sábado, 25 de dezembro de 2021

COMENTÁRIO LITÚRGICO - NATAL DO SENHOR - 26.12.2021

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – NATAL DO SENHOR – A ENCARNAÇÃO – 25.12.2021


Caros Confrades,


Então é novamente Natal. É curioso como essa festividade se repete a cada ano, porém sempre se mostra como algo novo, nenhum Natal é idêntico aos anteriores, tem-se aquela sensação de estar celebrando, a cada vez, uma festa inédita. Em nosso subconsciente, o Natal convida à renovação e os nossos pensamentos buscam se reinventar, como se a vida fosse de fato recomeçar. O Natal tem essa força extraordinária de mexer com a nossa acomodação e nos desafiar a “endireitar os caminhos e limpar as veredas de nossas vidas”, como disse o profeta. O Natal nos convida a refletir sobre o admirável mistério da encarnação: Deus humanizou-se, fez-se carne, isto é, tornou-se gente como nós. Os profetas diziam que isso aconteceria “na plenitude dos tempos” e isso significa que nós vivemos nesse tempo de plenitude, porque depois da encarnação de Cristo, a plena intervenção de Deus na história se tornou perene. Dali em diante, os tempos chegaram ao seu grau mais completo e dessa completude todos nós partilhamos. Talvez por isso o Natal sempre se apresente para nós como uma festa diferente.


As leituras litúrgicas contribuem para isso, trazendo fatos e reflexões para lá de inspirados, explicando com extrema clareza o fenômeno miraculoso da encarnação divina. Na primeira leitura, da Carta aos Hebreus, o seu autor, provavelmente um judeu convertido, procura demonstrar a continuidade da tradição hebraica em Jesus Cristo, com o objetivo de converter aqueles que, porventura, estivessem em dúvida sobre a sua messianidade. Ele inicia com uma afirmação taxativa e convincente: Jesus é a nova palavra, pela qual o Pai se comunica com a humanidade. Diz o texto: Muitas vezes e de muitos modos falou Deus outrora aos nossos pais, pelos profetas; nestes dias, que são os últimos, ele nos falou por meio do Filho, a quem ele constituiu herdeiro de todas as coisas e pelo qual também ele criou o universo. (Hb 1, 1-2). Isto é, a palavra de Deus transmitida através dos Profetas era uma forma de comunicação indireta com a humanidade. Mas nesses dias (os últimos, segundo ele, os tempos plenos), a Palavra de Deus foi transmitida diretamente por ele mesmo, sem intermediários. Agora o interlocutor não fala mais um discurso indireto: o Senhor disse..., ele agora fala na primeira pessoa: Eu vos digo... Não se trata mais do porta-voz, e sim do próprio mandante.


O texto não podia ser mais claro: Jesus fala com autoridade divina própria, não como um mensageiro, assim como foram os profetas. Mas, parece que ele não falou o discurso esperado pelos dirigentes do povo da aliança que, por isso, nele não acreditaram. Os chefes religiosos do povo hebreu, os sumos sacerdotes puseram Jesus em prova por diversas vezes, na tentativa de certificar-se da sua origem, tendo ele sempre repetido aquilo que estava nas escrituras, especialmente em Isaías. Apesar disso, muitos não creram nele. O autor da epístola aos Hebreus tenta, através de uma argumentação bem construída, mostrar que em Jesus se consumam as profecias e, na pessoa dele, temos o esplendor da glória do Pai e a expressão do seu ser (Hb 1, 3). A palavra de Deus, transmitida por Cristo, é assim a palavra autêntica, aliás, Cristo é a própria palavra e, como tal, sustenta o universo, perdoa os pecados, coloca-se acima dos anjos, pois a nenhum dos anjos Deus se referiu dizendo “tu és o meu filho, eu hoje de gerei”, somente para Cristo essa declaração foi ouvida.


Essa “teologia da palavra” está descrita, em sua forma mais perfeita, no prólogo do evangelho de João, que antigamente era lido no final de todas as missas, com o título de “último evangelho”. Tratando-se de um texto escrito já no final do primeiro século, tem-se uma perfeita síntese teológica do sentido do mistério da encarnação, reflexão que não aparece nos demais evangelhos, marcadamente descritivos. A leitura do texto de João demonstra o desenvolvimento da compreensão da doutrina de Cristo pelas primeiras comunidades, através das contribuições trazidas pelos “gentios” de cultura grega, sobretudo Paulo. Segundo os historiadores, João estava bastante idoso e tinha se estabelecido em Éfeso, onde era o líder da igreja local. Os seus seguidores fizeram-lhe diversos pedidos para que ele escrevesse o seu testemunho da vivência com Cristo, mas João havia se recusado a fazer isso antes. Porém, vendo se aproximar o fim dos seus dias, resolveu aceitar o desafio de escrever as suas memórias. Consta que não foi ele próprio o escritor, mas um secretário dele, a quem João teria ditado as palavras.


Antes de iniciar o trabalho de resgate de suas memórias, João e o escriba teriam feito uma semana de orações e jejum, preparando-se para a tarefa e pedindo a iluminação divina para que a composição dos fatos se desse com precisão e inteireza. Também há de se levar em conta que João, provavelmente, conhecia os demais evangelhos, os quais eram lidos nas catequeses das igrejas orientais, e ainda os escritos de Paulo. Acresça-se a isso o fato de que João foi testemunha ocular do que escreveu, diferente dos demais, que só ouviram falar. Por isso, o texto de João, além de ser mais elaborado, inclui diversas passagens de vida de Cristo, que não são relatadas nos demais textos.


João inicia assim (Jo 1, 1): “No princípio era a Palavra, e a Palavra estava com Deus; e a Palavra era Deus.” Esta é a tradução oficial. No texto latino, temos: no princípio era o Verbo... no texto grego, temos: no princípio era o Lógos. Com o intuito de tornar o texto bíblico mais popular, sem perda do caráter teológico, a tradução oficial é a Palavra. Nesta pequena frase, João faz afirmações marcantes da doutrina teológica, que já se desenvolvera naquela época. De trás para frente, temos: a Palavra (o Verbo) é Deus, isto é, Cristo não é apenas um profeta, é mais do que um profeta, é o próprio Deus. A Palavra (o Verbo) estava com Deus, isto é, antes de se humanizar, a Palavra estava unida a Deus, a Palavra se fundia com Deus. Isso aconteceu desde o princípio, pois no princípio de tudo, a Palavra (o Verbo) já existia, isto é, a Palavra (o Verbo) não começou a existir apenas agora que se humanizou, mas já existia desde sempre. E no versículo 14, logo adiante, está a tradicional e conhecidíssima verdade: E a Palavra (o Verbo) se fez carne e habitou entre nós. E no versículo 11: a Palavra (o Verbo) veio para o que era seu, mas os seus não a reconheceram. Aqui é que entra a ligação direta do evangelho de João com a carta aos Hebreus: Jesus é a Palavra do Pai, não reconhecida pelos hebreus.


Todo esse hino sobre a Palavra tem seu ponto central na frase: “o Verbo se fez carne”. A Palavra de Deus veio habitar no mundo e se tornou um de nós. É interessante compreendermos a expressão grega, na qual o evangelho de João foi originalmente escrito. Diz assim: kai ó Lógos sarx egéneto. Só uma explicação rápida: Kai=preposição “e”; ó Lógos = o Verbo, a Palavra; Egéneto = forma passiva do verbo “gennaw” (gerar, produzir); Sarx é aqui o vocábulo chave. Traduz-se literalmente por “carne”, vindo daí o substantivo “encarnação”. Mas “carne” significa no grego bem mais do que este vocábulo da língua portuguesa. Em grego, existe a palavra “soma”, que significa “corpo”, porém, João preferiu usar a palavra “sarx” e isso tem um sentido teológico especial. Corpo é um nome mais genérico, que se aplica a inúmeros objetos, sendo sinônimo de matéria em geral. Todo ente material é corpóreo. Porém quando nos referimos a corpo vivo, colocamos carne em oposição aos ossos, portanto, num sentido bem especificado. Na língua grega, “sarx” significa o corpo inteiro feito de carne e osso, o corpo dos seres vivos, o corpo humano quando se refere às pessoas. Num sentido figurado, “sarx” significa “natureza humana”. Portanto, dizer que o Verbo tornou-se “sarx” quer dizer que a Palavra tornou-se gente, transformou-se em ser humano, encarnou-se, humanizou-se. Desse modo, quando a Bíblia se refere a “toda a carne” isso quer dizer todas as pessoas, as pessoas inteiras, não apenas os músculos, que constituem a parte carnal biologicamente falando. O Credo fala na “ressurreição da carne”, não é na ressurreição dos corpos. Pode parecer uma distinção insignificante ou meramente retórica, mas não é. A ressurreição da carne significa a ressurreição da pessoa inteira, porém, não da sua materialidade. Daí porque a teologia não aceita a doutrina da “reencarnação”, porque ela confunde os conceitos de “soma” (corpo) e “sarx” (carne). Por isso, reencarnar não é sinônimo de ressuscitar, porque reencarnação equivale a reunir-se novamente o corpo com o espírito e não é esse o sentido do mistério da encarnação. A expressão “o Verbo se fez carne” deve ser entendida como a Palavra assumiu a natureza humana, virou gente e não como se um espírito tivesse adquirido um corpo. Atentem para a profundidade dessa distinção. Jesus Cristo não foi um espírito que adquiriu um corpo e depois livrou-se dele, com a morte. A Palavra encarnou-se, ou seja, adquiriu a natureza humana e nunca mais a deixou. Jesus Cristo continua encarnado, mesmo não tendo mais materialidade corpórea. Ao adquirir a natureza humana associada à natureza divina, Jesus passou a ter dupla natureza de forma permanente e é por isso que Ele é nosso modelo perene de perfeição, aquele perfil que, um dia, nós alcançaremos, pela salvação que Ele nos conquistou.


Nesse espírito, quero renovar sinceros votos de Feliz Natal a todos.

