domingo, 31 de agosto de 2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 22º DOMINGO COMUM - OS DOIS MODOS DE PENSAR - 31.08.2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 22º DOMINGO COMUM – OS DOIS MODOS DE PENSAR – 31.08.2014

Caros Confrades,

Neste 22º domingo comum, a liturgia nos põe diante do desafio de abandonar o modo de pensar de acordo com o mundo e aprender a pensar de acordo com o que é divino. A repreensão que Jesus faz a Pedro, que não compreendeu sua descrição da futura paixão pela qual teria de passar, nos adverte a buscar compreender os pensamentos de Deus, conforme ensinou o profeta Isaías (55, 8): “os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos são os meus caminhos.”

Na primeira leitura, do livro do profeta Jeremias (Jr 20, 7-9), vemo-lo se debatendo entre o dilema de profetizar e ser alvo de zombarias ou de abandonar a proferia e se livrar. Javeh fá-lo compreender que, mesmo sofrendo chacotas e pilhérias, ele deve continuar a sua missão de profetizar. Para associar com o contexto histórico, Jeremias profetizou no período que antecedeu a destruição de Jerusalém pelos babilônios, um período histórico bastante conturbado do povo de Israel, cujos reis praticavam a ganância e a idolatria e desrespeitavam Javeh. O profeta Jeremias, por diversas vezes, chamou a atenção das autoridades para esses desmandos, ameaçando que Javeh seria muito rigoroso para com eles, no entanto, eles riam do Profeta e levavam-no na brincadeira. Foi quando Jeremias escreveu: “Todas as vezes que falo, levanto a voz, clamando contra a maldade e invocando calamidades; a palavra do Senhor tornou-se para mim fonte de vergonha e de chacota o dia inteiro. Disse comigo: “Não quero mais lembrar-me disso nem falar mais em nome dele”. Senti, então, dentro de mim um fogo ardente a penetrar-me o corpo todo; desfaleci, sem forças para suportar.” (Jr 20, 8-9) Percebemos nesse depoimento do Profeta que, quando ele quis optar pelo modo de pensar mundano, esquecendo a profecia, Javeh lhe mostrou que ele devia continuar profetizando. Assim foi até que vieram da Babilônia os inimigos, destruíram a cidade de Jerusalém e levaram os habitantes como cativos. Ele, Jeremias, foi poupado do cativeiro e, para não sofrer represálias dos judeus que ficaram na cidade, fugiu para o Egito, junto com parentes e amigos. O apóstolo Paulo também, em certa ocasião, se expressou aos cristãos de Corinto numa linguagem similar: “Porque, se anuncio o evangelho, não tenho de que me gloriar, pois me é imposta essa obrigação; e ai de mim, se não anunciar o evangelho! (1 Cor 9:16)” O desabafo de Paulo tem o mesmo sentido do texto de Jeremias.

Na segunda leitura, extraída da carta aos Romanos (12, 1-2), o Apóstolo os adverte a pensar de acordo com os pensamentos divinos, quando diz: “Não vos conformeis com o mundo, mas transformai-vos, renovando vossa maneira de pensar e de julgar, para que possais distinguir o que é da vontade de Deus.” Para distinguir o que é da vontade de Deus, é necessário ultrapassar o modo de pensar de acordo com o mundo, renovar-se espiritualmente, oferecendo-se como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, seguindo as palavras de Paulo. O Papa Francisco, na alocução que fez neste domingo aos peregrinos, na Praça de São Pedro, por ocasião do Angelus do meio dia, com seu estilo bem informal e com a linguagem coloquial que lhe é peculiar, assim resumiu esse tema da liturgia de hoje: “Nós cristãos vivemos no mundo, totalmente inseridos na realidade social e cultural do nosso tempo, e com razão; mas isso traz o risco de que nos tornemos "mundanos", o risco de que "o sal perca o sabor", como diria Jesus (cf. Mt 5,13), ou seja, que o cristão se torne aguado, perca a novidade que lhe vem do Senhor e do Espírito Santo. Em vez disso, deveria ser o contrário: quando nos cristãos permanece viva a força do Evangelho, essa pode transformar os critérios de juízo, os valores determinantes, os pontos de interesse, as linhas de pensamento, as fontes inspiradoras e os modelos de vida”. (apud Zenit, revista eletrônica desta data – www.zenit.org). Achei interessante o Papa dizer que o cristão se torna “aguado”, é uma imagem bem característica daquele alimento sem sabor, que o paladar não identifica a sua essência. E o Papa complementa a imagem, em outra parte do seu discurso: “É triste encontrar cristãos "aguados", que parecem vinho diluído, e não se sabe se são cristãos ou mundanos, como o vinho diluído que não se sabe se é vinho ou água!” Viver no mundo, mas, ao mesmo tempo, pensar com os pensamentos de Deus, esse é o desafio que se coloca, a cada dia, para os cristãos.

No evangelho deste domingo (Mateus 16, 21-17), encontramos uma repreensão dura de Cristo a Pedro, chamando-o de “satanás”. Acerca desse vocábulo, é interessante notar que é uma palavra transliterada diretamente do hebraico para o grego, passando daí para o latim e para o português. Na língua hebraica, “satan” (סתן) significa o acusador, relacionada etimologicamente com a raiz verbal do verbo hostilizar, acusar. É interessante ainda observar que, na tradução grega, o vocábulo “satanás” é utilizado para designar adversários humanos, pois quando o adversário é um anjo mau, a palavra usada é “diábolos”. No latim, as duas palavras ficaram sinônimas, passando assim para o português. Essa explicação é necessária para compreendermos que, quando Jesus chamou Pedro de “satanás”, nada tem a ver com o demônio, o capeta, aquele ser horripilante que os artistas medievais pintaram com chifres e com rabo, segurando o tridente. Esse é o arquétipo comum na nossa cultura, por isso, é a primeira imagem que nos acode à mente diante dessa palavra. No entanto, essa explicação também não retira a dureza da repreensão de Cristo a Pedro: sai pra lá, inimigo meu, és um escândalo para mim... é mais ou menos nesse sentido que deve ser entendido o carão de Jesus.

