sábado, 29 de abril de 2023

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 4º DOMINGO DA PÁSCOA - 30.04.2023

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO DA PÁSCOA – O PASTOR E O IMPOSTOR – 30.04.2023



Caros Confrades,


No 4º domingo da Páscoa, a liturgia nos apresenta a clássica imagem do Bom Pastor, talvez uma das imagens mais conhecidas e mais reproduzidas pela arte sacra. A exposição detalhada e consistente do evangelista João reforça essa figura, que era tradicional nas culturas antigas e muito familiar naquele ambiente oriental do cristianismo primitivo. Neste domingo, tanto quanto no domingo anterior, sobressai-se a figura de Pedro, na leitura de Atos e também na leitura da sua primeira carta. O oposto do bom pastor será o impostor, o que não entra pela porta, mas escorrega furtivamente pela janela e engana ostensivamente. Olhando para a nossa sociedade contemporânea, parece que estamos com grande deficiência de bons pastores. A todo momento, temos notícias de lobos travestidos de ovelhas, enganando o povo que, por sua vez, se deixa enganar.


A primeira leitura, dos Atos dos Apóstolos (2, 14ss), relata outro trecho do discurso de Pedro feito no dia de Pentecostes para a multidão, que acorreu ao Cenáculo com o barulho da ventania. O mesmo povo que, dias antes, havia pedido a morte de Jesus e a soltura de Barrabás, diante do discurso inspirado de Pedro, pergunta, arrependido: o que devemos fazer? E Pedro responde: convertei-vos e recebei o batismo para o perdão dos pecados. (At 2, 38) Diz o texto que, naquele dia, cerca de três mil pessoas foram batizadas. Esta leitura, embora sem mencionar diretamente, retrata a figura do Bom Pastor, enquanto porta da salvação para as “ovelhas” arrependidas. Esses fenômenos de conversões em massa, que se sucederam logo após o dia de Pentecostes, causavam grande irritação aos fariseus e sumos sacerdotes, porque haviam manobrado o povo contra Jesus, pedindo a Pilatos a sua condenação e agora viam o mesmo povo mudando de lado, arrependido. Grande parte dos visitantes e da população de Jerusalém, muitos que estavam ali para os festejos da Páscoa e haviam acompanhado os acontecimentos da paixão de Jesus, também souberam dos eventos miraculosos que sucederam a sua morte, causando-lhes grande comoção. E, ouvindo a pregação simples dos apóstolos, passaram a acreditar em Jesus e entraram a fazer parte do rebanho do Bom Pastor.


Na segunda leitura, extraída da primeira carta de Pedro (1Pd 2, 20), lemos a sequência do texto do domingo anterior, daquela carta dirigida aos judeus convertidos, que sofriam perseguições por causa de sua opção religiosa pelo cristianismo. Daí que Pedro os exorta a suportarem com paciência o sofrimento, seguindo o exemplo de Jesus que, mesmo sem culpa, não se maldisse nem se vingou dos que o maltrataram. E embora sem fazer alusão direta, o texto de Pedro também guarda relação com a figura do Bom Pastor, quando diz: “andáveis como ovelhas desgarradas, mas agora voltastes ao pastor e guarda de vossas vidas.” (1Pd 2, 25) O Bom Pastor, portanto, está presente na pregação dos apóstolos desde os primeiros tempos, porque a metáfora do pastor e do rebanho estava bastante ligada à realidade do povo judeu, que tinha na ovinocultura uma importante fonte de renda, sendo uma profissão tradicional e muito integrada na vida econômica de suas comunidades. Ora, se ainda hoje, quando vivemos numa época de maciça produção tecnológica, a ideia de um pastor ainda tem forte apelo emocional e devocional, quanto mais naquele tempo em que essa atividade era costumeira e rendosa. Os nossos Bispos ainda são chamados de pastores e os ministros das igrejas cristãs não católicas adotaram esse epíteto como referência para a sua liderança religiosa. No Ceará, a figura humana que corresponderia ao pastor seria a do vaqueiro, tradicional e romântico personagem da nossa zona rural, que antes aparecia com chapéu de couro e gibão, montado em brilhosos cavalos, e hoje transita montado em outros “cavalos”, estes mecânicos, de pés redondos e emborrachados, movidos a gasolina. Nas cidades do interior, com certeza há mais motocicletas do que automóveis e, se duvidar, do que as tradicionais montarias. Tanger rebanhos montado numa moto é a nova imagem do nosso sertão tecnológico.