Antonio Carlos

segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 4º DOMINGO DO ADVENTO - 19.12.2021

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO DO ADVENTO – PRIMEIRA TESTEMUNHA – 19.12.2021


Caros Confrades,


Aproxima-se o Natal e a liturgia deste quarto domingo do Advento nos lembra quem foi a primeira testemunha da iminente chegada do Salvador: foi Isabel, esposa de Zacarias, quem recebeu a primeira notícia da chegada do Messias, através da reação de menino João, em seu ventre. A liturgia comemora a visita de Maria à sua prima Isabel, que morava nas montanhas, aonde ela foi apressadamente a fim de dar-lhe assistência nas primeiras semanas após o nascimento de João. A gravidez de Maria, então incipiente, era segredo apenas do casal, mas “o menino exultou de alegria” nas entranhas de Isabel e ela foi inspirada pelo Espírito Santo para reconhecer e interpretar aquele fato.


Antes de dar prosseguir no tema da visita de Maria, eu gostaria de ressaltar aqui a espetacular previsão do profeta Miqueias, com um grau de acerto de cem por cento, sobre o local onde nasceria o Messias: Belém de Judá. Miqueias era natural também do reino de Judá, morador na cidade de Mirasti, próxima de Belém e era contemporâneo do profeta Isaías, tendo vivido por volta de 700 anos antes de Cristo. Ele é um dos chamados 'profetas menores', porque o seu livro tem apenas sete capítulos, contudo, foi Miqueias o único dos profetas a afirmar que Belém seria o berço terreno do Messias. Observemos como se pode perceber o dedo de Javé conduzindo as ações humanas na história, para a realização de suas promessas a Abraão. Quando Miqueias profetizou a chegada do Messias em Belém, foi cerca de 700 anos antes de José e Maria se casarem. E eles não moravam em Belém, e sim em Nazaré. São Tomás de Aquino afirmava que Deus age por “causas segundas”, isto é, não de modo direto, mas servindo-se dos acontecimentos. No caso, o agente da vontade de Javé foi o governador da Síria, Quirino (Lc 2,2), que era pagão, determinando um recenseamento de todos os moradores do império romano. Quando o rei Arquelau, da Síria, foi vencido pelos romanos, Quirino era o magistrado (governador) romano supremo na região do Oriente Médio, tendo ordenado o recenseamento dos habitantes do seu território, o qual, conforme estudos históricos, se deu entre os anos 8 e 6 a. C. Na Galileia, o governador era Herodes, mas o evangelista Lucas, se refere a Quirino porque Herodes era só o governador local, subordinado a Quirino, que era a autoridade romana máxima da região.


Por que essa referência a Herodes, que nem foi citado na leitura do evangelho? Porque este fato está associado com a visita dos magos do oriente, que chegaram ao palácio do rei Herodes perguntando onde estava o rei dos Judeus recém-nascido... para Herodes aquilo foi um choque, pois o rei era ele e não havia nascido nenhum filho dele. De todo modo, Herodes chamou os sacerdotes e adivinhos para saber do que se tratava, porque aquilo podia ser um sinal de alguma insurreição popular contra os romanos, talvez algum descendente real de uma tribo daquele povo. Logo, logo os sacerdotes lembraram da profecia de Miqueias: Belém, pequenina entre os mil povoados de Judá, de ti há de sair aquele que dominará em Israel, e então os magos foram orientados para irem até Belém. E depois Herodes mandou matar todos os recém-nascidos da região, por via de dúvidas, embora ele não acreditasse naquelas balelas de profecias. A narrativa do evangelista Lucas, que é como sempre recheada de detalhes históricos, nos ajuda a contextualizar os fatos e a fundamentar historicamente a época do nascimento de Cristo.


Na segunda leitura, da carta aos Hebreus, o autor sagrado desconhecido faz referência ao nascimento de Cristo, dizendo que Javé não se satisfazia com os holocaustos e oferendas de animais, sacrifícios imperfeitos que não expiavam os pecados da humanidade, por isso mandou seu próprio Filho para tornar-se a oferenda definitiva. Cristo, sacrificando-se de uma vez por todas, suprime e substitui todos os demais holocaustos e redime a humanidade. Ele veio para cumprir a promessa: “Eis que eu venho. No livro está escrito a meu respeito: Eu vim, ó Deus, para fazer a tua vontade.' ” (Heb 10, 7) O “livro” onde isso está escrito não é outro senão “a Bíblia (biblos)”, ou simplesmente, “o livro” escrito pelos profetas. São vários os profetas, mas o livro é um só, porque todos os seus escritores colocaram ali um conteúdo que se integra e se correlaciona, daí que não interessam os nomes dos autores materiais, já que um só é o seu autor intelectual: Javé. (Apenas para esclarecer aos colegas, esta carta era antigamente atribuída a Paulo e se dizia “carta de São Paulo aos Hebreus”, mas estudos posteriores dos biblistas levaram à conclusão de que não foi Paulo o seu autor, e visto que não se sabe quem foi, diz-se apenas “carta aos Hebreus”.)


No evangelho de Lucas (Lc 1, 39-45), lemos o relato muito conhecido da visita de Maria a Isabel, que se tornou a primeira testemunha da gravidez divina de Maria, por inspiração do Espírito Santo. A narração de Lucas é bastante rica em detalhes e, ao longo da história, estimulou a imaginação dos artistas dos mais variados modos, motivando a produção de inúmeras obras de arte retratando o tema. E Lucas foi aquele agente escolhido, pela sua convivência com Maria após a morte de Cristo, tendo sido escolhido por Deus para recolher d'Ela os segredos mais reveladores da vinda de Cristo, que não teriam sido conhecidos pela humanidade se não fosse essa situação privilegiada de ser ele uma pessoa letrada e da total confiança de Maria. Por conta disso, o seu evangelho tem uma característica singular, no que diz respeito ao conhecimento da infância de Jesus e à vida pessoal de Maria.


Pois bem. Diz Lucas que Maria foi apressadamente à região das montanhas, para visitar sua prima Isabel, que estava nos dias próximos do parto. Maria também estava grávida, embora de pouco tempo, gravidez ainda não perceptível, portanto, a própria Isabel não tinha conhecimento disso. E como era costume (e ainda é em grande parte da região interiorana do Nordeste), as parentas próximas (mãe, irmãs, primas) vão prestar assistência à parturiente, no período pós-parto, denominado de “resguardo”, especialmente quando se trata do primeiro filho. Tem aquela tradição que diz que Isabel mandou acender uma grande fogueira em frente da sua casa lá no alto, para que Maria e os parentes, que moravam no vale fossem avisados da proximidade do seu parto. Evidentemente não há embasamento bíblico para esse justificar tal procedimento, mas de qualquer modo, essa seria a origem das fogueiras juninas, que ainda hoje anunciam São João.


Ao se encontrarem, Isabel fez aquele célebre discurso teológico, que se tornou o tema da oração mais tipicamente mariana: ave, cheia de graça, bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre. Com certeza, Lucas relata esses detalhes para destacar o reconhecimento da divindade de Cristo, mesmo antes do seu nascimento. Isabel, como as mulheres judias daquele tempo, não era uma pessoa letrada, mas devia frequentar a sinagoga, como todos os judeus, e certamente sabia das promessas de Deus através dos profetas, pela explicação dos rabinos, acerca da vinda do Salvador. Muito provavelmente, o discurso teológico de Isabel foi recomposto por Lucas, a partir de sucintas narrações feitas por Maria, que na sua humildade e tendo sido ela e Isabel as únicas pessoas a testemunharem o evento, não iria fazer para si mesma um cântico de exaltação. Diz Lucas que Isabel ficou cheia do Espírito Santo quando Maria chegou e sentiu o bebê mover-se de modo diferente no seu ventre, o que a levou a proferir essas palavras inspiradas sobre a gravidez da prima. Na tradição teológica, diz-se que a primeira manifestação do Espírito Santo ocorreu no batismo de Cristo, quando ele já era adulto, juntamente com a “voz” do Pai, ou seja, a primeira manifestação da trindade divina. Mas podemos dizer que foi, de fato, Isabel a primeira pessoa que sentiu a inspiração do Espírito Santo com a presença de Maria, ao mesmo tempo em que isso indica a missão especial que deveria ter o filho dela, Isabel, na preparação do povo judeu para o reconhecimento do Cristo Messias.


Por fim, é importante destacar que a celebração da festa do Natal em 25 de dezembro não corresponde aos fatos históricos narrados por Lucas. Provavelmente, o nascimento de Jesus ocorreu no mês de março, isso também não ficou registrado. No entanto, foi uma imposição do imperador romano Constantino a data de 25 de dezembro para a celebração do Natal, sacralizando a festa pagã do deus saturno (saturnalia), que acontecia tradicionalmente em Roma nesta época da passagem do solstício de inverno, entre os dias 17 e 23 de dezembro, festas acompanhadas de lautos banquetes e distribuição de presentes. Independentemente disso, porém, para nós cristãos, o que interessa é o nascimento de Cristo, que aconteceu uma vez na história, mas que se repete constantemente em nossos corações, quando renovamos nosso compromisso de viver segundo o evangelho.


Com sinceros votos de Feliz Natal a todos.

Antonio Carlos

sábado, 11 de dezembro de 2021

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 3º DOMINGO DO ADVENTO - 12.12.2021

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 3º DOMINGO DO ADVENTO – ALEGRA-TE JERUSALÉM – 12.12.2021


Caros Confrades,


Neste 3º domingo do advento, a liturgia retoma o tema da alegria sobre Jerusalém, servindo-se das palavras do profeta Sofonias. Alegra-te, Jerusalém, diz ele, o Senhor teu Deus está no meio de ti. O contexto em que o Profeta faz essa invocação é bem diferente deste que se celebra no Advento, como explicarei em seguida, mas o texto aqui é utilizado para invocar o Senhor que está para chegar. Este domingo é também conhecido como o “domingo laetare”, em que a liturgia nos convida a ficarmos alegres com a aproximação do Natal. E a leitura do evangelho escrito por Lucas nos traz uma interessante sugestão de reflexão, na perspectiva do ano novo litúrgico, que nos conclama à revisão de nossas atitudes e a renovar nossos compromissos de cristãos.