Convém destacar também nesse contexto o sentido da palavra “escândalo”, que não tem semelhança com o significado comum em português. Em grego, a palavra original é “skandalou”, que significa cilada, obstáculo, traição. No sentido dos evangelhos, escândalo significa algo que faz fraquejar a fé, como se fosse um mau exemplo dado por alguém. Na tradução oficial da CNBB, essa palavra foi traduzida como “pedra de tropeço”, isto é, algo que impede de atingir o objetivo. Foi exatamente isso que Jesus sentiu quando Pedro disse: Deus te livre, Mestre, isso nunca vai te acontecer. Ora, nós sabemos que Jesus, enquanto homem, sofreu muito diante da perspectiva da paixão, porque enquanto Deus ele sabia de tudo o que iria acontecer, mas sendo homem, ele teria que sofrer de verdade tudo aquilo, isso o deixava angustiado. Foi por isso que ele chegou a dizer “Pai, afasta de mim esse cálice”, foi por isso que ele suou sangue no Horto das Oliveiras. Então, aquela intervenção de Pedro, com a melhor intenção de proteger o Mestre, funcionou para ele como um desestímulo sob o aspecto humano, de modo que a repreensão forte sobre Pedro foi também uma forma de demonstrar para os demais que não deveriam “se meter” naquele assunto. Jesus estava comunicando antecipadamente ao seu grupo de discípulos o que iria acontecer, mesmo que eles não entendessem aquilo, para que eles soubessem e não fossem apanhados de surpresa quando tudo acontecesse. Então, Jesus completou: tu (Pedro), dizes isso porque não pensas as coisas de Deus, mas pensas as coisas dos homens.

Vemos assim, meus amigos, claramente nessa fala de Jesus, a diferença entre ser escândalo e ser discípulo, entre ser satanás e ser fiel, entre ter pensamentos mundanos e ter pensamentos divinos. Ser satanás é ser escândalo, isto é, ser motivo de fraquejamento na fé das pessoas que nos conhecem. É quando as pessoas dizem assim: fulano(a) vive na Igreja, carrega um terço no pescoço, não perde uma missa e, no entanto, está ali tirando proveito ilícito de uma situação, está faltando com a caridade, está desfazendo com suas ações o discurso que faz com a boca. Precisamos sempre vigiar para que tais situações não aconteçam conosco, porque o mau exemplo praticado por uma pessoa que se declara, e todos conhecem, como “de dentro da Igreja” é muito mais prejudicial do que quando o mesmo comportamento é feito por uma pessoa que assim não se qualifica. É quando alguém se torna em escândalo para o próximo, ou pedra de tropeço para o irmão.

Na sequência desse ensinamento, Jesus pronuncia outra frase que nos foi dita muitas vezes, no período de formação: “quem quiser salvar a sua vida vai perdê-la; e quem perder a sua vida por causa de mim, vai encontrá-la”. Nessa frase, está descrito, com outras palavras, o mesmo tema da nossa reflexão. Pensar de acordo com o mundo é querer salvar a vida pelas aparências, isso vai acarretar a sua perda. Pensar diferente do mundo é, aparentemente, perder a vida, mas só assim o verdadeiro discípulo de Cristo vai encontrá-la. E a promessa de Cristo é bastante alentadora: “o Filho do Homem virá na glória do seu Pai, com os seus anjos, e então retribuirá a cada um de acordo com a sua conduta”. (Mt 16, 27).

***

domingo, 24 de agosto de 2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 21º DOMINGO COMUM - A LIDERANÇA NO SERVIÇO - 24.08.2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 21º DOMINGO COMUM – A LIDERANÇA NO SERVIÇO – 24.08.2014

Caros Confrades,

Neste 21º domingo comum, a liturgia coloca para nossa reflexão um tema importante e ao mesmo tempo polêmico, qual seja o da liderança de Pedro. Afinal, Jesus quis mesmo instituir Pedro como “chefe” da sua Ekklesia? Esse trecho de Mateus (16, 17-19) foi utilizado historicamente para fundamentar a teoria do primado de Pedro e, por via de consequência, a autoridade do Papa como “chefe” da Igreja universal. Mas será que Cristo, de fato, pretendeu isso? Ele que sempre ensinou e deu exemplo da liderança pelo serviço? Ele que sempre se recusou a ser considerado como chefe do seu grupo de discipulos? Ele sempre ensinou e insistiu: o que se julgar ser maior do que os outros seja aquele que serve mais, ou quem se julgar o maior, que seja o menor. A clareza na solução das discussões em torno desse tema é a chave para a re-união das Igrejas ocidental e oriental.

Temos na primeira leitura, retirada do livro de Isaías (22, 19-23), uma repreensão do Profeta contra Sobna, o administrador do palácio real no tempo do rei Ezequias. Este administrador desobedecera a ordem de Javeh, quando o exército da Assiria estava prestes a invadir Jerusalém. Javeh mandou que todos fizessem penitência, no entanto, Sobna mandou fazer banquetes para todos, dizendo: vamos comer hoje, porque amanhã iremos todos morrer. Ou seja, Sobna não apenas desobedeceu a Javeh como ainda duvidou do poder de Javeh contra os inimigos do povo, por isso o profeta Isaías foi avisá-lo de que ele seria destituído daquele cargo e, no seu lugar, assumiria Eliakim, filho de Helcias. Podemos associar a figura de Sobna à do administrador infiel. Ele desconheceu totalmente a autoridade em nome de quem exercia o poder e, com seu mau exemplo, transmitiu a desconfiança ao povo, levando os hebreus a duvidarem também do seu próprio rei Ezequias. Ao invés de exercer a liberança a serviço do povo, Sobna fazia na verdade um desserviço, por isso, Javeh irá substitui-lo por um outro administrador, como disse o Profeta: “eu o vestirei com a tua túnica e colocarei nele a tua faixa, porei em suas mãos a tua autoridade; ele será um pai para os habitantes de Jerusalém e para a casa de Judá.” (Is 22, 21) A liturgia utiliza esse episódio de Sobna para fazer o contraponto com o trecho do evangelho de Mateus, no qual Jesus vai instituir Pedro como a “pedra” fundamental da Igreja.