A leitura do evangelho de João (Jo 10, 1-10) narra o início da parábola do Bom Pastor, um dos símbolos muitas vezes repetidos na catequese de Jesus, sendo uma narrativa que consta apenas no evangelho escrito por João. É compreensível que João, tendo escrito seu texto depois dos outros evangelistas e ainda tendo tido o privilégio de conviver com Jesus, pôde fazer uma espécie de complementação, relatando fatos e circunstâncias que os demais não haviam escrito. Por isso, é comum encontrarem-se certas passagens que constam apenas no evangelho joanino e é também por isso que este evangelho não leva o título de sinótico, como os três primeiros. Enquanto os outros fizeram uma espécie de sinopse de textos esparsos que circulavam nas comunidades, guardando assim diversas passagens em comum, o evangelho de João é mais reflexivo e específico, legando-nos o entendimento das primeiras comunidades localizadas na região da Ásia Menor, onde ele atuava. Apenas para recordar, João, assim como Paulo, são os primeiros teólogos do cristianismo e escreveu seu evangelho em Éfeso, onde era bispo daquela comunidade.


Acerca da figura do Bom Pastor, ele começa descrevendo o seu oposto, isto é, o mau pastor, aquele que não entra pela porta, mas furtivamente e às escondidas. A tradução oficial da CNBB usa dois substantivos para exemplificar o mau pastor: ladrão e assaltante. (Jo 10, 1) Mas vejamos os vocábulos originais, para fazermos uma comparação. No texto da vulgata, São Jerônimo chama o mau pastor de “fur et latro”, que em português correspondem à tradução oficial. FUR é o que rouba às escondidas e LATRO é o que rouba com violência. A lei penal brasileira faz essa mesma distinção entre os tipos penais. Porém, no texto grego original, os vocábulos são “kléptes” e “lestes”. KLEPTES significa embusteiro, enganador, o que age com dissimulação, não necessariamente o ladrão. Na língua portuguesa, existe a palavra “cleptomania”, aplicada às pessoas que têm um desvio de conduta, anomalia que as leva a se apoderarem de bens alheios furtivamente, até sem ter necessidade, apenas pela emoção de surrupiar. E a palavra grega “LESTES” deriva do verbo “lesteuô”, que significa fazer pirataria, portanto, “lestes” é o pirata, o usurpador. No grego como no latim, ambas as palavras têm a ver com o furto e podem ser traduzidas, genericamente, por ladrão. Mas me parece que essas explicações dos vocábulos gregos ajudam a compreender um sentido mais profundo por trás do conceito do mau pastor. O ladrão e o assaltante põem as ovelhas para correr e assim não podem ser comparadas com um pastor. Já o enganador, o impostor, o usurpador tentam se passar pelo autêntico pastor e podem, sim, enganar as ovelhas. São os lobos travestidos de cordeiros, outra figura também emblemática nesse contexto. Por isso, penso que esses estereótipos são mais compatíveis com a figura do mau pastor do que os conceitos comuns de ladrão e assaltante. Mais adiante, no versículo 12 (que não faz parte da leitura de hoje), João compara o mau pastor com o mercenário, que está mais relacionado com a figura do usurpador, do enganador, o que reforça a minha conclusão de que os termos “ladrão e assaltante” não são os mais adequados para a tradução.


Então, o bom pastor é o que entra pela porta e as ovelhas conhecem sua voz e o seguem. Logo em seguida, ao fazer uma explicação mais direta, porque pareceu que seus interlocutores não haviam entendido, Jesus diz claramente: digo-lhes uma coisa – eu sou a porta, (Jo 10, 7) quem entrar por mim será salvo (Jo 10, 9). Observemos a transmutação dos conceitos: o bom pastor torna-se a própria porta por onde as ovelhas devem entrar, ele entra pela porta e se transforma na própria porta do aprisco. Mais do que o simples condutor do rebanho, como são todos os pastores convencionais, Jesus se identifica como a porta por onde as ovelhas devem entrar para encontrarem pastagens abundantes. Aí está a grande novidade. Transcendendo o conceito de bom pastor para a porta da verdade, Jesus está se autoafirmando como Deus. Ele não apenas conduz os seus seguidores para Deus, mas quem crê nele e, portanto, passa através dele, já chegou a Deus. Concretamente, no âmbito de nossas vidas, a porta por onde passamos para chegar até Jesus é o nosso batismo, pelo qual passamos a fazer parte do seu “rebanho”. Assim, voltamos ao trecho da leitura de Atos, citado acima, quando Pedro responde aos que o interrogaram sobre o que deviam fazer: convertam-se e aceitem o batismo de Jesus. (At 2, 38) Aceitar o batismo significa escolher a porta certa, a porta da verdade, que conduz à salvação.