O profeta Sofonias (3, 14-18) convida o povo a se alegrar, porque o Senhor afastou os inimigos de Jerusalém. Este profeta viveu antes do cativeiro da Babilônia, numa época em que o povo hebreu dividia suas preferências políticas entre os reinos do Egito e da Assíria, buscando qual seria o melhor para fazer aliança. Dentre as autoridades hebraicas, havia os simpatizantes da aliança com o Egito e os que defendiam a aliança com a Assíria, tendência esta que era a favorita do rei de Judá, na época de Sofonias (por volta do ano 630 a.C.), o rei Josias. Não demorou muito para que a Assíria fosse dominada pelos exércitos babilônicos, liderados por Nabucodonosor. Visto que os hebreus tinham essa aliança com a Assíria, tiveram a mesma sorte que os seus amigos assírios e foram levados cativos por Nabucodonosor para a Babilônia. Então, Sofonias profetizou nessa época anterior ao domínio babilônico, conclamando o povo a alegrar-se, porque Javé é o valente guerreiro que salva seu povo. Era uma tentativa de exaltar o nacionalismo judaico diante das ameaças de dominação por povos estrangeiros. Hoje nós sabemos que essa alegria durou pouco tempo, porque logo veio a escravidão. Então, a liturgia retira o texto de Sofonias do seu contexto histórico para encaixá-lo na temática do Advento.


A segunda leitura, extraída de Paulo aos Filipenses, também está deslocada do seu contexto histórico, porque quando o Apóstolo recomendava aos cristãos de Filipos que se alegrassem sempre no Senhor, pois Ele está próximo, queria referir-se à segunda vinda de Cristo que, conforme era o entendimento da época, acreditava-se que seria 'em breve'. Outra vez, precisamos abstrair da situação concreta do texto para que possamos compreendê-lo na perspectiva da temática do Advento. O fato de Paulo exortar os Filipenses à alegria sobre a proximidade da vinda do Senhor passa a ser então apropriado dentro do roteiro do “domingo laetare”, nessa etapa de preparação para a celebração do Natal. Portanto, a liturgia faz uma espécie de silepse histórica, levando-nos a fazer um certo exercício mental para compreendermos dentro do contexto do Advento dois textos que se referem a outras circunstâncias históricas. Na verdade, parece-me que a única justificativa é porque ambos contemplam o tema da alegria, que a liturgia pretende atribuir a este terceiro domingo.


Agora, afastando-nos do tema da alegria, examinemos o evangelho de Lucas (3, 10-18), que destaca a figura de profética de João Batista, pregando o batismo da conversão e batizando no Jordão. Diz Lucas que as pessoas convertidas procuravam João perguntando “o que devemos fazer” para viverem em coerência com o batismo da conversão. E João exortava a todos, de acordo com a atividade social exercida pelo batizado, recomendando-lhes o fiel cumprimento da missão de cada um. Aos vendedores e compradores, ele dizia: quem tiver duas túnicas, dê uma a quem não tem; e quem tiver comida, faça o mesmo. Ou seja, saibam partilhar os bens com os mais pobres. Aos cobradores de impostos, esses que, desde aquele tempo, já eram vistos pelo povo como corruptos, pecadores públicos, João dizia: não cobreis mais do que foi estabelecido, ou seja, pratiquem a sua atividade com justiça, não façam extorsão. Aos soldados, esses que eram também considerados pessoas costumeiramente violentas e perversas, João dizia: não tomeis à força dinheiro de ninguém, nem façais falsas acusações, ou seja, não exerçam o poder com abuso de autoridade. E mais: ficai satisfeitos com o vosso salário, ou seja, controlem a ambição de sempre querer mais. È proveitoso meditarmos sobre esse discurso de João, exortando o convertido a viver conforme sua conversão.


Com efeito, o discurso de João até parece que está direcionado para a sociedade dos nossos dias. O tempo do Advento é uma época adequada para fazermos um exame das nossas atitudes e avaliarmos como está a fidelidade à nossa vocação. João Batista está mostrando que, para cada um de nós, o Menino Deus tem um pedido especial, qual seja, a de vivermos com dignidade a nossa missão no dia a dia. Se tivermos o cuidado de 'ouvir' a voz de Deus nas nossas consciências em cada decisão que tomamos na vida, poderemos perceber que, em cada situação, Ele nos pede e espera de nós uma atitude de compromisso com a solidariedade, com a justiça, sempre no sentido do melhor cumprimento das verdades que Ele ensinou. Essa leitura do evangelho de Lucas nos sugere que, antes de cada tarefa e diante de cada nova missão que assumamos, na vida pessoal ou profissional, façamos perante a nossa própria consciência aquela indagação dos discípulos de João: para podermos viver a cada dia a nossa constante conversão ao chamado de Cristo, o que devemos fazer? E fiquemos atentos para o que Deus falará ao nosso coração.


E João Batista, ciente de sua própria missão, quis deixar claro, para aqueles seus discípulos que viam nele a figura de um provável Messias, quem era ele, confessando humildemente: eu não sou o Messias, mas virá aquele que é mais forte do que eu e eu não sou digno de desamarrar os cadarços da Suas sandálias (Lc 3, 16) e Ele vos batizará no espírito santo e no fogo. E completa: Ele virá com uma pá para limpar sua eira e uma peneira para separar o trigo do carrapicho. Embora o texto apresentado na versão oficial da CNBB use a palavra pá na mão, no texto latino, a palavra é “ventilabrum”, cuja tradução mais própria seria “joeira”, palavra que não é comum na nossa cultura, e que é algo mais parecido com a peneira. A ideia é fazer aquilo que os produtores rurais fazem com o feijão, o milho, o arroz depois que eles põem pra secar, para separar os grãos quebrados dos inteiros, separar os grãos de suas palhas: peneirar. No nosso meio sertanejo, além da peneira, faz-se também a prática de “ventilar” o feijão, o milho, ou seja, passar pelo vento, pra separar os grãos das cascas, é outra técnica rudimentar que tem o mesmo objetivo.


A meu ver, seria essa a mensagem que João Batista queria transmitir. Eu não sou o Messias, mas ele está perto de chegar e virá com uma peneira pra separar os grãos perfeitos das cascas, os grãos inteiros dos quebradiços. Os grãos selecionados serão recolhidos ao celeiro, enquanto as palhas serão lançadas ao fogo (Lc 3, 17). Então, o caminho de preparação para a celebração do Natal coloca na nossa frente os desafios que devemos enfrentar para sermos dignos de vê-Lo nascer em nosso espírito, em nossas famílias, em nossa comunidade. Traz um alerta para que não relaxemos nos nossos compromissos de cristãos e uma oportunidade para fazermos um balanço sobre as práticas realizadas no período que termina. Ou seja, a liturgia nos remete à reflexão sobre o modo como realizamos, no dia a dia das nossas atividades, aquelas ações e práticas que devem espelhar o estilo de vida do verdadeiro cristão.


Cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 4 de dezembro de 2021

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 2º DOMINGO DO ADVENTO - 05.12.2021

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 2º DOMINGO DO ADVENTO – ALEGRA-TE JERUSALÉM – 05.12.2021


Caros Confrades,


No segundo domingo do advento, a liturgia traz a clássica figura profética da nova Jerusalém, agora na palavra do profeta Baruch. O nome hebraico deste profeta (Baruch) significa “abençoado”, “bendito” e ele era também escriba, tendo exercido a função de secretário do profeta Jeremias, na produção de seus escritos. Baruch viveu durante o exílio da Babilônia e descreve a alegria de Jerusalém, com o retorno dos seus filhos. A leitura do evangelho de Lucas, como de costume, traz importantes informações históricas, que nos permitem situar no tempo com grande precisão a época desses acontecimentos. Em seguida, ele evoca o tema da pregação de João Batista no deserto: endireitai os caminhos, aplainai as veredas. Ele veio materializar a profecia de Isaías (40, 3): a voz que clama no deserto.


O livro da profecia de Baruch teria sido sugerido pelo próprio Jeremias, quando aquele o acompanhara na fuga para o Egito, a fim de não serem compelidos a ir para a Babilônia. Depois ter escrito as obras de Jeremias e depois da morte deste, Baruch passou a escrever também as suas profecias, certamente a partir do que aprendeu com o mestre, mostrando a presença de Javeh nos fatos históricos. Assim, ele diz que Jerusalém verá o retorno triunfante daqueles que foram levados cativos e humilhados algum tempo atrás. E o nome Jerusalém passará a significar “paz da justiça” e “glória da piedade”. A bem da verdade, é importante destacar que existem dúvidas entre os estudiosos sobre a autoria destes escritos, se teriam sido do próprio Baruc ou apenas atribuídos a ele. Trata-se de um livro deuterocanônico, isto é, que não estava na lista antiga dos livros bíblicos judaicos, tendo sido reconhecido como autêntico e incluído no rol somente tempos depois. De todo modo, o contexto referido é o mesmo em que viveu o profeta Jeremias, no tempo do cativeiro babilônico. O profeta Baruch declama a alegria de Jerusalém, ao ver o retorno de seus filhos que foram levados pelo inimigo: “Saíram de ti, caminhando a pé, levados pelos inimigos. Deus os devolve a ti, conduzidos com honras, como príncipes reais.” (Br 5,6) Por isso, ele diz: Levanta-te, Jerusalém, despe de uma vez por todas as vestes de luto e reveste-te para sempre dos adornos da glória. A Nova Jerusalém é a igreja de Cristo, representada nesta figura desenhada pela profecia de Baruch.


O profeta Baruch também antecipou as palavras que seriam repetidas por João Batista, no deserto da Judeia, na sua pregação preparatória do Messias que estava para chegar: “Deus ordenou que se abaixassem todos os altos montes e as colinas eternas, e se enchessem os vales, para aplainar a terra, a fim de que Israel caminhe com segurança, sob a glória de Deus.” (Br 5, 7) Foi a mesma temática recolocada por João Batista, quando pregava: “'Esta é a voz daquele que grita no deserto: 'preparai o caminho do Senhor, endireitai suas veredas.” (Lc 3, 4) Na visão de Baruch, ele se referia à Jerusalém geográfica, capital do reino de Judá. Mas dentro do simbolismo trans-histórico, que está presente na adequação entre o antigo e o novo testamentos, João Batista explicava que os caminhos a serem preparados não eram as estradas de pedra da Palestina, mas as vias internas do coração de cada um. Desse modo, João Batista convertia os judeus para um novo sentido a ser encontrado nas palavras da promessa de Javeh e por isso João Batista é considerado o último profeta do Antigo Testamento.