Na segunda leitura, um trecho em continuidade da Carta aos Romanos, que vem sendo lida já há vários domingos, o Apóstolo louva a riqueza, a sabedoria e a ciência divinas. Esse hino de louvor, da forma como está apresentado na liturgia, fica melhor entendido se for contextualizado. Nas linhas anteriores, Paulo está explicando aos Romanos que nós, pessoas humanas, estávamos iguais a ramos que foram cortados de uma oliveira e Cristo, com o seu sacrifício, nos reinseriu na árvore, dando-nos de novo a vida. Paulo lembra aos Romanos que os judeus se recusaram a ser reinseridos na oliveira, por causa da incredulidade deles, mas ele (Paulo) está convocando os gentios para aquele lugar recusado pelos judeus. Por isso, ele proclama: “Ó profundidade da riqueza, da sabedoria e da ciência de Deus! Como são inescrutáveis os seus juízos e impenetráveis os seus caminhos!” (11, 33) Paulo utiliza um argumento bem acessível e convincente, de modo a conseguir a adesão dos romanos cultos à doutrina cristã. Os romanos daquele tempo estavam muito influenciados pela filosofia grega, sobretudo pelo moralismo dos pós-socráticos e Paulo servia-se dessa situação para mostrar que o cristianismo era superior ao moralismo grego. E com isso ele conquistou numerosos adeptos entre os romanos, aqueles que se reuniam nas catacumbas para ouvir a pregação dele e receber o batismo.

Na leitura do evangelho de Mateus (16, 13-20), Jesus interroga seus discípulos sobre o que as pessoas falam a respeito d'Ele. “O que dizem os homens sobre o Filho do Homem?” As respostas são várias: João Batista ou Elias ou Jeremias, ou algum profeta que ressuscitou. Foi quando Pedro sintetizou: Tu és o Cristo de Deus. E Jesus advertiu os discípulos para que não espalhassem essa informação. Até aqui, o trecho do evangelho de Mateus (16, 13-17) é semelhante aos outros dois sinóticos: Marcos (8, 27-30) e Lucas (9, 18-21). O problema começa no versículo seguinte, que dá continuidade à fala de Jesus: tu és Pedro e sobre essa pedra edificarei a minha igreja e as forças do mal não prevalecerão contra ela. Sabe-se que pairam fortes suspeitas de que, durante a Idade Média, antes que fosse definido o cânon dos livros da Bíblia, certos trechos das escrituras tenham sido propositalmente “editados” de modo a servir de fundamento a algumas doutrinas que começaram a ser divulgadas. O fato de que os outros dois evangelhos terminam o seu relato na parte em que Pedro diz: Tu és o Cristo de Deus e somente o evangelho de Mateus contém aquela parte restante levanta sérias dúvidas de que esse trecho final teria sido uma inserção que não constava nos manuscritos originais, com o objetivo específico de dar um fundamento bíblico à autoridade de Pedro como “chefe” da Igreja. Tanto assim é que os Patriarcas das igrejas orientais não concordaram quando o Bispo de Roma se arvorou na autoridade de chefe acima da autoridade deles, levando até o cisma, que ainda hoje persiste. De fato, sabe-se que os evangelhos denominados de sinóticos são compilações de documentos mais antigos, manuscritos que circulavam nas primeiras comunidades cristãs formadas logo após a ressurreição de Cristo, por isso suas passagens guardam grande semelhança. Qual seria a explicação para esse trecho dos versículos 18 e 19 se encontrarem apenas na compilação de Mateus? Por que os outros dois evangelistas não citam isso? Não há resposta uniforme e clara para essas perguntas.

Não obstante isso, é importante deixar claro que essas são dúvidas acadêmicas e que há de ser prestigiado o texto oficial, que é reconhecido como autêntico. Mesmo assim, a situação está longe de ser pacificada, porque surge outra questão igualmente importante. Ainda que Pedro tenha sido formalmente indicado por Cristo para liderar o grupo dos apóstolos após a sua paixão, que ocorreria logo depois desses eventos, vem a outra dúvida séria: a autoridade dada a ele por Cristo era para ser o chefe mesmo, isto é, para ele ter um nível hierárquico superior aos demais?

A propósito dessa questão, trago aqui um trecho de um artigo do Cardeal Orani Tempesta, Arcebispo do Rio de Janeiro: “O Papa Emérito Bento XVI ensinou que: "A Cátedra de Pedro evoca outra recordação: a conhecida expressão de Santo Inácio de Antioquia que, na sua Carta aos Romanos, designa a Igreja de Roma como «aquela que preside à caridade» (Inscr.: PG 5, 801). Com efeito, o fato de presidir na fé está inseparavelmente ligado à presidência no amor. Uma fé sem amor deixaria de ser uma fé cristã autêntica. Mas as palavras de Santo Inácio contêm ainda outro aspecto, muito mais concreto: de fato, o termo «caridade» era usado pela Igreja primitiva para indicar também a Eucaristia. Efetivamente, a Eucaristia é Sacramentum caritatis Christi, por meio do qual Ele continua a atrair a Si todos nós, como fez do alto da cruz (cf. Jo 12, 32). Portanto, «presidir à caridade» signi-fica atrair os homens num abraço eucarístico – o abraço de Cristo – que supera toda a barreira e estranheza, criando a comunhão entre as múltiplas diferenças."(*) Ora, meus amigos, presidir na caridade significa estar a serviço. Foi justamente o que Cristo fez na última ceia, quando amarrou uma toalha na cintura e passou a lavar os pés dos apóstolos. E ainda disse: eu vos dei o exemplo para que façais o mesmo. “O maior de vocês deve ser aquele que serve.” (Mt 25,11) Infelizmente, a doutrina do primado de Pedro e dos seus sucessores no bispado de Roma não foi sempre tomada nesse sentido. Ao contrário, a autoridade romana se tornou símbolo de monarquia, de autoritarismo, de poder concentrado, isso durante muitos séculos. Pelo que eu conheço da história dos Papas, eu destacaria somente dois, os quais eu posso dizer que presidiram na caridade: o Papa João XXIII e o atual Papa Francisco. Todos os demais foram sempre supremas majestades, que exerciam autoridade política acima até dos governantes estatais, que usavam a tríplice coroa como símbolo dos poderes religioso, material e político. Certamente, não foi isso que Cristo transmitiu a Pedro e esse foi o grande motivo para a cisão das igrejas orientais, que não aceitaram a submissão ao Bispo de Roma.

