segunda-feira, 19 de agosto de 2019

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 20º DOMINGO COMUM - 18.08.2019


COMENTÁRIO LITÚRGICO 20º DOMINGO COMUM – FESTA DA ASSUNÇÃO DE MARIA – 18.08.2019



Neste 20º domingo comum, a memória litúrgica celebra, no Brasil, a festa da Assunção de Maria, uma verdade de fé proclamada pelo Papa Pio XII, em 1950, a última proclamação dogmática feita por um Papa. O Papa Pio XII, segundo ouvi de um sacerdote que estudava em Roma naquela época, ficou muito relutante se devia ou não fazer essa declaração dogmática da Assunção de Maria, porque não tem base na Bíblia, mas apenas na tradição. Ele pediu a Deus um “sinal” que lhe desse a certeza na sua convicção, pois estava cônscio da sua responsabilidade e da grande repercussão que a sua decisão teria. Logo abaixo, falarei sobre o sinal que ele recebeu.

As histórias acerca da “morte” de Maria são antigas e suportadas por uma tradição muito forte. Consta que Maria “morreu” aos 70 anos, no ano 56, e a sua despedida movimentou toda a cidade de Jerusalém. O apóstolo João era o seu guardião e o evangelista Lucas era o seu médico particular. Consta que ela recebeu, pela segunda vez, a visita do anjo Gabriel, anunciando a sua breve “morte” e ela, novamente, teria dito “eis aqui a serva do Senhor, faça-se segundo a tua palavra”. A história pessoal de Maria é ímpar e admirável.

Não apenas na Igreja Católica Romana, mas também no catolicismo ortodoxo das Igrejas Orientais, a assunção de Maria é celebrada desde a antiguidade, embora no oriente não tenha sido definida como dogma de fé. Mas foi nessas Igrejas orientais que se iniciou, por volta dos séculos III e IV, a celebração da “dormição” de Maria, baseada em escritos antigos que circulavam naquelas comunidades, nos quais se afirmava que Maria não havia morrido, mas apenas adormecera e então foi levada ao céu pelos anjos. Narra uma tradição da igreja siríaca que o apóstolo Tomé viu o momento em que Maria ascendia com os anjos e pediu a ela uma relíquia, para guardar como lembrança e, ao mesmo tempo, comprovar aquele fato. E, então, Maria deixou cair o seu cinto, que atualmente repousa em uma catedral dedicada a ele.

A Igreja Católica Romana não guardou essa tradição, porém interpreta a narração apocalíptica do capítulo 12, que descreve o aparecimento de um grande sinal no céu, com uma mulher vestida do sol, pisando sobre a lua e coroada com doze estrelas como sendo a figura de Maria. Há também escritos muito antigos, como o “Liber Requei Mariae” (livro do descanso de Maria), do século III, que afirma que Maria não morreu, apenas descansou. E um outro escrito, este do século V, intitulado “De transitu Mariae” (sobre o trânsito de Maria), que reforça a mesma afirmação. Estes dois são escritos anônimos, ou pelo menos sua autoria não tem comprovação. E no século VI, o teólogo São João Damasceno defendeu essa doutrina, numa demonstração da força desse pensamento teológico. Foi com base nesses textos e no testemunho, do qual falarei a seguir, que o Papa Pio XII decidiu fazer a proclamação. A teologia ensina que a morte é consequência do pecado. Se Maria foi concebida sem pecado, então a morte não sobreveio a ela.

Antes de se decidir pela oficialização do dogma, Pio XII estava com sérias relutâncias e pediu a Deus um “sinal” inequívoco. Este veio de uma maneira bem prosaica, através de um garoto francês. Quando criança, este menino fora milagrosamente curado de uma doença considerada incurável, graças às orações de seus pais à Virgem Maria. Certo dia, o menino falou ao pai dele que havia recebido um recado de Maria, que ele deveria levar ao Papa. O pai não levou a sério, até porque era pobre e não tinha condições financeiras de ir a Roma, mas, durante meses, o garoto insistiu que precisava falar com o Papa. A história se espalhou e os parentes e amigos ajudaram para as despesas da viagem. Chegando a Roma, o pai do menino ficou embaraçado, sem saber como chegar até o Vaticano e pedir audiência com o Papa, achando que ninguém acreditaria naquilo. Para surpresa dele, chegou uma pessoa na hospedaria onde estavam e perguntou se ali estava hospedado um garoto francês e que o Papa esperava para falar com ele. Bem, não precisa contar o resto da história. O que ele o Papa conversaram nunca foi revelado, mas depois desta conversa, o Papa se convenceu de que deveria oficializar o dogma da Assunção de Maria.

A proclamação papal acerca do dogma da Assunção não afirma taxativa se houve ou não a morte de Maria, isto é, proclamou a assunção de Maria em corpo e alma ao céu, sem se pronunciar sobre o detalhe se ela havia morrido ou apenas dormido ou descansado, conforme consta nos escritos anônimos dos primeiros séculos. Essa omissão proposital é uma atitude de prudência, para que os eventuais adversários da proclamação não viessem a contraditá-la por haver-se baseado em escritos apócritos. Por isso, além da referência ao capítulo 12 do Apocalipse, a doutrina também referencia a carta de Paulo aos Coríntios (1Cor 15, 22-23): “Como em Adão todos morrem, assim também em Cristo todos reviverão. Porém, cada qual segundo uma ordem determinada: Em primeiro lugar, Cristo, como primícias; depois, os que pertencem a Cristo, por ocasião da sua vinda.” A Igreja entende que, logo depois da entrada gloriosa no céu de Cristo ressuscitado, foi a vez de Maria, pela sua condição de imaculada mãe de Deus. Na verdade, a definição dogmática da assunção de Maria é uma consequência lógica de outra definição dogmática conciliar, publicada no Concílio de Éfeso, em 431, que proclamou Maria como Mãe de Deus, desfazendo uma antiga heresia, segundo a qual Maria era mãe apenas de Jesus homem, mas não de Cristo Deus, porque Deus não pode ter mãe.