Na carta de Paulo aos Filipenses (Fl 1, 4-11), o Apóstolo se congratula com a comunidade de Filipos, a primeira onde ele pregou o evangelho, de modo que a sua lembrança dos filipenses era sempre cheia de muito carinho e gratidão. A cidade de Filipos recebera este nome em homenagem a Filipe da Macedônia, seu conquistador, e era uma das comunidades mais queridas por Paulo. Lá ele encontrou muita receptividade, quando foi pregar o evangelho pela primeira vez, desde quando tomou rumo diferente do apóstolo Barnabé, e obteve muitas conversões. Foi a partir de Filipos que o cristianismo começou a se espalhar pela Europa, até porque quando escreveu essa carta Paulo já estava preso e ele não tinha mais condições de sair pregando, como fizera antes. Os filipenses foram os continuadores do seu apostolado e Paulo os considerava uma espécie de comunidade modelo do cristianismo.


Os filipenses também estimavam muito Paulo, por causa do intenso trabalho que ele realizara lá, de modo que quando chegou a Filipos a notícia da sua prisão, a população organizou uma coleta e a mandou para Paulo, pois sabiam que ele passava necessidades. Daí que Paulo retribui, na carta, toda a amizade e afeição que os filipenses lhe dedicavam. E principalmente por saber que os filipenses se tornaram ardorosos divulgadores do cristianismo, então isso deixava Paulo ainda mais entusiasmado com os resultados do seu trabalho naquela comunidade. Daí ele dizer: “Deus é testemunha de que tenho saudade de todos vós, com a ternura de Cristo Jesus. E isto eu peço a Deus: que o vosso amor cresça sempre mais. ” E lhes recomenda que permaneçam fiéis até o “dia de Cristo”, ou seja, até a sua segunda vinda. Essa referência constante de Paulo à “segunda vinda” de Cristo bem denota o entendimento que ele tinha (e os cristãos da época) sobre este retorno de Cristo, que era esperado para breves dias. No nosso caso, o Advento nos convida a nos prepararmos para a chegada comemorativa daquele que vem, não apenas uma ou duas vezes, mas vem a nós todas as vezes que o buscamos. Com a liturgia do advento, nós fazemos essa preparação para o retorno de Cristo, espiritualmente, na vida da Igreja e nas nossas vidas de cristãos.


O evangelista Lucas, como de costume, muito detalhista, faz referências históricas bem precisas sobre a época em que João Batista exerceu sua profecia: No ano décimo quinto do império de Tibério César, foi a palavra de Deus dirigida a João, no deserto. Tibério iniciou seu reinado no ano 14 d.C., portanto, o décimo quinto ano seria o ano 29. Pouco tempo depois, quando Jesus tinha 30 anos, ele foi batizado por João e assim iniciou sua vida de pregador. Essa referência histórica de Lucas fundamenta a contagem do tempo para o estabelecimento da data do nascimento de Jesus. E Lucas diz que João percorreu toda a região do Jordão, pregando o batismo da conversão, para o perdão dos pecados, a metanóia, ou seja, a mudança de mentalidade, aplicando um novo modo de compreender os textos sagrados, fazendo a passagem do antigo para o novo testamento. Na liturgia, o tempo do advento, em todos os anos, nos conclama a essa renovação interior, a viver a conversão pregada por João, a despertar para o cumprimento da promessa de Javeh aos patriarcas, fato que está para acontecer. Lucas se refere também às outras autoridades da época: Pilatos, governador da Judeia; Herodes, governador da Galileia; Filipe, governador da Itureia; Lisânias, governador de Abilene; Anás e Caifás, os sumos sacerdotes do templo. Ao contextualizar assim historicamente o início da vida missionária de Jesus, Lucas nos dá um testemunho bastante preciso não apenas deste fato, mas também da confirmação histórica da vida terrena de Jesus, pois esses personagens, cuja presença é bem viva nos textos dos evangelhos, tem existência real indubitavelmente confirmada. Apesar disso, ainda há pessoas que duvidam se Jesus Cristo realmente existiu...


Podemos observar na exortação de Paulo aos filipenses uma correlação com a pregação de João Batista, acerca da preparação dos caminhos, da seguinte forma. João se refere às ações iniciais da conversão, enquanto Paulo se refere à continuidade desta. A conversão do coração não é algo que acontece apenas uma vez na vida, não é um fenômeno único, mas permanente, renova-se a cada dia. Quando Paulo diz que aquele que começou em vós uma boa obra (a conversão), há de levá-la à perfeição, quer dizer, há de sustentá-los na fé, perseverantes até o final. A isso chamamos de conversão contínua e isso representa o crescimento espiritual, tanto no conhecimento quanto no discernimento. Essa é a mensagem que, a cada ano, o tempo do advento vem nos trazer.


A exortação de Paulo aos Filipenses, assim como a pregação de João Batista, se aplicam a todos nós. A preparação do Natal do Senhor é um tempo oportuno de renovação das nossas esperanças e dos nossos compromissos de cristãos, no sentido de tornar o nosso mundo um lugar melhor para todos.


Cordial abraço.

Antonio Carlos

sábado, 27 de novembro de 2021

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 1º DOMINGO DO ADVENTO - 28.11.2021

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 1º DOMINGO DO ADVENTO – O FINAL E O COMEÇO – 28.11.2021


Caros Confrades,


O calendário litúrgico da Igreja Católica não segue o calendário comum da sociedade, por isso, neste domingo, dá início ao novo ano litúrgico católico, que costumeiramente coincide com o final de novembro ou início de dezembro do ano anterior, de acordo com a posição do dia de Natal no calendário civil, pois o ano litúrgico se inicia quatro domingos antes do Natal. A organização litúrgica da Igreja Católica distribui, no período de doze meses, toda a história da salvação, que historicamente demorou vários séculos, fazendo-nos reviver, a cada ano, todos os fatos marcantes da intervenção de Deus junto aos homens. Esta prática de dividir a Bíblia em porções correspondentes ao número de semanas do ano já existia entre os judeus, desde os tempos de Esdras, quando o povo retornou da escravidão da Babilônia. Este dirigente judeu dividiu a Bíblia hebraica em porções semanais, de modo que durante um ano, toda a Bíblia fosse lida nas sinagogas. A Igreja Católica segue essa tradição, porém de um modo diferente. Os anos litúrgicos são classificados com as letras A, B e C, pois a Bíblia católica tem mais livros do que a Bíblia judaica. Assim, as leituras litúrgicas dominicais não se repetem a cada ano, mas somente a cada três anos. No domingo passado, terminamos o ano B da liturgia e com a liturgia de hoje, 1º domingo do advento, tem início o ano litúrgico de 2022. De acordo com as regras da instrução oficial do Secretariado da Liturgia, este ano litúrgico que se inicia é identificado com a letra C.


Neste primeiro domingo do advento, a liturgia nos leva a refletir sobre as “coisas que hão de vir”, ou seja, os fenômenos indicadores do “final dos tempos”, também denominados de escatologia (coisas futuras). Ao mesmo tempo, prepara-se o coração dos fiéis para o Menino que vai chegar (adveniens), donde o nome “advento”, convidando-nos a preparar o coração para recebê-lo com espírito renovado. É curioso esse contraponto que a liturgia faz entre o “final” e o “começo”, colocando leituras com temas escatológicos e apocalípticos (evangelho de Lucas) junto da leitura do profeta Jeremias, anunciando aquele que vai chegar, para fazer valer a lei e a justiça sobre a terra, isto é, o Messias. Essa junção de temas conflitantes vem marcar a constante renovação que deve ocorrer em nossas vidas, demonstrando que o fim pode ser sempre um novo começo. O advento recorda a primeira vinda de Jesus, em forma humana e no tempo histórico; as coisas futuras recordam a segunda vinda de Jesus, não mais como criança nem no plano cronológico, mas como supremo juiz.


Esse tema da segunda vinda de Jesus, conforme abordamos em comentários anteriores, foi muito caro aos primeiros cristãos, que esperavam isto como algo imediato, para os próximos dias, de modo que alguns até deixaram de trabalhar, porque ele estava já chegando. O próprio apóstolo Paulo era um dos que esperavam ver a segunda vinda de Jesus (ele não tinha visto Jesus em forma humana). Porém com a demora desse retorno, a compreensão foi mudando de perspectiva e, ao longo dos tempos, passou por diversos quadros interpretativos. Agora, muitos séculos depois e com a evolução do conhecimento humano, já não se deve pensar numa “data” determinada, um dia marcado no calendário, nem mesmo num dia incerto e indefinido, como está escrito no evangelho (Lc 21, 35). Na minha modesta opinião, sou levado a crer que não cabe mais pensar num evento de dimensões cósmicas, como consta com detalhes na narração do evangelho lido neste domingo (Lc 21, 25), e sim numa circunstância que se realizará na dimensão atemporal, no plano da eternidade, quando ultrapassarmos o umbral da materialidade. Quando adentrarmos a dimensão da eternidade, encontraremos o Filho do Homem sentado sobre as nuvens, com todo o seu poder e glória, julgando e premiando os seus seguidores de coração sincero.


Na primeira leitura, o profeta Jeremias diz que “naqueles dias, farei brotar a semente da justiça que fará valer a lei... e Jerusalém terá uma população confiante... e será designada como 'o Senhor é a nossa justiça'”. (Jr 33, 15). A Igreja é a nova Jerusalém, lembrando aquela que um dia foi destruída, mas Deus a restaurou com o nome de Justiça. Isso ocorrerá 'naqueles dias' que não se sabe quando serão, mas que, com certeza, será na Jerusalém celeste. Dizer que o seu nome será “o Senhor é nossa justiça” significa que devemos considerar que a justiça divina não tem comparação com a justiça dos homens. A justiça de Deus é, na verdade, a sua misericórdia, o seu infinito amor para conosco, porque se Ele fosse nos julgar, do modo como nós costumamos julgar os nossos semelhantes, coitados de nós.