Que o Divino Mestre inspire o Papa Francisco a presidir realmente na caridade e assim possamos ter novamente a união de todos os cristãos dentro da mesma comunidade.
******
(*) OBS: Para quem quiser ler o artigo completo de Dom Orani, é só seguir o link: http://www.cnbb.org.br/eventos-1/muticom/13641-a-catedra-de-pedro

domingo, 17 de agosto de 2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 20º DOMINGO COMUM - ASSUNÇÃO DE MARIA - 17.08.2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 20º DOMINGO COMUM – FESTA DA ASSUNÇÃO DE MARIA – 17.08.2014

Caros Confrades,

Outra vez, a liturgia dominical comum do vigésimo domingo cede espaço para a celebração da festa da Assunção de Maria, conforme a negociação dos feriados religiosos para o Brasil. Hoje, eu participei da missa de encerramento do novenário da Padroeira da Paróquia onde moro, Nossa Senhora da Glória, e o celebrante foi o Monsenhor Manfredo Ramos. No sermão, ele disse que estava presente na Praça de São Pedro, em Roma, no dia 1 de novembro de 1950, data da proclamação do dogma da Assunção de Maria ao céu. Disse que durante toda a semana anterior tinha havido muita chuva e frio, mas naquele dia, amanhecera com sol claro. E disse também uma informação que eu não sabia: esse dogma não é reconhecido pelas igrejas católicas orientais, que não usam o termo “assunção” de Maria, pois assim não acreditam, mas preferem a expressão “dormição” de Maria, porque ela aguarda pela ressurreição “no último dia”. São as variedades de crenças que brotam de uma mesma fonte bíblico-teológica. O dogma da Assunção foi proclamado com base em remota tradição, já que não consta na Bíblia, sendo esse um forte motivo para que outras igrejas cristãs não o aceitem.

A festa da Assunção de Maria também funciona como data de referência para outras denominações da Virgem, as quais não possuem uma data definida. Assim é que, nesta data, uma variedade de outras Nossas Senhoras tomam assento: além da Nossa Senhora da Assunção, designação própria da data, tem a Nossa Senhora da Glória, a Nossa Senhora dos Prazeres, a Nossa Senhora da Saúde, a Nossa Senhora da Palma, falando apenas de algumas que existem no território cearense. Provavelmente, em outros lugares do Brasil haja outras designações que eu não conheço. Esse fenômeno reflete a grande influência que o culto mariano tem na nossa cultura religiosa, tanto popular quanto erudita, herança deixada pelos colonizadores portugueses. Sem dúvida, há um acentuado exagero devocional a Nossa Senhora, que suplanta a figura principal da nossa fé religiosa, o Filho de Maria. Esse devocionismo excessivo se encontra também presente na atribuição dos nomes próprios das brasileiras. Nos dias atuais, essa tendência vem diminuindo progressivamente, mas seguramente mais da metade das mulheres brasileiras ainda tem alguma “maria” na composição do seu nome. Sem nenhum demérito para a Mãe de Deus, cuja participação no Mistério da Redenção é determinante e imensurável, mas o devocionismo a Maria e aos Santos em geral, marca do catolicismo brasileiro, constitui um desvio teológico de profundas raízes não apenas na mente popular, mas na grande maioria dos presbíteros.

Comentando um pouco as leituras da festa litúrgica da Assunção de Maria, temos na primeira leitura, um conhecido trecho do Apocalipse (12, 1-6), que narra a figura do dragão pronto para devorar o filho da mulher que estava prestes a nascer. As associações imediatas ai são mais do que óbvias: a mulher a Maria e o dragão ao demônio. Mas há outras hipóteses para a figura da mulher: a própria Igreja, ou o povo de Deus, ou ainda o povo de Israel. Assim como há outras hipóteses para o dragão de sete cabeças e dez chifres. Talvez seja a figura do império romano com suas autoridades perversas, levando perseguição ao cristianismo. A cauda do dragão era capaz de destruir a terça parte das estrelas do céu, significando o grande poder desses imperadores. Dado o grande conteúdo simbólico do livro do Apocalipse, são muitas as possibilidades de interpretação que as suas palavras permitem, de modo que cada crença busca uma forma de relacionar com suas próprias convicções. Eu tenho cá as minhas reservas sobre muitas dessas conclusões que já vi pessoas retirarem dali. Gramaticalmente, a palavra vem do grego apo-kalypsis, termo derivado do verbo kalyptô, que significa esconder, funcionando a preposição “apo” como uma negativa, portanto, algo que é retirado do esconderijo. Nas bíblias não católicas, o termo é traduzido por “revelação”, porém não se deve confundir o conceito teológico da revelação dada por Cristo sobre o Pai, o fundamento da nossa fé, com qualquer revelação. Talvez seja esse o motivo pelo qual a Bíblia católica não traduz a palavra, apenas a translitera. Na minha modesta opinião, não é este um livro que deva merecer a atenção dos fiéis em busca de “revelações” outras, visto que a única revelação, a única Palavra de Deus é o próprio Cristo e esta se encontra de modo admirável nos evangelhos. O Apocalipse é apenas um quebra-cabeças para  teólogos discutirem.

