domingo, 29 de setembro de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 26º DOMINGO COMUM - RICOS E POBRES - 29.09.2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 26º DOMINGO COMUM – RICOS E POBRES – 29.09.2013

Caros Confrades,

A liturgia deste domingo dá sequência à temática do domingo anterior, quando foi abordado o tema da administração dos bens. No evangelho de hoje, Jesus conta a parábola do rico, que esbanjava com futilidades, e do pobre, que não tinha nem o básico. Jesus não manda o rico repartir os bens com o pobre, mas ensina que a riqueza deve estar a serviço dos mais necessitados.

A primeira leitura, retirada do Profeta Amós, carrega uma advertência que é muito apropriada para os dias atuais. Este profeta, que viveu cerca de 800 anos antes de Cristo, era um agricultor e pessoa de baixa instrução. Ele viveu numa época parecida com a nossa, quando havia muita concentração de riqueza nas mãos de uns poucos, enquanto a grande maioria da população sofria a falta dos bens essenciais. A diferença é que o governo de Israel não distribuía “bolsas” para melhorar a situação da pobreza e muitos chegaram a ser escravizados, por não terem como pagar as dívidas. Em tempos passados, e até mesmo num passado recente, a inadimplência podia levar o devedor a ser escravo do credor, o que era uma situação desesperadora. Daí a grave advertência do Profeta: “Os que dormem em camas de marfim, deitam-se em almofadas, comendo cordeiros do rebanho e novilhos do seu gado; os que cantam ao som das harpas, ou, como Davi, dedilham instrumentos musicais; os que bebem vinho em taças, e se perfumam com os mais finos ungüentos e não se preocupam com a ruína de José. ” (Amós 6, 4-6) O reino de Israel (naquela época, o povo hebreu estava dividido em dois reinos – Israel ao norte e Judá ao sul) passava por um momento de prosperidade, tendo vencido os inimigos e auferido grandes riquezas, no entanto, apenas alguns privilegiados usufruiam disso, em detrimento da maioria da população. Por isso, o Profeta dirige sua ira contra os que dormem em camas de marfim e deitam-se nas almofadas para se banquetear, sem tomar conhecimento da carência dos demais cidadãos. Vemos que Amós não condena a riqueza dos israelitas abastados, o que ele recrimina é a falta de solidariedade com os carentes, aqueles que estavam sendo escravizados por não poderem pagar suas dívidas. Sendo Amós um agricultor, ele conhecia bem a situação dos moradores dos campos. Deus o chamou a profetizar por causa da sua vida justa, mas também por causa do conhecimento que ele possuía sobre a situação dos mais necessitados. Porque sua pregação incomodava as autoridades políticas e religiosas, Amós foi expulso, não sem antes rogar uma praga no Sumo Sacerdote que o expulsara, além de anunciar a ruína que viria sobre eles.

Na segunda leitura, retirada da primeira carta de Paulo a Timóteo, o Apóstolo continua chamando a atenção do seu discípulo para manter a fidelidade da sua vocação. “Combate o bom combate da fé, conquista a vida eterna, para a qual foste chamado e pela qual fizeste tua nobre profissão de fé diante de muitas testemunhas.(1Tim 6, 12) E acrescenta: “guarda o teu mandato íntegro e sem mancha até à manifestação gloriosa de nosso Senhor Jesus Cristo.(vers. 14) Timóteo fora consagrado bispo por Paulo, para cuidar da igreja de Éfeso, que era uma comunidade muito tensa, por causa da grande força dos pagãos do lugar. Paulo tinha muito cuidado com essa comunidade e a entregou a Timóteo, que era uma pessoa da sua total confiança. Nas cartas, ele incentiva Timóteo a manter inabalável e a fé e a dar testemunho dessa fé aos fiéis sob sua guarda. Consta na história que Timóteo terminou sendo apedrejado por esses infiéis, por questões religiosas. Fiel a Paulo e a Cristo, ele morreu e não fraquejou na sua fé.

Temos no evangelho de Lucas (16, 19-31) aquela conhecida parábola de Cristo sobre o rico esbanjador e o pobre e pestilento mendigo, que ficava em frente à casa daquele. Como de costume, a parábola era dirigida aos fariseus e Jesus realça os detalhes, para chamar a atenção destes, que mesmo assim não entendiam. É interessante observar aqui duas coisas: 1. esta parábola consta apenas no evangelho de Lucas, devendo ter sido colhida numa fonte que os demais evangelistas não conheceram; 2. Jesus não diz o nome do rico, apenas do pobre (Lázaro). É costume mencionar-se o “rico epulão” e pode levar alguém a imaginar que este é o nome dele, no entanto, significa o “rico comilão”, palavra derivada do verbo latino “epulor”, que significa fazer refeições suntuosas, banquetear-se. São Jerônimo, na sua tradução da vulgada, escreveu que o rico se banqueteava diáriamente (dives epulabatur cotidie). Jesus faz um paralelo bem contrastante entre os dois personagens, para chamar a atenção na disparidade da situação em que se encontravam. Um deles possuía bens em demasia, enquanto o outro passava fome; o primeiro tinha uma casa luxuosa, o outro era um morador de rua; o primeiro era saudável, alimentava-se bem, já o outro era cheio de úlceras e esquelético de fome. A pedagogia dos contrastes, adotada por Jesus, tinha como objetivo chamar a atenção para a injustiça da riqueza que não é utilizada para atenuar o sofrimento do pobre. Tal como o profeta Amós, muitos séculos antes, Jesus não condenou o rico pelo fato de ele ser rico, mas sim por causa do seu egocentrismo, da sua falta de solidariedade. O pobre desejava pelo menos as migalhas que caíam da sua mesa, mas nem isso lhe davam. (Lc 16, 21) Na época de Jesus, os fariseus eram os ricos do povo, assim como no tempo de Amós, eram os sacerdotes de Israel que faziam parte da classe social mais elevada. Tal como Amós bradava contra o sacerdote Amasias, que terminou por expulsá-lo da cidade, Jesus clamava para que os sacerdotes judeus saíssem da sua redoma de autossuficiência e chegassem mais próximo do povo, que eles dirigiam, porém estes ficaram cada vez mais irados com Jesus, buscando meios de eliminá-lo. Tanto quanto a pregação de Amós incomodava o rei e os sacerdotes de Israel, também a exortação de Jesus incomodava os doutores da lei do seu tempo. Por fim, nem os ricos do tempo de Amós se converteram, nem tampouco os fariseus, e ambos tiveram como resultado a destruição da cidade pelos inimigos.