Então, no advento, a cada ano, nós reiniciamos a nossa preparação para esse futuro encontro com o Filho do Homem em seu tribunal da misericórdia, através dos atos litúrgicos que nos rememoram a vida histórica de Cristo, para que estejamos sempre vigilantes, como Ele próprio ensinou. Na segunda leitura, carta de Paulo aos cristãos Tessalonicenses (1Ts 4,1), o apóstolo os exorta a viverem como foi ensinado a eles, para agradar a Deus, seguindo as instruções que lhes foram passadas em nome do Senhor Jesus. Paulo estava preocupado com os Tessalonicenses, porque em sua visita àquela cidade, houve uma ríspida discussão entre ele e os judeus, fato que levou Paulo a fugir da cidade. Depois, ele mandou para ali Timóteo, para sondar o ambiente e ficou muito feliz com a informação deste de que os tessalonicenses continuavam fiéis à mensagem cristã. Por isso, Paulo os exorta a continuarem com aquele mesmo fervor religioso, preparando-se para o retorno de Cristo que, segundo o entendimento da época, se daria dentro de pouco tempo.


O evangelho de Lucas (Lc 21, 25-36) traz a clássica narrativa daqueles fatos que são indicativos do “final dos tempos”: “Haverá sinais no sol, na lua e nas estrelas. Na terra, as nações ficarão angustiadas, com pavor do barulho do mar e das ondas.” Em relação à conduta das pessoas, o texto do evangelho é assustadoramente dramático: “Os homens vão desmaiar de medo, só em pensar no que vai acontecer ao mundo, porque as forças do céu serão abaladas.” Os cristãos de todas as épocas, mas sobretudo dos primeiros tempos, tremiam diante dessas leituras e alguns até deixaram de trabalhar, porque a volta do Senhor estava próxima. Ora, Jesus disse diversas vezes que somente o Pai sabe esse dia, nem Ele sabia, como é que uns pobres mortais poderão adivinhá-lo? Por isso, mais importante do que tremer com a expectativa daquele “dies irae, dies illae” (como dizia o antigo cântico gregoriano), o que nós devemos fazer é seguir o que Jesus recomendou: “Tomai cuidado para que vossos corações não fiquem insensíveis por causa da gula, da embriaguez e das preocupações da vida, e esse dia não caia de repente sobre vós; pois esse dia cairá como uma armadilha sobre todos os habitantes de toda a terra.” (Lc 21, 34-35). Esse dia é aquele em que iremos nos encontrar diante do tribunal da misericórdia e desse dia ninguém conseguirá escapar. Daí que a preocupação de Cristo conosco é para que não nos deixemos dispersar pelos prazeres materiais e pelas preocupações da vida, para que a nossa fé esteja sempre atenta. Mais do que impressionar-se com o abalo das forças celestes, a nossa preocupação deve estar voltada para a nossa própria conduta, para a nossa fidelidade com os compromissos do nosso batismo. Cristo sabe o quanto isso é difícil para cada um de nós, frente a tantas distrações e encantamentos que a realidade material lança sobre nós. Daí o conselho que ele nos dá: ficai atentos e orai a todo momento, para terdes força pra ficar de pé diante do Filho do Homem.


É curioso como, ao longo do tempo, as pessoas leram essa passagem do evangelho e se concentraram na descrição dos fenômenos cósmicos, que na verdade estão fora do nosso controle, e esqueceram dessa outra parte em que Jesus nos exorta a agir com moderação, sem nos deixarmos seduzir pelos apelos dos prazeres corporais, pois isso sim depende de nós. Então, o ensinamento de Cristo para que fiquemos vigilantes sempre não se refere a um tempo futuro e indefinido, mas ao nosso tempo existencial. A nossa fé n'Ele deve ser renovada a cada dia, para que nossa expectativa não se volte para um fim catastrófico do mundo, mas para um fim sereno dos nossos dias, porque estes têm um prazo até certo ponto previsível. E será nesse momento que precisaremos ter forças para ficar de pé diante do Filho do Homem. A nossa força será medida pela nossa perseverança. Desse modo, quando o advento nos convida a estar vigilantes porque não sabemos o dia nem a hora, a nossa atenção não deve se voltar para “o Filho do Homem, vindo numa nuvem com grande poder e glória”, mas para o dia em que cada um de nós deveremos ficar em pé diante d'Ele.


Cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 20 de novembro de 2021

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 34º DOMINGO COMUM - FESTA DE CRISTO REI - 21.11.2021

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 34º DOMINGO COMUM – FESTA DE CRISTO REI – 21.11.2021.


Caros Confrades,


Neste 34º domingo comum, encerra-se o ano litúrgico católico, com a festa de Cristo Rei do Universo. Esta celebração foi instituída em 1925, pelo Papa Pio XI, com um objetivo religioso-político, no período histórico que mediou entre as duas grandes guerras mundiais e num contexto de grande ascensão do ateísmo no mundo, com a vitória dos regimes comunistas na Ásia. O objetivo do Papa era, ao mesmo tempo, contrapor-se à teologia modernista, muito em voga no início do século XX, na Europa, e também chamar a atenção da comunidade internacional para a figura de Cristo, o soberano acima de todos os dirigentes políticos.


A motivação teológica desta festa litúrgica se concentra na “segunda vinda” de Cristo, quando ele virá concretizar as profecias que falam de sua eterna glória e do seu grande poder, como a que lemos na primeira leitura de hoje, retirada do profeta Daniel. O profeta teve uma visão terrível de quatro grandes animais que desciam do céu e foi dado a cada um grande poder de destruição. Esses animais representavam os grandes impérios dominadores da época: babilônios, persas, gregos e romanos. Depois, veio um ancião sentado num trono de fogo, e logo depois veio “um tipo de filho do homem”: eis que, entre as nuvens do céu, vinha um como filho de homem, aproximando-se do Ancião de muitos dias, e foi conduzido à sua presença. Foram-lhe dados poder, glória e realeza, e todos os povos, naçðes e línguas o serviam: seu poder é um poder eterno que não lhe será tirado, e seu reino, um reino que não se dissolverá. (Dn 7, 13-14). Na sequência da leitura, que não está na liturgia, o próprio Daniel ficou espantado com a visão e pediu que lhe fosse explicado aquilo, então ele soube que os animais eram reis de grande poder que surgiram ali, mas seriam submetidos pelo poder daquele que virá por último. Tal figura protagoniza a vinda de Cristo, corroborada assim no Apocalipse: Jesus Cristo, a testemunha fiel, o primeiro a ressuscitar dentre os mortos, o soberano dos reis da terra.(Ap 1, 5). E ainda no evangelho de Marcos diz: “Então vereis o Filho do Homem vindo nas nuvens com grande poder e glória. Ele enviará os anjos aos quatro cantos da terra e reunirá os eleitos de Deus, de uma extremidade à outra da terra. (Mc 13, 26-27). Embora a liturgia de hoje não tenha escolhido este trecho do evangelho de Marcos, ele se encaixa totalmente no contexto das duas leituras anteriores.


Conforme eu já tive oportunidade de expressar aqui neste espaço virtual, na minha opinião particular (que não é doutrina oficial da Igreja Católica, mas um comentário reservado meu), eu não concordo com essa exaltação dada pela liturgia à figura de Cristo Rei do Universo. Em toda a sua pregação, Ele nunca quis ser exaltado como chefe, ele sempre repreendeu os discípulos e pessoas da comunidade, quando queriam enaltecê-lo, assim como repreendia os discípulos, quando entre si disputavam quem seria o maior, dizendo que o maior de todos deve ser o que serve a todos. Ele deu muitos exemplos disso. Em diversos pontos dos evangelhos, Jesus se identifica com a figura do “filho de homem”, descrita por Daniel e por Ezequiel, diferente do Messias guerreiro, que os judeus esperavam. Então, fica me parecendo essa homenagem a Cristo Rei como um contrassenso a tudo o que ele pregou. Fico com a impressão de que Ele rejeitaria tal homenagem, se tivessem lhe perguntado antes. Além do mais, essa imagem do rei é algo que recorda os tempos antigos e medievais, nos quais a figura real era algo que fazia parte do dia a dia das pessoas, porque a autoridade maior em toda parte era a de um rei. Mas no nosso tempo, a figura do rei perdeu muito a sua importância, politicamente existem poucos reis. O próprio Papa, que assume o governo político do Vaticano como um monarca, recebe críticas dos teólogos, por não ser essa uma imagem própria da Igreja de Jesus Cristo. Na época em que o Papa instituiu essa festa, ainda havia reinados na Europa, mas estes se extinguiram com a 2a guerra mundial. Por outro lado, o arquétipo real tornou-se entre nós algo folclórico, presente nos folguedos populares, de modo que a imagem do rei já não transmite um significado de algo verdadeiro, mas faz parte muito mais do mundo da fantasia.


Eu ainda vejo nisso outro agravante. A celebração de Cristo Rei do Universo nos leva a questionar o alcance desse reinado. Até onde nos é dado saber, Cristo veio trazer a salvação aos seres humanos, isto é, habitantes da terra. As leituras bíblicas, escritas numa época em que a compreensão de universo se restringia ao limite geomórfico, fazem referência aos “reinos da terra”. Mas, em 1925, quando a festa foi estabelecida, já se tinha o conceito de universo bem mais estendido, e por isso o título da festa é Cristo Rei do Universo, já deveria ser vista não apenas como do planeta terra. Num comentário anterior, eu externei aqui uma opinião sobre o que eu suponho que se deva entender por “fim do mundo”, desmistificando aquela narração funcionalista do fim dos tempos, com as estrelas caindo e os mortos saindo dos túmulos, imagens que foram bastante exploradas pelos artistas medievais. Ora, sabe-se hoje que o universo tem uma dimensão inefável, ilimitada, incomensurável, a cada dia a ciência faz afirmações de descobertas sobre a existência de outros planetas em condições idênticas às da terra, com grande probabilidade de que haja vida inteligente por lá. Pois bem. Se houver esses mundos, então a mensagem de Cristo também teria chegado lá? Cristo teria se encarnado lá também e teria pregado seu evangelho ali? Até hoje, toda a teologia foi elaborada com base no pressuposto de que somente na terra existe vida inteligente. Como ficará a doutrina religiosa quando forem (e isso acontecerá, embora não se saiba quando) finalmente encontrados outros seres inteligentes, com a mesma estrutura mental dos habitantes da terra? Ora, a referência a Cristo Rei do Universo (e não apenas da terra) supõe que a Sua pessoa e a sua mensagem estariam presentes em todos os confins do cosmos. Não há resposta cabal para este questionamento. Porém, por pura dedução de lógica, partindo da afirmação teológica de que Deus criou tudo o que existe e que no Filho, nascido do Pai antes de todos séculos, todas as coisas foram feitas, podemos concluir que, se existirem outros mundos semelhantes ao nosso, ali também será encontrada a mensagem cristã.