Na segunda leitura, da carta de Paulo aos Coríntios (1Cor 15, 20-27), temos aquela também famosa analogia que o Apóstolo faz entre Cristo e Adão, quando ela afirma que “por um homem” entrou o pecado no mundo e depois “por um homem” entrou a salvação. Essa figura retórica de Paulo já foi motivo de inúmeros e inconclusos debates entre os teólogos, de um lado, aqueles que defendem a doutrina científica da evolução das espécies e, de outro lado, os que defendem a teoria criacionista. Em meus recentes estudos de hebraico bíblico, aprendi que a palavra Adam (אדס) significa “homem”, pessoa humana, então não vale a pena discutir sobre o que essa analogia conceitual de Paulo possa significar. Além disso, as descobertas científicas não param de evidenciar que a criação divina continua com plena força na expansão do universo e na perene evolução dos seres vivos. Ao meu ver, a teoria criacionista é mero fruto do fundamentalismo bíblico e nada acrescenta à bagagem conteudista da nossa fé. Além do mais, seria irrazoável esperar que Paulo fosse capaz de pensar com categorias científicas que só passaram a ser definidas muitos séculos depois da morte dele. E o seu conceito mecanicisca de ressurreição, exposto nos versículos 23 e 24 deste capítulo 15 também merece ser atualizado, para uma melhor adequação com o pensamento teológico contemporâneo.

Temos, na leitura do evangelho de Lucas (1, 39-56), a narração da visita de Maria a sua prima Isabel, depois de ter sabido, pelo anjo, da gravidez desta. Este trecho contém o popular e belo cântico do Magnificat, que tantas vezes cantamos e em melodias diversas, correspondendo este à exaltação e ao agradecimento de Maria pela homenagem prestada a ela por Isabel, que recebeu ali a segunda revelação da chegada do Messias (a primeira revelação foi a do anjo a Maria). E a criança que pulou no ventre de Isabel, também por desígnio divino, seria o precursor de Jesus, aquele que iria aplainar as veredas, cumprindo o que profetizara Isaías. O evangelista Lucas, nesta narrativa, quis deixar bem clara essa relação entre a missão de João Batista e a profecia de Isaias acerca do Messias. Sendo um intelectual e tendo tido o privilégio de conviver com Maria, após a morte de Cristo, Lucas nos deixou preciosas informações e interessantes associações, enriquecendo de forma inteligente e apropriada as confidências que Maria lhe fizeram.

Convém lembrar que Zacarias, marido de Isabel, era o sacerdote em exercício naquele ano, e que ficara mudo misteriosamente, após duvidar da gravidez da mulher. Este fato é também digno de nota para demonstrar duas coisas importantes: primeiro, a relação direta familiar de Jesus com a classe sacerdotal do povo de Israel, embora José não pertencesse a essa classe; segundo, a instrução religiosa de João Batista, recebida do pai sacerdote. Não foi por acaso que ele foi escolhido para ser o anunciador do Messias e não foi por um milagre que ele veio a conhecer as escrituras, mas foi pela formação recebida. Igualmente, Maria também recebia instrução religiosa dos rabinos da sinagoga, de modo que o anúncio do anjo foi prontamente compreendido por ela. Ela apenas ficou embaraçada: por que eu? Mas quando o anjo disse que ela tinha sido agraciada por Deus, ela não teve dúvidas em aceitar: fiat mihi secundum verbum tuum (faça-se em mim segundo a tua palavra). E com toda certeza, Maria e José também colocaram o menino Jesus na escola bíblica daquele tempo, pois assim tinha sido a formação de ambos. É algo que faz falta nos dias de hoje, pois as nossas crianças e jovens não são estimuladas para o estudo da Bíblia, limitando-se a ouvirem “palestras” dos formadores paroquiais, os quais nem sempre possuem a desejável cultura religiosa que a função exige. Pelo menos é assim que eu observo nas diversas Paróquias, por ocasião do tirocínio preparatório das crianças e adolescente para a primeira eucaristia e para a crisma, respectivamente.

Meus amigos, que fique bem claro que eu não sou contrário à devoção a Nossa Senhora, ao inverso, eu creio que ela é digna de todo louvor e veneração, pela importância fundamental de sua vida no mistério da Redenção. O problema passa a existir quando, por um acentuado zelo em favor da devoção a Maria, se desvia a atenção dos fiéis do verdadeiro foco da nossa fé cristã, que é a pessoa de Cristo. Que Maria assunta inspire as nossas autoridades religiosas para reconhecerem e ensinarem a sua  correta devoção.
***

domingo, 10 de agosto de 2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 19º DOMINGO COMUM - A FÉ VACILANTE - 10.08.2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 19º DOMINGO COMUM – A FÉ VACILANTE – 10.08.2014

Caros Confrades,

A liturgia deste 19º domingo comum aborda dois extremos possíveis na nossa postura de fé: o apego exagerado à tradição, de um lado, e a fé vacilante, de outro. A primeira figura está no desabafo de Paulo, na carta aos Romanos, onde ele lamenta pela atitude rígida dos judeus, os legítimos herdeiros da promessa, que não reconheceram o Filho de Deus. A segunda figura está na fraqueza de Pedro diante do perigo, duvidando de si próprio e sucumbindo na sua vacilação. São duas situações para as quais precisamos estar atentos, porque facilmente elas nos atraem e nos iludem. A nossa fé deve estar num constante processo de crescimento e amadurecimento, superando todas as ameaças que a afligem.