Meus amigos, o batismo não é um fato do nosso passado, de quando ainda éramos infantes e nossos pais nos levaram a receber esse divino dom. Esse evento foi apenas o momento da entrada, mas nós continuamos a caminhar na estrada da salvação. Por isso, o batismo deve se renovar a cada dia, na nossa missão junto à família, à sociedade, à profissão, através do nosso testemunho de pertença ao rebanho de Cristo, pelo qual as pessoas com quem convivemos possam perceber em nós a marca que identifica os verdadeiros cristãos.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 22 de abril de 2023

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 3º DOMINGO DA PÁSCOA - 23.04.2023

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 3º DOM. DA PÁSCOA – FICA CONOSCO, SENHOR – 23.04.2023


Caros Confrades,


Neste terceiro domingo da Páscoa, a liturgia nos dá uma pequena demonstração da dificuldade que Jesus teve para instruir o grupo de seus discípulos, de modo a que pudessem sair propagando a sua “boa nova”. Quando nós lemos essas narrativas sobre os primórdios do cristianismo, entendemos melhor de que modo a mão de Deus protegeu e guiou essas primeiras comunidades, de forma a mantê-las vivas e ativas, após o final da missão de Cristo. Muitas pessoas dizem: “ah, o Império Romano promoveu a Igreja e lhe deu sustentação política...” é fato histórico que isso aconteceu, porém não naqueles momentos iniciais, quando predominava a perseguição. Esse apoio institucional de Roma só aconteceu no século IV, por obra do imperador Constantino. Mas até lá, foram mais de 300 anos de muita luta e muita resistência às perseguições cruéis, até que o vento soprasse favoravelmente. A Igreja de Cristo não dependeu do Império Romano para se manter, ao longo desses 300 anos iniciais, ao contrário, os imperadores romanos anteriores a Constantino tentaram, de diversas maneiras, destruir essas comunidades. Sem deixar de mencionar também a perseguição que os primeiros cristãos sofreram por parte dos chefes dos sacerdotes judeus, conforme se veem relatos nos Atos dos Apóstolos.


As duas primeiras leituras deste domingo dão ênfase ao trabalho de Pedro, nos primórdios do cristianismo (Atos 2, 14-33 e 1Pd 1, 17-21). Na primeira leitura, um trecho dos Atos dos Apóstolos relata que Pedro faz uma pregação para o povo no dia de Pentecostes e ele faz uma interpretação bastante extensiva do Salmo 15, atribuído a Davi, no qual este assim canta: “meu corpo no repouso está tranquilo; pois não haveis de me deixar entregue à morte, nem vosso amigo conhecer a corrupção - este salmo é rezado também na liturgia de hoje – aludindo a que Davi estaria profetizando a ressurreição de Cristo. Vejamos como Pedro interpretou essa passagem: “o patriarca Davi morreu e foi sepultado e seu sepulcro está entre nós até hoje. Mas, sendo profeta, sabia que Deus lhe jurara solenemente que um de seus descendentes ocuparia o trono. É, portanto, a ressurreição de Cristo que previu e anunciou com as palavras.” Não é preciso grande esforço para perceber que o estilo da pregação de Pedro não tem a força persuasiva, a construção elegante do raciocínio e a profundidade reflexiva dos escritos de Paulo. E Pedro era, mesmo assim, aquele mais esperto, tanto que foi indicado por Cristo como líder do grupo. Percebe-se que Pedro não tinha lá um grande entrosamento com as Escrituras e foi buscar um trecho de um salmo para tirar daí uma conclusão bem diferente do que os exegetas habitualmente fazem. Os salmos não são livros proféticos, são cânticos ora de louvor, ora de arrependimento, ora de confissão, ora de lamento, além do que Davi não era exatamente um profeta. Com todo respeito à figura apostólica singular de Pedro, mas sabe-se que ninguém dá o que não tem e, no caso dele, nem mesmo com a suprema inspiração do Espírito Santo, ele foi muito feliz na referência ao rei Davi. Ou seja, se a Igreja de Cristo tivesse que depender somente da pregação dos onze discípulos originais, teria sucumbido logo no início. Essa dificuldade pedagógica de Jesus, sobre a qual falávamos acima, teve uma solução exemplar: Jesus cooptou Paulo, um judeu fervoroso, perseguidor implacável para transformá-lo no mais fervoroso discípulo e propagador do evangelho. O chamado de Paulo foi consequência dessa dificuldade que Jesus enfrentou para formar um grupo de discípulos e continuadores do seu trabalho, dada a grande limitação humana dos vocacionados galileus.


Na segunda leitura, da primeira Carta de Pedro (1Pd 1, 17-21), vemos uma referência aos judeus cristãos, que se espalhavam por toda a Ásia Menor. Pedro escrevia para as primeiras comunidades cristãs, compostas por judeus convertidos, que sofriam as represálias dos judeus tradicionalistas, que os rejeitavam. Daí o discurso de Pedro, lembrando a antiga aliança e sua atualização feita por Jesus: “Sabeis que fostes resgatados da vida fútil herdada de vossos pais, não por meio de coisas perecíveis, como a prata ou o ouro, mas pelo precioso sangue de Cristo.” (1 Ped 1, 18). Pedro faz o contraponto entre a “vida fútil” da antiga Lei e a vida nova no sangue de Cristo, que inaugura a nova aliança. Os biblistas colocam em dúvida a autoria desta carta de Pedro, por causa de certas semelhanças com o estilo de Paulo, porém outros justificam que o escriba desta carta teria sido Silas, que era discípulo de Paulo, e ao escrever a pedido de Pedro, teria mostrado uma certa influência paulina. Também o versículo anterior a este denota que os destinatários eram judeus dispersos, que viviam em locais onde pagãos e judeus não convertidos eram maioria e tinham atitudes hostis para com os judeus convertidos: vivei então respeitando a Deus durante o tempo de vossa migração neste mundo.” (17) A palavra traduzida por “migração”, no texto acima, corresponde no original grego ao vocábulo “paroikias”, que significa a situação daquele 'que vive num país estrangeiro' e isso se aplicava nos dois sentidos, tanto no sentido material político da época (cristãos vivendo em cidades judias) quanto no sentido espiritual da “peregrinação” terrestre, a caminho do céu. Como deve ser do conhecimento de todos, enquanto Pedro e os outros discípulos desenvolveram seu trabalho na Ásia Menor, onde havia a maior quantidade de população judia, o trabalho de Paulo se voltou para as comunidades gregas, na época dominada pelos romanos, expandindo suas atividades até a própria Roma, abrindo caminho para Pedro depois se estabelecer por lá.


O texto do evangelho de Lucas (24, 13-35) relata o conhecido episódio dos discípulos que fugiam para Emaús. Essa história é contada apenas pelo evangelista Lucas, com o seu característico estilo cheio de detalhes, só faltou dizer o nome do segundo discípulo. O texto mostra como Jesus precisou sair correndo atrás daqueles dois fujões, que haviam se desgarrado do grupo que ficara em Jerusalém, certamente desiludidos com os últimos acontecimentos. E como foi difícil para eles reconhecerem a Jesus e compreenderem o significado de tudo o que acontecera. Conforme o testemunho de Lucas, Jesus censurou aqueles dois apressados: 'Como sois sem inteligência e lentos para crer em tudo o que os profetas falaram! Será que o Cristo não devia sofrer tudo isso para entrar na sua glória?' (Lc 24, 25-26). E precisou repetir toda a catequese, relacionando com as escrituras e, por fim, somente no ato de partir o pão eles o identificaram. Então, voltaram imediatamente para Jerusalém (diz o evangelho que ficava a cerca de 11 km, distância do centro de Fortaleza a Messejana) e, chegando lá, encontraram os outros reunidos e relataram para eles a experiência que tiveram. A leitura do evangelho de hoje termina nesse ponto, mas no versículo seguinte, diz que “enquanto eles ainda estavam falando, Jesus apareceu no meio deles” (36) e eles ficaram amedrontados, pensando que estavam vendo um fantasma. Foi preciso Jesus dizer: 'por que estais perturbados? Sou eu...Vede as minhas mãos e pés...' que coisa mais incrível. Os dois estavam falando justamente que haviam conversado com Jesus ressuscitado e, ato contínuo, Jesus lhes apareceu e não conseguiram reconhecê-lo. Quão difícil foi, para Jesus, preparar esse pequeno grupo para dar continuidade ao seu trabalho messiânico.


Além dessa dificuldade de natureza pedagógica e administrativa, foram muitos os entraves de ordem política que os primeiros cristãos tiveram de enfrentar. O próprio apóstolo Paulo relatou que precisou, às vezes, sair de uma cidade às pressas, com medo de ser apedrejado pelos seus perseguidores, que eram judeus fanáticos e Paulo, com sua formação judaica, os desafiava. E depois vieram as perseguições mais audazes e destruidoras por parte das autoridades romanas, que vitimaram os dois grandes líderes Pedro e Paulo no mesmo ano, embora não juntos, na época do imperador Nero. Este e Diocleciano fizeram o maior massacre de cristãos naquele tempo, algo similar ao que ainda ocorre nos dias de hoje em alguns países islâmicos, na Europa e na África. Ultimamente, a extrema esquerda na Nicarágua também vem produzindo perseguições aos católicos. Mas a mesma força da fé que mantinha unidos os cristãos dos primeiros tempos, também opera com os de hoje, que passam por severas provações. Nós, que temos uma vida relativamente calma em relação a essas políticas agressivas e sangrentas de outros países, não conseguimos fazer ideia do que é ser cristão em situação adversa. Contudo, no passado tanto quanto hoje, a presença de Cristo e os dons do Espírito fortalecem os cristãos que são perseguidos, mantendo-os firmes nas suas convicções.