Sobre as leituras litúrgicas da festa de hoje, já nos referimos acima à primeira, retirada do Apocalipse (12, 1), que fala do grande sinal (signum magnum) visto por João no céu. Era uma mulher grávida e, ao seu lado, um enorme dragão esperando que ela despachasse a criança, a fim de devorá-la. Essa imagem é emblemática nos arquétipos teológicos de todos os tempos, como uma referência clara e explícita aos embustes demoníacos contra a Igreja. Mesmo sem termos em mente qualquer anjo do mal, como criatura espiritual, podemos enxergar esses “agentes demoníacos” no interior de alguns setores burocráticos da própria Igreja. Quem não se recorda dos asquerosos “corvos do Vaticano”, que tanto atormentaram o Papa Bento XVI, forçando a sua renúncia, em 2003. Foram eles mesmos que dominaram o Papa João Paulo II, nos últimos anos de sua vida, período em que ele esteve muito debilitado e senil em consequência da doença de Alzheimer, produzindo documentos em nome do Papa e com a sua autoridade, com fortes evidências de que o Papa não sabia mesmo do que estava acontecendo. Dizem que, quando Napoleão Bonaparte assumiu o trono da França, logo depois da Revolução Francesa, teria colocado como um dos objetivos do seu governo a destruição da Igreja Católica. Sabendo disso, o arcebispo de Paris esteve conversando com o Imperador francês e teria revidado assim: desista do seu projeto de destruição da Igreja, porque os próprios padres já tentaram e não conseguiram. E olhando para os tempos atuais, observando o enorme carisma do Papa Francisco, admirado e exaltado até pelos ateus e fiéis de outras religiões, podemos concluir que os demônios podem estar dentro dos muros do Vaticano, mas as “portas do inferno” realmente não prevalecerão.

A segunda leitura litúrgica é a carta de Paulo aos Coríntios, à qual já me referi acima, cuja lição sobre a derrota da morte pela ressurreição de Cristo é o fundamento teológico mais forte para a afirmação da assunção de Maria, sobretudo levando-se em consideração que, sobre Maria, a serpente do pecado foi imobilizada, conforme se vê nas imagens dos artistas que retratam a figura da Imaculada Conceição. Aliás, esse título de “imaculada”, de acordo com a revelação particular a Bernardete Soubirous, aceita e admitida pela Igreja, foi Maria mesma quem afirmou: “je suis l'immaculée conception”, assim está estampado na gruta de Lourdes, na França. Não é afirmação bíblica, mas a tradição é fortíssima e antiquíssima, devendo ser prestigiada a sua credibilidade.

A leitura do evangelho relata a visita de Maria a sua prima Isabel, que engravidou já com a idade avançada, e cuja notícia lhe foi dada pelo anjo, quando trouxe a ela, Maria, a notícia de que tinha sido escolhida para ser a mãe do Redentor. Nesse contexto, Isabel pronunciou a parte inicial da oração da Ave Maria, prece antiga e tradicional do catolicismo. E nessa mesma ocasião, Maria pronunciou o seu belo cântico de louvor ao Altíssimo, o conhecido Magnificat, que não é tão divulgado no meio popular como a Ave Maria, mas é teologicamente mais importante. Maria estava no início da gravidez, enquanto Isabel estava na etapa final, então Maria ficou com ela durante três meses, ajudando nos preparativos e na chegada do bebê João, como é praxe ainda hoje as mulheres se ajudarem mutuamente nessas ocasiões. Esses relatos nós viemos a saber por intermédio de Lucas, o grande repórter da vida particular de Maria.

Uma curiosidade, porém, que Lucas não revela é onde Maria terminou seus dias. As crenças tradicionais são divergentes acerca do fato. Segundo algumas tradições, ela teria permanecido em Jerusalém, até o seu “passamento” - digamos assim, para não afirmarmos nem que ela morreu nem que descansou. Segundo outras tradições, ela teria terminado seus dias em Éfeso, onde existe uma casa, que é visitada pelos peregrinos e venerada como sendo a “casa de Maria” e de onde ela teria sido trasladada para o céu. Sabemos que João, o evangelista, era bispo de Éfeso e foi a ele que Jesus confiou os cuidados com Maria, ainda no Calvário. Talvez por isso a tradição se incline a aceitar que Maria teria terminado a vida em Éfeso. Mas pode ser também que João tenha se mudado para Éfeso somente depois da “passagem” de Maria, pois também não se sabe em que ano isso aconteceu. João teria se transferido para Éfeso, conforme a tradição, por volta do ano 50. Supondo que Maria teria engravidado com cerca de 15 anos, como era o padrão da sua época, no ano 55 ela teria cerca de 70 anos de idade. Por isso, tanto uma tradição quanto outra (Jerusalém ou Éfeso) são compatíveis com os fatos e assim não tem como solucionar a controvérsia.

Meus amigos, penso que é crença incontroversa o fato de que Maria ocupa um lugar central e incomparável em toda a economia da salvação (para usar um termo clássico da teologia). Não é por acaso que ela é reverenciada com tantos títulos. Que ela sempre nos vigie a todos com a sua ternura maternal.

****

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 19º DOMINGO COMUM - 11.08.2019


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 19º DOMINGO COMUM – VIGIAR SEMPRE – 11.08.2019



A liturgia deste 19º domingo comum nos convida a refletir sobre a necessidade da permanente vigilância acerca dos princípios da nossa fé, que fundamentam a nossa ação no mundo, iluminam o nosso exemplo de cristãos. Ser cristão não é uma diversão, um entretenimento, um modismo, uma estratégia publicitária, mas uma fé que exige um engajamento, um conjunto de atitudes e atividades que envolvem todo o nosso ser pessoal. Ninguém pode ser cristão apenas pela metade, esse cristianismo de fachada, pode até ser praticado por alguns crentes que se contentam em manifestações exteriores da sua fé, mas foi combatido por Cristo na sua catequese aos discípulos, de acordo com o que lemos no evangelho deste domingo.

