quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

29º Domingo Comum - 16.10.2011 - Deus age na história


Caros Confrades,

Nas leituras deste domingo (29º comum), vejo este como tema comum: Deus agindo através da história dos homens.

Na primeira leitura (Isaías 45,1), o profeta discorre a respeito de Ciro, o ungido de Deus, que foi por Ele escolhido mesmo sem aquele O conhecer ("Armei-te guerreiro, sem me reconheceres, para que todos saibam, do oriente ao ocidente, que fora de mim outro não existe."-Is 45,5) Com a vitória de Ciro sobre Nabucodonosor, a Pérsia dominou a Babilônia e o vencedor devolveu a liberdade aos cativos de Israel.

O profesta Isaías mostra ao povo que Javeh se serviu do braço de Ciro para resgatar o seu povo e retirá-lo da escravidão. Indiretamente, o profeta está proclamando que Javeh age não somente através dos seus eleitos, mas até por meio daqueles que nem O conhecem, ou seja, que a atuação de Javeh tem dimensões universais, o mundo todo é dEle. E mais ainda, afirma que desta vez, diferentemente da vez anterior, quando livrou o povo da escravidão do Egito, Javeh não se serviu de um israelita, como outrora se serviu de Moisés, mas agora agiu através de um pagão. Disso podemos também concluir que os fatos históricos são dispostos por Deus, dentro do seu plano de salvação, para produzirem um efeito segundo a Sua vontade. Isso foi, pela primeira vez, intuído por Santo Agostinho, no seu livro Cidade de Deus - Cidade dos Homens, criando a teologia da história.

No evangelho (Mateus 22,15) lemos hoje a célebre disputa entre JC e os fariseus, acerca da obrigatoriedade do pagamento do tributo legal. A resposta inteligente de JC (dar a Cesar o tributo, dar a Deus o coração) os deixou sem palavras, eles não esperavam isso.

Naquela ocasião, tal como acontecera com o povo de Israel na Babilônia, na época do profeta Isaías, no tempo de JC o povo judeu se encontrava outra vez 'escravo', agora dos romanos. Era novamente Javeh agindo através dos fatos históricos, para chamar a atenção do seu povo, que teimava em se desviar do caminho da promessa. A dominação romana não era uma 'escravidão' no sentido estrito da palavra, mas era uma situação de submissão política, que deixava os judeus incomodados. Mais do que a presença de um profeta, Javeh mandara seu próprio Filho para exortar o povo à prática dos compromissos assumidos com a Aliança feita aos Patriarcas. Mas o povo não entendeu isso e seus líderes terminaram por assassinar o Enviado. Vê-se aqui uma continuidade das parábolas lidas nos domingos precedentes.

E a dominação romana, mais duradoura do que a escravidão da Babilônia, continuou a castigar o povo judeu, chegando ao seu ponto culminante e mais terrível com a destruição de Jerusalém pelos exércitos de Tito, no ano 70 da nossa era. Os judeus não somente estavam cativos no seu próprio território, como tiveram os seus maiores símbolos religiosos destruídos pelo inimigo romano. E nem assim entenderam o que tinha acontecido.

Mas o novo povo de Deus, nação santa, raça escolhida, os não-judeus que aceitaram e seguiram a mensagem de JC tiveram seu momento de libertação pelas mãos de outro estrangeiro, desta vez, o imperador romano Constantino, que no ano 325 se converteu ao cristianismo e, com ele, todo o império romano passou a ser oficialmente cristão. Enquanto isso os judeus (com todo meu respeito aos que não concordarem com isso) continuam a esperar pelo seu libertador, fechando os olhos à mensagem de libertação trazida por JC, que foi acatada e seguida pelos "gentios" de outrora, com quem Javeh fez uma nova aliança no sangue de JC, de quem nós somos os herdeiros.

Meus amigos, aqui foram citados grandes fatos históricos, mas a ação de Javeh não se dá apenas nos fatos macro históricos, e sim nos fatos corriqueiros da nossa vida cotidiana. Basta estarmos atentos e sabermos interpretar o que nos ocorre no dia a dia, para percebermos a ação de Deus na nossa história pessoal também. Se soubermos interpretar teologicamente os fatos mais simples da nossa existência, poderemos enxergar com nitidez a presença de Deus agindo entre nós e seguindo na frente, indicando-nos o caminho. Tudo o que Deus quer de nós é fidelidade à promessa, ao batismo, ao espírito cristão. Aquela mesma fidelidade e confiança que Ele encontrou em Abraão, quando não titubeou em sacrificar o próprio filho; aquela mesma fidelidade e confiança que JC encontrou no centurião romano quando disse: nunca vi tanta fé em Israel ("Senhor, não precisa ir à minha casa, basta uma palavra tua e meu filho será curado.") Que Ele nos ajude a segui-lo com fidelidade.

28º Domingo Comum - 09.10.2011 - O banquete - O traje de festa


Caros Confrades,

A liturgia deste domingo segue o mesmo tema dos anteriores, mostrando as parábolas que JC falava aos fariseus e anciãos do povo, sempre chamando a atenção deles, que estavam cegos para a msg que Ele trouxe. Desta vez, o tema é o grande banquete, para o qual foram convidados os amigos do rei, no entanto, estes fizeram pouco do convite e inventaram as mais singelas desculpas para não comparecerem. Os empregados que o rei enviou para convidar foram destratados e maltratados.

Diferente da parábola da vinha,JC não fala que o rei mandou tb o próprio filho. Bem, a parábola é bastante conhecida e o seu desfecho também: o banquete foi preparado, mas os convidados não foram dignos. Então, vão chamar os pobres, os desocupados, os malandros, as prostitutas, todos aqueles que estão por aí à toa. Novamente, JC passa na cara dos fariseus que os estrangeiros estão sendo convidados para o reino porque eles (fariseus) desdenharam do convite, que a eles foi dirigido em primeiro lugar.

Esta imagem do banquete do evangelho de Mateus (22, 1) está em total sintonia com a primeira leitura de Isaías (25, 6), que também se refere a um grande banquete que será oferecido naquele monte, comemorando a libertação do povo. JC aproveita o tema de Isaías e conta outra história, embora com desfecho diferente. Mais uma vez, essa passagem mostra a predileção que JC tinha pelos textos de Isaías.

Há uma particularidade nessa leitura de Mateus, em 22, 11, quando ele emenda a história do banquete com a do convidado que está sem traje próprio para a festa (antigamente, a tradução era sem a veste nupcial). Eu me lembro que o Padre Uchoa, nosso professor de Bíblia, explicava isso dizendo tratar-se de uma contradição do autor sagrado, porque se o rei mandou chamar os que estavam pelas esquinas, pelos becos, pelas favelas, etc, como ia depois exigir que todos estivessem com traje de festa (ou com veste nupcial, como se dizia antes)? Era compreensível que fosse exigido o traje próprio daqueles convidados com antecedência, mas os que foram apanhados nas ruas e chamados, como exigir deles que estivessem com roupa de festa? Mas a explicação exegética para isso é que se trata de dois textos justapostos.

De fato, a parábola do banquete termina no versículo 22, 10: "e a sala do banquete ficou cheia". O trecho seguinte, iniciando no versiculo 11, é um acréscimo feito por Mateus e que não faz parte originalmente desta parábola. Como é que se sabe disso? Pela análise comparada dos evangelhos sinóticos. A mesma parábola é contada em Lucas 14, 15, e a história termina quando Lucas diz: "nenhum daqueles que foram convidados primeiro degustará a minha comida". E logo muda para outro assunto. Então, conclui-se que Mateus usou a mesma fonte de Lucas, mas acrescentou um pedaço de outro escrito que tem certa relação com a história do banquete, mas não foi dito naquela mesma ocasião por JC. Assim, fica explicada a contraditória atitude do rei que, ao mesmo tempo, convidou e desconvidou e ainda mandou açoitar o conviva que não usava o traje adequado.

Meus amigos, fazendo a ligação trans-histórica (ou será transistórica, de acordo com as novas regras?), o banquete continua sendo o Reino de Deus, mas os empregados que o rei mandou para chamar as pessoas que estavam nos becos e favelas somos nós, cristãos e missionários do Reino. Com isso, JC ensina que a nossa missão não se realiza plenamente dentro do templo, mas na comunidade, no dia a dia, no trabalho, nas relações sociais, em todo lugar onde nos encontrarmos, nós somos desafiados a testemunhar o Reino de Deus com nosso exemplo, com a nossa fé ativa, mais do que com nosso discurso, mais do que com uma cruz pendurada no pescoço. A messe é o mundo todo e os operários da messe, isto é, os messionários ou missionários, como queiram, somos nós. E ao fazermos isso, estaremos simbolicamente demonstrando que estamos com a veste nupcial, aquela que distingue e identifica os verdadeiros cristãos.

27º Domingo Comum - 02.10.2011 - A parreira de Javeh


Caros Confrades,

As leituras deste domingo estão em plena sintonia com a história da parreira de Javeh, primeiramente, em Isaías 5,1 e depois em Mateus 21,33. Essa repetição da história demonstra que JC conhecia bem as escrituras e, mais uma vez, tb demonstra uma predileção especial de JC pelo livro de Isaías.

Sempre é bom lembrar, para contextualizar, que o livro de Isaías foi escrito quando o povo hebreu estava cativo na Babilônia, no tempo de Nabucodonosor. O povo ficava praguejando contra Javeh e Ele, através dos seus Profetas, levava o povo a despertar a consciência para que compreendessem que tudo aquilo havia sido provocado pela infidelidade deles, não por castigo de Javeh. E tb através dos profetas, Javeh os convidava à conversão e ao cumprimento da lei, porque desse modo encontrariam a libertação.

Quando leio esse trecho, me lembro dos salmos musicados por J. Gelineau, que cantávamos no Seminário e que tem uma melodia muito bonita: "Meu amado possui uma vinha em um outeiro fertilíssimo." A música está aqui na minha cabeça, só não tem como transcrevê-la com palavras, deve brotar na cabeça de vcs tb. Pra nós do nordeste, a figura da parreira não é tão familiar, embora no jardim do Seminário sempre se encontrasse uma, obra dos nossos antecessores italianos. Mas lá no Rio Grande do Sul, na serra gaúcha, o parreiral vai além do que a vista alcança. Pois bem, aconteceu que os vinhateiros (os hebreus) não cuidaram bem do parreiral e, ao invés de uvas boas, estava produzindo uvas selvagens, frutos do mato.

Quem conhece maracujá do mato (na beira da lagoa de Messejana, tinha) sabe que é intragável, nem se compara com a fruta boa. Então, o que fez o dono? derrubou a cerca de proteção e deixou que os javalis a devastassem e os passantes a pisoteassem. Em vez de uvas, terá espinhos e carrapichos. E os vinhateiros foram parar na escravidão. A denúncia do Profeta era para que o povo hebreu abrisse os olhos para reconhecer que a desgraça que recaiu sobre eles foi consequência dos seus próprios atos e que, retornando ao cumprimento da promessa, o parreiral voltaria a ser protegido pelo seu dono.