Merece uma referência também aqui neste contexto o diálogo “post mortem” de Abraão, junto de quem Lázaro foi morar, com o rico, que padecia no local dos tormentos. O rico fez dois pedidos, ambos recusados: 1. manda que Lázaro molhe o dedo e me refresque a língua; 2. manda que Lázaro vá avisar meus irmãos. Quanto ao primeiro pedido, Jesus disse ser impossível, porque há um grande abismo, intransponível entre eles; quanto ao segundo, Ele diz que os irmãos do rico não acreditariam em Lázaro. Aqui nós podemos fazer as seguintes reflexões: a) o rico não cedeu suas migalhas ao pobre, no entanto, queria que este fosse refrescar a sua língua com uma gota d'água, ele se sentia merecedor, sem ter alcançado o mérito com suas ações. b) o rico demonstrou solidariedade com os irmãos dele e queria que Lázaro fosse avisá-los, porém não teve solidariedade com o mendigo em sua porta; c) os fariseus, assim como aquele rico, não davam ouvidos aos profetas e às escrituras, mas criavam suas próprias regras religiosas, enquanto Jesus estava ali (como se fosse o pobre que veio avisar) e eles não lhe davam qualquer crédito; d) o lugar dos tormentos não é um mar de fogo com o demônio empunhando um tridente, como aparece nas gravuras medievais, mas era a própria consciência do rico que reprovava o seu comportamento anterior, quando enfim percebeu as injustiças que praticara.

Podemos ainda avançar nessa linha de raciocínio, para concluir o seguinte: Jesus disse que havia um grande abismo entre o local do gozo e o local dos tormentos, mas quanto o rico pediu para que Lázaro fosse avisar aos irmãos ainda vivos, Jesus não disse que isso era impossível, disse apenas que eles não iriam acreditar. Esticando um pouco essa interpretação, podemos alvitrar que Jesus não se posicionou contrariamente à possibilidade de comunicação entre as pessoas que estão no mundo do além com os viventes, apenas referiu-se à incredulidade destes. “`Se não escutam a Moisés, nem aos Profetas, eles não acreditarão, mesmo que alguém ressuscite dos mortos'.(Lc 16, 31) A ausência de outra versão desta parábola em outro evangelista impossibilita que se faça um estudo comparativo de textos, assim como ocorre com outras passagens do evangelho. Considerando que Lucas não escutou as pregações de Jesus, não se pode dizer que ele tenha ouvido isso. Considerando, por outro lado, que os evangelistas escreveram com base em documentos da época (as fontes esparsas), fica impossível afirmar-se com certeza que tenha sido esta a mensagem de Cristo ou se foi o entendimento da comunidade onde o texto original foi produzido. De qualquer forma, podemos concluir que, para as primeiras comunidades cristãs, não havia recusa dessa possibilidade de comunicação com o outro mundo, como posteriormente passou a ser afirmado pela doutrina teológica.

A lição que retiramos da catequese deste domingo é similar à do domingo passado: o uso responsável e caritativo dos bens que Deus nos dá. Que Ele nos inspire a pautar nossas ações na fidelidade a este compromisso.


domingo, 22 de setembro de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 25º DOMINGO COMUM - BONS E MAUS ADMINISTRADORES - 22.09.2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 25º DOMINGO COMUM – BONS E MAUS ADMINISTRADORES – 22.09.2013

Caros Confrades:

As leituras selecionadas para a liturgia deste 25º domingo comum colocam para a nossa reflexão um tema muito atual e preocupante: a honestidade dos administradores, daqueles que dirigem a sociedade. Em tempo de mensalão, de protestos e de constante presença na mídia, a probidade dos administradores nunca tinha sido tão discutida e vigiada na na sociedade brasileira. E não apenas na esfera pública, mas também na atividade privada, saber administrar os bens materiais é um critério para reconhecimento do verdadeiro cristão.

Na primeira leitura, retirada do livro do Profeta Amós, observa-se o puxão de orelhas que ele faz com aqueles que oprimem os pobres com o dinheiro, diminuindo medidas, aumentando o preço, fraudando balanças. Tudo isso para vender a mercadoria por um melhor preço e assim obter maiores lucros. Lembremo-nos de que, naquele tempo, ainda não havia o capitalismo nem o comunismo, nem a economia de mercado nem a globalização, mas o sistema comercial arcaico, fundado em grande parte na prática do escambo. O dinheiro circulante ainda era escasso e compunha-se de moedas do verdadeiro metal (ouro, prata, cobre), ou seja, com valor real e não apenas simbólico, como se tornou a partir do mercantilismo, no século XVI. De todo modo, já se praticavam técnicas reprováveis de fraudar balanças, diminuir medidas, inflacionar o preço para conseguir lucrar sempre mais. Lembremo-nos também de que, desde essa época, a cobrança de juros, denominada de usura, era considerada injusta e Cristo também reprovou isso, o que continuou mais tarde no cristianismo medieval, quando essa prática era proibida de ser feita pelos cristãos. Portanto, desde os tempos do Profeta Amós, cerca de 800 anos antes de Cristo, a cobiça dos governantes já era alvo de reprovação pelos arautos de Javeh. Mesmo entre os romanos, que não seguiam a tradição hebraica e antes do cristianismo, a cobrança de juros só era lícita nos negócios com estrangeiros, sendo proibida quando as transações ocorriam entre cidadãos. No livro de Amós, o profeta condena a injustiça social e a exploração gananciosa dos mais humildes. Fazendo-se as contas, podemos avaliar há quanto tempo esse tipo de prática vem sendo condenada e apesar disso nunca deixou de ser repetida.