Lembremo-nos da profecia de Daniel (primeira leitura), na sua visão dos animais ferozes, que representavam os reis que surgiriam ali naquela parte da terra. A sua abrangência era limitada, porque não podia ser diferente do conhecimento que havia naquela época. Ao longo da história, diversos estudiosos tentaram associar essas figuras metafóricas das profecias bíblicas com alguns personagens reais. E fora do contexto bíblico, são muito famosas as centúrias de Nostradamus, as quais são recorrentemente interpretadas em confronto com os fatos históricos. Então, partindo disso, considerando a compreensão que se tem hoje do universo, precisamos repaginar a nossa crença nessas verdades escatológicas, que os textos bíblicos lançam apenas na perspectiva geoestacionária. A festa de Cristo Rei está relacionada com a “segunda vinda” de Cristo e essas narrativas também estão na perspectiva da profecia danielina e precisam ser reinterpretadas. E para isso precisamos ultrapassar também o conceito de “rei” como conhecemos concretamente e historicamente. O “reinado” de Cristo (isso ele mesmo disse) não é deste mundo, então não podemos pensar sobre ele numa dimensão material, cosmológica, ainda que nas gigantescas proporções do universo apresentado pela ciência. O universo onde Cristo efetivamente “reina” repousa no coração, na intuição, no discernimento, na adesão dos seus fiéis e não deve ser imaginado como um local ainda que imaginário, onde se estabeleceria esse trono fictício. O “reino” de Cristo ultrapassa os limites da temporalidade e somente será possível compreendê-lo se nos dispusermos a ir além da imaginação e da limitação da nossa racionalidade.


Meus amigos, precisamos sempre adaptar a nossa fé religiosa às novas configurações temporais. Isso às vezes pode chocar alguém, por isso peço desculpas se não concordarem com essa forma de pensar, que eu chamaria de teologia da esperança. A segunda vinda de Cristo, creio eu, somente será perceptível para nós quando ultrapassarmos os umbrais do tempo e do espaço, o que ocorrerá com a nossa morte. Mas, apesar de discordar desse aparato suntuoso que a liturgia sugere com a festa de Cristo Rei, eu creio também que Jesus é verdadeiramente o soberano da verdade, da justiça, da paz, da igualdade e da fraternidade e que, para isso, ele não precisa de um manto real nem de um cetro nem de um trono, porque o seu manto é a verdade, o seu trono é a justiça e o seu cetro é a paz que ele vem trazer todos os dias a todos nós.


Cordial abraço.

Antonio Carlos

sábado, 13 de novembro de 2021

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 33º DOMINGO COMUM - 14.11.2021

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 33º DOMINGO COMUM – FINAL DOS TEMPOS – 14.11.2021


Caros Confrades,


No 33º domingo comum, aproximando-se o final do ano litúrgico, a liturgia nos convida a refletir sobre o final dos tempos, a parusia, a “segunda vinda” de Cristo, que virá para julgar os vivos e os mortos. Esse tema foi muito explorado pelos artistas desde a Idade Média, os quais deixaram registrada, em magníficas pinturas, cada um ao seu modo, a interpretação que fizeram das palavras do evangelho de Marcos, acerca do “juízo final”: o sol escurecerá, a lua não mais dará sua luz, as estrelas cairão... Com os conhecimentos científicos de atualidade, constata-se que se trata de uma visão alegórica do final dos tempos, pois são fatos catastróficos que não possuem sustentação científica todavia, ainda paira na mentalidade de grande parte da nossa população a imagem daquela gigantesca hecatombe, de modo que cada desastre natural que ocorre facilmente é associado a essa profecia. Precisamos, pois, repaginar o nosso entendimento sobre essas coisas futuras.


Na leitura da profecia de Daniel (Dn 12, 1-3), aparece a figura imponente de Miguel, o defensor que virá resgatar todos aqueles cujos nomes se acharem inscritos no livro, os quais brilharão como estrelas por toda a eternidade, os justos, aqueles que foram sábios e ensinaram aos outros o caminho da virtude. Os que não tiverem procedido corretamente em vida, serão lançados no opróbrio eterno. Alguns trechos do livro de Daniel são classificados, pelos biblistas, como literatura apocalíptica, isso ocorre também com passagens do livro de Ezequiel, possibilitando a interpretação alegórica. Há estudiosos que duvidam da existência histórica de Daniel, identificando-o como um personagem de um conto bíblico escrito na época do cativeiro da Babilônia. Podemos constatar que Jesus se serve dessas expressões na sua catequese ao povo, em forma de parábolas, para explicar aos seus ouvintes acerca do juízo final. Sempre foi uma grande curiosidade dos seres humanos, em todas as épocas, saber o que acontecerá após a morte ou no fim dos tempos. Em verdade, é o caso de perguntarmos: haverá mesmo um final dos tempos objetivamente falando? Na filosofia, Kant já explicou, de forma incontestável, que o tempo não existe fora de nós, sendo apenas uma percepção subjetiva humana. Então, a expressão final dos tempos deve ser entendida como fim do mundo ou o final do universo. Ocorre que com a indizível e imensurável dimensão que o universo se apresenta para os astrônomos e astrofísicos, pode-se colocar em dúvida se o universo realmente se extinguirá, ainda que num futuro distante. A ciência comprova que o universo se encontra em constante expansão, ou seja, em evolução contínua e dando origem a novos corpos celestes, de modo que falar em ‘fim do mundo’ é algo incabível na concepção científica atual. Só por essa breve referência ao problema, já se pode avaliar a complexidade da ideia que envolve a expressão “final dos tempos”.


No evangelho de Marcos (Mc 13, 24-32), lemos aquela descrição assustadora e detalhada de Jesus aos discípulos, sobre as coisas futuras, palavras que sempre foram, ao longo da história, entendidas literalmente. Porém, se nós as lermos com uma mentalidade serena, à luz do que hoje se conhece acerca do universo, mesmo quem não for especialista no assunto perceberá que se trata de eloquente alegoria. “O sol escurecerá...” quando eu era aluno do curso ginasial (isso já tem uns bons 60 anos), eu li uma matéria que dizia assim: daqui a dois milhões de anos, o sol esfriará. Nunca esqueci disso. Essa deve ser a tendência natural, se imaginarmos que o sol é um corpo celeste que realiza intensa reação atômica, a tendência é que, com o passar do tempo (muito tempo mesmo), sua energia irá regredindo progressivamente. Mas sabe-se, por outro lado, que o nosso sol é apenas uma estrela de quinta grandeza e que existem inumeráveis sóis no universo, o que significa que se, acaso, o nosso sol escurecesse, em termos siderais, isso não faria grande diferença. Pura alegoria, portanto.


“As estrelas começarão a cair do céu...” essa era a concepção cosmológica dos povos antigos, que entendiam o firmamento como uma semiesfera, onde estariam penduradas as estrelas. Nos dias de hoje, nem uma criança do ensino fundamental pensa mais assim. Os riscos que, teoricamente, existem são de eventuais colisões de corpos celestes. “A lua não mais brilhará...” é outra frase que não resiste à mínima crítica, porque todos sabemos que a lua não tem luz própria, mas reflete a luz solar. Ora, essas frases só podem ser compreendidas metaforicamente. Eu fico boquiaberto quando ouço pessoas que, publicamente, afirmam que a Bíblia está cheia de erros, por causa dessas passagens. Essas pessoas não conseguem pensar alegoricamente e nem percebem que as expressões bíblicas reproduzem uma mentalidade e um conhecimento científico de diversos séculos antes de nós e que precisam ser devidamente aculturados para fazerem sentido na nossa época. O que realmente importa é interpretá-las para compreendê-las.


Agora, passando para as outras expressões contidas nesse mesmo contexto, no evangelho de Marcos, obrigatoriamente também concluiremos que elas devem ser entendidas metaforicamente: “vereis o Filho do Homem vindo nas nuvens”..., “enviará os anjos aos quatro cantos da terra e reunirá os eleitos de Deus de uma extremidade a outra...”, “essa geração não passará até que isso aconteça”... São frases que precisam ser relidas e reinterpretadas no seu significado cultural e religioso, na mesma proporção em que fizemos com as afirmações de conteúdo cosmológico. Com certeza, Jesus não aparecerá sentado numa nuvem, os anjos não tocarão trombetas ensurdecedoras para despertarem os mortos e os reunirem aos vivos, pois se forem somadas as quantidades de seres humanos de todas as épocas, veremos que não haveria espaço físico suficiente no planeta terra para conter tanta gente. A geração que não passará não é a geração cronológica, mas a “gens” humana. E aqui está a afirmação mais grave. Eu entendo aqui que a ganância dos seres humanos vai terminar por inviabilizar a vida terrestre. No ritmo que as coisas estão acontecendo, isso parece que não vai demorar muito. A sucessão de desastres ecológicos provocados pela irracionalidade e a ambição de alguns irresponsáveis irá, isso é certo, por um fim na humanidade. E aí sim, teremos o “final dos tempos”. Não do modo literal como está descrito no texto do evangelista Marcos, mas no sentido de que, com a extinção dos seres humanos, o tempo realmente se extinguirá, porque não haverá mais seres humanos com consciência e racionalidade para reconhecê-lo e contabilizá-lo.


Importa aqui assinalar também que Jesus, naquela ocasião e de forma profética, se referia à destruição de Jerusalém, por causa da infidelidade do povo judeu e pelo fato de não o terem reconhecido como o Messias esperado. A Jerusalém histórica, com efeito, foi destruída pelo exército romano no ano 70 anos depois de Cristo. A “grande tribulação” a que Jesus se referiu no seu discurso metafórico se reportava, em primeiro lugar, à profanação do templo de Salomão pelos romanos, o que iria causar (como de fato causou) grande comoção para os judeus. Mas após a destruição dessa Jerusalém de pedras e tijolos, ergueu-se outra Jerusalém simbólica, atemporal e espiritual, que é a Igreja de Cristo, que veio substituir e firmar-se sobre as ruínas do templo salomônico.