No evangelho, JC repetiu a mesma historinha de Isaías, acrescentando alguns detalhes pedagógicos para que a lição ficasse ainda mais clara. Quando o dono do parreiral mandou verificar a colheira e viu que a produção era de uvas selvagens, mandou seus empregados (os profetas) para ajudarem no cuidado da plantação. Os vinhateiros (o povo hebreu) os espancaram e os mataram. Então o dono pensou: vou mandar meu filho, esse eles respeitarão. Que nada, foram com ele ainda mais cruéis. Então, o que resta para o dono fazer? vai arrendar a vinha a outros vinhateiros (os pagãos), para que os bons frutos sejam produzidos. E JC foi bastante ríspido com os sacerdotes e anciãos: por isso o reino de Deus será retirado de vocês e será entregue a um povo que produzirá frutos. Nesse momento, JC não estava mais falando em linguagem alegórica, era discurso direto, mesmo assim os fariseus não compreenderam.

Meus amigos, fazendo a relação transistórica, daquela msg de Isaías, reproduzida e ampliada por JC, para nós hoje, ela vem nos dizer que nós não devemos ter ouvidos surdos, como tiveram os fariseus daquele tempo, se não o reino nos será tirado para ser entregue a outro povo. Esta conclusão está na mesma linha da que tivemos no domingo passado, quando JC disse que os publicanos e as prostitutas vos precederão no reino dos céus. Daí vem aquela célebre polêmica iniciada por Lutero e continuada ainda hoje por seus seguidores, no sentido de que basta a fé para se ter a salvação. Lembremos da exortação do apóstolo Tiago: a fé sem as obras é morta. A salvação não é um ato que nos alcança de uma vez por todas como um encantamento. A redenção de JC, esta sim nos alcança por inteiro, mas a sua repercussão em nós vai depender da nossa adesão. E a adesão não significa apenas a fé, mas a fé ativa. Nesse sentido, a salvação é uma construção na qual passamos a vida inteira trabalhando, a cada dia colocando mais um tijolinho. A redenção de JC foi operada uma vez só, na perspectiva da eternidade, e sendo assim atinge todas as pessoas em todos os tempos. Mas a salvação de cada um é obra nossa.

Ninguém pode supor que já está entre os 144 mil assinalados, referidos no Apocalipse, e então deitar na rede e esperar o dia da salvação chegar, não é bem assim. Os frutos bons devem ser produzidos constantemente e para isso, a vinha deve ser cultivada sem descanso, adubada, regada, capinada, protegida. A salvação é lida diária, é compromisso que está sempre se renovando. Tanto na fabula de Isaías quando na parábola de JC, o dono da vinha é bastante duro com os vinhateiros que descuidaram da sua tarefa. Deus não é condescendente com quem não realiza o seu ofício.

Na carta aos Filipenses, Paulo nos ensina como deve ser a verdadeira oração: "apresentai as vossas necessidades a Deus, em orações e súplicas, acompanhadas de ação de graças". Rezar deve ser sempre em primeiro lugar, dar graças a Deus pelos dons recebidos. Só depois, apresentar as necessidades e fazer os pedidos. Nunca a oração deve ser um rosário de lamentações e queixas a Deus, porque os infortúnios que nos assolam, tal como na história dos vinhateiros, são fruto das nossas próprias ações. Rezar deve ser um momento de acerto da trajetória da nossa vida, concretizar na nossa vida o ensinamento de JC; o reconhecimento das nossas faltas e fraquezas é o primeiro passo para a retomada da direção correta. E então, poderemos contar com a força libertadora de Deus para continuar o trabalho na Sua vinha.


terça-feira, 24 de janeiro de 2012

26º Domingo Comum - 25.9.2011 - Arrependimento


Caros Confrades,

Nas leituras deste domingo, podemos destacar o tema do arrependimento eficaz. Ezequiel exorta os judeus cativos na Babilônia a não praguejarem contra Javeh, como se Ele fosse a causa dos seus sofrimentos. Alerta o profeta: se o justo se desvia da justiça e pratica o mal, entra na rota do castigo. Não é Javeh quem vai castigá-lo, ele próprio causa a sua ruína. Por outro lado, o ímpio que se arrepende do mal que praticou e observa a justiça, será salvo.

É o que podemos chamar de arrependimento eficaz, isto é, não fica apenas naquele sentimento de culpa, mas se afasta do mau caminho e põe em prática a justiça. Esse pensamento está relacionado com aquela passagem conhecida do evangelho,quando JC diz que não basta dizer Senhor, Senhor... para entrar no reino do céu. Não basta lamentar o mal feito, é necessário afastar-se do mal e praticar o bem.

Na leitura do Evangelho de Mateus (21, 28), JC fala diretamente contra a hipocrisia dos fariseus, ao narrar a parábola dos dois filhos. O pai os mandou trabalhar na vinha. O primeiro disse: não vou; mas depois, arrependeu-se e foi. O segundo disse: eu vou; mas lá não pisou. Ora, é óbvio que somente o primeiro cumpriu a vontade do pai. Então,JC arremata contra os fariseus: é por isso que os publicanos e as prostitutas chegarão no céu antes de vocês. E eles nada entenderam, porque se consideravam puros e cumpridores dos seus deveres, ou seja, prometiam a Javeh que iam trabalhar na vinha, mas só da boca pra fora.

De outro lado, aquelas classes de pessoas que eles consideravam mais indignos do convívio divino, os publicanos e as prostitutas, esses JC disse que estão na frente deles (fariseus), porque embora tenham no primeiro momento, recusado o convite de Javeh, depois se arrependeram e aceitaram. Entra aí associado o pecado do orgulho dos fariseus, que se consideravam melhores do que as outras pessoas, só porque essas não cumpriam rigorosamente o que estava prescrito na lei.

Um tal comportamento é bastante comum da parte de alguns cristãos que, por irem à missa todos os domingos (não faltam um!), comungam todas as vezes, rezam o terço e praticam devoções, por causa disso se consideram melhores do que outras pessoas que, na visão deles, vivem no pecado. O cumprimento da lei apenas por aparências exteriores é o mesmo que não cumprir. É o caso do filho que disse ao pai: eu vou... e não foi. Sobre estes, JC já falava em outra passagem: esse povo me louva com os lábios, mas o seu coração está longe de mim.

Sobre a leitura de Paulo a Filipenses (2, 1), repito aqui um comentário que já fiz noutra mensagem, acerca da tradução da CNBB usando a palavra usurpação: JC não fez do fato de ser igual a Deus uma usurpação. Eu não concordo com esta tradução, pra mim, a melhor palavra seria 'não se aproveitou disso', não tirou vantagem disso pra passar por cima dos sofrimentos, porque se ele tivesse feito isso, a nossa redenção teria sido uma farsa. O texto latino é "non rapinam arbitratus est', sendo 'rapinam' (rapina, do verbo rapio, roubar, de onde se origina a palavra larápio), mas ao meu ver, o que Paulo quis dizer foi: não se aproveitou daquela situação. Porém, é a minha modesta opinião, com todo respeito aos especialistas paulinos.

25º Domingo Comum - 18.9.2011 - Meus pensamentos


Caros Confrades,

A liturgia deste domingo traz este tema muito interessante, retirado do profeta Isaías (55,8): meus pensamentos não são como os vossos pensamentos, vossos caminhos não são como os meus caminhos. É curioso observar como, desde aquele tempo (o profeta Isaías é contemporâneo do cativeiro dos hebreus na Babilônia, aprox. 550 a.C.) Javeh já advertia o povo, através dos profetas, para não pensarem sobre Ele de modo antropológico, e nos dias de hoje, nós ainda vemos com frequencia as pessoas antropologizarem o divino, ou seja, referirem-se às coisas divinas com categorias humanas. Naqueles convites para missa de finados, às vezes, se lê assim: fulano de tal,cinco anos de vida eterna.

Ora, meus amigos, a contagem dos anos é coisa dos homens, a eternidade é a dimensão divina, lá não há contagem de tempo. A vida eterna não tem passado nem futuro, nem semanas, nem meses, nem anos, apenas presente infinito. Esse é um modo de pensar o divino com categorias antropológicas. Por isso, o profeta adverte: meus pensamentos não são como os vossos.

Outro fato que tb faz parte da nossa tradição religiosa é tentar 'negociar' com Deus através de promessas: me dê isso que eu faço aquilo. Ora, nós nunca seremos merecedores de nada diante de Deus porque não temos mérito nosso, tudo o que merecermos de Deus é por causa da nossa redenção em JC. E Deus sabe de tudo aquilo do que nós precisamos, não é preciso 'provocar' Deus fazendo uma espécie de chantagem, como se Deus perdesse algo porque nós deixamos de fazer alguma coisa. Isso é pensar antropologicamente o divino. Daí porque Javeh exorta através do profeta Isaías: os meus pensamentos não são como os vossos pensamentos.

É tb comum as pessoas falarem algo do tipo: isso é castigo de Deus. Lá vem novamente a antropologização. O pai castiga o filho, mas Deus não castiga, nós é que causamos a nossa própria desgraça, com nossas atitudes e decisões inconsequentes. Este 'nós' aqui é o nós plural da raça humana, não um determinado grupo de pessoas, por isso, muitas vezes, pessoas inocentes são inexplicavelmente atingidas. Fazer algo apenas para não receber castigo de Deus é tb pensar antropologicamente o divino. Então,vem novamente o oráculo: meus pensamentos não são como os vossos pensamentos. Não devemos pensar nas ações de Deus com categorias antropológicas, mas com a categoria divina básica do amor, o mesmo amor que O fez criar o mundo e dar Seu próprio Filho para redimir o pecado da humanidade. Pensar sobre Deus sem colocar em primeiro plano esse amor inefável e infinito é pensar antropologicamente, é reduzir Deus ao plano humano.

Dentro desta mesma temática se situa o evangelho de Mateus (20, 1-16) sobre os trabalhadores da vinha. JC dá um severo puxão de orelha nos fariseus, os 'trabalhadores da primeira hora', porque Ele estava prometendo aos não-judeus a mesma recompensa que eles (judeus) esperavam ter. Ora, os judeus já vinham 'guardando' a lei desde muito tempo, fazendo jejuns e orações, pagando o dízimo e dando esmolas, etc... como é que aqueles que estavam agora recebendo o chamado iriam ter a mesma recompensa deles, que trabalharam 'o dia todo, suportando o sol e o calor'? Os fariseus se consideravam os judeus da elite, os puros, aqueles que desfrutavam da amizade de Javeh, certamente eles queriam que o 'céu' deles fosse diferente daquele dos pagãos, que somente agora passaram a fazer parte do grupo dos adoradores. Queixavam-se que a mensagem de JC era injusta com eles, porque eles eram mais merecedores. E JC fala bem sério: "Por acaso não tenho o direito de fazer o que quero com aquilo que me pertence? Ou estás com inveja, porque estou sendo bom?"