Na primeira leitura, retirada do livro dos Reis (1Rs 19, 9-13), o autor sagrado nos ensina a reconhecer Deus nos acontecimentos, mostrando o exemplo do profeta Isaías. Ele subiu o monte Horeb, a fim de ter um encontro com Javeh, e pernoitava numa caverna, quando recebeu o aviso: espera lá fora, que o Senhor vai passar. Então, o profeta viu chegar um grande vendaval, mas não se abalou porque não viu o Senhor naquele vento; depois, veio um terremoto medonho, mas também não se aproximou porque não viu o Senhor no terremoto; depois, viu um fogo devastando as árvores, mas o Senhor também não estava no fogo; por fim, veio uma leve brisa, então, ele saiu para esperar a chegada de Javeh. O que devemos entender com isso? Que a ação de Deus acontece de forma suave, natural, sem alarde, mansamente. Deus não precisa fazer grande barulho para mostrar-se a nós, Ele não necessita de ser anunciado com toque de tambores ou som de cornetas, como faziam as autoridades daquele tempo, a fim de serem notados pela população. Deus age na nossa vida de forma quase imperceptível, nós precisamos estar atentos à sua presença na mais simples rotina, na mais costumeira tarefa. Isso me faz lembrar as atitudes espalhafatosas de alguns pregadores, sobretudo aqueles que aparecem nas igrejas eletrônicas, cujos canais enchem a lista das transmissões na TV aberta, caprichando nas mímicas e nos trejeitos, utilizando-se até de encenações pagas (isso já foi comprovado), com o intuito de auferirem maior credibilidade. A lição do Profeta está ali: Deus não está nesses eventos teatralizados, nesses terremotos psicológicos, nos anúncios fantasiosos. Deus está presente na simplicidade, na leveza do contato, na naturalidade do encontro pessoal. Quão proveitoso seria se todos os que buscam a Deus aprendessem a lição ensinada pelo profeta Isaías nessa leitura. Rapidamente, os ilusionistas da religião seriam desmascarados e os verdadeiros pregadores da Palavra seriam identificados.

A segunda leitura, dando continuidade à carta aos Romanos (Rm 9, 1-5), traz a queixa e o desabafo de Paulo em relação aos seus “irmãos de raça”, os judeus e mais ainda os fariseus, aquele grupo de judeus mais radicais e apegados às filigranas do texto da lei do que ao seu espírito de sabedoria. Diz ele: “Tenho no coração uma grande tristeza e uma dor contínua, a ponto de desejar ser eu mesmo segregado por Cristo em favor de meus irmãos, os de minha raça.” Paulo oferece a sua própria vida pela conversão dos judeus, para libertá-los daquele fechamento mental, que os impede de reconhecerem a verdade da Palavra de Deus humanizada em Jesus Cristo. “ A eles pertencem a filiação adotiva, a glória, as alianças, as leis, o culto, as promessas e também os patriarcas,” ou seja, eles são os chamados em primeiro lugar, os que deveriam estar na frente da fila, eles é que deveriam estar no trabalho de conversão dos gentios, no entanto, ao contrário, os gentios é que estão servindo de exemplo para eles, pela sua adesão à fé em Cristo, que eles renegam. E Paulo lamenta porque é um deles, foi educado como eles, sabe o que eles pensam, sabe o que eles esperam. Paulo pensava como eles e despertou para uma nova visão, daí a profunda dor que o Apóstolo sente pelo fato de seus irmãos de raça não serem também irmãos na fé cristã. A radicalidade da sua compreensão das escrituras impede que eles aceitem o evangelho. Eles são fiéis à sua tradição, sem dúvida, são cumpridores de suas obrigações religiosas, no entanto, fecham-se num casulo intransponível, criado por eles próprios, e ficam impossibilitados de ver os novos rumos para onde a religião caminha.

Meus amigos, esta fé enclausurada em si própria, nos dias de hoje, é ainda muito mais frequente do que se imagina. Diversos grupos se apegam ao tradicionalismo religioso e rejeitam sumariamente qualquer nova abordagem da fé. O medo da heresia, mais ainda, o medo de uma possível infidelidade e de um castigo por causa isso levam muitos católicos a refugiarem-se nas velhas práticas e nas antigas doutrinas, criando uma clausura mental de pseudo segurança, tal como os judeus ainda hoje fazem, em relação ao segundo mandamento. O receio de chamar o nome de Deus em vão é tão grave e patológico que, no lugar da palavra Javeh eles pronunciam Elohim, o Eterno, o Nome, mas não dizem Javeh, por causa da possibilidade de transgressão do segundo mandamento. Não devemos assimilar tal atitude. O nosso Deus é Amor, sua benevolência e compaixão são ilimitadas, não devemos criar obstáculos onde eles não existem. Lamentavelmente, existem em nossa Igreja clérigos e leigos submissos a essa idéia anacrônica de um Deus terrível, ameaçador, com o chicote permanentemente na mão pronto para castigar o fiel a qualquer deslize. No meu modo de entender, esses comportamentos podem ser identificados com a estreiteza religiosa dos antigos fariseus, que transformaram a lei de Moisés num conjunto de torturas físicas e mentais, que lhes obstruía o entendimento e a sensibilidade. Basta uma leitura mais atenta dos evangelhos para percebermos que não foi isso que Cristo nos ensinou.

No evangelho de Mateus (14, 22-33), vemos na imagem de Pedro a atitude oposta da fé petrificada em rígidos preceitos, isto é, a fé vacilante. Ao menor desafio, diante do menor obstáculo alguns cristãos sucumbem vítimas de suas próprias dúvidas. Se prestarmos atenção, podemos verificar na nossa própria vida situações em que agimos iguais a Pedro, vencidos pela insegurança e a incerteza daquilo em que cremos. Quando Jesus se identificou para os discípulos, andando em direção ao barco como se estivesse em terra firme, Pedro, na sua costumeira impetuosidade, disse logo: também quero fazer isso. E foi. Mas logo o vento forte se agitou contra o corpo dele e ele duvidou de si próprio. Sim, ele não duvidou de Jesus que lhe havia dito: vem! Ele duvidou da sua própria capacidade de realizar aquela tarefa extraordinária, que era pisar na água sem afundar. Era a sua fé que o mantinha flutuando. Quando ele pensou mais nos seus defeitos do que na força que Cristo havia lhe dado, então começou a afundar. Não foi a falta de fé em Cristo que se abateu sobre Pedro, mas ele duvidou de si mesmo, ele pensou que não seria capaz de fazer algo tão difícil, mesmo tendo recebido a ordem de Cristo: vem!