A primeira leitura, retirada do livro da Sabedoria (Sb 18, 6-9), relembra a noite em que o povo foi libertado do Egito, quando Javeh demonstrou a sua fidelidade para com as promessas feitas através de Moisés ao povo, que n'Ele depositou sua fé. A ação miraculosa de Javeh foi, ao mesmo tempo, salvação para os justos e perdição para os inimigos. Os que acreditaram n'Ele foram contemplados com a sua força vencedora e os que não creram experimentaram o peso da sua ira. O livro da Sabedoria, cuja autoria era tradicionalmente atribuída a Salomão, é considerado pela crítica literária o texto mais recente do Antigo Testamento, tendo sido escrito numa época em que a cultura grega já ganhava espaço dentre os judeus. Trata-se, portanto, de uma obra pós-exílica, bem posterior ao tempo de Salomão, incluído tardiamente no cânone dos livros bíblicos. O objetivo do seu autor é recordar ao povo as suas raízes históricas, para deste modo fortalecer-lhes na fé e não deixar que sejam atraídos pelas novas doutrinas que apareciam. O texto busca resgatar e condensar os ensinamentos tradicionais básicos, produzidos pelos ancestrais do povo durante toda a sua caminhada, desde a libertação do Egito, demonstrando a superioridade de Javeh sobre os deuses dos outros povos.

A segunda leitura é retirada da carta aos Hebreus (Hb 11, 1-19). Esta carta, por muito tempo, foi aceita como tendo sido escrita por Paulo, por causa do pensamento grego inerente ao seu texto, que é uma característica dos escritos paulinos. Contudo, atualmente a crítica literária já descartou a autoria de Paulo, embora não se saiba, com certeza, quem teria sido seu autor. Nas Bíblias, ela ainda consta no final da listagem das cartas de Paulo, mas apenas por uma questão de organização de capítulos, pois não há certeza de quem a escreveu. Cogitou-se que poderia ter sido Timóteo ou Clemente de Alexandria, porém não há elementos históricos que corroborem essas hipóteses. O certo é que seu autor foi alguém da comunidade grega muito entrosado com a fé judaica, pois a exemplo do livro da Sabedoria, também procura resgatar esta tradição numa época muito marcada pela influência grega.

No início deste capítulo 11, o autor dá a mais perfeita definição do que seja a fé: “um modo de já possuir o que ainda se espera”, é o conceito do “já e ainda não”, que também se encontra nos escritos paulinos. O autor da carta coloca como exemplo para esse conceito a extraordinária fé de Abraão, que superou todas as adversidades pela sua confiança na promessa de Javeh. Desde a gravidez de Sarah, em idade avançada, até a peregrinação pelo desconforto do deserto, morando em tendas precárias, passando pela provação experimentada, quando foi chamado a imolar seu único filho, Abraão nunca vacilou na sua crença na promessa de Javeh, pois sabia que Ele tem poder até de ressuscitar dos mortos. Pela sua fé inquebrantável, Abraão foi sempre uma referência para os escritores bíblicos, quando este assunto estava em pauta. Até Jesus Cristo, naquele episódio do centurião que disse “basta uma palavra tua” (sed tantum dic verbum), declarou: nunca vi tamanha fé em Israel. A fé demonstrada pelo centurião no Novo Testamento se equipara ao exemplo de fé de Abraão.

Os exemplos de Abraão, no Antigo Testamento, e do centurião, no Novo Testamento, demonstram para nós o tamanho do compromisso que brota da fé. Crer é integrar a fé na sua vida inteira e não apenas em parte dela nem apenas quando a ocasião coloca o crente em algum aperto. Fé significa viver cada dia com aquela mesma confiança e certeza, aconteça o que acontecer, vigiando para que nenhuma adversidade venha nos desviar deste caminho. As leituras da Sabedoria e de Hebreus reforçam a importância da fé incondicional como sendo aquela que Deus espera do fiel. Abandonar-se nas mãos de Deus não significa ficar de braços cruzados, sem fazer nada, esperando que Deus faça seus milagres a todo momento, mas sim fazendo cada um a sua parte, na convicção de que o resultado final será conduzido pela fidelidade daquele a quem servimos. Este é o significado da definição teológica da fé, contida nesse texto: “A fé é um modo de já possuir o que ainda se espera, a convicção acerca de realidades que não se veem.” (Hb 11, 1). Esta frase sozinha vale por um tratado teológico inteiro.

Na leitura do evangelho de Lucas (12, 32-48), temos uma catequese particular de Jesus para os discípulos. Algumas vezes, Ele catequizava os discípulos ao mesmo tempo em que ensinava também as multidões. Mas em outros momentos, Ele se dirigia especificamente ao pequeno grupo, como é o caso da leitura de hoje: “Não tenhais medo, pequenino rebanho, pois foi do agrado do Pai dar a vós o Reino.” (Lc 12, 32) O pequenino rebanho, no caso, é o seu grupo de escolhidos para continuarem o trabalho, depois que Ele retornasse ao Pai. Então, Jesus vai ministrar-lhe lições bem diretas: vocês devem ser vigilantes como empregados que esperam o patrão, que pode chegar a qualquer momento, para abrir-lhe imediatamente a porta. Por outras palavras, o verdadeiro crente é aquele que está sempre alerta, aquele cuja fé não tira férias, cuja fidelidade nunca esmorece ou dormita. Para estes, o patrão vai oferecer um banquete no qual ele próprio será o garçon. Esta será a retribuição aos que crerem de todo o coração e perseverarem inabaláveis na sua fé.