Volta novamente a advertência do profeta: meus pensamentos não são como os vossos. Dentro do olhar puramente humano, parece injustiça que os primeiros adoradores, aqueles que primeiro receberam a promessa através dos Patriarcas (os judeus) venham a ter a mesma recompensa daqueles adoradores da última hora (os gentios), aqueles que receberam a promessa naqueles dias. Mas dentro da categoria básica divina do amor, a 'moeda de prata' do amor divino não tem diferença ao 'pagar' os que trabalham desde a madrugada e os que começaram às 5 da tarde, por uma razão muito simples: o amor de Deus não tem graduação, pois é sempre dispensado em grau máximo. Tal como os pensamentos de Deus não são como os pensamentos dos homens, a justiça divina também não é como a justiça dos homens.

24º Domingo Comum - 11.9.2011 - Misericórdia e Reconciliação


Caros Confrades,

Antes de comentar a mensagem litúrgica de hoje, quero fazer um registro que é caro a todos nós. Na quinta feira passada, dia 8/9, comemorou-se o natalício de Nossa Senhora (festa da natividade de Maria). Muitas denominações de Maria, que não têm uma festa específica, são comemoradas neste dia. O confrade Ubiratan me informou que, em Frecheirinha, comemora-se Nossa Senhora da Saúde, padroeira da cidade. Então, eu lembrei que, nesse dia, a gente tb comemora o dia de Nossa Senhora do Brasil, padroeira do Seminário. E lembro que era tb comemorado o onomástico do nosso caro confrade Frei Mariano (Luiz Pires). Roguemos as bênçãos de Nossa Senhora do Brasil sobre todos nós.
Passando ao tema da liturgia de hoje, a mensagem central volta ao tema de um dos últimos domingos: a misericórdia e, junto com esta, a reconciliação. 

A primeira leitura, retirada do Eclesiástico (ou Ben Sirac, na tradição hebraica) é de extrema e coerente sabedoria: Se não tem compaixão do seu semelhante, como poderá pedir perdão dos seus pecados?  Se ele, que é um mortal, guarda rancor, quem é que vai alcançar perdão para os seus pecados? (Eclo 28,4-5). 

Meus amigos, esta é uma das coisas mais difíceis de se fazer, mas esse é o mandamento. Como diz Paulo, neste mesmo sentido (embora não seja uma das leituras de hoje): amar os amigos é muito fácil, mas devemos amar os inimigos. Tem algumas atitudes que doem muito profundamente em nós, sobretudo a maledicência, a injúria, a ingratidão, doem mais do que uma alfinetada. A vontade que se tem é de nunca mais olhar na cara da pessoa que faz isso. Mas exorta o Eclesiástico (38, 8-9): Pensa nos mandamentos, e não guardes rancor ao teu próximo. Pensa na aliança do Altíssimo, e não leves em conta a falta alheia!

Certa vez, eu li naquele livro de exercicios latinos (G. Zenoni) um fato da vida de Sócrates, que me vem agora à mente. A mulher de Sócrates, de nome Xantipa, era muito grosseira, faladeira, maltravava o marido. Aos que perguntavam a ele por que não a deixava, Sócrates respondia: com ela eu exercito todos os dias a tolerância e aprendo a ser tolerante com os outros. Na minha interpretação, o exercício da tolerância, no caso de Sócrates, é o exercício do perdão. É aquilo que nós rezamos todos os dias no Pai Nosso - perdoai as nossas ofensas assim como nós perdoamos os que nos ofenderam - mas que é tão difícil de praticar.

Tem tb a esse propósito a história de um homem que comprava jornais todos os dias de um jornaleiro que o atendia rispidamente, mas ele sempre sorria e o cumprimentava com cortesia. Um amigo perguntou porque ele não retribuía a grosseria do jornaleiro na mesma medida, então ele respondeu: porque não quero que ele decida como eu devo me comportar, quem decide o meu comportamento sou eu. Se eu retribuir a grosseria, estarei deixando que ele decida por mim; sendo gentil, eu estou no comando da decisão. Isso é algo fácil de fazer? Por certo que não. Mas se há pessoas que praticam a tolerância por motivos humanitários, nós cristãos temos, além do humanitarismo, a motivação do mandamento que manda perdoar.

No evangelho, Pedro pergunta a JC: Mestre, quantas vezes devo perdoar o meu irmão que peca contra mim, 7 vezes? Pedro já devia achar que estava sendo bastante tolerante ao perdoar 7 vezes. Ocorre que JC respondeu de forma inesperada para ele: não apenas 7, mas 70 x 7. Os exegetas interpretam esse número (70 x 7) como sendo o infinito, isto é, deve-se perdoar infinitas vezes. E, em seguida, JC conta a história do devedor que teve a dívida perdoada pelo patrão, mas daí a pouco, quando ele encontrou alguém que lhe devia, agiu de modo intolerante e não foi capaz de passar adiante o perdão que havia recebido. O patrão mandou chamá-lo e retirou o perdão que havia dado, exigindo o pagamento de toda a dívida. E JC conclui de modo fulminante: é assim que o vosso Pai agirá convosco, se não perdoardes de coração o vosso irmão. Vejam bem, não basta perdoar simplesmente, tem de ser perdão de coração. 

Meus amigos, como isso é difícil, mas este é o mandamento. Na missa de hoje da Paróquia da Glória, o celebrante (Padre Josieldo) disse algo muito interessante: ser misericordioso com o próximo não é porque o próximo mereça isso, é porque Deus é misericordioso conosco. Se nós recebemos misericórdia tb sem merecer, devemos praticar a misericórdia com quem não a merece. Este é o desafio que JC coloca para nós neste domingo. É a mesma mensagem que o Pai Seráfico ensinava com outras palavras: ninguém deve esperar ser perdoado para, só então, dar o perdão, pois é perdoando que se é perdoado. Sigamos o seu exemplo.

23º Domingo Comum - 4.9.2011 - Perdão e Correção dos que erram


Prezados Confrades,

Vou iniciar este comentário fazendo uma homenagem ao Frei Roberto Magalhães (de Maracanaú), que no próximo sábado, dia 10/9, completará 91 anos de idade, creio que deve ser atualmente o frade mais idoso da Província. Além de suas reconhecidas virtudes pessoais e de seu exemplar exercício da vida franciscana e sacerdotal, Frei Roberto foi agraciado por Deus com uma longevidade produtiva, pois ele continua a exercer o seu múnus ministerial, apesar da avançada idade. Eu, particularmente, tenho um motivo muito especial para fazer esta homenagem, pois foi o Frei Roberto quem me trouxe para o Seminário de Messejana, em 1964, além de ter sido ele amigo de meus pais e continua sendo uma pessoa muito querida por toda a minha família. Meus parabéns e votos de que ele ultrapasse a barreira dos 100 anos, sempre continuando a espalhar seu carisma e a dar exemplo de santidade.
As leituras da liturgia de hoje trazem dois temas importantes: a correção fraterna e o poder da oração. Todos nós nos lembramos dos exercícios de correção fraterna, que éramos 'obrigados' a fazer todas as manhãs, no Noviciado, apontando as falhas dos nossos confrades e convidando-os a superar suas fraquezas, uma prática que causava certo desconforto (pelo menos para mim causava), porque é sempre muito delicado falar dos defeitos das pessoas em público. Não obstante se reconheça o bom propósito do exercício e apesar de ser uma prática recomendada no Evangelho, mas a recomendação de JC é que, primeiramente, o irmão faltoso seja chamado a conversar em particular, depois, com duas ou três testemunhas, só depois, se necessário, o caso deve ser levado à comunidade dos irmãos. Todos nós temos as nossas limitações, portanto, ninguém pode se considerar melhor do que os outros, para sair criticando o comportamento de colegas, expondo publicamente as suas fraquezas, sair 'falando mal' das pessoas, usando uma linguagem bem popular. Lamentavelmente, a chamada lingua ferina é bastante comum no meio social e se torna mais lamentável ainda quando se usa disso para capitalizar vantagens pessoais, em detrimento de outrem. Por isso, diz S Paulo na carta a Romanos (13, 9-10) que todos os mandamentos se resumem neste: amarás o teu próximo como a ti mesmo e quem ama nunca fará mal algum contra o próximo.
Convém lembrar que não devemos simplesmente nos omitir quando vemos o irmão fazendo algo indevido, pois todos nós temos a responsabilidade de corrigir fraterna e caridosamente o irmão que erra. Na leitura de Ezequiel (33, 8), Javeh é muito rigoroso: se não advertires o ímpio acerca da sua conduta e ele morrer, ele morrerá por culpa dele, mas eu pedirei a ti contas de sua morte. Ou seja, não é lícito ao cristão ficar calado e omisso diante dos erros do próximo, tendo o dever de adverti-lo. Contudo, esta advertência deve ser na forma acima proposta. Assim, estar-se-á praticando ao mesmo tempo a caridade e a correção fraternas.
O outro tema das leituras é o poder da oração. No evangelho de Mateus (18, 19) está escrito: qualquer coisa que pedirdes ao Pai, isto vos será concedido. O mesmo ensinamento se encontra na passagem correspondente de Marcos (20, 23): tudo o que pedirdes em oração acreditando que recebereis, isto vos será dado. Deus sabe das nossas necessidades, mas ele precisa da nossa colaboração para nos conceder, e esta colaboração se dá na forma do pedido. Existe uma prática devocional muito difundida na cultura religiosa do nosso povo, que é a de pedir algo a Deus mediante o pagamento de alguma promessa. As casas de relíquias que existem em Canindé e Juazeiro do Norte são repletas de ex-votos (ou objetos representativos de milagres) ofertados por pessoas que vieram 'pagar' a Deus. Vejamos que JC não ensina isso. Ele diz 'tudo o que pedirdes com fé, recebereis', não diz que devemos prometer algo em troca, para que o recebimento aconteça. Pode-se até imaginar que o 'pagamento da promessa' é uma forma de demonstrar a gratidão a Deus e não se pode de fato duvidar desse sentimento de gratidão. Todavia, o que Deus espera de nós como gratidão é a nossa vida de fé, é o amor ao próximo, é o bom exemplo a ser seguido pelo irmão. Deus não precisa de um pedaço de madeira, ou de gesso, ou de ferro, ou de qualquer outro material perecível. Deus quer a nossa conversão interior, a nossa adesão ao seu plano de salvação. E na leitura de Marcos acima referida, há um requisito para o recebimento do pedido: pedir acreditando que vai receber, isto é, pedir com fé, com confiança não nos nossos méritos, mas na magnanimidade divina.
Além desses dois temas, eu gostaria de destacar ainda dois pontos das leituras, que me parecem interessantes. Na leitura de Ezequiel (33, 7), diz: quanto a ti, filho do homem, eu te estabeleci... quero destacar aqui a expressão 'filho do homem'. Por diversas vezes, JC deu demonstração de que conhecia bem a Torah, citando sobretudo passagens de Isaías. Mas esta expressão 'filho do homem' ele tb utilizou em diversas outras passagens, referindo-se a Ele próprio. Além de mostrar conhecimento das Escrituras, JC ao mesmo tempo tb ensina que ele está integrando o antigo com o novo, as mensagens dos profetas com a atividade dEle próprio. Um dos grandes enigmas não totalmente decifrados a respeito da vida de JC é este: como ele se tornou um exímio conhecedor das Escrituras, já que isso era uma tarefa próprias dos rabinos. Onde ele teria recebido essas lições? porque não se pode simplesmente deduzir que Ele tinha a natureza divina e então só por isso devia saber as Escrituras de cor. JC aprendeu esse conhecimento da Lei com a sua natureza humana, portanto, Ele deve ter estudado em alguma escola. Daí se propaga a teoria de que ele teria recebido um treinamento com os essênios, antes de iniciar sua vida pública. Mas isso tb não explica tudo, porque consta tb no evangelho que, aos 12 anos, ele se 'perdeu' dos pais durante uma peregrinação a Jerusalém e foi encontrado conversando com os doutores da Lei e 'discutindo' com eles. Deixo aqui apenas a referência para a reflexão dos Confrades.
O outro ponto que me parece interessante destacar se refere à passagem de Mt 18, 18, onde diz: tudo o que ligares na terra será ligado no céu... Esta mesma passagem o próprio Mateus já havia referido (16, 19), quando JC dá as 'chaves' da igreja a Pedro; curiosamente, quando esse mesmo fato, quando é relatado em Marcos (8, 27) e em Lucas (9, 18), não há referência ao caso das chaves, enquanto Mateus repete isso duas vezes. Uma passagem correspondente encontra-se tb no evangelho de João em outro contexto completamente diferente (Jo 20, 23), quando JC aparece aos discípulos, após a ressurreição, e sopra sobre eles transmitindo o Espírito Santo dizendo: a todos a quem perdoardes os pecados, ser-lhes-ão perdoados... O Padre Uchoa, que foi nosso professor de Bíblia no Seminário da Prainha, comentava que essas repetições se devem à existência de textos esparsos, que foram coletados pelos evangelistas e inseridos nas suas compilações. No caso, observa-se uma evolução literária no texto de João, que foi escrito bastante depois do de Mateus, ele teria trocado o verbo 'ligar' por 'perdoar pecados', dando maior objetividade à ordem de JC.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