Meus amigos, esse comportamento de Pedro nos toca muito de perto, porque é muito possível que nós venhamos a padecer dessa mesma fraqueza, nos momentos em que somos desafiados. A fé cristã exige de nós certos compromissos que, às vezes, nós temos dúvida se poderemos levá-los adiante. O maior deles, talvez, seja o nosso compromisso de ser sal da terra e luz do mundo, isto é, de sermos exemplos para as outras pessoas. Não se acende uma luz para pô-la dentro do armário, nem se toma o sal para jogá-lo fora. Penso que nenhum de nós discorda disso e cada um se diz disposto a colocar em prática. Porém, quando somos desafiados numa situação concreta, muitas vezes agimos em desacordo com esse compromisso. Se eu critico os políticos corruptos (o que é muito comum, tanto uma coisa quanto outra, ou seja, a crítica e a corrupção), porém, eu cometo pequenos desvios de conduta social (por exemplo, avançar um sinal de trânsito, jogar papel no chão, deixar de pagar um tributo, tirar vantagem de uma situação em detrimento de alguém), fatos considerados banais para algumas pessoas, então eu estou fazendo igualmente a Pedro, isto é, estou fraquejando na minha fé, estou sendo incoerente na minha crítica aos que agem desonestamente. A nossa fé deve se manifestar não somente quando vamos à missa, quando rezamos o terço, quando pagamos o dízimo, quando ensinamos a reza aos nossos filhos, isso tudo é muito importante, sem dúvida. Contudo, mesmo nas ações mais corriqueiras do dia a dia, somos constantemente desafiados para darmos o exemplo da nossa fé e, nessas ocasiões, não podemos agir deste ou daquele modo justificando que “todo mundo faz assim”, porque o nosso compromisso de cristão é ser luz, e não sombra. Não é raro ouvirmos comentário do tipo: “fulano vive na igreja, no entanto, quando sai de lá...” Precisamos vigiar sempre, para não sucumbirmos a tal incoerência.

Deus quer de nós fidelidade sempre, não apenas no comparecimento da missa aos domingos e na participação dos sacramentos, não apenas em determinadas horas do dia ou em determinados dias da semana, mas a cada minuto de vida que Ele nos dá. Que o mergulho de Pedro nos sirva de alerta para nos mantermos firmes na nossa caminhada acima das águas turbulentas da sociedade.

***

domingo, 3 de agosto de 2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 18º DOMINGO COMUM - COMPAIXÃO E PARTILHA - 03.08.2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 18º DOMINGO COMUM – COMPAIXÃO E PARTILHA – 03.08.2014

Caros Confrades,

A liturgia do 18º domingo do tempo comum nos traz um eloquente exemplo de Cristo aos seus discípulos ensinando-os a solidariedade, que deve estar à frente do egoismo, realizando o milagre da partilha, através da multiplicação dos pães. Neste domingo, o Papa Francisco fez um sermão bem interessante, na sua missa matutina, o qual eu seguirei para ilustrar o presente comentário.

Temos, na primeira leitura, um trecho do livro do profeta Isaías (DeuteroIsaías – 55, 1-3), pelo qual o autor exorta os hebreus que estão no exílio, para que não percam a esperança de que eles terão dias de fartura e prosperidade, nos quais mesmo aqueles que não tiverem dinheiro poderão ter comida e bebida abundante e sem pagar. Sempre com muita precisão de detalhes, a profecia de Isaías antecipa ações que serão realizadas futuramente pelo Messias. Podemos ver, nessa imagem simbólica do Profeta aos hebreus cativos “vinde e comei, vinde comprar sem dinheiro, tomar vinho e leite, sem nenhuma paga” uma previsão dos diversos milagres de Cristo, através dos quais Ele propiciou alimento miraculoso aos que O seguiam e ouviam seus ensinamentos. O alimento abundante e gratuito objeto da descrição do profeta Isaías, é uma prefiguração da Eucarista, o pão da vida, que é muito mais vigoroso do que qualquer alimento que traz deleite e revigoramento para o corpo. O Profeta animava os cativos sem esperança, avisando-lhes de que a libertação estava próxima e uma nova vida os esperava, o que de fato aconteceu pouco tempo depois.

Apenas para lembrar aos leitores que os capítulos do livro de Isaías, a partir do cap 45, não foram escrito pelo próprio Profeta, mas por seus discípulos, após a morte daquele. Por isso, chama-se essa parte de DeuteroIsaías (o segundo Isaías). Chegou-se a essa conclusão porque nesses capítulos o texto se refere a acontecimentos sucedidos após a morte do Profeta e, portanto, não podem ter sido comentados por ele. Mesmo assim, a Igreja Católica e as demais instituições cristãs reconhecem a autenticidade desses capítulos como se fossem do próprio profeta Isaías, sem fazer diferença de conteúdo em relação aos capítulos anteriores.

Na segunda leitura, da carta aos Romanos (35, 37-39), o apóstolo Paulo exalta o amor de Cristo, que está acima e além de qualquer força terrena, por mais vigorosa que esta seja. Nem mesmo a morte ou os poderes celestiais podem afastar a intensidade com que Cristo nos amou. São Paulo pregou o evangelho em Roma numa época de grande academicismo, isto é, num tempo em que a influência da cultura grega era forte entre os romanos e o Apóstolo se dirigia à classe culta romana, na qual ele tinha muitos amigos e seguidores do cristianismo. Esses romanos ricos e poderosos muitas vezes ocultavam sua simpatia pela fé cristã, com receio de represálias por parte da sociedade pagã, sobretudo nos períodos de perseguição. Por isso, o apóstolo Paulo os exorta dizendo que nenhuma força, por mais poderosa que seja, poderá nos afastar do amor de Deus, que se manifestou para nós em Jesus Cristo. Nem a perseguição, nem o perigo, nem a espada, nem as tribulações, o amor de Cristo se coloca acima de tudo isso, perpassa todas as dificuldades.