Aqui nesse contexto se encaixa o texto da segunda leitura, da carta aos Hebreus (Hb 10, 11-12): “Todo sacerdote se apresenta diariamente para celebrar o culto, oferecendo muitas vezes os mesmos sacrifícios, incapazes de apagar os pecados. Cristo, ao contrário, depois de ter oferecido um sacrifício único pelos pecados, sentou-se para sempre à direita de Deus.” Os cultos ofertados no templo de Salomão não têm comparação com a oferenda de Cristo, que foi única e definitiva. A redenção operada por ele transformou aquela Jerusalém de pedras e tijolos em um templo imperecível, que não está mais situado num espaço geográfico, mas no coração de todos aqueles que creem. E os salvos não estão mais inscritos “num Livro”, como disse o profeta Daniel, mas estão espalhados por todos os confins da terra, reunidos sob a presença mística de Cristo, que afirmou: onde houver dois ou mais reunidos em meu nome, eu estarei ali presente. Não é mais necessário se deslocar até uma Jerusalém geográfica ou até o templo físico, porque a Jerusalém celeste e o templo espiritual estão onde estiverem os cristãos unidos em sua fé. Essa é a grande diferença. Essa é a verdadeira realidade que representa o conjunto das coisas futuras.


Se observarmos bem, o discurso de Cristo é fundamentalmente de cunho ecológico, bem atualizado para a linguagem do nosso mundo atual. O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não passarão. Aquela concepção cosmológica de céu e terra não faz mais nenhum sentido para a mentalidade moderna. São céu e terra passados. Mas essa geração não passará até que tudo isso aconteça. Infelizmente, estamos presenciando, sob diversas formas de condutas de pessoas sem escrúpulo da geração humana, ações devastadoras que nos induzem a pensar que “as folhas da figueira da parábola estão ficando verdes e os frutos não demorarão a aparecer”. Que Deus dê a essas pessoas a chance de se conscientizarem disso, antes que seja tarde demais.


Um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

domingo, 7 de novembro de 2021

COMENTÁRIO LITÚRGICO - FESTA DE TODOS OS SANTOS - 07.11.2021

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – TODOS OS SANTOS – COMUNHÃO DOS SANTOS - 07.11.2021


Caros Confrades,


A liturgia comemora neste domingo a festa de Todos os Santos, que foi transferida do dia 1º para o domingo seguinte. Essa festa é necessária, porque dada a grande quantidade de pessoas canonizadas oficialmente pela Igreja e muitas outras mais que, embora não estejam ainda no rol oficial dos santos, foram seguidores exemplares de Cristo, não seria possível fazer celebrações destacadas de todos esses fieis distribuindo-os pelos dias do ano. Além disso, esta solenidade litúrgica nos traz para a reflexão a verdade teológica da “comunhão dos santos”, que nós rezamos no Credo, e faz parte dos enunciados básicos da fé católica. Esta comunhão (melhor explicada no termo latino 'communio'), ou seja, a comum união de todos os cristãos, inclui não apenas aqueles que já estão no reino de Deus (a comunidade gloriosa) mas também aqueles que ainda estão a caminho, isto é, nós (comunidade operosa), que vivemos no meio das vicissitudes do tempo a proclamar com nossa vida cristã a nossa fé na ressurreição.


É bem significativo refletir sobre o dogma religioso da comunhão dos santos e sobre o próprio significado do termo 'santos', porque nós habitualmente designamos com essa palavra aqueles cristãos que foram canonizados, ou seja, aqueles que tiveram suas virtudes publicamente reconhecidas pela Igreja Católica e são colocados nos altares, como modelos para todos. Não podemos, porém, esquecer que o apóstolo Paulo, na carta aos Romanos (8, 32) utiliza o termo “santos” como sinônimo de cristãos e, portanto, todos nós somos santos. Ou, pelo menos, somos destinados para a santidade. Ser santo não significa nunca cometer algum deslize, não significa viver de joelhos, com o terço ou a Bíblia na mão ou recitando os salmos, não equivale a nunca ter raiva de alguém nem nunca ter cometido qualquer desobediência à lei de Deus. Os cristãos são santos porque foram santificados pelo sangue de Cristo, na Sua morte e ressurreição. A teologia ensina que a principal vocação do cristão é à santidade, nós todos nos encontramos neste caminho de busca da santidade. A tradição cultural religiosa comumente nos leva a fazer uma relação paradoxal entre eles e nós: eles, os santos; nós, os pecadores. De fato, teologicamente, não é assim. Tanto aqueles que foram canonizados são santos, como também os cristãos falecidos na graça de Deus e ainda nós, que peregrinamos do “vale de lágrimas” e que tomamos os canonizados como modelo de nossa vida cristã. Quando o jovem perguntou a Jesus: Mestre, o que devo fazer para alcançar a vida eterna? Jesus respondeu: observa os mandamentos (Lc 18, 18). Esta pergunta, dita com outras palavras, pode muito bem ser entendida assim: Mestre, o que devo fazer para ser santo? A resposta é a mesma: observa os mandamentos.


A comunhão dos santos é, portanto, um conceito equivalente ao que Paulo expressa nas suas cartas com o nome de “corpo místico”, do qual Jesus é a cabeça e nós somos os membros. Este corpo místico na sua forma visível é a Igreja e engloba todos os fiéis seguidores dos mandamentos de Cristo, de antes, de hoje, de ontem e de depois, todos formando uma unidade na diversidade dos carismas, mas mantendo-se unidos no Espírito. É nesse contexto que devemos entender a primeira leitura da liturgia de hoje, retirada do Apocalipse de João, onde ele fala no número dos que foram marcados na fronte (Ap 7, 4) para serem salvos, cujo quantitativo era de cento e quarenta e quatro mil. Numa linguagem direta, João se refere às doze tribos de Israel, num montante de doze mil de cada uma, para chegar a esse total. João era judeu e talvez tivesse a esperança de que os seus irmãos de raça ainda viessem aderir à mensagem de Cristo. Historicamente, sabe-se que isso não ocorreu, ao menos, não ocorreu ainda. Mas ele previu, logo a seguir, (Ap 7, 9) “uma multidão imensa de gente de todas as nações, tribos, povos e línguas, e que ninguém podia contar.” É aqui que nós entramos e essa multidão é tão imensa, que João nem teve como quantificar, e nem poderia. E todos também estavam marcados para serem salvos, uma vez que estavam de pé diante do trono e do Cordeiro; trajavam vestes brancas e traziam palmas na mão. Todos proclamavam com voz forte: "A salvação pertence ao nosso Deus, que está sentado no trono, e ao Cordeiro".” (Ap 7, 9-10) Unindo num mesmo contexto as lições dos apóstolos João e Paulo, podemos concluir sem medo de errar: todos igualmente santos, todos igualmente irmãos, todos igualmente face a face com o Criador.


Na segunda leitura, o mesmo apóstolo João, na sua primeira carta (1Jo 3,2) usou uma expressão semelhante à de Paulo para dizer que todos somos santos: sermos chamados filhos de Deus. Ora, como poderia um filho de Deus não ser santo? Daí ele afirmar: “Caríssimos, desde já somos filhos de Deus, mas nem sequer se manifestou o que seremos!” Ou seja, nós já somos e ainda nem sabemos como é ser isso, pois nós abraçamos pela fé esse grande mistério revelado por Cristo, embora tal situação vá se consolidar somente no futuro. Assim, pela fé, nós já somos filhos de Deus, embora sem sabermos com clareza do que somos, pois isso somente se manifestará totalmente quanto O virmos face a face, quando então Ele será tudo em todos. A teologia tem uma expressão interessante para explicar isso: “já e ainda não”, é a grandeza do mistério que nós conseguimos alcançar com a nossa fé. Nós já somos santos, mas ainda não sabemos bem como é isso. Mas já somos. Isso só é possível para quem crê. Daí João ter escrito em 1Jo 3,1: este é o grande presente de amor que o Pai nos deu, o de podermos ser incluídos no rol dos seus filhos já desde agora, quando Ele ainda não se manifestou plenamente para nós.


A riqueza litúrgica da festa da comunhão dos santos se completa com o famoso sermão da montanha, no qual Jesus chama de bem-aventurados todos os que estão submetidos a algum tipo de tribulação. Dizer que somos bem-aventurados é o mesmo que dizer que nós somos santos. Em latim, bem-aventurados se diz 'beati' (plural de beatus), que é a mesma palavra que em português se traduz por 'felizes', tradução que também aparece em algumas versões do texto sagrado. Curiosamente, Cristo chama de bem-aventurados todos aqueles que, pela aparência social, seriam pessoas desventuradas. Havia um entendimento tradicional entre os judeus do farisaísmo de que as pessoas abençoadas por Deus (portanto, bem-aventuradas) eram aquelas bem aquinhoadas de bens, que já recebem logo neste mundo uma recompensa abundante. Assim, perante essa visão farisaica, bem-aventurados eram os ricos, os poderosos, os belos, os vencedores, os beneficiados pela sorte e pela esperteza. Os demais eram considerados pessoas amaldiçoadas, esquecidas por Deus, que desde logo já estavam sofrendo um castigo que continuariam a sofrer na outra vida.


Contrariando esse ponto de vista, Jesus por diversas vezes ressaltou as virtudes dos pobres e humildes, em contraposição à arrogância e ao orgulho dos ricos. Cito somente dois casos: do rei que preparou o banquete e os convidados não compareceram, tendo ele convidado os mendigos e os moradores de rua para se refestelarem. E ainda o caso da pecadora que lavou os pés dele com lágrimas na presença dos fariseus (não confundir com a figura de Maria Madalena, esta foi de quem Ele expulsou sete demônios – Lc 8, 2). No sermão da montanha (Mt 5), ele vai dizer quem são os verdadeiros bem-aventurados: os pobres, os aflitos, os mansos, os famintos, os misericordiosos, os puros, os pacíficos, os perseguidos, os injuriados, todos aqueles a quem a tradição social excluía como os mais desprezíveis. E arremata: alegrai-vos e exultai porque grande será a vossa recompensa.


