domingo, 30 de setembro de 2012

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 26º DOMINGO COMUM - RELIGIÃO E IGREJAS - 30.09.2012


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 26º DOMINGO COMUM – RELIGIÃO E IGREJAS – 30.09.2012

Caros Confrades,

A liturgia deste 26º domingo nos propõe para a reflexão um tema sempre atual e complexo, capaz de suscitar as mais acaloradas polêmicas: a dualidade entre os conceitos de religiosidade ou religião e de igrejas ou agremiações religiosas. Na semana que passou, este tema foi objeto de uma mensagem que circulou no grupo. Observemos de que modo a liturgia nos coloca este assunto.

A primeira leitura, retirada do livro dos Números (11, 25-29), narra um episódio ocorrido logo que os hebreus, em fuga do Egito, chegaram ao monte Sinai. Depois de vários meses de caminhada, comendo perdizes, maná e frutos do deserto, o povo estava descontente, com saudade da comida que tinham no Egito, onde comiam carne fresca e legumes e começaram a murmurar contra Moisés. Então, Javeh desceu da nuvem e mandou Moisés separar 70 homens dentre os mais idosos do povo para formarem uma espécie de 'conselho' de anciãos. Moisés fez isso e, diz o livro dos Números, que Javeh “Retirou um pouco do espírito que Moisés possuía e o deu aos setenta anciãos. Assim que repousou sobre eles o espírito, puseram-se a profetizar, mas não continuaram.” (11, 25). Este trecho traz, ao mesmo tempo, um enigma e uma curiosidade. Diz que os anciãos começaram a profetizar mas não continuaram, sem explicar o motivo disso, deixando para nós a interrogação. Dá a entender que apenas dois deles (Eldad e Medad) continuaram profetizando, também sem esclarecer o motivo. De todo modo, o hagiógrafo não diz que o conselho foi desfeito. E nós sabemos, pela tradição, que o conselho dos anciãos continuou a funcionar junto ao povo, eram uma espécie de senadores que auxiliavam o dirigente. Há inclusive uma tradição muito antiga afirmando que a primeira tradução da Bíblia (antigo testamento) do hebraico para o grego foi feita por este conselho de setenta anciãos, sendo conhecida como o a 'tradução dos setenta' ou Septuaginta.

Mas o que mais nos interessa aqui nesta narrativa é a sua sequência, quando diz que Josué, ajudante de Moisés e pretenso futuro chefe do povo, ficou preocupado com os dois (Eldad e Medad) que continuaram a profetizar, provavelmente receando que isso poderia ameaçar o seu futuro posto. Então, Josué pediu a Moisés que ordenasse que eles dois parassem de profetizar, ao que Moisés respondeu: 'Tens ciúmes por mim? Quem dera que todo o povo do Senhor fosse profeta, e que o Senhor lhe concedesse o seu espírito!' (11,29).

Nesse mesmo sentido, segue a narrativa do evangelho de Marcos (9, 38-43), quando os discípulos vieram dizer a Jesus: “'Mestre, vimos um homem expulsar demônios em teu nome. Mas nós o proibimos, porque ele não nos segue'. Jesus disse: 'Não o proíbais, pois ninguém faz milagres em meu nome para depois falar mal de mim. Quem não é contra nós é a nosso favor.” Os discípulos certamente achavam que somente a eles, do grupo de seguidores próximos de Jesus, era dado o poder de expulsar demônios, mas Jesus fá-los ver que o Espírito sopra onde quer e ninguém pode inibir a ação do Espírito em sua liberdade total.

Meus amigos, nós sabemos que Jesus tinha centenas de seguidores à distância, anônimos, que ouviam suas pregações e o acompanhavam pelos caminhos do seu ministério, embora não fizessem parte do seleto grupo dos doze. Isso demonstra por que motivo, após a morte de Jesus, quando os discípulos começaram a pregar a boa nova, houve logo muitas adesões. Obviamente, os fariseus e os adeptos ferrenhos do judaísmo tradicional não acreditavam em Jesus, mas o povo a quem Jesus se dirigia, aqueles mesmos para os quais Ele fez vários milagres, inclusive fatos de grande abrangência, como foi o caso da transformação de água em vinho, nas bodas de Caná, como também o conhecido episódio da multiplicação dos pães. Isso sem falar nos inúmeros milagres de alcance mais restrito, curando doentes de diversos males, restituindo a visão aos cegos, dando mobilidade aos paralíticos, até ressuscitando pessoas, tudo isso se transformava em boatos que iam correndo de boca em boca e produzindo uma legião de admiradores de Jesus entre o povo simples.

Quando Jesus repreendeu os discípulos que haviam 'proibido' aqueles que não eram do grupo, para que não expulsassem demônios, era como se Jesus estivesse antevendo os diversos movimentos religiosos que iriam surgir, no futuro, os diversos 'missionários' que se apresentariam em nome dele, prometendo curas e arrebanhando grupos mais ou menos numerosos de seguidores. Em outras palavras, o que Jesus propunha era uma religião enquanto modo de vida, Ele não mandou que fosse fundada uma 'organização' estruturada com cargos e hierarquias, portanto, Ele não mandou que se constituíssem 'igrejas'. Estas foram surgindo de forma espontânea, com a reunião de fiéis em redor de um líder. De início, esse líder era um dos apóstolos, depois passou a ser uma pessoa a quem eles delegavam este poder, através da 'imposição das mãos' (ordenação), e assim foram sendo criados os vários 'cargos' internos: diáconos, sacerdotes, bispos, estruturando-se aos poucos uma hierarquia. Nos primeiros séculos, o que havia era essas 'ekklesias' (comunidades) de irmãos unidos pelo evangelho. A organização burocrática mais genuína começou a surgir com a aproximação e até uma certa confusão com a administração romana, pois até as designações de paróquias e dioceses eram similares às divisões do império romano.