Na segunda leitura, retirada da carta de Paulo a Timóteo, o Apóstolo exorta à comunidade para que reze pelos administradores, pelos governantes, pelos que ocupam altos cargos, pois Deus quer que todos sejam salvos. Verifica-se, nas entrelinhas das palavras de Paulo, que os administradores públicos eram tidos por pessoas inescrupulosas, cuja ação não era agradável a Deus, daí porque era necessário orar por eles, para que cheguem ao conhecimento da verdade e sejam salvos. A preocupação de Paulo com os dirigentes da comunidade se faz sentir na necessidade de que os cristãos que ocupam cargos elevados devem dar exemplo aos não cristãos, para que a sua virtude seja imitada por estes. E para que isso aconteça, é importante a oração da comunidade em seu apoio. Naquela antiga oração que rezávamos após a bênção do Santíssimo Sacramento, tinha um trecho que dizia assim, depois de orar pelo Papa, pelos Bispos, pelos administradores eclesiásticos: rezemos por todas as pessoas constituídas em dignidade, para que governem com justiça. E os vários documentos expedidos pelo Magistério da Igreja ao longo dos últimos séculos, desde o Papa Leão XIII, com a encíclica Rerum Novarum, tem dado continuidade a essa missão iniciada por Paulo no sentido de orientar os governantes no caminho da verdadeira justiça social. O Papa Paulo VI, na encíclica Populorum Progressio (1967) escreveu uma frase emblemática sobre a situação econômica do final do século XX: o desenvolvimento é o novo nome da paz. A situação das nações em relação ao desenvolvimento de cada uma é o mecanismo de equilíbrio para a manutenção da paz mundial. De um modo indireto, isso quer dizer que a consciência dos administradores públicos, sobretudo dos países mais ricos, será determinante para que todas as nações vivam em paz. E podemos ver diariamente isso, na prática, e constatar o quanto o Papa estava com a razão.

No evangelho de Lucas, lemos hoje a conhecida parábola do administrador infiel. Esta parábola contém um forte paradoxo, pois ao mesmo tempo em que Cristo elogia o comportamento do administrador inescrupuloso, Ele está querendo nos dizer: não façam assim. No tempo de Cristo, a
parábola se dirigia, como na maioria das vezes, aos fariseus e aos chefes do povo, que agiam de forma perdulária e opressora, transformando a religião judaica num emaranhado de regras e proibições, em que a prática exterior da religião era mais valorizada do que a intencionalidade do crente. No evangelho de Mateus (cap 23), Cristo faz essa mesma advertência com outras palavras, dizendo que os fariseus atam pesadas cargas e as colocam nos ombros do povo, enquanto eles mesmos não ajudam nem com o dedo para aliviar o peso. Noutro contexto, vemos repetida aí a mesma reprovação feita pelo Profeta Amós contra os administradores do tempo dele. E podemos encontrar semelhante atitude de reprovação no episódio em que Jesus expulsa do templo aqueles que vendiam rolinhas e carneiros para o sacrifício, chicoteando-os e quebrando suas bancas. Vós não podeis servir a Deus e ao dinheiro, diz o evangelista Lucas (16, 13).

Apesar dessa atitude de reprovação, Jesus utiliza o argumento do raciocínio inverso para elogiar o mau administrador, destacando a sua criatividade e inteligência: os filhos das trevas são mais hábeis nos seus negócios do que os filhos da luz (Lc 16, 8). E diz mais: usai o dinheiro injusto para fazer o bem... pois se não fordes fiéis no uso do dinheiro injusto, quem vos confiará o verdadeiro bem? (Lc 16, 9-11). Jesus está contrapondo as coisas da terra (dinheiro injusto) com as coisas do céu (verdadeiro bem). Aquele que possui bens materiais e/ou desfruta de poder social tem em mãos um 'dinheiro injusto', porque toda acumulação de bens nas mãos de alguém é resultado da falta daqueles bens nas mãos de outrem. Contudo, isso não é de todo mau, desde que a administração desses bens injustos esteja voltada para a satisfação das necessidades dos irmãos carentes. Este é o grande desafio que se põe para o cristão que administra bens particulares ou públicos. Jesus sabia que a sociedade sempre seria desigual, quando ele disse em João (12, 8): pobres sempre tereis entre vós. Ele sabia que nem a continuidade da sua doutrina iria acabar com as desigualdades sociais entre as pessoas e que isso não seria empecilho para que os cristãos tivessem em suas mãos a responsabilidade de administrar bens materiais. Daí Ele diz em Lucas (16, 8) que o dono do negócio elogiou a esperteza do seu administrador. Deus quer que nós tenhamos essa mesma esperteza não para sermos maus administradores, mas para que saibamos, mesmo quando temos em mãos o dinheiro injusto, utilizá-lo com sabedoria e disponibilizá-lo em benefício dos pobres da comunidade.