22º Domingo Comum - 28-8-2012 - Dia de Santo Agostinho


Prezados Confrades,

Hoje, 28 de agosto, é dia de Santo Agostinho. Quem não lembra do Frei Agostinho Maria de Fortaleza, uma figura emblemática dos claustros capuchinhos cearenses. Tive a oportunidade de conviver com ele durante dois anos (1969 e 1970) em Guaramiranga, inclusive o acompanhei diversas vezes nas suas 'desobrigas' dominicais a Pernambuquinho e guardo dele algumas lembranças pitorescas. Uma delas é que ele não tomava vinho canônico no horário das refeições (quando faltava o vinho comum), porque dizia que era o 'preciosíssimo', só tomava se fosse o vinho comum. E quando ia deglutir o vinho comum, elevava o copo assim como se estivesse 'consagrando', só depois levava à boca. Outra que lembro dele era comentada por Frei Natal. Ele dizia que o Frei Agostinho colocava uma jarra com água do lado de fora da janela do quarto todas as noites e, no dia seguinte, quando tomava banho às 5h da madrugada com aquela água na temperatura natural da serra, após o banho regular, tomava um banho complementar com aquela água que passara a noite ao relento e era ainda mais fria do que a da caixa d'água. Nunca entendi o motivo desse ritual. Mas era um frade exemplar no cumprimento das suas obrigações, que assim Deus o tenha recebido.
Após esta homenagem ao Frei Agostinho, passo a comentar dois trechos das leituras de hoje.
O primeiro, do livro de Jeremias, quando ele relata que era objeto de zombaria ao proclamar povo a palavra divina e decidiu não mais fazer isso. No entanto, não conseguiu, porque havia um 'fogo devorador' dentro dele, que lhe inflamava os ossos e ele não conseguia parar de proclamar. Há um cântico litúrgico atual que reproduz este trecho de Jeremias, não sei se os Confrades conhecem, por isso vou reproduzir aqui o refrão: " Tenho que gritar, tenho que arriscar, ai de mim se não o faço! Como escapar de Ti, como calar se tua voz arde em meu peito? Tenho que andar, tenho que lutar, ai de mim se não o faço! Como escapar de ti, como calar, se tua voz arde em meu peito?" Este trecho está tb relacionado com uma exortação que frequentemente nos faziam no seminário, com o intuito de nos induzir a permanecer lá: todo aquele que põe a mão no arado e olha para trás, não é apto para o reino de Deus. Evidentemente, o contexto da frase de JC não era o que nos apregoavam, porque o fogo de Jeremias continua a arder em nós, mesmo tendo saído de lá. Eu identifico esse 'fogo' com aquele carisma que a educação do seminário deixou em cada um de nós. Acontece comigo, certamente acontece com todos vcs, as pessoas perguntarem se eu sou padre ou se já fui padre. Quando eu respondo: não, fui seminarista, concluem: tem jeito de padre. É o efeito Jeremias, é o fogo que queima os ossos e insiste em aparecer, mesmo que queiramos apagá-lo. Talvez este seja o principal fator que nos une, que movimenta a fraternidade e alimenta a amizade, ou seja, o fogo de transmitir o que aprendemos, o fogo de proclamar a palavra de Deus.
A segunda passagem que vou comentar é do evangelho de Mateus, quando Pedro, na sua loquacidade descontrolada, dá mais um fora. JC falava nos suplícios pelos quais iria passar em Jerusalém, prevendo a sua paixão e morte para os discípulos e Pedro salta de lá, dizendo o que corresponde na nossa linguagem nordestina: Deus te livre disso !! E JC o chama de Satanás, sai pra lá, porque és para mim causa de escândalo (Mt 16,23). Fui conferir no texto latino de São Jerônimo e a palavra em latim é scandalum (scandalum es mihi - és escândalo para mim). Fui conferir no texto grego e lá tb encontrei o correspondente a 'scandalon', então fui ver no dicionário de grego o significado desta palavra, pra comparar com o vocábulo em português. Daí, constatei que a tradução de scandalon é obstáculo, empecilho, cilada, tentação. Não tem nada a ver com o sentido de escândalo em português, conforme vcs podem constatar. Quando JC disse que Pedro era um scandalon para ele, queria dizer: és causa de tentação, és uma pedra de tropeço, és um desestímulo. Nós sabemos que JC, enquanto homem (e aqui está uma demonstração perfeita da humanidade de JC) sofria imensamente com isso, porque como Deus, ele sabia de tudo o que ia se passar; mas sendo tb homem, ele sabia o nível de sofrimentos que ele iria suportar e sabia que seria muito cruel. Não foi à toa que no Getsêmani ele chegou a suar sangue e disse: Pai, se for possível, afasta este cálice... mas depois completou: não se faça a minha vontade, e sim a tua. Então, JC se debatia internamente com a 'tentação' de se utilizar de seus poderes divinos e passar por cima de tudo isso sem sofrer, mas ele tb sabia que não era essa a vontade do Pai e que, se fugisse dos fatos, todo o 'projeto' de salvação do Pai ficaria fracassado... isso jamais poderia acontecer. Por isso, Pedro ingenuamente se tornou um obstáculo a mais, um empecilho a mais a ser superado na sua angústia e ele mandou que ele se afastasse. E depois ainda profetizou o destino dos discípulos, ao dizer que cada um devia tomar a sua cruz e segui-lo.
Em outras passagens do evangelho, aparece o vocábulo 'scandalon' e assim, com esse significado, tb devemos compreender essa palavra nessas outras passagens, pelo princípio da interpretação sistemática (interpretar as mesmas palavras em um texto sempre num mesmo sentido). Por isso, não devemos ser 'scandalon' para as outras pessoas, o que nos tornamos quando o egoísmo ou o orgulho dominam nossas ações. Penso que o sentido mais autêntico do mandamento de 'amar ao próximo como a si mesmo' se relaciona com a atitude de não ser scandalon, ou seja, amar o próximo é não ser pedra de tropeço, é não ser causa de tentação, ao contrário, é oferecer a mão amiga, é dar o exemplo a ser seguido.