Caros amigos, vejamos então a nossa responsabilidade de cristãos enquanto chamados, vocacionados à santidade. Cada um de nós, na variedade das tarefas cotidianas, exercemos, do modo como Deus nos chama, a nossa vocação para a santidade. Não importa se um dia seremos canonizados, se teremos nossas virtudes reconhecidas e seremos colocados num altar, servindo como exemplo para os demais cristãos. Isso nem é necessário, porque o que nós somos e fazemos apenas a Deus interessa. Ocorre, porém, que devemos ter consciência de que nós já somos, embora ainda não tenhamos chegado lá. Isso significa que toda a nossa vida é um aprendizado, um treinamento contínuo, um exercício interminável na tentativa de superarmos nossas deficiências e nos livrarmos dos nossos pecados. O que Deus quer e espera de nós é que vivamos constantemente na busca daquilo que nos falta para alcançarmos a santidade plena. E o modo de irmos nos aproximando disso é praticando continuamente a caridade e o amor ao próximo.


Que nós sejamos fiéis ao ensinamento de Cristo e possamos nos aproximar sempre mais da perfeição que conduz à santidade.


Cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 30 de outubro de 2021

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 31º DOMINGO COMUM - 31.10.2021

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 31º DOMINGO COMUM – O MAIOR MANDAMENTO – 31.10.2021


Caros Confrades,


Neste domingo, o tema das leituras litúrgicas se concentra nos mandamentos da lei de Deus. Conforme a tradição hebraica, Javeh entregou a Moisés as “tábuas da Lei” com dez mandamentos, os quais deveriam ser obrigatórios ao povo, como sinal da aliança que faria com eles. Com o decurso do tempo, os mestres da Lei passaram a destrinchar esses mandamentos, enchendo as tábuas com “detalhes”, todos obrigatórios, chegando a mais de 600 prescrições derivadas das dez primeiras. Eram tantas, que o povo já não tinha mais como saber de cor. Foi então que um mestre da Lei judaica, certamente para testar Jesus, foi perguntar-lhe “qual é o maior mandamento da Lei” e Jesus respondeu, resumidamente: amar a Deus, amar o próximo. Isso deve provocar também a nossa reflexão. Muitas vezes, nos perdemos com “detalhes” normativos e esquecemos de qual seja a regra primordial.


Na primeira leitura, do livro do Deuteronômio (6, 2-6), Moisés adverte o povo para a observância dos mandamentos, cuja obediência deve ser transmitida também aos filhos e netos, como sendo um requisito para a obtenção de uma vida feliz. “Ouve, Israel, e cuida de os pôr em prática, para seres feliz e te multiplicares sempre mais, na terra onde corre leite e mel, como te prometeu o Senhor, o Deus de teus pais.” As palavras da Lei devem ficar gravadas no coração do crente, para jamais cairem da sua lembrança. Essa expressão “ouve, Israel” (em hebraico: shemá, Israel) encontra-se repetida em diversas outras passagens da Torah e representa aquelas prescrições que nunca podem ser esquecidas, porque são elas o cerne do compromisso firmado pelo povo, através de Moisés, no Sinai, como garantia da sua proteção e da realização da promessa.


Na segunda leitura, o autor da Carta aos Hebreus (7, 23-28) lembra que, com o cumprimento da promessa, isto é, com a chegada do Messias, este assumiu definitivamente o lugar do mediador entre Deus e o povo, função esta que antes era exercida por Moisés e depois pelos profetas e sacerdotes. Com a sua autoridade de Filho de Deus, Jesus substituiu todos os antigos sacerdotes hebreus de uma forma perene, sendo ele o único agente capaz de nos levar à salvação. “Os sacerdotes da antiga aliança sucediam-se em grande número, porque a morte os impedia de permanecer. Cristo, porém, uma vez que permanece para a eternidade, possui um sacerdócio que não muda. Por isso ele é capaz de salvar para sempre aqueles que, por seu intermédio, se aproximam de Deus.” (Hb 7, 23) Antes, o povo era convidado a ouvir (shemá) Moisés e seus sucessores; agora, o povo deve ouvir o próprio Deus, que fala através do seu Filho, não mais através de um porta-voz (profeta = aquele que transmite a fala de outrem). O sacrifício que os sacerdotes ofereciam precisava ser renovado a cada vez, porque seu alcance era limitado. Mas o sacrifício de Cristo, oferecendo-se a si mesmo, não precisa ser repetido, porque tem valor eterno e pleno.


No evangelho de Marcos (12, 28-34), lemos o conhecido diálogo entre Jesus com um mestre da Lei, que foi saber dele qual o maior mandamento. Os fariseus, que se consideravam puros e os verdadeiros cumpridores da Lei e excediam-se em filigranas e minúcias, multiplicando os preceitos divinos, haviam detalhado toda a Torah em preceitos e subpreceitos dados por Javeh, a tal ponto que nem eles mesmos conseguiam saber de cor todos aqueles. Em diversas ocasiões, armavam ciladas contra Jesus, com o intuito de flagrá-lo em algum deslize. Talvez quisessem saber se Jesus conhecia todos os seiscentos e tantos preceitos. E dependendo do que Jesus respondesse, isso poderia ser motivo de alguma acusação contra ele por descumprimento da Lei. Neste caso específico, a pergunta teve outro contexto, porque o mestre da Lei que o interrogara parecia estar escorado em boas intenções. Jesus percebeu isso e, de forma magistral, sem discorrer sobre os preceitos da Lei, mas com a autoridade de quem sabe o que diz, Ele os resumiu em dois mandamentos fundamentais: o primeiro e o maior de todos, amar a Deus sobre todas as coisas; e o segundo é semelhante a este, amar o próximo como a si mesmo. Não existe outro mandamento maior do que esses dois.


O mestre da Lei sabiamente concordou com Jesus e acatou a síntese feita por ele, demonstrando assim a sua boa fé. E como prêmio recebeu um elogio da parte de Jesus: “tu não estás longe do reino de Deus”. É importante destacar que nem todos os fariseus eram inimigos de Jesus. O evangelho registra diálogos similares com outros fariseus, por exemplo, com Nicodemos, que foi procurar Jesus à noite, para não ser visto pelos colegas. E ainda José de Arimateia, que foi o intermediário junto ao governador para a liberação do corpo de Jesus para o sepultamento. Lamentavelmente, porém, a maioria deles se considerava soberanamente sábio e purificado, o que lhes impedia de perceber em Jesus o Messias da promessa, porque Jesus fazia coisas que eles entendiam como contrárias à Lei.


Meus amigos, esse era o grande engodo dos fariseus. Preocupavam-se muito com a retórica dos preceitos da Lei, principalmente quando se tratava de cobrar isso dos outros, às vezes, eles próprios não praticavam. Passavam o tempo a vigiar e acusar aqueles que não cumpriam, mas eles próprios não faziam isso. Nós precisamos nos vigiar pra não fazer igual aos fariseus, preocupando-nos mais com a vida dos outros do que em dar o exemplo de vida cristã. Ademais, não adianta ficar só no conhecimento dos preceitos, se não os põe em prática. Quanto maior for a quantidade de normas, mais complicado o seu cumprimento. Por isso, pra facilitar, Jesus resumiu em dois, fáceis de memorizar e elementares para cumprir. E quem os cumpre, cumpre todo o resto.


Meus amigos, peço antecipadamente perdão pelo que vou escrever, pois talvez isso possa ferir a suscetibilidade de algum confrade. Mas a nossa Santa Igreja, através do Direito Canônico, produziu uma vasta quantidade de normas burocráticas, algumas das quais até podem ser consideradas importantes para a administração pessoal e territorial, mas escapolem para detalhes (a meu ver) inúteis. Hoje, no sermão da missa, o Vigário Paroquial falava sobre as “condições” para alguém “ganhar indulgência” para favorecer um familiar ou amigo que se encontre no purgatório. Não vou entrar em detalhes, porque seria enfadonho, apenas resumo: o fiel deve confessar-se, comungar, fazer uma oração pelo Papa e visitar um cemitério, entre os dias 1 e 8 de novembro. Deus me perdoe se faço mal julgamento, mas o Pai Celeste não é contador nem burocrata. Essa maneira retórica de destrinchar os preceitos religiosos a mim parece a mesma estratégia dos fariseus, que foi por diversas vezes reprovada por Jesus. É lamentável que nossas autoridades eclesiásticas percam seu tempo em fazer “leis” para o povo, tempo esse que seria melhor aproveitado se fosse destinado à explanação da Palavra de Deus.


Faz poucos dias, tomei conhecimento do fato seguinte: o Pároco viajou de férias sem que fosse designado um substituto, então a comunidade ficou sem pastor. Um grupo de fiéis estava conduzindo as celebrações litúrgicas da palavra enquanto isso. Pois bem. A questão, no caso, é a seguinte: pode um cristão leigo fazer a homilia (explicação das leituras bíblicas)? De acordo com o Direito Canônico (canon 767, $1), “a homilia, que é parte da própria liturgia e se reserva ao sacerdote ou diácono”, ou seja, somente um Ministro ordenado (padre ou diácono) pode fazer a homilia. Estão excluídos os fiéis não ordenados, ainda que exerçam a tarefa de ‘assistentes pastorais’ ou de catequistas em qualquer tipo de comunidade ou de agregação. Trazendo o caso para bem próximo de nós: eu posso fazer esses comentários aqui, mas não posso falar essas mesmas palavras no ambão, porque não sou ordenado. Nem o Bispo pode dispensar essa norma canônica. E não é por causa da falta de preparo teológico do orador, mas sim porque não é uma norma meramente disciplinar, ela diz respeito à função de ensino e santificação, que é exclusiva dos ministros ordenados (assim explicou um documento produzido pelo Vaticano, em 15.08.1997).


Então, meus caros confrades, a nossa Santa Igreja necessita urgentemente de uma sacudida, para não incorrer na crítica de Jesus aos fariseus. É o grande movimento que o Papa Francisco desencadeou recentemente, que se chama a “sinodalidade” eclesiástica. Que o Espírito Santo ilumine esse importante e necessário movimento, que tão sabiamente e oportunamente foi deflagrado pelo Seráfico Papa.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos