. Então, durante um momento em que o Papa passeava e rezava pelos jardins da sua residência, no Vaticano, ele teria recebido uma espécie de “visão”, que não explicou com exatidão o que tinha sido, mas que esse fato foi decisivo para que o Papa, então, tivesse se convencido de fazer a proclamação. Eu estou comentando aqui esses detalhes para levar à seguinte conclusão. As verdades teológicas, tanto quanto as demais verdades produzidas em linguagem humana, são resultado de circunstâncias históricas determinadas. Alguém poderia até argumentar que as verdades religiosas diferem das verdades científicas porque são inspiradas por Deus e assim não podem ser equiparadas umas às outras. Mas eu responderia que, mesmo sendo inspiradas por Deus, elas são transcritas em linguagem humana e, assim como ocorre com os textos bíblicos, precisam ser interpretadas. Não há linguagem humana com blindagem de tempo, nem mesmo aquelas que transmitem ensinamentos religiosos.

O fato é que a proclamação do dogma de fé da Assunção de Maria, conquanto tenha sido muito bem aceito pelos católicos, aprofundou mais ainda as divergências entre a Igreja Católica e as outras igrejas cristãs, sobretudo pelo fato de não ter um fundamento bíblico explícito. Os irmãos separados entenderam isso como mais uma 'invenção' da Igreja romana, principalmente porque se apóia em outra proclamação que também sempre foi motivo de críticas, que é o dogma da infalibilidade papal. Tenho conhecimento de alguns grupos teológicos atuais que tentam formar uma corrente de adeptos para que Maria seja proclamada “corredentora” da humanidade, dado o seu papel fundamental na economia da salvação. Na minha opinião, uma tal pretensão não deverá ser apoiada pelo Papa, ou seja, não deverá ser proclamada oficialmente como verdade de fé, afirmo isso baseando-me nas razões que acima desenvolvi acerca do dogma da Assunção.

Uma coisa e outra, porém, de modo algum desmerecem a função precípua e incomparável de Maria no plano salvífico de Deus, materializado na pessoa humano-divina de Jesus Cristo. A jovem Maria era instruída nas escrituras, seu pai servia no templo e sendo homem muito piedoso, pusera Maria na escola do Templo de Jerusalém onde, desde criança, ela recebia formação na Torah. Portanto, Maria conhecia a promessa e, como todas as jovens hebréias, sabia que tinha a possibilidade ser vir a ser a mãe do Messias, até porque seu pai Joaquim era descendente do ramo familiar de Davi. A vida detalhada do casal Joaquim e Ana é contada no evangelho de Tiago, um escrito apócrito, mas que serve de referência histórica, pois é citado por alguns dos antigos padres, embora não esteja catalogado no cânon bíblico. Por isso, ao receber o mensageiro (em grego, anghelos significa mensageiro), Maia tinha ciência de toda a situação, aquilo não foi propriamente uma surpresa para ela. A surpresa está no fato de ela ter perguntado para si mesma: “eu? Então, sou eu? Como isso será possível, nem casada eu sou?” Isto é, Maria sabia que isso aconteceria com alguma jovem de Israel, mas talvez não esperasse que fosse logo ela a escolhida. Quando o mensageiro esclareceu tudo, ela não teve mais dúvidas: eis-me aqui, faça-se segundo a tua palavra. Supõe-se que Maria tinha, na época, entre 16 a 18 anos de idade, porém com maturidade suficiente para entender as consequências da sua decisão. Maria assumiu ali um projeto de vida no qual o seu futuro já estava determinado, e ela sabia disso. Evidentemente, não foi por acaso que Deus a escolheu, mas por tratar-se de quem ela era. Por isso, a visita do mensageiro foi um mero detalhe no contexto desses fatos. A plenitude dos tempos chegara e Maria foi o símbolo desse tempo de graça, da qual ela ficou repleta. Pensando assim, independentemente da proclamação como verdades de fé a sua assunção ou a sua função de corredentora, a aceitação da missão divina por Maria terá sempre um destaque primordial e decisivo, sendo isso o suficiente para justificar todas as homenagens que ela, merecidamente, recebe dos fiéis cristãos.