Isso lança o polêmico tema sobre a autenticidade e veracidade das diversas entidades que se apresentam como 'igrejas de Cristo'. A Igreja Católica reivindica o reconhecimento de ser a verdadeira organização que continua a tradição dos Apóstolos, de forma ininterrupta desde os primeiros séculos, e assim nós cremos. Os diversos líderes dissidentes dos primeiros séculos não lograram constituir novas 'igrejas' porque foram simplesmente exterminados antes que isso acontecesse. O primeiro que conseguiu escapar desse destino foi Lutero, porque foi protegido pelos príncipes alemãos descontentes com o Papa, e assim foi a partir de Lutero que começaram a surgir outras 'igrejas' diferentes da 'católica romana', as quais nunca pararam de proliferar até os dias de hoje.

A questão básica, portanto, é: qualquer 'igreja' reproduz o ideal religioso proposto por Cristo? Ou somente uma delas, no caso a Igreja Católica Romana? Ou alguma outra 'igreja' também pode ser considerada autêntica igreja de Cristo? Tradicionalmente, a doutrina católica sempre afirmou que 'fora da Igreja Católica não há salvação'. Após o Concilio Vaticano II, essa doutrina foi bastante flexibilizada, a partir do conceito de ecumenismo. Assim, embora a Igreja Católica se considere a autêntica igreja de Cristo sucessora daquela iniciada pelos Apóstolos, admite que em outras agremiações que seguem os mandamentos evangélicos são também validamente reconhecidas. Nesse contexto, tivemos um fato curioso. Quando houve o grande 'cisma do ocidente', ou seja, a cisão entre as igrejas cristãs orientais e a igreja de Roma, ambas se excomungaram reciprocamente, cada uma reivindicando para si ser a autêntica igreja de Cristo. Essa excomunhão, que durou séculos, foi 'levantada' num encontro entre o Papa Paulo VI e o Patriarca Atenágoras, no final dos anos 60.

Sob o aspecto jurídico, a Igreja Católica reconhece, no Direito Canônico, os batismos aplicados pelas seguintes igrejas: igreja ortodoxa, igreja vetero-católica, igreja anglicana, igreja luterana, igreja metodista, igreja presbiteriana, igreja batista, igreja congregacionista, igreja adventista, assembléia de Deus (fonte: CNBB, doc.21). Ora, se a Igreja Católica reconhece os batismos realizados nessas igrejas, então as reconhece como seguidoras autênticas da doutrina cristã. De acordo com o Código de Direito Canônico, uma pessoa que tenha sido batizado em uma dessas igrejas, se se converter ao catolicismo, o batismo nelas recebido é válido, será apenas registrado nos livros próprios, não será necessário batizar-se novamente.

Numa perspectiva mais ampla, podemos admitir que alguém possa, individualmente, seguir os ensinamentos de Cristo, mesmo sem pertencer a nenhuma igreja. Nesse caso, teríamos na prática a mesma situação da repreensão que Cristo fez aos discípulos: não lhos proibais, porque não está contra nós, está conosco. E assim, podemos concluir que a fé em Cristo é vivenciada, de modo mais apropriado, junto a uma comunidade eclesial, de acordo com a crença que cada um possui. O importante mesmo é a pureza do coração e a retidão da consciência, a fidelidade ao ensinamento de Cristo e a demonstração prática da sua vivência cristã. Já o inverso não será considerado válido, ou seja, pertencer a uma igreja e frequentá-la regularmente, porém sem que isso se transforme em ações e atitudes coerentes com a fé publicamente professada.

Que o Divino Mestre nos ajude a sermos fiéis ao nosso compromisso, para que a nossa religião não seja apenas da boca pra fora, mas brote verdadeiramente do nosso coração.


domingo, 23 de setembro de 2012

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 25º DOMINGO COMUM - A LÓGICA DO PODER - 23.09.2012


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 25º DOMINGO COMUM - A LÓGICA DO PODER – 23.09.2012

Caros Confrades:

A liturgia deste 25º domingo comum coloca para a nossa reflexão um tema bastante interessante, mostrando uma nova lógica do poder, através da imagem do Messias sofredor. Trata-se, como se vê, de uma continuidade do tema já comentado no domingo anterior.

A primeira leitura, retirada do Livro da Sabedoria, apresenta o conluio dos ímpios contra o justo, tramando contra ele, porque ele espera que o Senhor venha salvá-lo. No contexto trans-histórico, o texto aborda a situação do futuro Messias como um perseguido, diferente da figura do Messias poderoso e vencedor de batalhas. Já começamos a ver aí a inversão da lógica do poder, pois o poder do Messias não estará na espada nem na força física, mas na força do amor. De acordo com essa lógica invertida, tem mais poder não aquele que vence batalhas e subjuga os inimigos, mas aquele que ama mais e ama até os inimigos. Vimos, no domingo passado, como Jesus estava tentando ensinar isso aos discípulos, mas eles não estavam entendendo muito bem. Nas leituras de hoje, este ensinamento continua.