Pois bem, meus amigos. Essas recordações dos tempos heroicos dos primeiros missionários devem servir para nos fortalecer também na nossa fé, quando tomamos consciência do quanto eles tiveram de suportar para testemunharem a Cristo, enquanto nós, muitas vezes por comodismo ou por preguiça, nos esquivamos de demonstrar a nossa fé e o nosso compromisso, através das nossas atitudes, pelas quais devemos ser identificados como discípulos de Cristo. O tempo pascal se presta para refletirmos sobre a nossa vocação cristã e para avaliarmos o grau de nossa fidelidade à fé que professamos.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 15 de abril de 2023

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 2º DOMINGO DA PÁSCOA - 16.04.2023

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 2º DOMINGO DA PÁSCOA – VER E CRER – 16.04.2023


Caros Confrades,


Estamos no segundo domingo da Páscoa ou domingo da oitava da Páscoa. O Papa João Paulo II estabeleceu que este domingo deveria ser comemorado como o Domingo da Misericórdia, criando a Festa da Divina Misericórdia, a ser celebrada sempre nesta ocasião. Na tradição milenar da Igreja Católica, o domingo após a Páscoa tem o nome de Dominica in Albis (o domingo da brancura), porque na antiga oitava da Páscoa, aqueles que se haviam batizado na Vigília Pascal e haviam passado toda a semana em comemoração, usando sua veste batismal, reuniam-se novamente e ali depunham solenemente essas vestes brancas, voltando a usar suas roupas comuns e se inserindo na comunidade, juntando-se aos outros irmãos da fé. A tradição de celebrar a “oitava” de uma festa religiosa, como acontece na Páscoa, está também ligada a um antigo costume judaico, que é anterior à Páscoa cristã. Trata-se da festa religiosa judaica dos pães ázimos, que tem duração de sete dias, na qual eles comemoram, até os dias de hoje, a saída do povo hebreu do Egito, sob o comando de Moisés, fato ocorrido há quase 4.000 anos. Convém recordar ainda que os pães ázimos dos hebreus, o pão sem fermento, prefiguram a Sagrada Eucaristia como a temos hoje, em que a hóstia é preparada com o trigo não fermentado.


Nas leituras litúrgicas deste domingo, temos na primeira um conhecido trecho dos Atos dos Apóstolos (At 2, 42-47), que narra o modo de vida das primeiras comunidades cristãs, cujo exemplo permanece como desafio constante a todos nós: “Todos os que abraçavam a fé viviam unidos e colocavam tudo em comum; vendiam suas propriedades e seus bens e repartiam o dinheiro entre todos, conforme a necessidade de cada um.” (At 2, 44-45) Penso que esse modo de vida só existiu mesmo naqueles primeiros tempos, uma irmandade total e irrestrita. Depois que o cristianismo se foi infiltrando no mundo romano, sobretudo no meio da população mais rica de Roma, essa disponibilidade e repartição dos bens já não era assim tão exemplar. Se observamos bem, foi isso que o Seráfico Patriarca Francisco colocou na sua regra, no século XIII, como o voto de pobreza, porque então já não se praticava mais a partilha entre os cristãos. Até o Papa da época, Inocêncio III, duvidou que alguém conseguisse viver desse modo... Quanta ironia, era como se esse comportamento não estivesse de acordo com o evangelho que ele, como Papa, devia conhecer e ser o primeiro a observar. Atualmente, as relações sociais se tornaram muito mais complexas e a vivência desse ideal precisa passar por um conjunto de ajustes hermenêuticos, a fim de ser posto em prática. Por isso, o testemunho das primeiras comunidades cristãs permanece como um desafio sempre atual para os cristãos de todos os tempos, conclamando-os a buscarem viver autenticamente o evangelho de Cristo, de acordo com as peculiaridades de cada segmento histórico.


A segunda leitura é retirada da primeira carta de Pedro. Poucas vezes, a liturgia seleciona trechos de escritos não paulinos, como é o caso deste domingo. Esta carta de Pedro foi dirigida aos judeus convertidos de língua grega dispersos nas províncias romanas da Ásia Menor (Ponto, Galácia, Capadócia, Bitínia), numa época difícil de perseguição por motivos religiosos. Pedro incentiva os novos cristãos daquelas paragens evocando aspectos autobiográficos, exemplos de sua própria vida como apóstolo de Cristo, lembrando-lhes que é necessário suportar provações passageiros, para merecer a glória do céu. Deste modo, a vossa fé será provada como sendo verdadeira - mais preciosa que o ouro perecível, que é provado no fogo - e alcançará louvor, honra e glória no dia da manifestação de Jesus Cristo. (1Pd 1,7) Mas também esse trecho da carta é escolhido porque sintoniza com a leitura do evangelho, no testemunho de João, que narra o famoso episódio da falta de fé manifestada pelo apóstolo Tomé acerca da ressurreição de Cristo. Exaltando os cristãos, Pedro afirma: Sem ter visto o Senhor, vós o amais. Sem o ver ainda, nele acreditais. (1Pd 1,8) Apenas uma informação de curiosidade: Pedro não era um homem de letras, todos sabem que ele era um pescador, ou seja, Pedro não sabia escrever, aliás, fato que era bastante comum naquele tempo, em que havia os escribas profissionais. Então a carta de Pedro foi manuscritada por seu discípulo Silvano.