Meus amigos, o celebrante de hoje na Igreja da Glória, padre Júlio Cesar, fez um comentário interessante, ao referir-se à visita de Maria à sua prima Isabel, que também estava grávida, só que com gravidez mais adiantada. Disse ele que a visita de Maria a Isabel representou o encontro do antigo testamento com o novo testamento, representados na figura de duas mulheres. Então, em fiquei a pensar por que motivo a Igreja Católica continua a deixar à margem das suas funções prioritárias a figura feminina? Trata-se de um contrassenso, uma postura discriminante e uma atitude de desconhecimento das origens do próprio cristianismo. Se em uma mulher (Isabel) encerrou-se uma etapa da história da salvação e em outra mulher (Maria) teve início um novo tempo de graça e de salvação, por que razão deixar de reconhecer às mulheres uma função de destaque nos rituais religiosos e nas funções eclesiais? Por que as mulheres podem, no máximo, distribuir a eucaristia, como ministras “extraordinárias”? Há uma grande incoerência entre todo o destaque que a teologia católica atribui à figura de Maria e o menosprezo que a mesma teologia tem para com as outras marias, que com fé e dedicação sem limites, atuam nas comunidades e vivem exemplarmente os ensinamentos do evangelho de Cristo.

Que Maria assunta inspire as nossas autoridades para que estas entendam que a mariologia teológica não pode ficar concentrada apenas na figura da Mãe de Deus.

domingo, 11 de agosto de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 19º DOMINGO COMUM - A FÉ E O COMPROMISSO - 11.08.2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 19º DOMINGO COMUM – A FÉ E O COMPROMISSO – 11.08.2013

Caros Confrades,

A liturgia deste 19º domingo comum nos convida a refletir sobre o compromisso que a nossa fé exige de nós. O celebrante da missa deste domingo fez uma observação interessante: ser cristão não é um “hobby”, um entretenimento, um modismo, ao contrário, a fé cristã nos engaja num conjunto de atitudes e atividades que envolve todo o nosso ser pessoal. Ninguém pode ser cristão apenas pela metade, esse cristianismo de fachada, praticado por alguns crentes que se contentam em manifestações exteriores da sua fé, foi combatido por Cristo na sua catequese aos discípulos, de acordo com o que lemos no evangelho deste domingo.

A primeira leitura, retirada do livro da Sabedoria (Sb 18, 6-9), relembra a noite em que o povo foi libertado do Egito, quando Javeh demonstrou a sua fidelidade para com as promessas feitas através de Moisés ao povo, que n'Ele depositou sua fé. A ação miraculosa de Javeh foi, ao mesmo tempo, salvação para os justos e perdição para os inimigos. Os que acreditaram n'Ele foram contemplados com a sua força vencedora e os que não creram experimentaram o peso da sua ira. O livro da Sabedoria, cuja autoria era tradicionalmente atribuída a Salomão, é considerado pela crítica literária o escrito mais recente do Antigo Testamento, tendo sido escrito numa época em que a cultura grega ganhava espaço dentre os judeus. Então o seu autor vai recordar ao povo os seus princípios históricos, para deste modo fortalecer-lhes na fé e não deixá-los se encantar pelas novas doutrinas que apareciam. O seu objetivo é, portanto, condensar os ensinamentos básicos adquiridos pelos ancestrais do povo durante toda a sua caminhada, desde a libertação do Egito.