21º Domingo Comum - 21-8-2012 - A liderança pedrina


Prezados Confrades,

A liturgia de hoje (21 Domingo do Tempo Comum, traz no evangelho a passagem em que JC dá as 'chaves' a Pedro. Os confrades que residem fora de Fortaleza, provavelmente, tiveram na liturgia de hoje a comemoração da Assunção de Maria. Mas na Arquidiocese de Fortaleza, onde a festa da Assunção ocorreu no seu dia próprio (15/8), a liturgia foi do domingo comum. Esta é que comentarei.
Naquele conhecido diálogo de JC com os discípulos (e vós, quem dizeis que eu sou?), Pedro se antecipa a todos e diz: Tu és o Cristo, o filho de Deus vivo. E JC conclui: não foi a carne nem o sangue quem te revelaram isso, mas meu Pai que está nos céus. E eu te digo que tu és Pedro e sobre esta pedra assentarei a minha Igreja e te darei a chave do reino dos céus...
É interessante que esse trocadilho pedro-pedra também está presente na língua grega (pétros-petra), sendo que ambas as palavras têm significado similar. Obviamente, JC não falava em grego, mas o trocadilho em grego e nas línguas latina e neolatinas caiu bem, unindo a pessoa (Pedro) e o objeto (pedra) pela metáfora da edificação. O que se observou, ao longo da história, é que os Papas usaram e abusaram desta 'chave', indo muito além do simbolismo espiritual e descambando para o lado material e político do poder social, até chegar ao dogma da inerrância (o Papa não erra!!). Foi assim que o Papa Gregório VII excomungou o rei Henrique IV e ele perdeu por isso o seu poder real e foi preciso vir pedir perdão ao Papa vestido de mendigo (exigência do Papa), para que a excomunhão fosse retirada, ou seja, a chave do poder temporal funcionando de maneira impiedosa; foi tb o caso ao Papa Gregório XIII que foi chamado para definir o calendário mundial, quando se descobriu que a contagem dos dias estava errada, em 1582, instituindo o nosso atual calendário (Gregoriano), porque somente ele tinha autoridade de alcance mundial; era tb por isso que, até Pio XII, o Papa usava a tríplice coroa, simbolizando o sacerdócio, a jurisdição e o magistério, que colocava o Papa acima de todos os soberanos do universo. Com certeza, não foi essa a intenção de JC ao dar a 'chave' a Pedro, mas foi essa a extensão que o significado da chave pegou ao longo da história. Somente a partir de João XXIII, a tríplice coroa foi deixada de lado (não foi formalmente desconstituída), mas depois dele, os Papas não mais fizeram uso dela. Do ponto de vista espiritual, a chave foi transformada no conceito da inerrância, mas até mesmo o dogma da infalibilidade do Papa não tem mais sido invocado pelos Pontífices, embora seja uma prerrogativa canônica que é atribuída ao Papa.
E a parte final do discurso de JC é também bastante significativa, quando ele diz: tudo que ligares sobre a terra será ligado no céu e tudo que desligares aqui será desligado lá. A palavra latina para 'ligar' é o verbo 'ligare', que tem o sentido de atar, prender, semelhante ao português; já a palavra latina para 'desligar' é o verbo 'solvere', que significa literalmente desatar, desfazer, solucionar. É o mesmo verbo que em português se traduz por 'resolver' e tem o sentido jurídico de extinguir uma obrigação. Como se vê, não se trata propriamente de desligar, mas de soltar os nós, solucionar os problemas. Ocorre que o sentido histórico conferido a estes verbos está mais assemelhado ao conceito de energizar ou desenergizar alguma máquina, o que se afasta do sentido original. Eu entendo que JC falou em ligar e resolver no contexto de solucionar as dificuldades que comumente ocorrem nas comunidades humanas e que iriam ocorrer também na comunidade eclesial, portanto, no sentido humanístico, espiritual. Mas isto tb foi transmudado historicamente para o mesmo conceito de poder associado ao conceito da chave.
Felizmente, após João XXIII, passou-se a ver os atributos de ligar e desligar mais próximos do seu sentido original do evangelho. O Papa João Paulo II deu inúmeras demonstrações disso. O Papa atual tb tem procurado manter essa orientação, mas infelizmente ainda existe muito autoritarismo da parte de alguns Bispos e Párocos, que repetem atitudes comuns nos tempos pré-conciliares e não são mais compatíveis com a posição que a autoridade religiosa deve ter no mundo de hoje. Tenho por certo que, ao dar as 'chaves' a Pedro, JC o constituiu como líder do grupo, para fazer o que Ele próprio vinha fazendo, após o seu retorno para o Pai. Liderança, porém, não é sinônimo de autoritarismo. JC nunca agiu autoritariamente e, portanto, não se pode dizer que ele tenha passado esse poder aos seus discípulos. Os nossos Pastores precisam conscientizar-se disso, para que o clericalismo não venha a se sobrepor ao laicismo como se aquele fosse superior a este. Afinal, clérigos e leigos, somos todos cristãos por força do mesmo batismo na fé em Jesus Cristo.

20º Domingo Comum - 14-08-2011 - Universalismo da doutrina cristã


Prezados Confrades,

Vocês devem saber que a palavra católico, do grego kathólikos, significa universal. A liturgia de hoje faz uma referência a essa dimensão da catolicidade-universalidade da mensagem de JC.
Na primeira leitura, o profeta Isaías (na verdade, o Deutero Isaías, cap 56, conforme já comentado aqui antes) diz expressamente que Jahweh aceita os holocaustos oferecidos pelos estrangeiros que honram o seu nome, porque a sua casa é para todos os povos.
Na carta de Paulo a Romanos, volta a questão dos convertidos de outras origens com os problemas criados pela comunidade romana, que teimava em não aceitar essa presença dos estrangeiros, como se fosse possível fazer uma hierarquia entre os cristãos legítimos e ilegítimos. Como também já comentamos anteriormente, Paulo teve um trabalho enorme para pacificar essa discussão.
E no evangelho de Mateus, nós temos o espetacular exemplo de fé da mulher cananéia. Os cananeus eram inimigos dos israelitas e JC fez de propósito uma atitude pedagógica perante os apóstolos. A mulher vinha gritando e ele fazia que não escutava. Os apóstolos, então, pediram: Mestre, manda esta mulher embora!! como quem diz: ela é uma estrangeira, não tem direito de ser atendida por ti. E a mulher dizia: Filho de Davi, socorre-me, minha filha está seriamente atormentada por um demônio...
Ora, nós sabemos que essa era a forma de, antigamente, as pessoas se referirem às doenças psicológicas, que atualmente têm sua etiologia bastante esclarecida e tratada. Na época de JC, esse comportamento era geralmente atribuído a alguma ação demoníaca. Curiosamente, as mulheres eram mais atormentadas por esse mal do que os homens, por causa da repressão social que sempre foi mais forte em relação às mulheres, levando-as a desenvolver problemas psíquicos com maior frequencia do que os homens. Esses fatos tanto explicavam como eram explicados pela narrativa bíblica do paraíso, quando Eva foi convencida pela serpente e depois convenceu Adão... ou seja, o demônio é a fonte do pecado, mas a mulher é instrumento dele, por ser mais vulnerável e, portanto, mais suscetível de acatar a provocação demoníaca. Coisas da cultura machista, que ainda hoje é bastante hegemônica e poderosa.
Pois bem, e a mulher pedia cura para a filha dela, atormentada pelo demônio e JC fazia que não escutava. Obviamente, essa era uma estratégia usada por Ele para ensinar ao povo e especialmente aos seus discípulos o alcance da sua missão. Quando a mulher se aproximou mais, ele ainda fez uma breve misancênia, talvez para ver a reação dos apóstolos. Disse: eu vim para salvar as 'ovelhas' perdidas de Israel... não é justo que eu tire o pão dos filhos para jogá-los aos cães. Mas a mulher foi persistente e perspicaz: tem razão, Mestre, mas os cães tb comem das migalhas que caem das mesas de seus donos. Era o que JC queria ouvir.
É claro que Ele já sabia qual seria a reação da mulher, mas ele precisava que isso fosse demonstrado publicamente. Então, vem o arremate: Mulher, grande é a tua fé, faça-se como tu queres.
Meus amigos, volta outra vez o tema sobre o qual escrevi aqui no domingo passado: Deus dá a sua graça, mas espera que nós colaboremos, para que ela surta efeito. Essa colaboração é a fé. JC podia muito bem ter dito logo no começo da conversa: está bem, mulher, tua filha está curada... mas não, ele esperou primeiro que ela insistisse, depois, que ela não desistisse mesmo ante a negativa dele. Para nós, ele ensina que sem a nossa adesão, sem a nossa fé, a graça divina não terá efeito em nós.
Para os discípulos, ele deu a lição de que também os estrangeiros têm direito à salvação que ele veio anunciar. Porque, se os cães comem migalhas dadas pelos donos, os estrangeiros tb poderão fartar-se com o alimento que Ele estava oferecendo aos israelitas, mas estes não queriam aceitar. Para a mulher, bastaria uma migalha caída da mesa, mas JC deu mais do que isso, deu o prato de comida inteiro, porque ela teve uma fé inabalável.
É apenas isso que Deus quer de nós: a fé, a adesão plena e verdadeira.
Vale lembrar, neste contexto, aquele conhecido caso do centurião romano, que serve de jaculatória permanente em todas as missas. Ele pediu a cura do filho dele e JC disse: está bem, eu irei à tua casa e o curarei. E o centurião disse: não precisa ter este trabalho, Senhor, basta uma palavra tua e o meu filho ficará curado. E JC arrematou: sinceramente, nunca encontrei tamanha fé em Israel.
São dois exemplos de fé, nos quais devemos sempre nos espelhar.

sábado, 21 de janeiro de 2012

19º Domingo Comum - 07.08.2011 - o desespero de Paulo


Prezados Confrades,

Na liturgia deste 19º Domingo Comum, quero destacar dois pontos relativos às atividades de Paulo e de Pedro.

Na carta de Paulo a Romanos, vemos a sua angústia com os problemas que aconteciam naquela comunidade, de tão aflito, ele até pede para ser 'segregado' por Cristo, eu entendo isso como se ele estivesse dizendo, na nossa expressão nordestina, 'eu prefiro uma boa morte a ter de fazer isso'. O grande problema de Paulo nesse contexto era a polêmica entre os judeus convertidos ao cristianismo e os cristãos de outras nacionalidades. A religião judaica tinha (e ainda tem) como rito inicial a circuncisão e os judeus convertidos queriam que isso fosse reconhecido como obrigatório tb para os cristãos, no que os demais discordavam.

Eles se julgavam 'donos' da situação e queriam impor sua vontade, pelo fato de serem conterrâneos de JC e proprietários da antiga aliança, que JC veio confirmar. Paulo discordava disso, dizendo que agora era o batismo que identificava o cristão, não a circuncisão, porque esta era o rito da lei antiga e o batismo era o rito da lei nova. Mas a resistência dos cristãos judaizantes era tão severa que Paulo perdia a paciência e chegou a preferir uma boa morte, pra não assistir a tão enorme e desgastante discussão. Por fim, é óbvio, prevaleceu a idéia de Paulo, mas essa foi uma das questões mais trabalhosas que ele teve de enfrentar.

O outro ponto que quero destacar se refere ao vacilo de Pedro, quando andava sobre as águas. JC já havia dado aos discípulos uma extraordinária demonstração do seu poder divino com a multiplicação dos pães e, na sequẽncia, fez outra grande demonstração ao caminhar sobre as águas. Pedro, com sua peculiar impulsividade, quis uma prova mais contundente do poder de JC e pediu: manda-me ir ao teu encontro. JC disse: Vem, e ele começou a andar, mas logo teve medo e começou a afundar. O medo não combina com a fé. Medo é dúvida. Em outra passagem, JC disse que, se a nossa fé for do tamanho de uma semente de mostarda, será capaz de mover montanhas. Sempre que JC fazia uma cura, ele dizia: a tua fé te curou, a tua fé te salvou. Isso significa que Deus não faz benefícios 'de graça' para nós, é preciso que colaboremos, para que eles aconteçam. E a nossa colaboração principal é a fé. Não que Deus precise da nossa colaboração, pois o seu poder está acima disso. Mas se Deus deu ao ser humano o livre arbítrio, ele estaria sendo incoerente ao fazer conosco algo sem a nossa concordância.

Por outro lado, esta concordância não pode ser algo passivo. Ou seja, a fé exige ação, atividade. O poder divino coloca todas as condições para que algo aconteça em nós, é isso que a teologia chama de 'graça divina', mas se não houver a nossa colaboração, a sua graça não produz efeito. Por outras palavras, Deus inicia um trabalho em nós, mas requer a nossa colaboração para que esse trabalho se complete e se efetive. De outro modo, Deus estaria desrespeitando a nossa condição de seres livres, impondo-nos a sua vontade. E se assim fosse, com esta imposição, a salvação não teria nenhum mérito nosso e a redenção trazida por JC ficaria sem sentido.