Na leitura do evangelho de João (Jo 20, 19-31), o tema é a incredulidade de Tomé, um dos textos bíblicos mais conhecidos e que, naquela época, era muito utilizado na catequese dos primeiros cristãos. O evangelista João, no seu intuito catequético, faz questão de narrar com detalhes o acontecimento, como uma forma de fortalecer a fé dos convertidos, numa metodologia que hoje se chama de “pedagogia reversa”, isto é, toma como referência o contra exemplo de Tomé, que queria ver para crer, e associa isso com a reprimenda de Jesus, para vitalizar a atitude dos novos cristãos que creem sem ter visto. É interessante observar que Lucas narra esse episódio (24, 36-49) sem mencionar a reação de Tomé. A narrativa de João traz esta particularidade, porque ele estava presente no momento do fato, diferentemente dos outros evangelistas, que escreveram baseados em outras fontes literárias. Ademais disso, devemos considerar que João escreveu seu evangelho mais tardiamente e certamente já conhecia os textos dos outros evangelistas, isso fez com que ele acrescentasse detalhes que considerou importantes e que os outros podiam ter omitido. O próprio João ainda justifica: “Jesus realizou muitos outros sinais diante dos discípulos, que não estão escritos neste livro.” (2, 30) Ou seja, João sabia de mais coisas, que não escreveu, mas provavelmente contava oralmente aos cristãos do seu tempo. Daí se originam as tradições orais de fatos que, mesmo não estando escritos, são aceitos e acreditados pelos fiéis desde os primeiros tempos. Além disso, o evangelho de João tinha um propósito bem definido de servir como texto-base para uso na catequese das primeiras comunidades, quando o cristianismo se difundia velozmente entre as populações estrangeiras. Outro exemplo disso podemos observar no diálogo de Jesus com a samaritana (Jo 4,5), mostrando como Jesus acolhia bem os não judeus.


Um outro detalhe que se percebe nesse ponto da narrativa joanina é a referência ao “primeiro dia da semana”, que era o dia preferido para Jesus aparecer aos discípulos. Ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana, estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam, Jesus entrou e pondo-se no meio deles...” (Jo 20,19). Um pouco adiante, repete de modo análogo: Oito dias depois, encontravam-se os discípulos novamente reunidos em casa... (Jo 20, 26), isto é, uma semana depois, portanto, no primeiro dia da semana novamente. É interessante analisarmos essa tradução portuguesa de “primeiro dia da semana”. Se consultarmos o texto latino de S. Jerônimo, ele escreveu assim: “Cum ergo sero esset die illo una sabbatorum...”, que significa “portanto, como já fosse tarde naquele dia, um dia depois do sábado...” isto é, ele não diz que é o “primeiro dia” e sim que é o dia depois do sábado. A tradução portuguesa é que adapta a expressão para “primeiro dia da semana”, porque a semana dos judeus terminava no shabat e os apóstolos eram judeus. Deduz-se daí que, nessa época, o sábado era ainda o dia mais importante da semana, porque prevalecia a tradição judaica. Para a cultura judaica, ainda hoje, o dia termina com o por-do-sol e aí tem início o dia seguinte. Dizer, portanto, que já era tarde da noite de sábado equivale a dizer que já passava do por-do-sol e já era a “feria prima”, o primeiro dia da semana (o nome domingo não existia naquela época). Por isso, algum tempo depois, os cristãos começaram a notar essa preferência de Jesus para realizar coisas prodigiosas no “dia depois do sábado”, sendo este também o dia em que ele ressuscitou, razão pela qual o Concílio de Nicéia (325 d.C.) mandou transferir o dia do repouso (shabat) para o dia depois do sábado, ou seja, o primeiro dia da semana, que passou a chamar-se “dominica”, isto é, o dia do Senhor. É a tradição que seguimos até os dias de hoje.


E sobre a festa da Divina Misericórdia, celebrada hoje, o Papa Francisco recordou a instituição desse dia em 2000, por João Paulo II, afirmando: “Eis o sentido da misericórdia que se apresenta no dia da ressurreição de Jesus como perdão dos pecados. Jesus ressuscitado transmitiu à sua Igreja, como primeira tarefa, a sua própria missão de levar a todos o anúncio concreto do perdão. Este sinal visível da sua misericórdia traz consigo a paz do coração e a alegria do encontro renovado com o Senhor”, ”


Meus amigos, neste domingo especial da oitava da Páscoa e festa da Divina Misericórdia, renovo a todos os votos de uma contínua e permanente ressurreição, na labuta diária de cada um.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

domingo, 9 de abril de 2023

COMENTÁRIO LITÚRGICO - DOMINGO DA PÁSCOA - 09.04.2023

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – DOMINGO DA PÁSCOA – 09.04.2023 – DIA DO SENHOR