A segunda leitura é retirada da carta aos Hebreus (Hb 11, 1-19). Esta carta, por muito tempo, foi aceita como tendo sido escrita por Paulo, contudo atualmente a crítica literária já abandonou esta ideia, embora não se saiba com certeza quem teria sido seu autor. Nas bíblias, ela ainda consta no final da listagem das cartas de Paulo, mas apenas por uma questão de organização de capítulos, pois não há certeza de quem a escreveu. Cogitou-se que poderia ter sido Timóteo ou Clemente de Alexandria, porém não há elementos históricos que corroborem essas hipóteses. O certo é que seu autor foi alguém muito entrosado com a fé judaica, pois a exemplo do livro da Sabedoria, também procura resgatar esta tradição numa época muito marcada pela influência grega.

Na leitura deste domingo, o autor da carta chama a nossa atenção para a extraordinária fé de Abraão, que superou todas as adversidades pela sua confiança na promessa de Javeh. Desde a gravidez de Sarah, em idade avançada, até a peregrinação pelo desconforto do deserto, morando em tendas precárias, passando pela provação experimentada quando iria imolar seu único filho, Abraão nunca vacilou na sua crença na promessa de Javeh, pois sabia que Ele tem poder até de ressuscitar dos mortos, por isso, não temeu em entregar-lhe a vida do seu único filho. Pela sua fé inquebrantável, Abraão foi sempre uma referência para os escritores bíblicos, quando este assunto estava em pauta, mas lembremo-nos que Cristo, no episódio do centurião que disse “basta uma palavra tua” (sed tantum dic verbum), declarou: nunca vi tamanha fé em Israel. Ou seja, Cristo colocou a fé do centurião acima da fé do próprio Abraão.

Os exemplos de Abraão, no Antigo Testamento, e do centurião, no Novo Testamento, demonstram para nós o tamanho do compromisso que brota da fé. Crer é integrar a fé na sua vida inteira e não apenas em parte dela ou apenas quando a ocasião coloca o crente em algum aperto. Fé significa viver cada dia com aquela mesma confiança e certeza, aconteça o que acontecer, porque maior do que qualquer adversidade é o Deus da promessa. As leituras da Sabedoria e de Hebreus reforçam a importância da fé incondicional como sendo aquela que Deus espera do fiel. Isso não significa ficar de braços cruzados, sem fazer nada, esperando que Deus fará seus milagres a todo momento. Nada disso, mas sim cada um fazendo a sua parte, cumprindo o seu compromisso, na convicção de que o resultado final será conduzido pela fidelidade d'Aquele a quem servimos. Nesse contexto, o autor da carta aos Hebreus nos dá uma definição teológica da fé que tem a eloquência de um tratado inteiro: “A fé é um modo de já possuir o que ainda se espera, a convicção acerca de realidades que não se vêem.” (Hb 11, 1).

No evangelho de Lucas (12, 32-48), temos uma catequese particular de Jesus para os discípulos. Em geral, Ele catequizava os discípulos ao mesmo tempo em que ensinava também as multidões. Mas em outros momentos, Ele se dirigia especificamente ao pequeno grupo, como é o caso da leitura de hoje: “Não tenhais medo, pequenino rebanho, pois foi do agrado do Pai dar a vós o Reino.” (Lc 12, 32) O pequenino rebanho, no caso, é o seu grupo de escolhidos para continuarem o Seu trabalho, depois que Ele retornasse ao Pai. Então, Jesus vai ministrar-lhe lições bem diretas: vocês devem ser como empregados que esperam o patrão, que pode chegar a qualquer momento, para abrir-lhe imediatamente a porta. Por outras palavras, o verdadeiro crente é aquele que está sempre em prontidão, aquele cuja fé não tira férias, cuja fidelidade nunca esmorece ou dormita. Este é o primeiro aspecto do compromisso que Cristo exige daqueles que aderiram ao Seu chamado e fizeram a opção de viver segundo os Seus ensinamentos. Para estes, o patrão vai oferecer um banquete no qual ele próprio será o serviçal. Esta será a retribuição aos que crerem de todo o coração e perseverarem inabaláveis na sua fé.