Podemos encontrar um eco dessas palavras de Paulo no evangelho de Mateus (14, 13-21), quando ele diz que Jesus teve compaixão daquela multidão que estivera o dia inteiro a escutá-Lo. Diz o evangelista que Jesus “encheu-se de compaixão por eles e curou os que estavam doentes.” (v. 14) É importante fazer um esclarecimento da palavra “compaixão” nesse contexto, para não misturarmos com o sentido vulgar dessa palavra no nosso idioma, que significa ter pena, ter dó de alguém. No texto latino da vulgata, S. Jerônimo escreveu que Jesus “misertus est”, isto é, teve misericórdia, e no texto grego, o verbo é “eleeô”, que tem a mesma raiz da palavra “esmola” e significa compadecer-se, ajudar. Pois bem, a palavra “compaixão” vem do verbo “compadecer”, que pode ser desdobrado em “padecer+com”, ou seja, sofrer junto com alguém. Portanto, a palavra “compaixão” tem aqui o sentido de solidariedade, não é apenas ficar lastimando “oh, coitadinho”, mas é partilhar de verdade o sentimento de alguém. O Seráfico Papa, no seu sermão da missa de hoje, explicou assim o sentido dessa palavra: “compaixão - o que sente Jesus - não é simplesmente sentir pena; é mais! Significa com-patire, ou seja, identificar-se com o sofrimento dos outros, a ponto de sofrê-los também. Assim é Jesus: sofre conosco, sofre junto conosco, sofre por nós. E o sinal dessa compaixão são as muitas curas realizadas por ele. Jesus nos ensina a colocar as necessidades dos pobres antes das nossas. As nossas necessidades, embora legítimas, não serão nunca urgentes como aquelas dos pobres, que não têm o necessário para viver. ” Na verdade, o significado de compaixão é o oposto do egoísmo, do querer tudo para si. Ao contrário, é querer partilhar, não buscar a própria satisfação em primeiro lugar, mas buscar satisfazer-se em conjunto com o irmão necessitado.

A propósito da partilha, disse ainda o Papa: “É útil confrontar a reação dos discípulos diante das pessoas cansadas e famintas, com aquela de Jesus. São diferentes. Os discípulos pensaram que era melhor mandá-los embora, para que pudessem procurar alimento. Jesus, em vez disso, disse: dai-lhes vós mesmos de comer. Duas reações diferentes, que refletem duas lógicas opostas: os discípulos pensam de acordo com o mundo, onde cada um deve pensar em si mesmo; pensam como se dissessem: “Se virem sozinhos”. Jesus pensa com a lógica de Deus, que é aquela da partilha. Quantas vezes olhamos para o outro lado com o olhar de não ver os irmãos necessitados! E esse olhar para outro lado é um modo educado de dizer, com luvas brancas, “Se virem sozinhos”. E isso não é de Jesus: isso é egoísmo. Se tivesse mandado embora as multidões, muitas pessoas teriam ficado sem comer. Pelo contrário, aqueles poucos pães e peixes, compartilhados e abençoados por Deus, foram suficientes para todos. E atenção! Não é uma magia, é um “sinal”: um sinal que convida a ter fé em Deus, Pai providente, que não nos deixa faltar o “nosso pão de cada dia”, se nós o sabemos compartilhar como irmãos.” Achei simplesmente notável essa catequese papal e resolvi trazer para cá, porque talvez todos não tenham tido oportunidade de ler a homilia do Papa. Os discípulos, mesmo bem intencionados, pensam com a lógica do mundo: se virem para arranjar comida pra vocês. Jesus pensa com a lógica de Deus: deem vocês comida para essas pessoas. Como fazer isso? Ora, partilhando. É óbvio que um de nós isoladamente não pode fazer o milagre da partilha, isso vai depender da ação conjunta de todos. Cada cristão fazendo a sua parte, então teremos o milagre da partilha se tornando realidade no dia a dia da nossa sociedade.

Não precisa grande esforço mental para compreender que a figura dos pães e dos peixes partilhados com a multidão é uma prefiguração da eucaristia, o pão que alimenta toda a humanidade. O Papa também referiu-se à eucaristia no seu sermão: “o milagre dos pães anuncia a Eucaristia. Isto pode ser visto no gesto de Jesus que "recitou a bênção" (v. 19), antes de partir os pães e distribuí-los ao povo. É o mesmo gesto que fará Jesus na Última Ceia, quando vai instituir o memorial perpétuo do seu Sacrifício redentor. Na Eucaristia, Jesus não dá um pedaço de pão, mas o pão da vida eterna, dá a Si mesmo, oferecendo-se ao Pai por amor a nós. Mas nós temos que ir à Eucaristia com aqueles sentimentos de Jesus, ou seja, a compaixão e aquela vontade de compartilhar. Quem vai à Eucaristia sem ter compaixão dos necessitados e sem compartilhar, não se encontra bem com Jesus.” Diz o evangelista que eram cerca de cinco mil homens, afora mulheres e crianças, todos comeram e ficaram saciados e os pedaços que sobraram encheram ainda doze cestos. Vemos nesta cena uma concretização da profecia de Isaías (vinde e comei, vinde comprar sem dinheiro, tomar vinho e leite, sem nenhuma paga) referida acima. O Profeta estava prognosticando os tempos messiânicos, vividos por aquela multidão de seguidores de Cristo na Galiléia e, por extensão, por nós seguidores de Cristo nos dias atuais. A todos nós é dado o pão que alimenta e sacia de forma livre e gratuita, aliás, não é totalmente gratuito, o seu pagamento é o amor de Cristo para conosco, que custou muito caro, tem um preço inestimável, mas para nós é totalmente entregue, desde que nós tenhamos no coração essa mesma moeda: o amor.

E concluo tomando emprestadas novamente as palavras do Papa: “Compaixão, partilha, Eucaristia. Este é o caminho que Jesus nos mostra neste Evangelho. Um caminho que nos leva a encarar com fraternidade as necessidades deste mundo, mas que nos leva para além deste mundo”.

OBS: A homilia papal foi distribuída pelo serviço de notícias Zenit (www.zenit.org).
***