Caros Confrades,

Sempre no domingo de páscoa eu faço a comemoração do aniversário desses comentários, pois foi na Páscoa de 2011 que comecei a escrevê-los, atendendo a algumas solicitações de Colegas, e com isso pus-me a rever e aprofundar os conceitos bíblico-teológicos da nossa fé cristã. Associando isso aos estudos de hebraico, que passei a fazer em 2014, procuro integrar os costumes judaicos com a fé cristã, pois esta faz a continuidade e a atualização do judaísmo antigo. A vivência religiosa de todos nós deve estar numa incessante evolução, pela qual vamos superando certos conceitos recebidos na juventude e que hoje devem ser repaginados. Existe muito romantismo associado à festa da Páscoa, sobretudo quando são lidos os textos do Êxodo, acerca da saída dos hebreus do Egito, por volta do século XIV antes de Cristo. Certamente a narração bíblica é permeada com elementos culturais literários didático-pedagógicos para a catequese dos judeus daquele tempo. Precisamos ultrapassar esse nível do texto para adentrar no seu conteúdo mais profundo.


Numa abordagem histórica, os pesquisadores não sabem a origem da festa da páscoa, porque essa é uma tradição que se perde no tempo. Estima-se que a páscoa começou a ser celebrada desde que os seres humanos começaram a formar grupos estacionários em determinados locais, onde passaram a plantar alimentos e criar animais, deixando assim de ser nômades, e assim formaram as primeiras comunidades humanas. Ou seja, a festa da páscoa originalmente estaria integrada com o próprio surgimento da sociedade humana. Este momento histórico e geográfico que, no hemisfério norte, corresponde ao término do inverno e à chegada da primavera, coincide com o tempo em que as árvores iniciam a brolhar após o degelo invernal, começando a produzir os primeiros frutos da terra. Com as nuvens se dissipando no céu, a lua podia ser divisada mais facilmente e a primeira lua cheia após o inverno passou a ser festejada como o tempo da primeira colheita, tempo de fartura e da prosperidade, celebrando a paz entre a natureza e os seus habitantes, tempo em que os animais também acasalam e a vida sobre a terra se renova. Este seria o sentido primitivo da páscoa, festejada desde tempos imemoriais.

Como podem verificar, nós celebramos a páscoa pelo ciclo geográfico europeu, isto é, a páscoa dos povos do norte, pois se fôssemos considerar os mesmos fenômenos cósmicos no hemisfério sul, a nossa páscoa seria celebrada no mês de setembro. Estando a festa da Páscoa relacionada com a primeira lua cheia da primavera europeia, já imaginaram se nós, ocidentais e austrais, fôssemos seguir o mesmo esquema para a definição da data da páscoa? Deixaria de ser uma festa comemorada universalmente, como é nos dias atuais, pois haveria a Páscoa do norte e a do sul. Porém, essa divergência geográfica de fato não fará diferença, uma vez que nós não celebramos a páscoa pelo seu significado histórico e cultural, mas pelo sentido religioso que essa festa passou a ter após a ressurreição de Cristo.


Numa abordagem teológica, a festa cristã da Páscoa passou a ser celebrada logo depois que foi proclamada a liberdade religiosa no império romano, o que se deu com o imperador Constantino, em 313 d.C. O século IV da era cristã foi um período de muitas definições dogmáticas e doutrinárias, tendo em vista diversas heresias que se disseminavam no meio cristão, havendo a necessidade do trabalho de refinamento teológico de insignes Doutores da fé, expurgando doutrinas contrárias ao ensinamento de Cristo, sendo necessário ainda, por diversas ocasiões, a reunião de Concílios ecumênicos, com o objetivo de serem debatidas as verdades teológicas que formam o núcleo central da doutrina cristã. Foi nesse contexto que houve o debate acerca da definição da data da Páscoa, bem como das diversas solenidades que compõem o ano litúrgico. Foi nessa ocasião também que se deu uma importante e radical mudança, que foi motivo de muita discussão e ainda hoje divide opiniões, a mudança do “shabat”, ou seja, do descanso semanal, que passou do sábado para o domingo. A partir da consciência da magnitude da ressurreição de Cristo como sendo o evento mais importante de todo o mistério da redenção, as autoridades cristãs permutaram o antigo dia sabático pelo dia dominical. Essa definição caracteriza também a passagem da tradição do Antigo Testamento para o Novo Testamento. Canonicamente, essa mudança foi definida nos Concílios de Nicéia (325) e de Laodicéia (364).