Porém, Jesus faz outra advertência aos discípulos, para que eles não ajam como servos “confiados”, ou seja, o patrão os deixou como administradores e na ausência do patrão, eles passam a espancar os outros empregados, passam a regalar-se de comida e bebida até se embriagaram e, quando o patrão retorna, os encontra embriagados. Meus amigos, observemos bem essa advertência de Jesus, que se dirige também para nós. A nossa condição de cristãos não deve nos levar a tirar proveito da situação, de nos considerarmos antecipadamente salvos e desprezar a fé das pessoas de outras crenças religiosas, arvorando-nos em condição de superioridade. O ser cristão para nós deve acarretar o compromisso de dar o exemplo para que os irmãos nos vejam e sejam estimulados a nos imitarem, isto é, eles devem ser convencidos pelo nosso testemunho e pelo nosso exemplo, e não ser tratados com desdém ou menosprezo. Quem exerce uma função de destaque na comunidade eclesial (por exemplo, coordenador de alguma atividade paroquial, ministro da Eucaristia) não deve bancar a autoridade de um chefe, mas exercer a humildade de um servidor, da mesma forma como o patrão que colocou o avental e foi servir o jantar dos empregados vigilantes.

Este é outro compromisso que Jesus exige de nós, seus seguidores, tanto os fiéis leigos quanto os fiéis ordenados. Quantas vezes, infelizmente, encontramos sacerdotes e bispos autoritários e prepotentes, que estão longe do modelo traçado por Cristo no evangelho deste domingo. Quantos personagens, ao longo da história eclesiástica (papas, bispos, purpurados) se comportaram como autênticos chefes políticos e não como aqueles que foram escolhidos para servirem ao povo de Deus. Outrora como nos dias atuais, não é raro encontrarmos exemplos de “empregados confiados” que esqueceram a palavra de Cristo: “'Meu patrão está demorando', e começar a espancar os criados e as criadas, e a comer, a beber e a embriagar-se, o senhor daquele empregado chegará num dia inesperado e numa hora imprevista, ele o partirá ao meio e o fará participar do destino dos infiéis.” (Lc 12, 45-46). Vejamos que a consequência desse comportamento é terrível: o empregado será partido ao meio e irá participar do destino dos infiéis. E Jesus complementa dizendo que a exigência da fé será proporcional ao conjunto dos favores recebidos, ou seja, a quem muito foi dado, muito será pedido. “Aquele empregado que, conhecendo a vontade do senhor, nada preparou, nem agiu conforme a sua vontade, será chicoteado muitas vezes.” (Lc 12, 47) Se não me engano, era o Frei Higino que dizia algo assim: o padre que vai para o inferno fica no lugar mais quente que tem lá – embaixo do rabo do capeta.

Deus quer de nós fidelidade sempre, não apenas no comparecimento da missa aos domingos e na participação dos sacramentos, não apenas em determinadas horas do dia ou em determinados dias da semana, mas a cada minuto de vida que Ele nos dá. Que nós aprendamos a agir sempre como os empregados vigilantes, elogiados pelo Senhor.


domingo, 4 de agosto de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 18º DOMINGO COMUM - A ADMINISTRAÇÃO DOS BENS - 04.08.2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 18º DOMINGO COMUM – A ADMINISTRAÇÃO DOS BENS – 04.08.2013

Caros Confrades,

A liturgia deste 18º domingo do tempo comum nos leva a refletir sobre a posse e o usufruto dos bens materiais, dos quais não somos donos, mas apenas administradores. As leituras mostram exemplos de apego demasiado às coisas terrestres, situação que obstacula a nossa mente de observar o nosso verdadeiro destino.