A advertência de que “ninguém pode servir a Deus e ao dinheiro” não significa que existe uma incompatibilidade absoluta entre amar a Deus e administrar bens materiais, mas sim que o amor a Deus não pode competir com o amor desses bens, ou seja, o amor a Deus não pode ter concorrência. Vemos aqui a lição do desapego ou da pobreza de espírito, a que Jesus se refere no Sermão da Montanha. A propriedade e a administração de bens materiais não deve nos desviar do amor a Deus, mas sim fazer-nos amá-lo ainda mais e isso ocorre quando os bens possuídos são postos a serviço da caridade e do amor ao próximo. Aquele cujo Deus é a riqueza ou o poder, este sim estará desvirtuando os bens recebidos e colocando-os a serviço do próprio egoísmo, tal como fez o mau administrador. Podemos dizer, em resumo, que a diferença entre o bom e o mau administrador está sintetizada naquele critério que Jesus já ensinara aos apóstolos e a todos nós, através da palavra do evangelista Mateus (6, 21): porque onde estiver o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração. Se o nosso tesouro estiver em Deus, o nosso coração não se apegará ao dinheiro injusto, mas nós saberemos utilizá-lo e administrá-lo para fazer amigos que nos receberão, depois, na morada eterna.

Que assim saibamos compreender a esperteza dos filhos deste mundo para conseguirmos colocá-la em prática no exercício da nossa fé.


domingo, 15 de setembro de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 24º DOMINGO COMUM - A LÓGICA DE DEUS - 15.09.2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 24º DOMINGO COMUM – A LÓGICA DE DEUS – 15.09.2013

Caros Confrades,

Na liturgia deste domingo, aqui na Paróquia da Glória, todas as celebrações foram voltadas para o tema do dízimo, como forma de incentivar os fiéis a participarem da contribuição para a manutenção do culto e das atividades assistenciais prestadas. Esta prática milenar dentro da Igreja passou tempos desativada, sendo substituída pela fórmula das espórtulas, como se as pessoas estivessem pagando pelos sacramentos. Sabemos o quanto isso já provocou terríveis questões históricas. As paróquias agora estão tentando tornar-se autossuficientes com a contribuição genérica dos fiéis, ao invés daquele “pagamento” por serviços prestados. O Pároco afirmou que nesta Paróquia assim acontece.

Nas leituras do 24º domingo comum, sobressai o tema da misericórdia divina. O discurso do Papa aos peregrinos em Roma, na oração do ângelus deste domingo, concentrou-se nesse assunto, afirmando ele que a alegria de Deus é perdoar. Isso me fez lembrar daquele oráculo do profeta Isaías, quando disse sobre Javeh que “os meus pensamentos não são os vossos pensamentos” (Is 55, 8), querendo dizer que a lógica de Deus é diferente da nossa. Para nós, seres humanos, perdoar nunca é uma alegria, ao contrário, o perdão é uma atitude dolorosa, que mesmo quando é exercitada, deixa uma sensação estranha de que algo está faltando. Precisamos evoluir muito para compreender essa lógica do perdão e mais ainda para conseguirmos pô-la na prática.

Na primeira leitura, do livro do Exodo (32, 7), Javeh se enfurece com os hebreus, que O substituiram por um bezerro de ouro e, na sua ira, quer exterminar o povo, mas recua dessa pretensão ante as ponderações de Moisés. Se observarmos bem, temos aí dois comportamentos bem curiosos e atípicos. De um lado, a figura de um Javeh irado e violento, bem diferente do Pai que Jesus veio revelar na sua pregação. Para os hebreus, Javeh aparecia sempre como um chefe raivoso, com o chicote na mão, mas mesmo assim, o povo não evitava desobedecê-lo, era preciso que os profetas estivessem, a todo momento, recordando a promessa e o compromisso. Mas, por outro lado, Javeh aparece também como manso e compassivo, dando ouvidos aos argumentos de Moisés. Chega a ser um comportamento contraditório, pois Javeh, o todo poderoso, acima do qual não existe nenhum, no entanto, amolece diante de um subordinado. É uma lógica totalmente diferente da nossa, como bem explicou o profeta Isaías.

Na segunda leitura, da carta a Timóteo (1, 12), Paulo se penitencia por ter sido perseguidor da Igreja e agradece a misericórdia de Cristo, que o escolheu para aquela missão. E diz: eu encontrei misericórdia porque agia com a ignorância de quem não tem fé, para em seguida se classificar como o pior de todos os pecadores, aquele que está na cabeceira da fila. Do mesmo modo como Javeh, no Antigo Testamento, teve misericórdia para com o povo pecador, Cristo teve misericórdia para com ele, Paulo, para demonstrar a grandeza do Seu coração. Paulo tenta explicar, com outras palavras, a mesma lição de Isaías acerca dos pensamentos de Deus, que não seguem a lógica humana.

Porém, o exemplo mais perfeito dessa lógica diferenciada está no evangelho de Lucas (15, 1-32), em especial naquela conhecida história do filho esbanjador. Os fariseus eram os tais que não conseguiam entender o comportamento de Jesus, totalmente diferente da lógica deles. Como é que Jesus, sendo filho de Deus (como se auto apresentava), ia reunir-se com os publicanos e pecadores? Dentro da compreensão judaica, publicanos e prostitutas eram pecadores públicos, ou seja, todo mundo peca, mas faz isso sigilosamente, de modo que as outras pessoas não ficam sabendo. Mas os publicanos e as prostitutas fazem isso abertamente, sem se incomodar que os outros saibam disso. As prostitutas, pela prática aberta da sexualidade, que sempre foi um tabu entre os hebreus e até o cristianismo, por muito tempo, também ensinava que o sexo existia apenas para a finalidade procriativa, não com finalidade recreativa. Os publicanos, pela natureza do seu ofício de cobrador de impostos, eram pessoas reconhecidamente corruptas, mesmo aqueles que não recebiam propinas mas arrecadavam apenas o percentual regular, porque eles tiravam o dinheiro do povo hebreu para beneficiar o invasor romano. Só isso já era o suficiente para eles serem considerados pecadores públicos. Para os judeus, o ato de tocar fisicamente nessas pessoas os deixava impuros, era necessário fazer as abluções rituais, a fim de purificarem-se. O simples fato de estar com essas pessoas no mesmo ambiente físico, mesmo que involuntariamente, era também causa de impureza, havendo a necessidade das abluções purificadoras. Apesar disso, Jesus se reunia com esse povo, comia com eles, conversava sem qualquer cerimônia, os fariseus não entendiam como é que alguém, que se dizia cumpridor da lei, agisse assim. Sabendo do que se passava nos seus pensamentos, Jesus passou a contar as parábolas conhecidas como “da misericórdia”, que relatam a alegria pela recuperação de algo perdido (a ovelha, a moeda) ou de alguém que havia se perdido (o filho inconsequente). Jesus estava dizendo claramente para eles que o filho obediente, que se considerava justo e cumpridor dos deveres, eram eles próprios, os fariseus. Mas isso era muito difícil para eles compreenderem, e assim como aconteceu com eles, muitas vezes também os nossos pensamentos se embotam e nos impedem de descobrir o verdadeiro sentido das ações de Deus na nossa vida.