Isso equivaleria à doutrina da predestinação, que é rejeitada pela teologia católica. Portanto, é com a fé que se completa em nós a obra divina, porque a fé indica a adesão da nossa vontade ao plano da salvação. Por isso, a fé não pode ser pequena, não pode vacilar, isso comprometeria todo o processo. Por isso tb, diz a música litúrgica: creio, Senhor, mas aumentai minha fé, porque não basta crer, mas crer implica a convergência de todas as forças do nosso espírito.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

18º Domingo Comum - 31.07.2011 - o pão da fartura


Caros Confrades,

A liturgia deste domingo (31/7) pode ser denominada o domingo da
fartura. As leituras do AT e NT se ajustam de um modo singular. Isaias
diz: "vinde e comei, vinde comprar sem dinheiro,
tomar vinho e leite, sem nenhuma paga... Ouvi-me com atenção, e
alimentai-vos bem, para deleite e revigoramento do vosso corpo". E o
evangelista Mateus relata que a multidão foi saciada com o pão da
palavra e com o pão do trigo. A profecia de Isaías se realizou
integralmente na multiplicação dos pães.
Isaías foi o profeta que melhor 'desenhou' a figura do futuro Messias. O
trecho citado na leitura de hoje é do cap. 55, denominado pelos exegetas
de 'DeuteroIsaías', porque a crítica literária concluiu que, a partir do
cap. 40 do livro de Isaías, o texto foi escrito após a morte do profeta,
por seus discípulos, que deram continuidade à obra do Mestre. Diz-se por
tradição que foi Isaías, mas de fato, a autoria material do texto é de
outras pessoas, tendo sido atribuído a Isaías. Mas sendo ou não da
autoria do titular, o fato é que a profecia se adequa com muita
propriedade aos fatos futuros.
Em relação ao texto de Mateus, cap.14, o relato da multiplicação dos
pães tem pequenas variações na narração de João, cap. 6. No texto de
Mateus, este relata que JC foi para um lugar afastado, depois que soube
da morte de João Batista, tendo sido 'descoberto' pelas multidões que
foram até ele para ouvi-lo. No texto de João, este não se refere à morte
de João Batista, mas sim ao fato de que João veio dar testemunho dele
(vide cap 5, a partir do v. 31). O texto de João é mais teológico, o
texto de Mateus é narrativo apenas.
No final do cap 5 de João (v.39), JC faz uma menção direta a Isaías,
quando declara: "examinai as escrituras, pois vós acreditais que nelas
terão a vida eterna; são elas que dão testemunho de mim". Iniciando o
cap. 6, João passa a relatar a multiplicação dos pães, dizendo: depois
disso, JC atravessou o mar da Galiléia, que é chamado de Tiberíades, e
as multidões o seguiram. Mateus não traz esta reflexão sobre o
'testemunho de João'.
Outra divergência diz respeito ao diálogo acerca da fome da multidão. No
texto de Mateus, são os discípulos que demonstram preocupação e vão
procurar JC para dizer: despede as multidões, para que possam ir
procurar comida. No texto de João, é o próprio JC quem pergunta a
Felipe: onde encontraremos pão para estes comerem? E Felipe respondeu:
duzentos denários de pão não seriam suficientes... No texto de Mateus,
os discípulos dizem: só temos aqui cinco pães e dois peixes... No texto
de João, é André quem diz: aqui tem um rapaz com cinco pães e dois
peixes. Embora essas pequenas diferenças não alterem a essência da
narrativa, contudo demonstram uma modificação ocorrida no decurso do
tempo. O evangelho de Mateus foi escrito por volta do ano 70, enquanto o
de João foi escrito no ano 100 e cada um deles estava em local
geográfico diferente. Isso demonstra que várias fontes circulavam na
região e nem todas tinham o mesmo teor.
Faço essas referências apenas por motivo de análise textual, mas o
ensinamento teológico presente é o mesmo: a doutrina de JC abrange o ser
humano integralmente, tanto no aspecto espiritual quanto no material. JC
sabia que se o físico não está bem alimentado, o espírito não terá
energia para compreender e por em prática a doutrina. O pão do corpo e o
pão do espírito se completam. Uma certa abordagem teológica produzida na
Idade Média, sobretudo por influência do pensamento de Platão,
supervalorizava o espírito em detrimento do corpo, daí a prática de
penitências e mortificações introduzidas na pedagogia tradicional,
ensinando uma noção depreciativa acerca do corpo. Vejam o que JC disse
aos discípulos: eles não precisam ir embora, dai-lhes vós mesmos de
comer. E complementa João: Ele disse isso para testar os discípulos,
porque já sabia o que iria fazer (João 6,6). A doutrina cristã do
cuidado com o ser humano inteiro, e não apenas com o espírito, foi
esquecida por esta corrente tradicional. Ao multiplicar os pães, JC
ensinou não apenas que o pão do espírito deve se integrar com o pão do
corpo, mas ensinou tb que o Pai não deixará faltar o pão material
àqueles que tiverem zelo com o pão espiritual. Não só não faltará, como
o terá em abundância. Diz o evangelista que, do que sobrou depois que
todos ficaram fartos, foram enchidos doze cestos. Ou seja, o pão da
palavra é o verdadeiro pão da fartura.

17º Domingo Comum - 24.07.2011 - Salomão e a oração altruística


Caros Confrades,

No domingo passado, eu me encontrava fora de Fortaleza, por isso não
comentei com vcs a liturgia dominical. Volto a fazer isso agora,
abordando a primeira leitura de hoje, extraída do Livro dos Reis.
Trata-se da oração de Salomão a Javeh logo que assumiu o trono de
Israel. Diferente dos outros dirigentes, que pediam 'coisas' para si
(poder, vitória sobre os inimigos, vida longa, etc),Salomão pediu
'coisas' para poder governar bem o povo (justiça, discernimento,
compreensão) e Javeh gostou do pedido do jovem rei. Em retribuição,
deu-lhe o que ele pedira e até o que ele não pedira (vida longa, vitória
sobre os inimigos). Curioso é que o autor do livro dos Reis escreve como
se Javeh já não conhecesse antecipadamente o coração de Salomão e
tivesse se surpreendido com o pedido dele. É claro que Javeh já sabia,
mas o que o autor do texto quer ressaltar é que a subida ao trono não
'subiu à cabeça' de Salomão, que fez uma oração humilde, reconhecendo o
poder superior de Javeh. Nesse sentido, JC tb veio ensinar que "nenhum
côvado e acrescentado à nossa altura" sem a permissão divina e que o Pai
sabe das nossas necessidades. No entanto, Ele espera que nós peçamos.
Este 'pedido' que Deus espera de nós é o que se chama de oração. Várias
vezes, JC disse: pedi, pedi, tudo que pedirdes vos será concedido.
Muitas vezes, porém, nós não sabemos pedir ou a soberba e a arrogância
prejudicam nossos pedidos. Pedidos egoístas, o Pai ignora. A oração de
Salomão vem nos ensinar a orar altruisticamente. Como tb já ensinou o
Pai Seráfico: que eu não queira tanto ser consolado, quanto consolar...
nem tanto ser compreendido, quanto compreender... Este é o pedido
agradável a Deus, porque a nossa vida individual não tem sentido sem a
comunidade (ekklesia-igreja) na qual nós nos inserimos. Ao pedir pela
comunidade (ekkesia-igreja), estamos pedindo tb para nós, mas não só
para nós egoisticamente, e sim para o bem de todos, porque na comunidade
(ekklesia), se alguém está triste, todos se entristecem, se alguém está
alegre, todos se alegram, esta é a sua essência. E quando os apóstolos
pediram a JC que lhes ensinasse a orar, ele exemplificou: dizei algo
parecido com isso - Pai, venha o teu reino, faça-se a tua vontade... e
NÃO assim - Pai, eu quero isso, quero aquilo, se me deres isso eu farei
isso (uma espécie de 'comércio' dos favores divinos que é tão comum na
prática pietista do nosso povo). E Javeh disse a Salomão: eu te darei o
que me pediste e tb o que não me pediste. E JC tb disse: pedi em
primeiro lugar o reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais vos será
dado por acréscimo. É a oração altruística perfeita.
A nossa catequese tradicional sempre ensinou uma espécie de oração
egoísta, ao contrário do que JC ensinara. Pedir a própria saúde, pedir
pra conseguir um bom emprego, pedir pra ganhar na loteria, pedir pra ter
muitos bens e uma vida folgada, etc, ou seja, pedidos individualistas. E
nesse sentido são as conhecidas 'promessas' aos santos. E lá em Canindé,
como em Juazeiro, existem salas repletas de 'pagamento' dessas
promessas. Com certeza, não foi essa a forma de orar ensinada por JC
para fazermos nossos pedidos. E nem é essa a forma agradável a Javeh.
Através do tema da oração, a liturgia de hoje tb ressalta a unidade da
doutrina entre o Antigo e o Novo Testamentos. Vê-se aqui uma confirmação
daquilo que JC falou tb várias vezes: eu não vim para mudar a lei, mas
para cumprir, exaltando a unidade entre a lei antiga e a lei nova. A
oração altruísta de Salomão tem o mesmo modelo que foi exemplificado por
JC no Pater Noster. E isso está textualmente registrado no evangelho de
Mateus, tb inserido na leitura de hoje (Mt 13,52), quando ele escreveu:
"omnis scriba doctus in regno caelorum similis est patrifamilias, qui
profert de thesauro suo nova et vetera", literalmente, todo escriba
(conhecedor da lei) que é douto (conhecedor) sobre o reino dos céus é
semelhante a um pai de familia, que retira do seu tesouro coisas novas e
velhas. Isto significa: quem segue a lei antiga na perspectiva da lei
nova, sabe integrar o novo com o velho, sabe transformar uma coisa velha
numa coisa nova, mantendo a sua essência.