Na segunda leitura, retirada da carta de São Tiago, ele também demonstra que a origem dos males sociais, das guerras, da insegurança está nessa equivocada busca pelo poder material. Diz o apostolo: qual a origem das desavenças que há entre vós? É porque buscais primeiros os vossos interesses. Vós matais, invejais, maltratais e mesmo assim não conseguis o que quereis. O vosso problema é porque não pedis. Ou melhor, pedis mal, porque quereis somente aquilo que atende aos vossos interesses. Dito com outras palavras, o apóstolo Tiago está advertindo as primeiras comunidades cristãs sobre a falta de consciência da missão de Cristo, que não veio para cumprir a sua vontade, mas a vontade do Pai; que não trabalhava por interesse próprio, mas pelo interesse do Reino de Deus. Os primeiros cristãos, assim como muitas vezes, nós de hoje, estamos muito imbuídos da lógica perversa do paganismo, do capitalismo, do querer mais, do ter mais, do poder mais. Por isso, assim como os primeiros cristãos, também não sabemos pedir a Deus nas nossas necessidades, e por isso não recebemos o que pedimos. A resposta para este dilema está nas palavras do próprio Cristo, que disse: buscai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais vos será dado por acréscimo. Na maioria das vezes, nós buscamos em primeiro lugar aquilo que deveria vir por acréscimo e deixamos de buscar o essencial. E por isso, não recebemos nem o essencial nem os acréscimos.

No evangelho de Marcos, o evangelista continua a narração do episódio do domingo anterior, quando Jesus ia viajando a pé para Cafarnaum, já a caminho de Jerusalém, onde a sua missão iria se consumar, e ele estava testando se os discípulos estavam entendendo a lição. Na primeira pergunta, feita no domingo passado, todos eles erraram. Então, Jesus repete: é necessário ele eu vá a Jerusalém, onde serei torturado e morto, mas depois de três dias, ressuscitarei. Aí, diz o evangelista, eles não entendiam, mas ficavam com vergonha de perguntar. E conversavam sobre banalidades. Chegando em Cafarnaum, depois de acomodados em casa (o evangelista não diz de quem era a casa, certamente era de algum parente de um dos discípulos), Jesus começou a perguntar: sobre o que vocês conversavam enquanto estávamos caminhando? Eles ficaram calados e não quiseram responder, com medo do carão, que com certeza viria, pois Jesus sabia muito bem do que eles tinham conversado. Foi quando ele reuniu os doze e repassou a lição: aquele dentre vós que quiser ser o maior, seja o menor; o que quiser ser o primeiro, seja o último. Convenhamos, isso embaralhava ainda mais o entendimento deles. Como é que alguém poderia ser o primeiro, chegando por último? Como poderia ser maior se desvalorizando? Percebendo a confusão na mente deles, Jesus tomou uma criança e colocou no meio deles, para servir de exemplo. Sede como esta criança... Por que Jesus fez comparação com a criança? Ora, naquele tempo, as mulheres e as crianças não tinham vez na sociedade, acentuadamente machista e patriarcalista. Somente os homens adultos tinham direitos, tinham reconhecimento. Ao colocar a criança como exemplo, Jesus estava usando um recurso pedagógico para dizer: o pensamento de vocês está ao contrário. De acordo com a mentalidade dos judeus, uma criança não tinha direito a acolhimento, ela era subjugada ao pai (nem a mãe podia ter qualquer atitude). De acordo com a doutrina romana, que prevalecia na Galiléia naquele tempo, o pai tinha direito de vida e de morte sobre os filhos, sobre a esposa, sobre os servos, sobre os bois e cabritos, todos estavam no mesmo pé de igualdade.

Então, Jesus diz: quem não se tornar igual a uma criança, não terá lugar no Reino do Céu... aquele que acolhe uma criança, acolhe a mim, e quem acolhe a mim, acolhe o Pai que me enviou. Se algum de vós quer ser o primeiro, pois que seja o servo de todos. Ou seja, Jesus está invertendo a lógica comum do poder. Tem uma passagem interessando no evangelho, que narra o diálogo da mãe dos filhos de Zebedeu (vejam só, o evangelista nem diz o nome dela, como se mulher não tivesse nome, isso não tinha a menor importância), ela chegou junto ao Jesus e pediu que os dois filhos dela (Tiago e João) se sentassem no Reino d'Ele um à direita e outro à esquerda, ou seja, não queria 'nada', só o primeiro lugar para cada um. Qual foi a resposta de Jesus? Foi em forma de pergunta para os dois: vocês terão coragem de beber o cálice que eu vou beber? Eles não entenderam nada disso, mas responderam que 'sim'. Então, Jesus concluiu: pois vocês beberão, mas esse negócio de sentar um à direita e outro à esquerda, quem decide não sou eu, é o Pai. Esse diálogo tem o mesmo sentido do tema que abordamos hoje. A mãe de Tiago e João estava raciocinando de acordo com a lógica comum do poder, mas não era essa a lógica que Jesus veio ensinar. Ele, porém, não foi ensinar isso a ela, porque já quebrava cabeça ensinando aos discípulos, sem ver resultados muito animadores.

Como vocês veem, meus amigos, a lógica invertida do poder, proposta por Jesus, é uma outra forma de apresentarmos a sua doutrina do Messias sofredor. Os judeus de hoje ainda estão esperando o Messias poderoso e batalhador, porque eles não consideram que Cristo tenha sido o Messias prometido aos antigos patriarcas. Porque eles não entendem a inversão da lógica do poder, por isso não aceitam Jesus Cristo. Nós vimos, recentemente, a circulação do texto de um pesquisador que afirma que Jesus vivem na Cashemira e lá teve filhos e morreu de idade avançada. Ainda que fosse uma versão verossímil, entraria em choque com os testemunhos e as tradições pré-evangélicas acerca da ressurreição de Cristo. Detonaria o ensinamento do Messias sofredor como uma farsa, porque conforme diz São Paulo, se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa fé. A vitória de Cristo está exatamente na superação da morte. Se não houvesse a vitória sobre a morte, então a sua missão não teria se encerrado com sucesso, mas teria sido um total fracasso.