Pois bem. Não irei repetir aqui a história do filho aventureiro, porque todos a conhecem bem. Quero concentrar-me no diálogo entre o pai e o filho resmungão, porque encontramos ali dois padrões de pensamento completamente antagônicos. O filho mais velho não gostou nada daquela festa e passou na cara do pai: Tu nunca me deste nem um cabrito para eu festejar com meus amigos. Quando chegou esse teu filho, que esbanjou teus bens com prostitutas, matas para ele o novilho cevado'.” Vejam bem: ele não disse “quando chegou esse meu irmão”, disse “esse teu filho”, ou seja, não reconhecia aquele viajante como seu irmão, da mesma forma como os fariseus não reconheciam os publicanos e pecadores como irmãos deles. Mas o pai, em suprema compreensibilidade, não recriminou a raiva do filho mais velho e lhe respondeu: “era preciso festejar e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto e tornou a viver; estava perdido, e foi encontrado'.” Por outras palavras: foi o teu irmão que retornou, isso já é motivo bastante para alegria.

Se nós observarmos pelo aspecto da lógica humana, o pai estava sendo injusto, porque afinal o filho mais novo havia recebido a parte dele na herança e, teoricamente, havia renunciado a tudo mais. Do ponto de vista estritamente jurídico, ele não tinha mais direito a nada da parte do pai. Foi nesse sentido o raciocínio do irmão mais velho: ele já recebeu a parte dele e ainda voltou pra levar mais, aquela parte que me pertence, eu estou sendo injustiçado. Era mais ou menos assim que os fariseus se sentiam, em relação aos pecadores (pois fariseus não eram pecadores, e sim observantes da lei). Esses pecadores se refestelam com coisas que eles (fariseus) renunciam em nome da lei, beneficiam-se das coisas erradas e depois vêm querer se beneficiar também das promessas contidas na lei, que eles não cumprem.

Se observarmos agora pelo aspecto da lógica daquele pai misericordioso, a totalidade dos bens materiais passou a ter um valor insignificante diante do arrependimento do filho pecador. A parcela dos bens que ele recebeu e esbanjou não tem comparação com o seu reencontro, com a mudança que se operou na sua personalidade. É uma mensagem semelhante àquela que está também em Lucas (7, 6), a respeito da pecadora que beijava os pés de Jesus na casa de outro fariseu: muito lhe foi perdoado porque muito amou. Aqui nos lembramos do discurso do Papa aos peregrinos: a alegria de Deus é perdoar. Para aquele pai que recuperou o filho, a alegria do seu retorno é infinitamente superior ao valor material dos bens que ele desperdiçou. O fato de ele ter retornado já demonstra o grau de arrependimento e de amor que lhe passava na alma. “Eu não sou digno de ser chamado de teu filho, trata-me como um de teus empregados...”, que conversa mais besta, pensou o pai, o teu retorno é o que de fato interessa.

Meus amigos, precisamos nos acautelar para não fazermos igual aos fariseus, quando estamos em situação de aparente superioridade em relação a alguém. Não devemos repetir como o filho mal criado “esse teu filho”, mas devemos imitar a resposta do pai “esse teu irmão”... O irmão necessitado que nos procura deve ser para nós motivo de alegria, pela oportunidade que temos de praticar o bem.


domingo, 8 de setembro de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 23º DOMINGO COMUM - RENÚNCIA RADICAL - 08.09.2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 23º DOMINGO COMUM – RENÚNCIA RADICAL – 08.09.2013

Caros Confrades,

Neste 23º domingo comum, o tema do evangelho se concentra na renúncia radical que deve ser a atitude de quem quer ser seguidor de Cristo, mostrando uma certa relação com a primeira das bem aventuranças proferidas no Sermão da Montanha: felizes os pobres de espírito. No caso, a renúncia não abrange apenas os bens materiais, mas tudo aquilo que, de alguma maneira, impede ou dificulta a nossa opção cristã, inclusive as relações familiares. Antes, porém, de fazer outras considerações sobre este assunto, eu gostaria de destacar pontos que achei interessantes nas outras leituras.

Na primeira leitura, retirada do livro da Sabedoria (9, 13-18), uma frase me chamou a atenção por causa da sua semelhança com a doutrina da reencarnação, que é rejeitada pelo cristianismo. No versículo 15 do cap 9, temos: “porque o corpo corruptível torna pesada a alma e, tenda de argila, oprime a mente que pensa.” A imagem do corpo como “tenda de argila que oprime a alma” faz lembrar a doutrina de Platão acerca da rivalidade entre corpo e espírito, doutrina esta que é inspirada na tradição dos órficos gregos, os quais eram um grupo de adeptos da metempsicose, que acreditava na preservação dos espíritos das pessoas após a morte, sendo possível comunicar-se com eles. Para tanto, eles faziam sessões em que invocavam esses espíritos, sendo essa a origem da doutrina reelaborada por Alan Kardec, criador do moderno espiritismo. Vale lembrar que Santo Agostinho, de início, tinha simpatia por essa teoria platônica, mas ele observou que era incompatível com o cristianismo, abandonando-a. De outro lado, a teologia medieval, através de St. Tomás de Aquino, preferiu a teoria de Aristóteles, porém visto que Aristóteles era materialista e não acreditava na continuidade da vida após a morte, St. Tomás precisou fazer algumas correções, aproveitando e adaptando a doutrina aristotélica. Na época contemporânea, com a influência da filosofia fenomenológica, tanto a teoria de Platão quanto a de Aristóteles ficaram superadas com o conceito da subjetividade intencional, que procura unir corpo e espírito como uma realidade integrada, de modo que não se cogita mais em separação entre corpo e espírito. Não é este espaço apropriado para desenvolver essa problemática com maiores detalhes, por isso sugiro aos Colegas que tenham interesse no tema que façam leituras sobre a fenomenologia de Husserl. Por ora, o que eu gostaria de salientar é que essa frase, no contexto do livro da Sabedoria, ao referir-se à narração da criação do homem, contida no Gênesis, vai além da própria narrativa e tira ilações que, no meu entendimento, deixam uma ideia de ambiguidade na relação corpo-mente, que abre brechas para interpretações de outras crenças. Isso, visto de outro modo, demonstra também que é possível um espiritismo cristão, o que oficialmente não é reconhecido pela teologia católica.

Na segunda leitura, da carta de Paulo a Filêmon (9-17), o Apóstolo destaca a doutrina da reconciliação como uma atitude decorrente do ideal do cristianismo. Nesta carta, encontramos três personagens em situações bastante diferentes: o apóstolo Paulo levando adiante a sua pregação do evangelho, o amigo dele Filêmon, um cristão rico que morava na cidade de Colosso e tinha uma igreja funcionando na sua própria casa, e o (ex) escravo Onésimo, que é o portador da carta. Paulo deixa entender, nas entrelinhas, que Onésimo tinha sido escravo de Filêmon e estava fugido em Roma, onde o encontrou, provavelmente Onésimo teria confessado a Paulo que furtara alguma coisa do patrão ou havia causado um prejuízo a ele, tendo sido este o motivo da sua fuga. O fato é que Paulo encontrou Onésimo em Roma na prisão, onde ambos estavam enclausurados, e este aceitou o batismo, após a catequese de Paulo. Vindo a saber do fato ilícito praticado por Onésimo, que havia se convertido e se arrependera, Paulo fez questão de “devolver” Onésimo ao seu antigo patrão, não para que ele retornasse à condição de escravo, mas dando seu aval ao amigo Filêmon da conversão de Onésimo e da sua nova condição de irmão na fé, a fim de que o ex-patrão o recebesse na sua casa como se fosse o próprio Paulo, reforçando desse modo aquela comunidade eclesial que Paulo bem conhecia. Ao pedir a Filêmon que aceitasse Onésimo como se fosse ele próprio (Paulo), estava solicitando a ele uma dupla atitude: primeiro, que perdoasse o mal feito do seu ex-escravo e, mais do que isso, que o aceitasse como irmão na fé, recomendado pelo Apóstolo para trabalhar com ele na comunidade. O texto da carta demonstra o cuidado de Paulo na redação, para que Filêmon entendesse bem o seu pedido e demonstra mais a grande confiança que Paulo depositava nele, porque era um pedido muito delicado. Vejamos o que Paulo diz no vers. 14: “eu não quis fazer nada sem o teu parecer, para que a tua bondade não seja forçada, mas espontânea. ” E mais adiante, no vers. 17: “se estás em comunhão de fé comigo, recebe-o como se fosse a mim mesmo. ” A carta desenvolve a teologia do perdão e da reconciliação que cada um de nós deve ter para com o irmão que peca, assim como Deus tem para conosco, quando pecamos. Por certo, Filêmon concordou com Paulo e fez conforme a recomendação deste.

A leitura do evangelho, retirada de Lucas (14, 25-33), enfoca a renúncia radical que deve fazer o cristão. No texto original latino, a exigência de Cristo é bem mais forte do que na tradução da CNBB. Diz assim: “si quis venit ad me et non odit patrem suum et matrem et uxorem...”, ou seja, se alguém vem a mim e não odeia seu pai, mãe, esposa... a tradução de São Jerônimo é literal do verbo grego “miseô”, que significa odiar, detestar. Porém, segundo o Monsenhor Manfredo, no sermão da missa de hoje, o sentido original desta palavra na cultura hebraica é de “amar mais”, ou seja, se alguém amar mais seu pai, sua mãe, sua esposa … do que a mim... Daí porque a tradução da CNBB para a frase citada é “se alguém vem a mim, mas não se desapega do seu pai, sua mãe, sua esposa...” Neste caso, o texto da CNBB está mais conforme o sentido da exigência de Cristo aos seus seguidores, ou seja, não significa literalmente “odiar” o pai, a mãe, a esposa, os irmãos, os filhos, mas dedicar maior amor aos familiares do que a Ele próprio. Aqui está o significado da “renúncia radical” que Ele quer de nós. Não quer dizer que devemos rejeitar, detestar os familiares, mas sim que o amor que dedicamos a estes deve ser fruto do amor primordial a Cristo, amar os familiares no amor de Cristo, com o amor de Cristo. No vers. 33, tem aquela frase que muitas vezes nos era passada nas conferências: quem não renunciar a tudo que tem não pode ser meu discípulo. Só que essa exigência era-nos transmitida no sentido literal mesmo, de não se poder ter nem uma roupa para vestir ou uma sandália para calçar. Foi nesse sentido literal que o Seráfico Francisco entendeu a mensagem de Cristo a ele: reconstrói a minha Igreja. Era esse o padrão interpretativo clássico para os textos sagrados. Porém, num entendimento mais humanizado, atualmente a interpretação dessa exigência de Cristo se desloca mais para o sentido espiritual do desapego interior, na linha de pensamento da pobreza de espírito.

Foi com esse sentido que eu coloquei aqui neste comentário a palavra “radical”, não naquele sentido habitual e popular do exagero, do extremismo. É comum dizer-se que alguém é radical quando a pessoa não abre mão de suas opiniões e atitudes extravagantes. Mas não é disso que se cogita. A palavra “radical” aqui deve ser entendida no seu componente etimológico do termo latino “radix”, que significa “raiz”. Assim, a mudança radical é aquela que se realiza nas raízes do nosso ser, que se manifesta no nosso modo de pensar mais íntimo, nas nossas motivações mais profundas. A renúncia radical é aquela que vem das profundezas da alma, e não atua apenas no comportamento aparente, da boca pra fora, como se diz popularmente. A renúncia radical é aquela que se opera no nosso modo de pensar, provocando uma verdadeira “conversão” cristã, tendo um significado equivalente ao da palavra grega “metanóia”, isto é, mudança de mentalidade. Desse modo, ao invés de literalmente odiarmos e detestarmos nossos pais, cônjuges, filhos, etc, devemos amá-los ainda mais, contudo, uma nova forma de amar partindo da nossa fidelidade aos ensinamentos de Cristo, não apenas com manifestações exteriores e sentimentais. É nesse sentido que carregaremos a nossa cruz seguindo os passos de Cristo, não um seguimento pelo aspecto do sofrimento que a cruz tradicionalmente simboliza, mas no seguimento do modelo de amor que Cristo veio trazer para a nossa elevação espiritual. É óbvio que essa forma de amar pode também trazer algum sofrimento, no entanto, se a nossa motivação de amar for a mesma que Cristo tem para conosco, qualquer sofrimento será insignificante, se comparado à dimensão do nosso amor.

Recordo ainda que hoje, 8/9, celebra-se a festa de Nossa Senhora do Brasil, a padroeira do Seminário Seráfico e de todos nós que por ali passamos. Que ela nos ensine a amar a Cristo e aos irmãos como ela própria amou.

Cordial abraço a todos.
Antonio Carlos


domingo, 1 de setembro de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 22º DOMINGO COMUM - A HUMILDADE - 01.09.2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 22º DOMINGO COMUM – A HUMILDADE – 01.09.2013

Caros Confrades,

Neste 22º domingo comum, a liturgia nos convida a refletir sobre a humildade como atitude mais apropriada à conduta do cristão, ensinando que os favores praticados em benefício dos mais carentes são preferíveis àquelas homenagens feitas aos poderosos da sociedade. Fazer o bem a quem não pode nos recompensar gera um crédito no céu; o mesmo não acontece no outro caso, porque já se operou a compensação terrena.

O Monsenhor Manfredo Ramos, no sermão da missa deste domingo, recordou que a palava humilde, do latim “humilis”, está relacionada com o húmus, ou seja, a nossa origem do limo da terra, para onde iremos retornar, lembrando com isso que a consciência da nossa finitude deve ser a maior evidência dessa humildade. Muitas pessoas vivem como se fossem permanecer para sempre e se utilizam dos bens materiais para adquirir prestígio e poder. A humildade não é sinônimo de mendicância e roupa esfarrapada, pois assim como há pessoas abastadas e humildes, também há pessoas miseráveis que possuem o espírito de ganância. Ser humilde, pois, é antes de tudo ser pobre de espírito e isso significa o desprendimento e a generosidade, significa acumular tesouros que a traça não consome e o ladrão não rouba (Mt 6, 19). Humildade não é subserviência nem renúncia de si mesmo, mas é saber administrar os talentos e fazê-los produzir, pondo-os à disposição dos irmãos.

Logo no início da primeira leitura, extraída do Livro do Eclesiástico (3, 20), o escritor sagrado nos adverte: “Na medida em que fores grande, deverás praticar a humildade, e assim encontrarás graça diante do Senhor. Muitos são altaneiros e ilustres, mas é aos humildes que ele revela seus mistérios. ” Este livro faz parte dos escritos deuterocanônicos, isto é, foi escrito em época mais recente, não compondo os livros sagrados do judaísmo, portanto, não lido nas sinagogas judaicas. Seu autor é um sábio de nome Jesus, filho de Sirac, daí porque também é conhecido com a denominação de Ben Sirac ou Sirácida. Os cristãos primitivos sempre consideraram este livro como sagrado, mas Lutero não o aceitou. Porém, se compararmos o seu texto com os ensinamentos de Cristo, podemos perceber a semelhança dos ensinamentos, especialmente nas ocasiões em que Ele refuta os comportamento dos fariseus. O autor do livro se põe na mesma linha de raciocínio do livro da Sabedoria, expondo a tradição judaica mais autêntica numa época de grandes influências políticas e culturais estrangeiras sobre Israel. Por isso, mesmo não fazendo parte da lista dos livros canônicos da antiga lei, os judeus atribuíam a este livro um valor histórico importante, por causa do seu esforço em manter o sentido tradicional do judaísmo. Semelhanças com o texto desta leitura podemos encontrar também no cântico de Maria, após ouvir a saudação do anjo (Lc 1, 52): derrubou os poderosos dos seus tronos e exaltou os humildes... pôs os olhos na humildade de sua serva. Não é, portanto, de se admirar que desde os primeiros tempos do cristianismo este livro, mesmo não sendo da tradição judaica mais antiga, foi sempre prestigiado e lido nos templos.

No evangelho deste domingo, podemos identificar um verdadeiro sermão sobre a humildade, através das parábolas ditas por Cristo na casa de um dos chefes dos fariseus. Diz o evangelista Lucas (14, 1), que Jesus fora convidado para ir almoçar na casa de um importante fariseu, num dia de sábado. É de supor-se que Ele, como bom judeu, comparecera à sinagoga naquele dia e provavelmente tenha sido convidado para fazer a leitura da Torah. Após o culto, um dos lideres fariseus o teria convidado para ir almoçar na casa dele, certamente com o intuito de o colocarem em alguma situação embaraçosa. O texto lido neste domingo omite a primeira parte da visita, passando logo para o momento de sentarem-se à mesa. Mas nos versículos omitidos, podemos ver a armadilha que lhe prepararam logo na chegada, colocando diante dele um homem hidrópico. A hidropisia é uma doença que causa acúmulo de líquido em certas partes do corpo, como o caso popularmente chamado de “barriga d'água”, dentre outras situações mais complexas. Bem, Jesus curou o doente, mas isso é outra história. Naquela ocasião, Ele observou que os convidados ficavam disputando os primeiros lugares na mesa, ao que Ele aproveitou para passar-lhes uma lição acerca da humildade.

Os fariseus eram o protótipo da religiosidade de aparências, do cumprimento da lei pela sua literalidade, sem uma atitude de interiorização. Aquela disputa pelos lugares mais nobres à mesa era um sinal desse comportamento dúbio deles, que se consideravam cumpridores da lei, porém suas atitudes eram incoerentes com sua fé. Sem falar diretamente para eles, mas já mandando o recado, Jesus contou mais uma das suas historinhas: o convidado que estava sentado no lugar de honra foi solicitado pelo anfitrião para ceder seu lugar para outro conviva mais importante do que ele, tendo que ir sentar-se lá atrás. Para evitar isso, disse Jesus a eles: quando tu fores convidado, sente nos últimos lugares, porque será honroso para ti ser chamado para ser chamado mais para a frente e, ao contrário, será decepcionante para ti ser mandado lá para trás. Essa parábola de Jesus foi tradicionalmente entendida pelos biblistas no seu sentido mais literal de uma posição ou local físico. Contudo, podemos compreendê-la noutro sentido mais simbólico, da busca por elogios, da necessidade de ser aplaudido, bajulado, da vaidade de ser notado, reconhecido. Essa procura psicológica pelos “primeiros lugares” na opinião pública tem o mesmo sentido da disputa pelo melhor lugar na mesa do banquete. A frustração que daí resulta, quando a expectativa não se materializa, é semelhante à humilhação daquele que foi “convidado” a sentar na última fileira. É assim porque, mais importante do que a pobreza de bens materiais é a pobreza do espírito, o reconhecimento sincero da nossa fragilidade, da nossa incompletude. O espírito orgulhoso não percebe isso e necessita de estar sempre sendo incensado e colocado em alto pedestal. Ao contrário, o espírito humilde raciocina como Cristo disse no evangelho: somos servos inúteis, fizemos o que tínhamos de fazer. (Lc 17, 7)

Daí a complementação que Jesus faz desta primeira parábola com uma segunda: “Quando tu deres um almoço ou um jantar, não convides teus amigos, nem teus irmãos, nem teus parentes, nem teus vizinhos ricos. pois estes poderiam também convidar-te e isto já seria a tua recompensa. ” (Lc 14, 12) É este o sentido do adágio popular “fazer o bem sem olhar a quem”. Quem pratica o bem somente para os semelhantes, os da sua mesma classe social, recusando-se a fazer o mesmo com as pessoas mais humildes, na verdade, não está praticando o bem, mas apenas cumprindo uma obrigação. O profissional que escolhe a sua clientela olhando apenas o poder aquisitivo e a consequente possibilidade da retribuição material não está agindo como cristão. Ir à missa dominical e, durante a semana, tratar mal os empregados, os subordinados é uma atitude incoerente. Atender com alegria o cliente bem vestido e com aparência rica, enquanto o cliente de aparência modesta é recepcionado com frieza e má vontade não é atitude digna de quem se considera discípulo de Cristo.

Por isso, Jesus diz no final desta parábola: “quando deres uma festa, convida os pobres, os aleijados, os coxos, os cegos. ” (Lc 14, 13) Não é a literalidade do texto que deve nos impressionar, mas o sentido da advertência de Cristo: quando tu convidas os iguais a ti, aqueles que podem também te convidar para algo semelhante, a tua recompensa já foi dada, através dos elogios que recebes e das promessas que ouves. Ao contrário, quando convidas aqueles que não podem te retribuir, a recompensa será dada pelo Senhor, justo juiz. E de nada nos adiantaria cumprir a literalidade desse texto, promovendo banquetes para os indigentes, os excluídos, os moradores de rua, se o nosso espírito, a nossa atitude interior demonstrar superioridade, distanciamento, ojeriza ou indiferença. A humildade não está nas práticas exteriores, mas no sentimento de solidariedade que deve acompanhá-las. Esta é a diferença entre praticar a humildade e ser humilde. Alguém pode praticar atos exteriores de humildade e manter o espírito soberbo, isso de nada adianta. A humildade não é medida pela quantidade de bens materiais que alguém possui, mas pelo grau de desapego que tal pessoa demonstrará em relação a esses bens. Vale lembrar, nesse contexto, o inspirado comentário de Paulo sobre Jesus, na carta a Filipenses (2, 5-7): sendo de condição divina, Jesus não se prevaleceu disso, mas esvaziou-se a si mesmo, assumindo a forma de servo e tornando-se semelhante a nós. A narração metafórica das tentações que Jesus sofreu no deserto significam isso mesmo: Ele, sendo Deus, não precisava passar por todos aqueles tormentos. No entanto, Ele optou pela humildade até as últimas consequências, para nos dar o maior exemplo de capacidade de renúncia, quando Ele se desapegou até de sua condição divina, para sacrificar-se por nós homens, que nada temos para dar-Lhe em recompensa.

Que o exemplo de Jesus esteja sempre na nossa mente para que, com Ele, aprendamos a ser e viver de forma mais plena a humildade de espírito.