15º Domingo Comum - 10.07.2011 - o semeador


Diletos Confrades,

O evangelho deste domingo, 10/7, nos traz de volta a parábola do semeador, uma das mais conhecidas. Ecce exiit qui seminat seminare. (Eis que saiu aquele que semeia para semear). Esta parábola tem alguns pontos bastante intrigantes para nós, imensos desafios colocados ali por JC.
Primeiramente, gostaria de lembrar que nós todos fomos 'seminados'. A instituição do Seminário foi criada no Concílio de Trento para semear novas sementes do sacerdócio, nós continuamos a ser essas sementes, mesmo não tendo permanecido na vida religiosa, porque a semente da Palavra é lançada em todo lugar. É como se todos nós tivéssemos sido transplantados para outros campos, mas as nossas raízes continuam lá, essa é uma constatação que se tem a cada encontro.
Mas, voltando ao assunto da semeadura na parábola. Vou me concentrar em dois pontos que considero mais importantes.
Um deles é que essa é uma rara vez em que o evangelista detalha para o leitor a explicação da parábola dada pelo próprio JC. É de se supor que ele sempre explicava as parábolas para os discípulos quando conversava em particular com eles, embora nem todas essas explicações tenham sido transcritas nos evangelhos.
No caso desta, há alguns detalhes que chamam a atenção, quando os discípulos perguntam a JC: por que vc fala às pessoas em parábolas? isto é, por que vc não fala logo claramente para todos? e JC responde: "para que olhando, não vejam, e ouvindo, não entendam. Porque o coração deste povo se tornou insensível e ouviram de má vontade e fecharam seus olhos..." minha gente, isso é muito duro. Então, JC já estaria previamente condenando os judeus, porque não quiseram aceitá-lo e reconhecê-lo como o Messias?
Não creio que fosse isso, mas sim que JC já sabia dos acontecimentos futuros e via que já não mais adiantava tentar dialogar com os judeus, eram um caso perdido. Então, ele pregava para os "estrangeiros" e preparava os apóstolos para, depois, esclarecer a estes os seus ensinamentos. Ele estava literalmente lançando a semente. Essa semente ainda vai precisar medrar e desabrochar, mas já ficou lançada. Os judeus seriam aquele terreno pedregoso ou espinhoso, onde ele já sabia que a semente não iria germinar. Mas lançou tb por ali, porque no meio de todo terreno pedregoso sempre há alguma porção de terra, no meio dos espinhos há sempre algum espaço livre e assim a semente poderia germinar ali tb. Ou seja, JC não estava de antemão condenando os judeus, mas não queria desperdiçar seu tempo (que ele sabia ser curto) com um auditório que teimava em não compreender. Dirigia-se então, preferencialmente, aos estrangeiros.
Quanto a nós, precisamos cuidar para que o nosso coração tb não se torne insensível, para que o nosso orgulho e a nossa arrogância não nos transformem nesses terrenos pedregosos e espinhosos, inadequados para a semeadura, tal como outrora se apresentaram os judeus.
O outro ponto é aquele em que Ele confunde ainda mais a gente quando diz: "Porque a vós foi dado o conhecimento dos mistérios do Reino dos Céus, mas a eles não é dado. Pois à pessoa que tem será dado ainda mais, e terá em abundância; mas à pessoa que não tem será tirado até o pouco que tem." Minha gente, isso é cruel. Ao que tem alguma coisa, será dado mais; ao que não tem, até o pouco que tem será tirado. Onde ficou a misericórdia do coração de JC na hora de dizer isso?
Parece uma atitude incoerente com os seus ensinamentos. Mas eu entendo isso como um grande desafio que JC colocou para os seus discípulos daquele tempo e coloca para nós hoje tb. Os dons recebidos por cada um de nós, quando bem administrados, se multiplicam; quando não se tornam produtivos, são retirados. A misericórdia de Deus não alcança aos que deixam de corresponder aos seus dons. Ele diz: alguns produzem 100:1, outros 60:1, outros ainda 30:1, mas tem de produzir algo. Nós cristãos temos essa grande responsabilidade de demonstrar 'produção' dos dons.
Essa forma de falar até lembra um jargão do universo capitalista, mas obviamente JC jamais se referia nesse sentido. Produzir é frutificar, frutificar é ser exemplo, então a produção aqui significa ser sal e ser luz, como Ele disse em outra passagem; em outras palavras, significa fazer a diferença. Então, não basta ser cristão 'da boca pra fora' dizendo isso a todo instante, isso tem de se manifestar em ações e atitudes. Não basta dizer: Senhor, Senhor... não é suficiente orar no recôndito do seu ser. Tudo isso é importante, mas será vão se não frutificar, se não se transformar em sal e luz, se não fizer aquela diferença que faça alguém reconhecer no seu agir o comportamento de um discípulo de Cristo.
Este é o nosso desafio cotidiano, todos os nossos esforços devem convergir para uma competente superação desse desafio.

14º Domingo Comum - 03.07.2011 - Bonum certamen


Prezados Confrades,

A liturgia dominical de hoje (3/7) celebra a festa de Sao Pedro e Sao Paulo. Com efeito, o martirio de ambos ocorreu, segundo a tradição, no ano 67, embora não tenham sido os dois no mesmo dia, mas na liturgia eles estão juntos, porque são duas grandes pilastras do cristianismo, sem desmerecer os demais apóstolos.
A primeira leitura de hoje relata um fato emocionante, a libertação de Pedro que estava preso por ordem de Herodes e foi libertado pelo anjo do Senhor. Sempre que faço essa leitura, me arrepio imaginando a cena, que deve ter sido extraordinária. Talvez haja um certo acréscimo lírico do agiógrafo, mas o fato é deveras miraculoso. Os prisioneiros ficavam com as maos e pés amarrados a correntes, apesar de estarem presos na cela.
No caso de Pedro, com certeza ainda havia guardas especiais, porque Herodes sabia da sua posição de liderança no grupo cristão. Então, a cela se iluminou (provavelmente so Pedro viu esta luz) e as correntes lhe cairam do corpo quando o anjo lhe disse pra vestir a túnica e acompanha-lo. Passou pelos guardas que nada notaram, o portao de ferro abriu-se sozinho e lá estava Pedro na rua... ele próprio pensava que estava sonhando e só então reconheceu que fora favorecido com um milagre.  Este ato, juntamente com a conversão de Paulo, são dois eventos que eu considero os mais emocionantes da história do cristianismo primitivo. JC precisava da presença de Pedro e Paulo para consolidar a nascente ekklesia e agiu diretamente, pessoalmente para mantê-los na missão.
A segunda leitura me faz lembrar muito do Frei Higino, que gostava de repetir: bonum certamen certavi, cursum consumavi, fidem servavi (combati o bom combate, terminei a carreira, guardei a fé). Assim disse Paulo quando já estava a caminho de Roma, onde sabia que seria morto.
Ele já tinha sido de fato condenado à morte, mas usou sua prerrogativa de cidadão romano e apelou para o Imperador. Só os romanos tinham esse privilégio, por isso estava ele a caminho de Roma. É claro que ele sabia que isso era apenas um artificio para ganhar tempo, porque o Imperador não iria livrá-lo. Mas enquanto isso, ele continuava a evangelizar.
Eu considero essa profissão de fé de Paulo (bonum certamen certavi, cursum consumavi, fidem servavi) um modelo de vida para todos os cristãos. Combater o bom combate significa fazer suas opções de vida perante a sua consciência de cristão e seguir adiante sendo fiel a elas.
Algumas vezes, o encaminhamento dos fatos até deixa dúvida se estamos no caminho certo, pois enfrentamos obstáculos e dificuldades de diversos tipos e tamanhos, mas nada deve nos fazer retroceder. A fidelidade aos ideais cristãos deve ser a meta prioritária de todo aquele que se diz seguidor de JC, este é o bom combate a ser enfrentado todo dia. O cursum consumavi (terminei a carreira) só Deus sabe quando será, mas enquanto não chega, o bom combate deve prosseguir guardando a fé (fidem servavi).
O próprio Paulo já dissera em I Corintios 10, 13 que Deus não permitirá que sejamos tentados acima de nossas forças (Fidelis autem Deus est, qui non patietur vos tentari supra id quod potestis=Pois Deus é fiel, de modo que não consentirá que vós sejais tentados acima daquilo que podeis suportar), portanto, nenhuma atribulação deverá nos separar do amor de Cristo, conforme diz aquela conhecida melodia religiosa.

13º Domingo Comum - 26.06.2011 - tomar a cruz


Prezados Confrades,
A liturgia inicia hoje um ciclo de domingos do tempo comum litúrgico, o qual é destinado à exposição doutrinária geral, conforme seleção de textos da CNBB.
Hoje, temos a leitura do livro dos Reis, narrando o episódio em que o profeta Eliseu retribui a boa hospadagem de uma rica madame, já em idade avançada, com a geração de um filho. Sabe-se o quanto era importante a fecundidade nos tempos mais antigos, pois existem inúmeras festas desses tempos ancestrais em homenagem à fartura da terra e à fertilidade das mulheres. Eliseu não encontrou forma melhor de agradar a sua anfitriã do que presenteá-la com um filho, mesmo já tendo passado da idade. Faz lembrar o episódio de Sarah, quando também gerou Isaac ('que a fez rir') em idade avançada.
Na outra leitura, Paulo ensina aos Romanos que nós fomos batizados na morte de Cristo para sermos ressuscitados com ele. É o conceito de 'novo homem' (hoje, devemos dizer tb 'e da nova mulher') da teologia paulina, morto para o pecado e vivo para Deus. Isso leva à conclusão da responsabilidade de cada batizado em dar seu testemunho de que ressuscitou com Cristo. É fácil ser cristão dentro do templo, mas é preciso ser e agir como cristão em toda parte, de modo que todos possam reconhecer os verdadeiros discípulos de Cristo. A madame rica que hospedava Eliseu reconheceu, pelo comportamento deste, que ele era um homem de Deus e até mandou construir um cômodo com cama, mesa, cadeira e candeeiro, ou seja, um aposento mobiliado para hospedá-lo toda vez que ele visitasse aquela cidade. Ela dizia aos seus criados: vê-se que este profeta é um homem de Deus. Assim, Paulo ensina que os cristãos devem agir de tal modo que as outras pessoas possam reconhecer neles a presença de Cristo.
E no evangelho, JC arremata: quem não toma a sua cruz e não me segue, não é digno de mim. Não vamos entender aqui a palavra 'cruz' como sinônimo de sofrimento. É sofrimento também, mas não só isso. Tenhamos em mente o ensinamento de Paulo: morrer com Cristo, para ressuscitar com Ele. Então, quando JC diz que devemos 'tomar a cruz', fica subentendido que junto com a cruz está tb a ressurreição, porque um fato é inseparável do outro. Muitas vezes, a catequese tradicional explorava este ensinamento como uma ordem de JC para que todos se resignassem aos sofrimentos, como se a vida do cristão fosse uma vida de sofrimento apenas.
Isso demonstra o predomínio de uma ideia negativa da cruz, sobre a qual já escrevi aqui antes, quando estávamos na semana santa. A pedagogia catequética tradicional exalta muito a cruz como sofrimento, esquecendo de ressaltar que este sofrimento culmina na ressurreição. Tomar a cruz e seguir a Cristo significa encarar os sofrimentos como etapas necessárias da vida, mas para não nos levar ao desânimo, precisamos manter a esperança da ressurreição. Daí que JC diz depois: quem quiser conservar a sua vida, perde-la-á e quem perder a sua vida por causa de mim, vai encontrá-la. Conservar a vida = evitar o sofrimento; perder a vida = encarar o sofrimento e superá-lo. É o paradoxo ensinado por JC. Quem encara com fé as dificuldades e não desanima diante do sofrimento parece que está desperdiçando a sua vida, mas ao contrário, está aperfeiçoando o seu ser a caminho da ressurreição. Ao contrário, quem reclama diante das dificuldades e busca através do apego aos bens e aos prazeres evitar o sofrimento, parece que está ganhando a vida, mas na verdade, está perdendo-a, pois não há ressurreição futura sem a morte anterior. A dialética da morte e da ressurreição exige a ocorrência dessas duas variáveis inevitáveis, que somente a fé pode esclarecer para o entendimento.