Portanto, a figura do Messias sofredor vem nos ensinar que a forma de vencermos o mundo, com suas mazelas e inseguranças, é praticando o amor e vivendo a humildade. Ser o maior implica servir mais, amar mais, doar-se mais, viver a fé através da realização de boas obras. Buscando em primeiro lugar o Reino de Deus, estaremos contribuindo para neutralizar a ganância do ter em demasia, do poder a qualquer custo. Estamos em época de campanha eleitoral e vemos isso na prática diariamente, algumas pessoas tentando ludibriar a sociedade com o intuito de se apossar do poder, seja lá com que meios for. Fico pensando de que modo é possível conciliar esse ensinamento de Cristo com a candidatura daqueles que se dizem católicos e estão ali no mesmo jogo de busca do poder. Para mim, essa atitude tem um forte componente contraditório. Hoje mesmo, me entregaram, na saída da missa, um 'santinho' de um candidato católico a vereador. Parece-me que a lógica do Messias sofredor não é compatível com o exercício do poder político, apesar de estar consciente dos efeitos práticos que a ausência de lideres políticos religiosos pode acarretar.

Que o Mestre nos inspire sempre à prática do poder do amor, que é o poder mais forte que existe.

domingo, 16 de setembro de 2012

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 24º DOMINGO COMUM - O SERVO SOFREDOR - 16.09.2012


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 24º DOMINGO COMUM – O SERVO SOFREDOR – 16.09.2012

Caros Confrades,

Na liturgia deste 24º domingo comum, está em destaque a figura do servo sofredor, recordando os versos de Isaías (na verdade, o deutero Isaías), que preconizava o futuro sofrimento do Messias. Outro tema interessante nesta liturgia, relacionado com o anterior, é a carta de São Tiago, na qual ele fala acerca da fé operante, isto é, a fé que se transforma em obras de misericórdia com os que sofrem.

Na primeira leitura (Isaías, 50, 5-9), temos os versos clássicos do servo sofredor. Conforme já expusemos em comentários anteriores, a partir do capítulo 40 de Isaías, os biblistas denominam 'deutero Isaías', isto é, o segundo Isaías, pois esses textos foram escritos pelos discípulos de Isaías, complementando o trabalho do Mestre, igualmente inspirados. Sabe-se disso porque a crítica histórica demonstrou que são mencionados fatos que ocorreram após a morte de Isaías, portanto, não poderiam ter sido relatados pelo próprio. Ali estão esses antológicos cânticos do servo sofredor, que são selecionados para leitura na Semana Santa, mas estão também na liturgia de hoje, por causa da leitura do evangelho de Marcos, onde Cristo narra a sua futura paixão.

Conforme também já foi explicado aqui, a segunda parte do livro de Isaías foi composta durante o cativeiro da Babilônia, então são frequentes as referências ao sofrimento do povo, junto com as exortações de penitência e de confiança em Javeh, que na hora certa virá libertar o Seu povo. Assim, a figura do servo sofredor, num primeiro momento, refere-se aos judeus em situação de sofrimento durante o exílio, incentivando-os a não se deixarem sucumbir pelo sofrimento, pois “o Senhor Deus é meu Auxiliador, por isso não me deixei abater o ânimo, conservei o rosto impassível como pedra, porque sei que não sairei humilhado.” Por isso, “não desviei o rosto de bofetões e cusparadas.” Dentro da interpretação trans-histórica, o servo sofredor do exílio babilônico é a premonição do futuro Messias, que irá personificar de forma plena esta figura, através da sua paixão e morte, para nossa redenção. O cativeiro da Babilônia aconteceu seis séculos antes de Cristo, sendo impressionante a riqueza de detalhes com que seu autor descreve o futuro sofrimento do Messias.

Neste contexto de sentido, se enquadra a leitura do evangelho de Marcos (8, 27-35), onde o evangelista narra os episódios da vida de Cristo que antecedem sua ida a Jerusalém, onde viria a ser sacrificado. Após três anos de catequese diária com os discípulos, Jesus vendo aproximarem-se os seus dias finais, faz uma espécie de teste para saber como está o entendimento do Seu grupo acerca da Sua pessoa. Ele começa por longe: quem as pessoas dizem que eu sou? Jesus não queria saber o que o povo pensava dele, mas o que os discípulos pensavam, mas pedagogicamente começou com uma pergunta bem genérica. Eles responderam: uns dizem que é João Batista, outros que é Elias ou algum dos profetas que ressuscitou. Então, Jesus vai direto ao ponto: e vocês, o que dizem? Antes que alguém respondesse, Pedro saiu na frente: Tu és o Messias. O evangelista Marcos encerra aqui o diálogo de Cristo com Pedro. Mas no evangelho de Mateus, quando o mesmo episódio é narrado (Mt 16, 17), a conversa entre ambos continua, sendo aquele momento em que Cristo diz a Pedro que ele é a pedra sobre a qual será edificada a Igreja. Porém, o evangelista Marcos é mais econômico nas palavras, e encerra o diálogo nesta ocasião, proibindo os discípulos de saírem por aí espalhando que Ele é o Messias.