Porém, Jesus faz outra advertência aos discípulos, para que eles não ajam como servos “confiados”, ou seja, aqueles que o patrão deixou como administradores e na ausência dele, porém passam a explorar os outros empregados, passam a regalar-se de comida e bebida até se fartarem e, quando o patrão retorna, os encontra embriagados. Para estes, não haverá retribuição, e sim, castigo. E essa advertência de Jesus se dirige também para nós. A nossa condição de cristãos não deve nos levar a tirar proveito da situação, de nos considerarmos melhores do que os outros irmãos da fé e do que as pessoas que praticam outras crenças religiosas. O ser cristão para nós deve acarretar o compromisso de dar o exemplo para que os irmãos nos vejam e sejam estimulados a nos imitarem, isto é, eles devem ser convencidos pelo nosso testemunho e pelo nosso exemplo, e não ser tratados com desdém ou menosprezo. O Papa Francisco tem, repetidas vezes, enfatizado isso na sua catequese, superando aquela doutrina tradicional de que somente na Igreja Católica as pessoas serão salvas, como se isso fosse automático. Os cristãos “confiados” podem ser surpreendidos com a reprovação, enquanto pessoas de outras crenças, mas cuja conduta está de acordo com o evangelho, receberão aprovação.

Esta vigilância que Jesus exige de seus seguidores estende-se a todos, tanto os fiéis leigos quanto os fiéis consagrados e os ordenados. Quantas vezes, infelizmente, encontramos sacerdotes e bispos autoritários e prepotentes, que estão longe do modelo traçado por Cristo no evangelho deste domingo. Quantos personagens, ao longo da história eclesiástica (papas, bispos, purpurados) se comportaram como autênticos chefes políticos e não como aqueles que foram escolhidos para servirem ao povo de Deus. Outrora como nos dias atuais, não é raro encontrarmos exemplos de “empregados confiados” que esqueceram a palavra de Cristo: “'Meu patrão está demorando', e começar a espancar os criados e as criadas, e a comer, a beber e a embriagar-se, o senhor daquele empregado chegará num dia inesperado e numa hora imprevista, ele o partirá ao meio e o fará participar do destino dos infiéis.” (Lc 12, 45-46). Vejamos que a consequência desse comportamento é terrível: o empregado será partido ao meio e irá participar do destino dos infiéis. E Jesus complementa dizendo que a exigência da fé será proporcional ao conjunto dos talentos recebidos, ou seja, a quem muito foi dado, muito será pedido. “Aquele empregado que, conhecendo a vontade do senhor, nada preparou, nem agiu conforme a sua vontade, será chicoteado muitas vezes.” (Lc 12, 47)

Deus quer de nós fidelidade sempre, não apenas no comparecimento da missa aos domingos e na participação dos sacramentos, não apenas em determinadas horas do dia ou em determinados dias da semana, mas a cada minuto de vida que Ele nos dá. Que nós aprendamos a agir sempre como os empregados vigilantes, elogiados pelo patrão.

****

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 18º DOMINGO COMUM - 04.08.2019


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 18º DOMINGO COMUM – VAIDADE DAS VAIDADES – 04.08.2019



A liturgia deste 18º domingo do tempo comum nos leva a refletir sobre a efemeridade dos bens materiais, dos quais não somos donos, mas apenas administradores. As leituras mostram exemplos de apego demasiado às coisas terrestres, situação que obnubila a nossa mente e nos impede de reconhecer o bem. É a vaidade das vaidades. Não vale a pena ser rico para ostentar, ser rico para o mundo, porque tal riqueza é vã e vazia, não nos acompanha na jornada futura. O cristão deve ser rico para Deus, rico de coração, pois esta é a riqueza duradoura.

Na primeira leitura, do livro do Qohelet (Eclesiastes), temos aquele bordão, que nos foi repetido incontáveis vezes no período de formação: vaidade das vaidades, tudo é vaidade. Sob o ponto de vista etimológico, a palavra hebraica que é traduzida por “vaidade” significa algo como “uma bolha de sabão”, ou seja, a vaidade é algo que aparenta beleza, todavia é vazia, transitória, de repente se desfaz. E observemos o quanto a vaidade mexe com a cabeça das pessoas. Por causa da vaidade, as pessoas praticam atos reprováveis, fazem inimigos e até se autodestroem. Por causa da vaidade, as pessoas tentam apresentar uma imagem de si mesmas que, de fato, não existe e tentam diminuir o brilho dos outros, a fim de que possam aparecer com destaque. Eu arriscaria dizer que a vaidade é o maior pecado da humanidade.

O livro do Qohelet, cuja autoria é atribuída a Salomão, faz uma advertência que continua muito atual, quando vemos pessoas cujos pais tiveram vida próspera, como fruto do seu trabalho, enquanto os herdeiros, com pouco tempo, puseram tudo a perder. Nos meios de comunicação, é frequente lermos notícias de pessoas que ganharam elevadas quantias em loterias e outros negócios, como jogadores e artistas, que fizeram muita fama e tiveram invejável fortuna, e terminaram os seus dias, muitas vezes, em asilos de amparo, na mais lamentável penúria. Existe uma frase do Dalai Lama, que circula pela internet, a qual reproduz no nosso contexto contemporâneo a advertência do Kohelet: os homens gastam a saúde trabalhando demais para angariar muita riqueza e depois gastam toda a riqueza que adquiriram para restabelecerem a saúde. Quando conseguem.

Na carta aos Colossenses (3, 1-2), o apóstolo Paulo ensina-lhes a aspirar às coisas do alto, a concentrar-se nas coisas celestes, já que, pelo batismo, todos ressuscitaram em Cristo. Isso significa que o “homem velho” morreu e no seu lugar surgiu o “homem novo”, fruto do evangelho. No versículo 5, Paulo não poderia ser mais claro ao falar das coisas terrestres, que devem ser abominadas: “Portanto, fazei morrer o que em vós pertence à terra: imoralidade, impureza, paixão, maus desejos e a cobiça, que é idolatria. ” Os conceitos utilizados pelo apóstolo são, na verdade, todos sinônimos da mesma vaidade, da qual fala o Kohelet: ôca e efêmera. Ao morrermos para o pecado e ressuscitarmos para a vida nova em Cristo, todo o nosso mundo se transforma. Então, não teremos mais apego aos bens materiais nem às honrarias nem às benesses terrestres, isto é, “Aí não se faz distinção entre grego e judeu, circunciso e incircunciso, inculto, selvagem, escravo e livre, mas Cristo é tudo em todos ” (Col 3, 11).

Naturalmente, meus amigos, essas palavras não devem ser entendidas como sendo incoerência nós cristãos possuirmos bens materiais, porque estes fazem parte da vida e são conquistados por nós com o nosso trabalho, o nosso esforço, a nossa produtividade, com eles podemos ter uma vida mais confortável, isso não é vedado ao cristão. Mesmo nas comunidades religiosas, se recordarmos a vetusta regra de São Francisco (“que os frades não recebem dinheiro ou pecúnia”), compreendemos que essas palavras devem ser entendidas simbolicamente, porque é impossível aos padres, religiosos e pessoas consagradas em geral uma existência sem a dependência da pecúnia, sem ter uma conta bancária, um telefone celular, sem possuir uma casa para residir, um veículo para se transportar. A questão não é ter ou não ter, mas administrar bem essa posse e propriedade, de modo que não contradiga o nosso testemunho diante do evangelho de Cristo. Numa palestra proferida aos sacerdotes, logo no início de sua jornada, o Papa Francisco expressou bem esse pensamento, mais ou menos com essas palavras: o padre precisa ter um veículo, é um meio indispensável para a realização do seu ministério, mas não precisa ser da melhor marca nem do último modelo... E no sermão de enceramento da Jornada Mundial da Juventude, em 2016, em Cracóvia, ele ensinou aos jovens: “Não vos deixeis anestesiar a alma, mas apostai no amor formoso, que requer também a renúncia, e um «não» forte ao doping do sucesso a todo o custo e à droga de pensar só em si mesmo e nas próprias comodidades.” Penso que essas declarações do Papa ilustram, de modo poderoso, o que significa ter um objeto sem pertencer a ele. Sim, porque quando somos apegados aos bens materiais, não são eles que nos pertencem, somos nós que pertencemos a eles.

É a lição que Jesus nos dá, na leitura do evangelho de hoje (Lc 12, 13-21): “Tomai cuidado contra todo tipo de ganância, porque, mesmo que alguém tenha muitas coisas, a vida de um homem não consiste na abundância de bens.” Não é esta a única passagem em que Cristo chama a atenção para a correta administração dos bens materiais, mas esta é uma das mais eloquentes, quando Ele dá o exemplo do latifundiário que obteve abundante colheita e, longe de pensar em repartir aquele excesso de produção, favorecendo os irmãos, lembrou-se apenas de si mesmo, mandando construir armazéns maiores para assim guardar tudo só para ele. Todo aquele que é rico pensa somente em si: tenho o suficiente para viver folgado por muitos anos, aproveitando a vida. Porém, se ele não for rico para Deus, de nada adiantará o seu esforço egoísta. Meus amigos, essa parábola é por demais robusta, ela nos convida a refletir sobre o modo como estamos administrando os nossos bens, se estamos utilizando-os a serviço dos irmãos ou se estamos escondendo-os para o nosso uso egoísta. A ilusão de ter sempre mais facilmente escurece a razoabilidade da existência e afasta as pessoas, em vez de aproximá-las. A prática generalizada da violência urbana, que amedronta diariamente a todos nós, decorre dessa tentação de ter muito, ter sempre mais e, de preferência, ter sem ser preciso fazer esforço, sem precisar trabalhar, de forma rápida, para ser esbanjado mais rapidamente ainda.

E Jesus complementa o exemplo com a advertência: quem ajunta tesouros para si mesmo não é rico diante de Deus (Lc 12, 21). Essa é uma expressão sinônima daquela outra que está no sermão da montanha, referente aos pobres de espírito. Está na mesma sintonia daquele outro desafio feito ao jovem que queria seguir a Cristo, mas tinha muitos bens e foi instado a livrar-se deles, mas não aceitou a oferta. Tem uma lição análoga àquela metafórica separação dos que ficam à esquerda e dos que ficam à direita, quando aqueles reclamam: quando foi que Te vimos com fome, ou com sede, ou maltrapilho e não Te atendemos? Quem procede igual ao fazendeiro da parábola narrada hoje não é capaz de reconhecer a figura de Cristo na pessoa do irmão necessitado. Recordo outra vez as eloquentes palavras do Papa Francisco, na sua visita ao Brasil, por serem verdadeiras e marcantes: um cristão pode estar sempre na Igreja, participar dos sacramentos, colaborar no dízimo, rezar o terço mariano todos os dias e, ao morrer, ir para o inferno, porque estar na Igreja não significa necessariamente estar em Cristo. Meus amigos, eu guardei essa lição do Papa, porque é um primor de ensinamento, em linguagem simples e profundamente teológica. Tem tudo a ver com a frase do evangelho de Lucas: quem ajunta tesouros para si não é rico diante de Deus. Estar na igreja é viver burocraticamente a religião, cumprir a obrigação por mera convenção social, realizar práticas devocionais apenas na aparência, que não brotam do íntimo da pessoa. Estar em Cristo é levar essas atitudes para a vida concreta, no trato diário com os familiares, com os do seu nível, com os seus subordinados, com o irmão necessitado que vem em busca de auxílio. Obviamente, estar na igreja deveria ser uma consequência de estar em Cristo, e vice-versa, no entanto, essa não é uma correspondência automática, ela deve ser buscada e aperfeiçoada em cada gesto e em cada atitude. De acordo com esse entendimento, um ateu praticante do bem obterá a salvação, por ser rico diante de Deus, enquanto alguns batizados não a obterão, se pensarem como o fazendeiro da parábola.

****

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 17º DOMINGO COMUM - 29.07.2019


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 17º DOMINGO COMUM – A ORAÇÃO PODEROSA– 29.07.2019



Neste 17º domingo comum, a liturgia enfoca um tema super importante nos dias atuais, qual seja, o poder da oração, que é uma consequência do poder da fé. Afinal, o que significa orar? Desde criança, nós somos orientados a aprender certas orações de cor e recitá-las. Mas quem tem fé e ora espontaneamente, sem se prender a fórmulas padronizadas, faz diferença?. Coloca-se, portanto, nesse contexto, a discussão acerca das orações repetitivas em contraposição à oração criativa. Ao rezar o terço, repetimos cinquenta vezes a Ave Maria, isto é válido ou é melhor deixar falar o coração? Há justificativas teológicas para um e outro casos.

A primeira leitura, retirada de Gênesis (18, 20-32), é a continuação da leitura do domingo anterior, quando Abraão dialogou com os mensageiros desconhecidos, que o visitaram e anunciaram a gravidez de Sarah. Os mensageiros anunciaram também que, dali, iriam visitar Sodoma, a fim de conferir se aquilo que bradava aos céus contra os seus habitantes era realmente fato ou era alguma notícia inverídica, para que fossem tomadas providências. É muito curioso esse estilo do escritor sagrado de comparar Javeh com as pessoas humanas, como se Deus não tivesse condição de saber o que estava ocorrendo e necessitasse de mensageiros para darem seu testemunho. Na verdade, o objetivo da narrativa é demonstrar a força que possui a oração do justo diante de Deus. Abraão intercede sucessivas vezes pelos habitantes 'justos' de Sodoma, para que Javeh não os destrua assim como iria fazer com os ímpios. Abraão vai criando coragem e baixando o perfil: se houver 50 justos... e se forem 45... e se forem apenas 30... ou 20... ou 10... E Javeh o atende, dizendo que se houver 10 justos na cidade, ela não será destruída. Acontece que não havia nenhum. No caso, portanto, o que interessa para nós não é a antropologização de Deus, mas a lição bíblica de que ele atende as orações dos justos e também que a presença de pessoas justas, ainda que em pequeno número, faz a diferença no mundo dos ímpios. Conforme Jesus explicou em suas parábolas, o justo funciona como o fermento na massa, isto é, embora em pequena quantidade, é capaz de fazer toda a massa levedar. É o mesmo caso do exemplo da luz que, por menor que seja, ilumina todo um ambiente que antes estava escuro. O poder da oração tem uma carga energética de grande potencial, cuja ação na sociedade é capaz de produzir efeitos extraordinários.

Na leitura do evangelho, da autoria de Lucas (11, 1-13), lemos duas importantes lições de Cristo acerca da oração. Primeiro, os discípulos pedem a Ele que lhes ensine a orar, e Ele compõe na hora aquela famosa prece que continua sendo repetida hoje como “a oração que o Senhor ensinou”. Em seguida, temos as exortações que Ele faz acerca do vizinho que atende ao pedido do outro, mesmo que não seja por causa da amizade, mas até para se livrar do incômodo, e ainda acerca do pai que atende ao pedido do filho e não lhe fará nenhum mal. Ora, diz Ele: “se vós que sois maus, sabeis dar coisas boas aos vossos filhos, quanto mais o Pai do Céu dará o Espírito Santo aos que o pedirem”. As lições de Cristo seguem o mesmo padrão doutrinário do texto do Gênesis acerca da força da oração e da importância de cada um rogar a Deus segundo as suas necessidades. Pois quem pede, recebe; quem procura, encontra; e, para quem bate, se abrirá. Se observarmos bem, até mesmo a figura literária dos mensageiros que foram a Sodoma “conferir” o que estava se passando, como se Javeh não soubesse, está, de outro modo, reproduzida no ensinamento de Cristo com o “pedi e recebereis”. É claro que Deus sabe das nossas necessidades e, na lógica humana, não seria preciso que se pedisse. Mas a lógica divina ensina que devemos pedir, não porque Deus não saiba, mas porque o ato de pedir é um ato de humildade, é uma confissão de carência, é um reconhecimento de incompletude, é um golpe no nosso orgulho. Mesmo que, em tese, não houvesse a necessidade de fazer o pedido, Jesus ensina que devemos pedir como uma forma de nos aproximarmos sempre mais daquele que dispõe de tudo e que tudo pode. Acima de tudo, o ato de pedir é um ato de fé, pois aquele que não crê acha que não precisa de Deus e, desse modo, sucumbe na sua autossuficiência.

Desponta, nesse contexto temático, aquela famosa polêmica do modo segundo o qual devemos orar: seguindo as orações formulares memorizadas ou fazendo preces espontâneas, ditadas pela sensibilidade e pela emoção de cada momento? Obviamente, Cristo nunca mandou escrever orações modelares. A prece que chamamos de “pai nosso” não foi, com certeza, dada como modelo por Cristo, mas como um exemplo de como devemos nos dirigir ao Pai. A própria estrutura tríplice do “pai nosso” demonstra que devemos sempre, em nossas orações, em primeiro lugar, agradecer e louvar; depois, pedir e, por fim, ter misericórdia. É importante observar isso, porque na maioria das vezes, as pessoas rezam apenas para pedir algo, fazem uma espécie de contrato com Deus: me dê isso que eu rezo durante tantos dias. E se zangam com Deus porque não recebem. Alguns até abandonam a religião em protesto. Lamentavelmente, a pedagogia catequética tradicional levou as pessoas a identificarem a oração com um pedido de suprimento de alguma necessidade. Daí se criaram as “promessas”, os novenários, os devocionais, o costume de orar somente quando a pessoa se encontra em necessidade premente, precisa de ser urgentemente atendido, senão perde a fé e não vai rezar mais. Não podemos deixar de reconhecer que este é um fato corriqueiro na vida religiosa do nosso povo, sendo inclusive esse um motivo de “mudança de religião”, porque não conseguiu o que pretendia numa igreja, então vai procurar outra, como se Deus estivesse mais presente ali do que aqui. Em verdade, o que muda não é o espírito divino, mas a fé do crente.

Pois bem. Ao longo dos séculos, as autoridades eclesiásticas foram compondo textos de orações que se tornaram padronizadas, de modo que a catequese consistia, em grande parte, na memorização desses textos orantes. E a grande maioria dos fiéis só sabe rezar esses textos oficiais, como se apenas estes fossem válidos diante de Deus. É bem verdade que algumas pessoas não têm aquele “dom” de fazer preces bonitas, com palavras e frases bem-compostas. Isso não se refere apenas aos fiéis leigos, mas também aos sacerdotes. Nos primeiros tempos do cristianismo, não havia um “cânon” da missa, mas cada celebrante inventava o texto na hora da celebração. Ocorre que alguns sacerdotes mais cultos e devotos conseguiam compor orações mais completas e que agradavam mais à comunidade, enquanto outros tinham dificuldade em fazer belas preces. Assim, aos poucos foram se introduzindo textos padronizados para a celebração da missa e para as diversas orações a serem ditas nos cultos públicos. Chegou a um ponto tal essa burocracia do texto orante que, em determinada época, o celebrante cometia pecado venial se mudasse as palavras das orações oficiais. Atualmente, o celebrante tem certa liberdade para inovar, o que antes não era permitido. Ora, há pessoas que até questionam a tradução de certos trechos litúrgicos, quando são passados para as línguas vernaculares, o que demonstra que a prática da oração formular ainda é bastante forte.

Uma outra forma orante que causa certo incômodo para alguns fiéis é a das orações repetitivas. O terço mariano, por exemplo, é uma dessas orações criticadas. Que sentido faz repetir o mesmo texto de uma oração por cinquenta vezes? Por outro lado, há vários testemunhos de videntes que afirmam ter recebido de Maria a instrução-recomendação para a recitação do rosário, assim como de outros textos devocionais consagrados pela prática religiosa popular. Embora devamos reconhecer que essas repetições levam, na maioria das vezes, à distração mental porque se torna um comportamento mecânico e tedioso, não podemos deixar de reconhecer que muitas pessoas têm conseguido a obtenção de favores miraculosos com essas orações. Portanto, o que podemos dizer acerca desses vários tipos de orações é que, mais importante e mais operante do que o texto da oração será a fé do crente. Aquele que ora expressando sincera e honestamente a sua fé estará realizando o mandamento de Cristo “pedi e recebereis”, seja através das orações com textos prontos, seja através das orações espontâneas e criativas, porque acima das palavras da prece está a comunhão espiritual com Deus, através da fé. E isso é o que efetivamente Deus escuta e retribui: o coração sincero.

Que a nossa oração seja sempre a verdadeira expressão da nossa fé.

****

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 16º DOMINGO COMUM - 21.07.2019


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 16º DOMINGO COMUM – HOSPITALIDADE CRISTÖ 21.07.2019



Neste 16º domingo comum, as leituras tratam do tema da hospitalidade. Abraão recebe a visita de visitantes ilustres e os recepciona da melhor maneira. Jesus é recebido com simpatia na casa das irmãs Marta e Maria. Esses relatos trazem à tona a ideia da boa hospitalidade. Numa abordagem metafórica, esse fenômeno da visita pode também estender-se à visita no sentido espiritual, de tratar bem os irmãos, percebendo Deus na sua presença.

Na primeira leitura (Gn 18, 1-10), vemos como Abraão recebeu a visita de três desconhecidos forasteiros e trata-os com toda cortesia, percebendo em sua sensibilidade a presença de Deus através daqueles estranhos. Nâo precisa grande esforço exegético para divisarmos nessa imagem uma prefiguração remota da Trindade Santa, pois os três visitantes eram anjos do Senhor. Etimologicamente, a palavra anjo chegou à língua portuguesa através do latim “angelus”, que é uma transliteração do grego “anghelos” e que significa “mensageiro”. Com efeito, aqueles três visitantes vieram trazer a Abraão uma importantíssima mensagem de Javeh: a gravidez de Sara. Vendo avançar a idade e sem gerar filhos legítimos, Abraão foi servir-se da regra tradicional hebraica para casos similares, qual seja, de gerar um filho na pessoa de uma escrava. Mas para cumprir a sua promessa, Javeh não se contentaria com esse filho enviesado e assim os mensageiros vieram trazer a notícia de que Abraão geraria um filho na sua esposa Sara, apesar da idade avançada de ambos. Este episódio traz também logo à mente um caso semelhante de gravidez em avançada idade, acontecido com Isabel, prima de Maria, quando nasceu João Batista. Podemos perceber o quanto os fatos do Antigo Testamento se entrelaçam com os do Novo Testamento, em contextos diferenciados.

Mas o que chama a atenção nesse episódio é a hospitalidade de Abraão para com aqueles viajantes desconhecidos. Implorou para que não seguissem viagem, mas parassem na tenda dele e mandou preparar o melhor alimento: pão, leite coalhada e o cordeiro mais tenro, para que os viajantes de recuperassem da cansativa viagem. Meus amigos, todos se recordam que esse era o costume do sertão, até algum tempo atrás. Hospedava-se um viajante desconhecido, oferecendo-lhe o que havia de melhor em casa. O exemplo de Abraão, infelizmente, foi desbancado pelas rotinas de violência e de insegurança dos tempos modernos. Hoje em dia, ninguém mais tem coragem de oferecer abrigo e pousada para um desconhecido. Desconfia-se até de quem lhe pede um copo d'água, e não é sem propósito. No caso de Abraão, os visitantes predisseram a gravidez de Sara para dentro de um ano, levando Sara a rir incrédula quando ouviu a notícia. Ao nascer a criança, ela colocou-lhe o nome de Isaac – aquele que me fez rir. Em síntese, a hospitalidade devotada por Abraão àqueles viajantes decorreu do fato de ter ele percebido, através deles, a presença de Javeh. Tempos depois, Jesus vai dizer na sua pregação que quem recebe a um pequenino é a Ele que recebe. A presença de Deus através do irmão é a outra lição que podemos colher da leitura deste fato extraordinário.

Na leitura do evangelho (Lc 10, 38-42), temos o conhecido diálogo entre Marta e Jesus, a respeito do comportamento da irmã dela, Maria, que não a ajudava no trabalho da casa. Uma curiosidade que nos chama a atenção nesse trecho de Lucas é quando ele diz que “uma certa mulher de nome Marta o recebeu em sua casa”. Ora, nós sabemos que os três irmãos (Marta, Maria e Lázaro), que moravam em Betãnia, eram pessoas que desfrutavam de grande amizade com Jesus. Causa estranheza o modo como o evangelista Lucas se refere a Marta identificando-a como 'uma certa mulher'. E também a referência que ele faz ao lugar: “Jesus entrou num povoado...”, como se o local fosse desconhecido e aquela passagem fosse casual. Pelas leituras de outros trechos do NT, sabemos que Jesus hospedava-se com frequência naquela residência, onde ele até operou um de seus milagres mais emotivos, a ressurreição de Lázaro, ocasião em que Jesus chorou. (Jo 11, 35). Trata-se, sem dúvida, de um modo inesperado como o evangelista Lucas se refere à família com a qual Jesus tinha grandes relações de amizade.

Mas não ficam por aí as estranhezas dessa narração de Lucas. No trecho seguinte (Lc 10, 39-40), ele diz: “Sua irmã, chamada Maria, sentou-se aos pés do Senhor, e escutava a sua palavra. Marta, porém, estava ocupada com muitos afazeres.” Para em seguida, narrar a queixa de Marta a Jesus porque a irmã Maria ficava ali sentada aos pés dele, enquanto ela, Marta, ficava com todo o encargo das tarefas domésticas. Convenhamos, Jesus não andava sozinho, os discípulos sempre o acompanhavam, então a chegada daquele grupo numeroso numa casa implicava uma certa quantidade de tarefas fora da rotina e eram elas, Marta e Maria, as donas da casa, as responsáveis por aquele trabalho. Com certeza, chegando de viagem a pé, os visitantes queriam tomar um banho, alimentar-se, repousar, e isso significava aumento do serviço doméstico. Só que Maria ficou sentada ouvindo Jesus a conversar, enquanto Marta fazia todo o trabalho. E quando esta foi se queixar, Jesus ainda caçoou dela, dizendo que ela se preocupava demais e que Maria tinha escolhido a melhor parte.

Meus amigos, com todo respeito dos que pensam em contrário, parece-me que Lucas queria dar algum recado direcionado a alguém ou a algum grupo, quando escreveu essa história com esses pormenores. Apenas Lucas narra esse diálogo entre Jesus e Marta que, embora não se possa entender como uma repreensão, todavia soa incoerente naquele contexto. Sabendo que a Sua presença ali fazia aumentar o trabalho doméstico e vendo Marta a cuidar das atividades, enquanto Maria nada fazia, era de esperar que Jesus dissesse a Maria que fosse ajudar a irmã. Acerca dessa atitude pouco colaborativa de Jesus, eu li dois comentários. Um comentarista dizia que, com isso, Jesus estava colocando um valor mais acentuado na pessoa d'Ele do que no trabalho, como se ele estivesse a dizer a Marta que deixasse aquelas tarefas pra depois e fosse ouvi-Lo também. Assim, disse esse comentarista, devemos colocar Deus em primeiro lugar e tudo o mais virá como consequência. Parece-me que essa interpretação já foi muito usada, inclusive nos conventos, para colocarem-se os clérigos nas tarefas intelectuais (Maria) e os leigos nas tarefas domésticas (Marta). Evidentemente, dando mais importância às lides intelectuais, num seguimento literal àquilo que Jesus dissera. Não gostei dessa explicação.

Outro comentarista interpretou dizendo que cada uma das irmãs, Marta e Maria, amavam muito a Jesus, porém, ao seu modo: Marta através do trabalho prestativo, Maria através da atenção aos seus ensinamentos. Com isso, esse comentarista queria significar que cada pessoa tem um modo próprio de amar a Jesus e Ele ama cada um de acordo com o modo como cada qual é. Parece uma interpretação interessante, menos literal do que a anterior e teologicamente mais consistente. Porém, em relação ao trabalho, nós sempre aprendemos que existe tempo para tudo: tempus orandi, tempus laborandi, tempus ludendi, tempus ridendi, tempus dormiendi, etc (tempo de orar, de trabalhar, de divertir-se, de rir, de dormir, etc), o que não significa a pessoa deva escolher uma opção, mas o conjunto deles é que compõe a vida. Quem não se lembra que, no Noviciado, nós rezávamos enquanto fazíamos as tarefas domésticas e uma coisa não atrapalhava a outra. Era lavando os pratos e rezando a ladainha, cavando a horta e rezando o terço, “ora et labora”, dizia o Padre Mestre. O fato é que esse episódio narrado por Lucas já serviu pra muita gente justificar a preguiça, afirmando que tinha escolhido “a melhor parte”, como fez Maria. Continua me parecendo uma incoerência a narrativa de Lucas em relação aos ensinamentos de Jesus. É como se fosse, repito, um escrito destinado a dar um recado para determinadas pessoas, o que hoje nos dificulta a compreensão.

Mas abstraindo essa incógnita, observa-se nas atitudes de Abraão e de Marta o cuidado em bem receber. A hospitalidade verdadeira é aquela que decorre da caridade, que por sua vez é decorrente do amor de Deus, que nós enxergamos através da pessoa do irmão. Não precisa ser hospedando em casa, mas pode ser também no trato cordial, no gesto fraterno, no cumprimento respeitoso, na conversa bem humorada, na delicadeza dos gestos, são outras atitudes que equivalem a uma boa hospitalidade que podemos devotar aos irmãos.

Que o divino Mestre nos ensine a saber unir as duas atitudes (de Marta e de Maria) nas nossas tarefas do dia a dia.

****