Domingo da Trindade - 19.06.2011 - a revelação do mysterion


Prezados Confrades,

Celebramos hoje a festa litúrgica da Santíssima Trindade. Escutei o sermão do celebrante da missa de hoje na paróquia e, infortunadamente, tudo que ele disse foi que a Santíssima Trindade é um mistério que nós devemos trazer para a nossa vida. No mais, falou aqueles chavões já conhecidos, cantou um cântico litúrgico (prova de amor) na hora da homilia e falou até em Josemaria Escrivá, o prelado espanhol criador da Opus Dei, uma entidade que é considera nebulosa no seus modus operandi... ou seja, perdeu a oportunidade de desenvolver um tema tão importante do ano litúrgico.
Pois bem, meus amigos, a Santíssima Trindade é a verdade de fé que centraliza toda a teologia cristã. Foi aquela que deu mais trabalho a JC para ensinar aos apóstolos, eles não conseguiam entender. Todo o edifício doutrinário do cristianismo se fundamenta na trindade, ou seja, no conceito de um Deus Uno e Trino, isto é, três em um só.
Vcs talvez conheçam uma historinha atribuída a Santo Agostinho. Ele estava meditando sobre o 'mistério' da trindade andando pela praia e depois de algum tempo esquentando os miolos sem conseguir entender, viu um garotinho que fazia uma tarefa insana: ele corria até o mar, onde enchia uma pequena vasilha com água e voltava e colocava aquela água num buraco que havia feito na areia. Ia e vinha inúmeras vezes fazendo essa tarefa, o que deixou Agostinho curioso. Aproximou-se e perguntou ao garoto o que ele estava a fazer. Resposta do garoto: quero colocar o mar dentro desse buraco. Agostinho sorriu e respondeu: isso é impossível. Ao que o garoto teria retrucado: será mais fácil eu colocar o mar inteiro neste buraco do que vc entender o mistério da trindade.
Folclore à parte, eu nunca procurei confirmar a veracidade desse fato, mas o que interessa dizer aqui é que a trindade não é mais um mistério, desde que JC veio explicar como ela é. A palavra 'mysterion' em grego significa 'segredo', portanto, depois de JC 'revelou' o seu conteúdo, não é mais segredo (mistério). Era mistério antes de JC ensinar, depois passou a ser doutrina de fé. O mesmo Santo Agostinho, certa vez, afirmou (isso está nas Confissões dele): Credo quia absurdum - creio, porque é um absurdo. Ou seja, se fosse uma verdade compreensível, possível de ser explicada pela razão, não haveria necessidade de crer, passava a ser algo de simples evidência. A fé é necessária exatamente porque a nossa razão não consegue entender, e mesmo assim nós aceitamos. E nós só conseguimos ter acesso a esse conteúdo porque JC veio revelar. Revelar significa literalmente 'tirar os véus', portanto, tornar visível algo que estava escondido, envolvido em véus. É assim que devemos entender o sentido da palavra 'mistério' na teologia: uma verdade revelada, um conhecimento que a nossa mente não consegue captar sozinha, precisa da ajuda da fé para ser alcançada.
Qual foi, então, o grande 'segredo' (mysterion) que JC veio revelar? Foi que o nosso Deus é comunidade. Minha gente, essa é a grande novidade da sua revelação. Em nenhuma outra religião existe isso, um Deus comunidade, que é um e ao mesmo tempo é três. Na época de Sto Agostinho não existia isso que vou dizer agora, mas hoje em dia, fica bem mais fácil pra nós entendermos isso, porque a tecnologia vem nos ajudar com os aparelhos 'três em um'. A minha impressora é tb scanner e copiadora, ou seja, é três em uma, tem três funções num só equipamento.
Evidentemente, essa comparação com a trindade é falha (toda comparação claudica, já diz o ditado), é falha porque enquanto uma das funções está operante, as outras estão inativas. Enquanto imprime, não pode escanear ou copiar. Mas na trindade divina, as três pessoas operam ao mesmo tempo, isto é, enquanto uma está agindo, nenhuma das outras pessoas fica inativa, todas operam simultaneamente.
Essa é a grande riqueza da religião cristã, que a torna diferente e superior às demais: o Deus comunidade. Em todas as demais religiões - monoteístas e politeístas - as personalidades divinas são singulares. Só na religião cristã, o Deus é singular e coletivo. Essa é a verdade central, porque só tem sentido falar em natal, paixão, morte e ressurreição, ascensão, pentecostes (comemorações litúrgicas de primeira classe), porque o nosso Deus é trindade. Se retirarmos a trindade, todas as demais verdades da religião perderão seu fundamento.

Domingo de Pentecostes - 12.06.2011 - línguas de fogo


Caríssimos Confrades,

A liturgia de hoje celebra a festa de Pentecostes, o recebimento do Espírito Santo por Maria e pelos Apóstolos. Esta comemoração pode ser considerada o ato institucional de fundação da Igreja de Cristo, não propriamente da Igreja Católica, mas de todas as igrejas cristãs. Com efeito, JC fundou uma 'ekklesia', ou seja, uma comunidade de seguidores que, ao longo da história, foi se multiplicando em diversos lugares e assumindo diversas denominações.
Foi com o recebimento do Parakleton que os Apóstolos ganharam coragem pra sair às ruas e proclamar a todos os ensinamentos de JC. Antes, eles estavam acovardados e escondidos, com medo de represálias. Foi o Espírito quem os animou e lhes conferiu os dons necessários para o cumprimento da missão.
A vinda do Espírito Santo foi tb o cumprimento de uma promessa de JC em suas aparições aos Apóstolos após a ressurreição: eu voltarei para o Pai, mas mandarei o Parakletos e Ele vos mostrará toda a verdade. Com efeito, com o recebimento do Espírito, os Apóstolos encheram-se de notório saber e causaram admiração entre as pessoas que os conheciam e nunca os tinham visto assim. Diz Lucas, em Atos, que o povo comentava: não são estes homens galileus, como é que nós os escutamos nas nossas próprias línguas, nós que somos de localidades diferentes?
Os pentecotalistas chamam a isso de 'dom das línguas' e começam a pronunciar palavras e frases desconexas, fazendo de conta que estão recebendo o Espírito naquele instante. Puro ilusionismo e ficção. Na verdade, os Apóstolos não falavam outros idiomas por eles desconhecidos, ao contrário, as pessoas de outras nacionalidades, portanto, de outros idiomas nativos é que os ouviam 'como se' estivessem falando nos seus próprios idiomas. Nisso consistiu o milagre do Espírito, no ato institucional da Igreja de Cristo. Ou seja, mesmo falando na língua hebraica, que era a língua nativa dos Apóstolos, as pessoas de outros idiomas entendia o que eles falavam. Usando uma comparação com os dias de hoje, diríamos que o Parakletos funcionou como um 'tradutor simultâneo' para aquelas pessoas, que ouviam a mensagem cristã pela primeira vez.
Agora, um pouco da história e da etimologia do termo. A palavra 'pentecostes' vem do grego e significa literalmente 'quinquagésimo'. Refere-se a uma festa judaica que acontecia 50 dias após a Páscoa. Todos sabem que a Páscoa é muito anterior ao cristianismo, pois o pentecostes tb era. Então, da mesma forma que JC 'programou' a sua ressurreição para acontecer na Páscoa, tb a vinda do Parakleton foi assim programada para outra festa importante. Qual o objetivo dessa programação? Coincidir com um dia de festa, no qual a cidade estaria cheia de gente, tanto dos seus próprios habitantes, quando de visitantes outros.
Diz Lucas, em Atos, que ouviu-se um estrondo que chamou a atenção de todos, que correram para ver o que havia acontecido. Quando chegaram ao local, encontraram os Apóstolos pregando a mensagem de JC e operando maravilhas em seu nome. Conforme o relato de Atos, muitas pessoas ali mesmo se converteram e aceitaram a mensagem cristã, recebendo o batismo. É, portanto, o dia da fundação da Igreja, a sua oficialização. Tudo isso, de acordo com a tradição cristã.
Porém, a narração de Pentecostes, como está em Atos, conflita parcialmente com o evangelho de João, pelo menos em dois pontos. Primeiro, João não diz que foi no quinquagésimo dia, diz apenas que estavam todos reunidos no mesmo lugar, com medo dos judeus, quando JC apareceu, deu-lhes a paz; segundo, João não se referiu a linguas de fogo, diz apenas que JC soprou sobre eles e disse: recebei o Espírito Santo. Assim, bem simples, não falou em estrondo ou ventania nem falou que era um dia em que havia muita gente na cidade.
Agora, raciocinem comigo: João, autor do evangelho estava lá e participou dos fatos; Lucas, autor dos Atos, não estava presente e não participou dos acontecimentos. A quem, portanto, deveremos dar maior credibilidade? Claro, João.
Daí eu volto a um assunto sobre o qual já me referi em msg anterior, sobre a simbologia presente na Bíblia. João não está preocupado com a misancênia, mas sua preocupação é a doutrina. Já Lucas procurou dar ao acontecimento uma aparência pomposa, uma liturgia de primeira classe. A simbologia do 50 (pentecostes) seria uma continuação da simbologia do 40, a que me referi antes. E para enfeitar mais o quadro, ele incluiu tb as línguas de fogo, a ventania, o estrondo, a multidão. João narra de forma muito mais simplista: soprou sobre eles e transmitiu o Espírito. O que importa para João é que todos foram confirmados na fé com o recebimento do Parakleton e então compreenderam tudo o que JC lhes havia ensinado.
Como se observa, destaco outra vez que não se pode interpretar a Bíblia literalmente, fundamentalisticamente, como se fosse uma ata ou uma crônica dos acontecimentos. Precisamos contextualizar e, sobretudo, precisamos entender a msg objetivada por cada escritor.
Pra não me alongar muito mais, peço vênia para colocar agora o cântico litúrgico que eu considero mais forte, mais emocionante, mais vibrante, pra mim, tem um significado especial toda vez que leio ou canto essas estrofes: (em latim, é óbvio, hino composto por Rabanus Maurus, um monge beneditino do séc IX)

Veni, Creator Spíritus,
mentes tuórum visita,
imple supérna grátia,
quae tu creásti péctora.

Qui díceris Paráclitus,
altíssimi donum Dei,
fons vivus, ignis, cáritas,
et spiritális únctio.

Tu septifórmis múnere,
dígitus paternae déxterae,
tu rite promíssum Patris,
sermóne ditans gúttura.

Accénde lumen sénsibus;
infunde amórem córdibus,
infírma nostri córporis
virtúte firmans pérpeti.

Hostem repéllas lóngius,
pacémque dones prótinus;
ductóre sic te praevio
vitemus omne noxium.

Per te sciámus da Patrem,
noscamus atque Filium;
teque utriúsque Spíritum
credamus omni témpore.

Deo Patri sit glória,
et Fillio, qui a mórtuis
surréxit, ac Paráclito,
in saeculórum saecula. Amem.