A propósito desse diálogo, algumas considerações merecem ser feitas. 1. Primeiro, em relação à tradução portuguesa. No texto oficial da CNBB, lido na missa, está escrito: tu és o Messias, porém no texto latino da Vulgata de São Jerônimo, está escrito: tu es Christus, igual como está no texto original do grego (Krystos). Embora nós saibamos que se trata apenas de uma distinção vocabular, pois em essência a mensagem não se modifica, na minha opinião, por uma questão de respeito ao original e à tradução, deveria constar como São Jerônimo escreveu: Tu és o Cristo. 2. Segundo, a atitude de Jesus em mandar Pedro se calar e exortar os discípulos que não saíssem espalhando isso por aí afora, deixa a impressão de que Ele não gostou do que ouviu, quando era de se esperar o oposto, ou seja, que os discípulos haviam aprendido a lição. Mas acontece que eles não aprenderam a lição corretamente. Andar espalhando que Ele era o Messias poderia ter um efeito devastador no meio do povo, por causa da expectativa que a cultura judaica tinha em torno da figura do messias, o libertador do povo, e Jesus não queria que as pessoas o procurassem com esta intenção, porque isso teria uma conotação política muito forte e a missão de Jesus era bem outra. 3. Por que razão o evangelista Marcos e também Lucas (9, 20) são tão abreviados nesta passagem, enquanto Mateus (16,17) descreve um diálogo bem mais longo? A explicação está nas fontes que cada evangelista pesquisou. Visto que os três evangelhos sinóticos foram escritos em locais diferentes e em épocas diferentes, nem todos os evangelistas tiveram acesso aos mesmos documentos. Na verdade, os evangelhos sinóticos têm esse nome porque foram escritos fazendo uma espécie de sinopse de diversos outros documentos esparsos que circulavam pelas comunidades cristãs primitivas. Nem todos esses textos existiam em todas as comunidades e assim nota-se nas narrativas dos três evangelhos que alguns fatos se repetem, outros aparecem nuns e não noutros e ainda alguns detalhes aparecem em alguns e não em outros.

Pois bem, voltando ao assunto de Jesus ter repreendido Pedro e proibido os discípulos de falarem que Ele era o Messias. Jesus percebeu que os discípulos estavam com uma ideia parcialmente errada a respeito dele, porque só estavam percebendo o 'lado bom' da história, não estavam levando muito a sério aquelas indicações dadas diversas vezes por Jesus de que ele teria de sofrer muito e morrer, para que a sua glória se manifestasse. Parece que os discípulos pensavam que Jesus estava falando aquilo como algo metafórico, que não iria acontecer. Em suma, Jesus percebeu que eles não estavam conscientes de que Ele era um servo sofredor, que o Messias previsto por Isaías não seria um salvador glorioso e forte do ponto de vista material e político, mas de um reino diferente, eterno, espiritual, que não seria conquistado ao fio da espada, mas com o coração e na obediência aos desígnios do Pai. Então, Jesus proibiu que eles ficassem espalhando essa notícia, porque haveria um tempo próprio para isso, após a sua morte e ressurreição. Daí que Ele foi pacientemente explicar novamente: antes que Ele pudesse entrar na sua glória, teria de ser preso, espancado, maltratado, torturado até a morte, que Ele não iria reagir tal como dissera o Profeta, que deveria passar por tudo isso, a fim de que a sua glória se manifestasse. Assim, enquanto seguiam para Jerusalém, onde todas essas coisas iriam acontecer, ele aproveitou a viagem para reciclar outra vez essa lição fundamental, ou seja, a figura do Messias estava associada ao servo sofredor de Isaías, não àquele protótipo do guerreiro como foi Ciro, o libertador do povo cativo na Babilônia. Era preciso que os discípulos entendessem essa diferença essencial, sob pena de eles confundirem as figuras do messias no antigo e no novo testamentos.

Jesus falava essas coisas especialmente por causa de Judas Iscariotes, porque dentre os discípulos, era ele o que mais ansiava pela 'hora fatal' em que Jesus iria dar o grande golpe e comandar uma revolta gigantesca contra os romanos, para expulsá-los do território judeu. Judas achava que Jesus estava blefando quando falava dos sofrimentos pelos quais iria passar, quem sabe, Judas ficava repassando para os outros discípulos que isso era só conversa e Jesus, que sabia o que se passava no coração dele e de todos, estava dando a Judas mais esta oportunidade de repensar os seus planos. Judas, porém, era um cabeça dura, um radical que só pensava em planos materiais, ele via no grupo do discípulos os futuros comandantes de um grande exército popular, que retornaria a liberdade ao povo judeu. Até a última hora, quando ele levou os soldados romanos para prenderem Jesus, Judas ainda tinha essa esperança de sublevação.

Meus amigos, nós não devemos ser ingênuos como os demais discípulos de Jesus, nem também ser radicais como Judas. Devemos estar atentos à mensagem de Cristo com o coração aberto e a mente solícita, procurando descobrir qual a missão que ele espera de cada um de nós. A oração, a meditação e as obras de misericórdia são os recursos que temos para perceber isso. Que o divino Mestre nos ilumine nas nossas tarefas de cada dia, para que estejamos conscientes dos nossos deveres de seguidores da verdadeira mensagem cristã, não daquilo que nós caprichosamente teimamos em aceitar.

Por questão de espaço, para não me alongar demais, deixo para comentar a carta de São Tiago em outra oportunidade.


domingo, 9 de setembro de 2012

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 23º DOMINGO COMUM - EPHATÁ - 09.09.2012


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 23º DOMINGO COMUM – EPHATÁ – 09.09.2012

Caros Confrades,

Neste 23º domingo comum, eu destaco para a nossa reflexão o tema da palavra aramaica “ephatá”, que significa 'abre-te'. Foi o que Cristo pronunciou para curar o surdo e mudo, em mais um de seus milagres pelas terras da Galiléia.