Na primeira leitura, do livro do Kohelet (Eclesiastes), temos aquele bordão, que nos foi repetido incontáveis vezes no período de formação: vaidade das vaidades, tudo é vaidade. O Monsenhor Manfredo Ramos, no sermão da missa de hoje, explicou que a palavra hebraica que é traduzida por “vaidade” significa “sopro”, ou seja, a vaidade é como um sopro de vento, fugaz, transitório, que levanta poeira e se desfaz. E observemos o quanto a vaidade mexe com a cabeça das pessoas. Por causa da vaidade, as pessoas praticam atos reprováveis, fazem inimigos e até se autodestroem. Por causa da vaidade, as pessoas tentam apresentar uma figura que de fato não são e tentam diminuir o brilho dos irmãos, a fim de que possam aparecer com destaque. Eu arriscaria dizer que a vaidade é o maior pecado da humanidade.

O livro do Kohelet, cuja autoria é atribuída a Salomão, faz uma advertência que continua muito atual, quando vemos pessoas cujos pais tiveram vida próspera, como fruto do trabalho, enquanto os herdeiros, com pouco tempo, puseram tudo a perder. Nos meios de comunicação, é frequente lermos notícias de pessoas que ganharam elevadas quantias em loterias e outros negócios, jogadores e artistas que fizeram muita fama e tiveram invejável fortuna terminarem os seus dias, muitas vezes, em instituições de amparo, quando não na mais lamentável penúria. Existe uma frase do Dalai Lama, que circula pela internet, a qual reproduz no nosso contexto contemporâneo a advertência do Kohelet: os homens gastam a saúde trabalhando demais para angariar muita riqueza e depois gastam toda a riqueza que adquiriram para restabelecerem a saúde. E vejamos que, no mais das vezes, não conseguem essa reversão.

Na carta aos Colossenses (3, 1-2), o apóstolo Paulo lhes ensina a aspirar às coisas do alto, a concentrar-se nas coisas celestes, já que, pelo batismo, todos ressuscitaram em Cristo. Isso significa que o “homem velho” morreu e no seu lugar surgiu o “homem novo”, fruto do evangelho. No versículo 5, Paulo não poderia ser mais claro, quando fala das coisas terrestres, que devem ser abominadas: “Portanto, fazei morrer o que em vós pertence à terra: imoralidade, impureza, paixão, maus desejos e a cobiça, que é idolatria. ” Os conceitos utilizados pelo apóstolo são, na verdade, todos sinônimos da vaidade, de que fala o Kohelet, tudo que faz redemoinho na alma e passa como um sopro de vento, rápido e irretornável. Ao morrermos para o pecado e ressuscitarmos para a vida nova em Cristo, todo o nosso mundo se transforma. Então, não teremos mais apego aos bens materiais nem às honrarias nem às benesses terrestres, isto é, “Aí não se faz distinção entre grego e judeu, circunciso e incircunciso, inculto, selvagem, escravo e livre, mas Cristo é tudo em todos ” (Col 3, 11).

Naturalmente, meus amigos, essas palavras não significam que seja incoerente para um cristão possuir bens materiais, porque estes fazem parte da vida e são conquistados por nós com o nosso trabalho, o nosso esforço, a nossa produtividade, com eles podemos ter uma vida mais confortável e isso não é vedado ao cristão. Mesmo nas comunidades religiosas, se recordarmos a vetusta regra de São Francisco (“que os frades não recebem dinheiro ou pecúnia”), compreendemos que essas palavras devem ser entendidas simbolicamente, porque é impossível aos padres, religiosos e pessoas consagradas em geral uma existência sem a dependência da pecúnia, sem ter uma conta bancária, sem possuir uma casa para residir, um veículo para se transportar. A questão não é ter ou não ter, mas administrar essa posse e propriedade, de modo que não contradiga o nosso testemunho diante do evangelho de Cristo. Na sua recente visita ao Brasil, o Seráfico Papa deu uma declaração que deve ter caído como uma bomba na cabeça de algumas autoridades eclesiásticas, mais ou menos com essas palavras: o padre precisa ter um veículo, é um meio indispensável para a realização do seu ministério, mas não precisa ser da melhor marca e do último modelo... Ele próprio recusou diversas “mordomias” que os papas anteriores assumiram sem qualquer objeção. Penso que essa declaração do Seráfico Papa ilustra de modo poderoso o que significa ter o objeto sem pertencer a ele. Sim, porque quando somos apegados aos bens materiais, não são eles que nos pertencem, somos nós que pertencemos a eles.

É a lição que Cristo nos dá, na leitura do evangelho de hoje (Lc 12, 13-21): “Tomai cuidado contra todo tipo de ganância, porque, mesmo que alguém tenha muitas coisas, a vida de um homem não consiste na abundância de bens.” Não é esta a única passagem em que Cristo chama a atenção para a correta administração dos bens materiais, mas esta é uma das mais eloquentes, quando Ele dá o exemplo do latifundiário que obteve abundante colheita e, longe de pensar em repartir aquele excesso de produção, favorecendo os irmãos, lembrou-se apenas de si mesmo, mandando construir armazéns maiores para assim guardar tudo só para ele. E o rico pensa consigo: tenho o suficiente para viver folgado por muitos anos, aproveitando a vida. Porém, ele não é dono da própria vida, que a Deus pertence, e por isso de nada adiantará o seu esforço egoísta. Meus amigos, essa parábola é por demais robusta, ela nos convida a refletir sobre o modo como estamos administrando os nossos bens, se estamos utilizando-os a serviço dos irmãos ou se estamos escondendo-os para o nosso único benefício. A ilusão de ter sempre mais facilmente escurece a razoabilidade da existência e afasta as pessoas, ao invés de aproximá-las. A prática generalizada da violência urbana, que amedronta diariamente a todos nós, decorre dessa tentação de ter muito, ter sempre mais e, de preferência, ter sem ser necessário fazer esforço, sem precisar trabalhar, de forma rápida para ser esbanjado mais rapidamente ainda.

E Cristo complementa o exemplo com a advertência: quem ajunta tesouros para si mesmo não é rico diante de Deus (Le 12, 21). Essa é uma expressão sinônima daquela outra que está no sermão da montanha, referente aos pobres de espírito. Está na mesma sintonia daquele outro desafio feito ao jovem que queria seguir a Cristo, mas tinha muitos bens e foi instado a livrar-se deles, mas não aceitou a oferta. Tem uma lição análoga àquela metafórica separação dos que ficam à esquerda e dos que ficam à direita, quando aqueles reclamam: quando foi que Te vimos com fome, ou com sede, ou maltrapilho e não Te atendemos? Quem procede igual ao fazendeiro da parábola narrada hoje não é capaz de reconhecer a figura de Cristo na pessoa do irmão necessitado. E recordando mais uma vez as eloquentes palavras do Seráfico Papa, na sua visita ao Brasil, certo diz ele disse algo mais ou menos com essas palavras: um cristão pode estar sempre na Igreja, participar dos sacramentos, colaborar no dízimo, rezar o terço mariano todos os dias e, ao morrer, ir para o inferno, porque estar na Igreja não significa necessariamente estar em Cristo. Meus amigos, eu achei essa dicção do Papa um primor de catequese, em linguagem simples e profundamente teológica. Tem tudo a ver com a frase do evangelho de Lucas: quem ajunta tesouros para si não é rico diante de Deus. Estar na igreja é viver burocraticamente a religião, cumprir a obrigação por mera convenção social, realizar práticas devocionais apenas na aparência, que não brotam do íntimo da pessoa. Estar em Cristo é levar essas atitudes para a vida concreta, no trato diário com os familiares, com os do seu nível, com os seus subordinados, com o irmão necessitado que vem em busca de auxílio. Obviamente, estar na igreja deveria ser uma consequência de estar em Cristo, e vice versa, no entanto, essa não é uma correspondência automática, ela deve ser buscada e aperfeiçoada em cada gesto e em cada atitude. Foi nesse mesmo sentido que, em ocasião anterior, o mesmo Seráfico Papa havia dito (e isso causou furor na Cúria) que um ateu praticante do bem também obtém a salvação, por ser rico diante de Deus, o que alguns cristãos não conseguem ser.