Na primeira leitura, retirada do livro de Isaías (35, 4), lemos a sua extraordinária e detalhada profecia sobre o futuro Messias, quando afirmou: “Então se abrirão os olhos dos cegos e se descerrarão os ouvidos dos surdos. ” (35, 5) Apenas recordando, o livro de Isaías foi escrito no tempo em que os judeus encontravam-se no cativeiro da Babilônia e o messias então esperado para libertá-los foi o rei Ciro, da Pérsia, que derrotou Nabucodonosor e libertou os judeus, que assim puderam retornar à sua terra. Só que este messias-Ciro apenas de muito longe lembrava a figura do futuro Messias, que iria libertar não só o povo judeu, mas todo a raça humana da escravidão do pecado e da morte. Por isso, naquela ocasião, dizia o Profeta: dizei aos desanimados 'criai ânimo' porque logo logo virá a recompensa de Deus que nos vem salvar. A Bíblia tem sempre um sentido histórico e outro trans histórico, assim, no primeiro momento, a profecia se referia a Ciro da Pérsia, mas no sentido do futuro, ao Messias-Cristo. Ciro não tinha o poder de devolver a visão aos cegos nem a ambulação aos coxos nem de soltar a língua dos mudos, mas o Profeta previu que isso aconteceria quando viesse o Messias verdadeiro. E sucedeu realmente como ele previra.

Na leitura do evangelho de Marcos (7, 31), temos a narração do episódio da cura procedida por Cristo na pessoa de um surdo e mudo. Ele colocou os dedos nos ouvidos surdos dele e com Sua saliva, molhou a língua muda do felizardo, e depois pronunciou a palavra forte “ephatá”, a qual o próprio evangelista explica que significa 'abre-te'. E logo aquele que era surdo e mudo transformou-se num incontrolável falante/ouvinte. E quanto mais Cristo pedia para que ele se calasse, mais ele falava e proclamava as maravilhas realizadas nele. Esta palavra foi escrita por São Jerônimo, no texto latino, como 'ephphetha', enquanto no texto grego está escrito “effathá”, certamente por isso a tradução da CNBB utiliza o termo 'efatá' e eu estou usando com o símbolo antigo do F=PH, para distinguir com um sentido especial.

Meus amigos, este ephatá pode ser entendido de múltiplos modos. No sentido próprio utilizado por Cristo na ocasião do milagre, significou para o surdo-mudo o abrir-se fisiológico dos seus ouvidos e da sua glote, para que ele pudesse articular sons e ouvi-los. Mas no sentido figurado, que se refere a nós, o ato de abrir-se se dirige à nossa mente, ao nosso coração, à nossa vontade, ao nosso intelecto. Cristo está nos dizendo 'abre-te' para que possamos compreender melhor a nossa missão e assim podermos melhor testemunhar a nossa fé.

Este seria o significado intelectual do ephatá. Saber interpretar com maior clareza a palavra de Cristo dentro dos desafios que a vida social nos coloca a cada dia, em meio a tantas e tão variadas dissensões, alternativas, exigências, falsas promessas e diversas quimeras que nos rodeiam. Abrir a nossa mente para compreendermos de que modo o nosso viver pode dar testemunho de que somos a Igreja de Cristo no meio do mundo, com a maior naturalidade e sem afetação. Diferente de muitos exemplos que vemos diariamente, sobretudo da parte dos nossos irmãos que exploram os meios tecnológicos de comunicação (rádio e TV), muitas vezes, iludindo e arrastando o nosso povo simples com apelos emotivos e sentimentais. Ontem, casualmente, eu estava zapeando os canais da televisão e vi uma dessas sessões públicas de alta emotividade, com pessoas chorando e sendo iludidas de que aquilo é a verdadeira fé. Para viver a fé autêntica, não é necessário chegar a esse ponto. Vive-se a fé autêntica muito mais com a razão e o intelecto do que com a emotividade, o sentimentalismo. Esses são muito mais poderosos, não há dúvida, no entanto, são também muito mais efêmeros. Enquanto a pessoa está passando por alguma dificuldade (e nesse mundo, tem sempre muitas pessoas altamente necessitadas tanto material como espiritualmente), esse sentimentalismo dá um certo alívio, porém, apresenta uma visão ilusória e deturpada da verdadeira fé. Por isso, o primeiro sentido do ephatá se dirige ao nosso intelecto, no sentido de que devemos estar atentos para vivenciar a nossa fé independentemente desses apelos e motivações permeadas pelo sentimentalismo.

O sentido volitivo do conceito do ephatá eu percebo num exercício consciente da nossa parte para nos abrirmos aos mais necessitados, de não nos quedarmos indiferentes diante de certas situações de injustiça social, quando a mensagem cristã nos ensina a ser solidários. E aqui eu trago à colação a segunda leitura, retirada da carta de São Tiago (2, 1), que vai direto ao assunto, sem rodeios, dando um exemplo que até parece estar se referindo aos dias de hoje: “ imaginai que na vossa reunião entra uma pessoa com anel de ouro no dedo e bem vestida, e também um pobre, com sua roupa surrada, e vós dedicais atenção ao que está bem vestido, dizendo-lhe: 'Vem sentar-te aqui, à vontade', enquanto dizeis ao pobre: 'Fica aí, de pé', ou então: 'Senta-te aqui no chão, aos meus pés'.” Mais direto, impossível. Quantas vezes, isso pode ter acontecido conosco, por não estarmos com a mente aberta para perceber além das aparências, além das etiquetas sociais. Um pobre que bate à nossa porta pedindo um pouco de alimento tem a mesma dignidade como pessoa do q ue um profissional liberal que nós recebemos na nossa casa de outra maneira. Não estou dizendo que se deva deixar entrar em sua casa qualquer pessoa desconhecida, pois a cautela também faz parte da vida do cristão. Refiro-me à atitude de falta de respeito humano com que, muitas vezes, vemos as pessoas mais humildes serem tratadas por outros e até por nós mesmos. Nas entidades públicas, nos estabelecimentos bancários, nos supermercados, até mesmo dentro dos templos vemos pessoas, que se orgulham de ser católicos de carteirinha (até mesmo sacerdotes, infelizmente) tratarem mal as pessoas de vestes maltrapilhas ou surradas, usando a expressão do apóstolo Tiago. Daí a exortação dele: “a fé que tendes em nosso Senhor Jesus Cristo glorificado não deve admitir acepção de pessoas”, isto é, não deve permitir que sejamos injustos com pessoas menos favorecidas, exatamente aquelas mais precisadas.

Num terceiro sentido, que eu chamaria de afetivo, o conceito de ephatá nos leva a refletir sobre a nossa abertura interior para compreender a nossa missão, o que Deus quer de nós. Estar aberto à graça divina é condição indispensável para que esta graça chegue até nós. Deus não nos obriga, não nos impõe, não vem a nós em qualquer condição, mas apenas quando encontra a porta da nossa alma aberta para recebê-Lo. Os teólogos, desde S. Tomás de Aquino, sempre foram acordes em reconhecer que Deus dá a sua graça a todas as pessoas, no entanto, para que esta graça seja eficaz, é necessário que estejamos abertos, disponíveis, atentos, desejosos de recebê-la. Numa mensagem que circulou recentemente nos e-mails do grupo, o nosso colega Bosco fazia alusão a uma frase de Sto Agostinho, que o Frei Higino repetia com frequência: qui te creavit sine te, non te salvabit sine te (aquele que te criou sem ti, não te salvará sem ti). É exatamente isso que estamos dizendo aqui com outras palavras. Deus nos dá a graça da salvação, porém, sem a nossa colaboração, sem a nossa disponibilidade, sem que façamos a nossa parte, esta graça não operará seus efeitos em nós. Estar aberto à graça divina é condição indispensável para que ela penetre em nós e nos faça verdadeiros filhos d'Ele.

Que Nossa Senhora do Brasil, cuja festa foi ontem (8/9) celebrada, a padroeira do nosso Seminário Seráfico e perene padroeira também de todos os que por lá passaram, nos ajude a manter sempre a nossa mente e o nosso espírito disponíveis à graça divina, assim como Ela fez e que tornou possível a nossa redenção.


domingo, 2 de setembro de 2012

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 22º DOMINGO COMUM – RELIGIÃO DE FACHADA – 02.09.2012


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 22º DOMINGO COMUM – RELIGIÃO DE FACHADA – 02.09.2012

Caros Confrades,

Neste 22º domingo comum, a liturgia traz para nossa reflexão a qualidade da nossa prática religiosa. Temos atitudes religiosas coerentes ou praticamos uma religião de fachada? A nossa fé está integrada na nossa vida ou praticamos a vida dupla: na igreja somos uma pessoa, fora dela somos outra?

Antes de ingressar no conteúdo das leituras, faço um breve comentário sobre um fato curioso que ocorre com os países teocráticos, nos quais as normas sociais e estatais se confundem com preceitos religiosos. No caso dos judeus do tempo de Cristo, certas normas práticas, como por exemplo, que tipo de alimentos podiam ou não ser ingeridos, regras básicas de higiene para evitar doenças, regras relativas ao trabalho e ao repouso estavam juntas com as regras próprias da prática do culto, da guarda dos objetos sagrados e da conservação dos livros religiosos. Quando os fariseus interpelam Cristo perguntando por que os discípulos dele comem sem lavar as mãos, eles estão destacando isso como descumprimento de uma norma de caráter religioso, contudo trata-se de uma norma evidente de saúde pública. Atualmente, ainda temos países teocráticos, como por exemplo, o Irã, o Afeganistão, dentre outros, onde uma pessoa pode ser levada à prisão porque deixou de fazer aquelas inclinações rituais nas horas marcadas ou porque pronunciou alguma palavra proibida, sendo acusado de blasfêmia.

Passando ao conteúdo das leituras. Na primeira leitura, retirada de Deuteronômio (4, 1), Moisés fala ao povo sobre as leis e decretos dados por Javeh aos ancestrais do povo, lembrando a eles a exigência da fidelidade a essas normas, como uma maneira de demonstrar sabedoria diante dos povos vizinhos, porque nenhum dos deuses dos outros povos tinha este mesmo cuidado com os seus seguidores do que o Deus de Abraão. Diz o vers. 6: “Vós os guardareis, pois, e os poreis em prática, porque neles está vossa sabedoria e inteligência perante os povos, para que, ouvindo todas estas leis, digam: 'Na verdade, é sábia e inteligente esta grande nação!

A propósito do livro do Deuteronômio, que significa literalmente “segunda lei” ou segundo livro da lei, trata-se de um manuscrito que foi encontrado no ano 622 a.C. por pedreiros que faziam uma reforma no altar do templo de Jerusalém, na época em que estavam sendo compostos os livros iniciais da Bíblia (Genesis, Êxodo, Levítico, Números), com base nas tradições antigas: a tradição eloísta (do norte de Israel, assim chamada porque nos seus escritos, o nome de Deus era Eloim) e a tradição javista (do sul de Israel, assim chamada porque utilizavam o nome Javeh). O referido manuscrito veio se juntar aos documentos já conhecidos e tinha, em parte, repetições do que já havia nos outros manuscritos. Contém grande número de leis muito antigas, algumas anteriores ao tempo de Moisés, outras da época mosaica e também leis posteriores. Então, o Deuteronômio veio completar o Pentateuco e é por isso que, muitas vezes, verificam-se passagens repetitivas nos primeiros livros da Bíblia.

Os fariseus gostavam muito do Deuteronômio, porque havia nele uma grande diversidade de preceitos, os quais eles procuravam decorar para observar e também para fiscalizar se os demais estavam observando. Segundo os estudiosos, os fariseus fizeram um resumo de cerca de 600 preceitos, em geral proibitivos, coletando-os dessas leis antigas. Eram esses preceitos que determinavam coisas básicas, assim como lavar as mãos antes das refeições, tomar banho quando chegavam da praça pública, jejuar nos dias estabelecidos, dar esmolas, etc. Aqui nós podemos observar dois fatos. Primeiro, o detalhismo de comportamentos muitas vezes banais e que eram entendidos como preceitos divinos e, portanto, quem não os cumpria estava desobedecendo a lei. Segundo, o fato de que para os fariseus, era bastante cumprir esses detalhes regulamentadores, essas minúcias e filigranas, porque assim estavam obedecendo a Javeh. Se a norma mandava que, no dia de jejum, o máximo que alguém podia ingerir era, por exemplo, 300g de alimento, então era preciso pesar na balança as refeições para não passar dessa cota, sob pena de estar descumprindo o preceito. Ou seja, a sua preocupação era exagerada em relação aos detalhes exteriores, no entanto, intimamente eles podiam ser desonestos, maledicentes, exploradores, caluniadores, injustos, porque essas atitudes interiores não eram notadas, mas somente o que eles faziam externamente.

Daí que quando eles foram interpelar Jesus perguntando 'por que os discípulos dele não cumpriam a lei de Moisés', Jesus lançou contra eles o texto de Isaías: “Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim. De nada adianta o culto que me prestam, pois as doutrinas que ensinam são preceitos humanos'. Vós abandonais o mandamento de Deus para seguir a tradição dos homens' ” (Mc 7, 6). Foi numa ocasião similar que Jesus os chamou se sepulcros caiados, porque se importam com o exterior, mas no seu íntimo os seus pensamentos não são coerentes com as suas atitudes. De que adianta apresentar exteriormente um comportamento quando o interior é vazio? De que adianta andar com o terço, o escapulário pendurado no pescoço, a Bíblia embaixo do braço e ter a mente ocupada com frivolidades, o coração cheio de más intenções? Daí o veredito de Cristo: esse povo me honra só com os lábios, mas o coração deles tem outro dono. E completou: o que torna impura a pessoa não é o que entra nele vindo de fora, mas o que sai dele vindo do seu interior. Pepeu Gomes transformou isso num refrão musical: o mal não entra pela boca, o mal é o que sai da boca do homem.

Meus amigos, Cristo está nos ensinando que a verdadeira religião é a que se pratica ao nível do coração, do entendimento, da intencionalidade e que se expressa em atos e atitudes, não o contrário. Ter um comportamento contrito e piedoso quando está dentro do templo não é suficiente, se ao sair de lá essa contrição e essa piedade não se revelarem no relacionamento com os irmãos. Não se quer dizer que a oração, a piedade não são boas coisas, de modo nenhum, são ótimas atitudes. O erro está no descompasso, na incoerência entre o interior e o exterior. O nosso agir deve ser uma expressão concreta do nosso pensar, bem como a recíproca atitude. Por diversas vezes, Jesus brandiu contra os fariseus por causa disso. Por exemplo: quando jejuardes, não precisa por cinzas na cabeça e andar com roupa esfarrapada para que os outros vejam, porque o Pai do céu sabe do que se passa no vosso coração; quando derdes esmolas, fazei-o de forma reservada e não alardeando publicamente, de modo que não saiba a tua mão direita o que faz a tua esquerda. A verdadeira religião, a verdadeira fé é a que começa no pensamento, no coração e se traduz em atitudes relacionadas.

E aqui passamos para a mensagem da segunda leitura, retirada da carta de São Tiago (1, 17): “sede praticantes da Palavra e não meros ouvintes, enganando-vos a vós mesmos. Com efeito, a religião pura e sem mancha diante de Deus Pai, é esta: assistir os órfãos e as viúvas em suas tribulações. ” Quem não pratica a religião que ensina aos outros está se enganando a si próprio, é uma religião só de fachada, ou como se diz na linguagem de hoje, é uma 'empresa fantasma', tem só a aparência exterior com o intuito de ludibriar os incautos. A verdadeira religião é a que se revela nas obras de caridade, como fruto do amor ao próximo.

Meus amigos, Jesus nos adverte que devemos cuidar para não sermos cristãos de vida dupla, em que a devoção interior não acompanha o comportamento exterior. Participar da missa nos domingos e dias santificados será uma atitude vazia de significado se não nos dispusermos a ajudar o irmão que necessita de nós. Fazer a confissão e comunhão pascais será uma atitude inócua se faltarmos com a caridade no trato das pessoas mais humildes, dos nossos empregados e subordinados. Rezar o terço diariamente não atingirá o objetivo se em nós a arrogância e a avareza nos isolar na nossa individualidade e o nosso coração se tornar insensível com as pessoas que sofrem. Ditas em palavras de hoje, foi isso o que escreveu São Tiago naquele tempo em relação aos órfãos e viúvas.

Que a exortação de Jesus encontre eco na nossa mente para que o nosso coração não fique encascorado como o daqueles fariseus, que prezavam mais a lavagem das mãos do que a pureza das intenções.