Nesses concílios, ficou decidido que a festa da Páscoa seria no domingo que sucede a lua cheia após o equinócio da primavera no hemisfério norte, que tem como data de referência o dia 21 de março. Desse modo, o domingo que sucede a lua cheia após 21 de março de cada ano é a data da festa da Páscoa. Essa definição, porém, continua sendo ponto de discórdia entre a igreja católica romana e as igrejas católicas orientais, pois estas consideram que foi uma imposição do império romano, do mesmo modo que a celebração do Natal, também definida na mesma oportunidade, teria sido feita para atender a um pedido do imperador Constantino. Atualmente, a mim parece que não é mais o caso de levar adiante tal discussão, porque seria de pouca utilidade prática e o calendário internacional não iria ser alterado por conta disso. Assim, a data da páscoa continua seguindo o calendário lunar, gerando divergências com as demais datas, que se orientam pelo calendário solar, mas isso é administrado de uma forma já convencional e não acarreta maiores transtornos. Embora não haja uma coincidência exata de datas, no entanto a festividade pascal, em todas as culturas, é celebrada sempre nesse mesmo período do ano, desde os tempos ancestrais.


A Páscoa, portanto, originalmente está associada à renovação da vida na terra, (no caso, considerando a geografia europeia, pois naquela época as terras do hemisfério sul terrestre não eram conhecidas). Dentro da economia da salvação, o plano salvífico de Deus fez coincidir a ressurreição de Cristo com essa simbólica festividade da humanidade setentrional, dando-lhe um sentido totalmente novo e inusitado. Integrando o Antigo com o Novo Testamento, há uma curiosidade interessante: a entrada de Jesus em Jerusalém deu-se no 10º dia do mês de Nissan, data que corresponde à prescrição constante em Êxodo 12:3-6, dia em que, de acordo com a Lei de Moisés, um cordeiro era separado do rebanho e colocado à disposição para ser sacrificado na Páscoa. Nesse dia, entrando triunfalmente em Jerusalém, Jesus foi colocado à disposição dos sumos sacerdotes judeus para ser sacrificado, uma coincidência que, sem dúvida, une os dois Testamentos. Após a ressurreição de Cristo, a Páscoa deixou de ser apenas uma festa das colheitas do campo, da celebração da vida natural, da cultura humana, e veio assumir uma dimensão especial na economia da salvação, transmudando o seu sentido para a dimensão espiritual e alcançando não apenas os habitantes de uma região do mundo, mas toda a humanidade. Jesus ia todos os anos a Jerusalém, para celebrar a Páscoa com os discípulos, mas Ele sabia que naquela vez seria diferente, daí ter preparado tudo, conforme descrevem os evangelistas, inclusive aquela entrada triunfal, sendo aclamado com ramos de palmeiras, de modo a chamar bem a atenção dos fariseus, sacerdotes e chefes do povo. Ali, ele se colocou à disposição. Tudo fora preparado, no plano divino, para que a antiga páscoa dos homens fosse transformada na nova Páscoa de Cristo.


As primeiras comunidades cristãs não perceberam essa nova dimensão dos fatos logo no início e continuaram celebrando o dia do Senhor no sábado, como era a tradição judaica. Mas depois foram percebendo que, com a ressurreição de Cristo, a Páscoa tinha ganho um novo sentido e aquela tradição sabática precisava ser superada pela celebração dominical, porque Jesus havia ressuscitado no primeiro dia da semana, após o shabat. Aqueles que não creem em Cristo como o Salvador e, portanto, não reconhecem o novo testamento escrito com o seu sangue, continuam guardando o sábado. Ou algumas denominações cristãs radicais que, mesmo acreditando em Cristo, não aceitam a mudança de significado do “sábado-dia do descanso” para o “domingo-dia do senhor” e continuam a guardar o sétimo dia, em vez do primeiro dia da semana. O novo significado da Páscoa, como festa da vida renovada, da vida plena e definitiva, da vida que supera a morte devia ser comemorada como uma nova festa, com um novo simbolismo. O dia da ressurreição do Senhor, o primeiro dia da semana, passou a ser, então, a nova referência para as festividades pascais.


Meus amigos, quando hoje celebramos a Páscoa, devemos nos lembrar disso: pela Páscoa da ressurreição de Cristo, nós ganhamos um verdadeiro motivo para comemorar, qual seja, a nossa redenção, a conquista da nossa vida plena e definitiva, que Cristo antecipou para nós com a sua ressurreição dos mortos e nos deu a certeza de que, assim como Ele, nós também teremos a nossa vitória sobre a morte e sobre o pecado e um dia nos uniremos com Ele, junto do Pai, na morada eterna. Para além, portanto, das costumeiras saudações de Feliz Páscoa ou mesmo utilizando essa costumeira terminologia, nossas palavras passam a ter um novo sentido, se estivermos conscientes do seu verdadeiro significado.

Renovados votos de Feliz Páscoa a todos.
Antonio Carlos


sábado, 1 de abril de 2023

COMENTÁRIO LITÚRGICO - DOMINGO DE RAMOS - 02.04.2023

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – DOMINGO DE RAMOS – FOI POR AMOR - 02.04.2023


Caros Confrades,


O ciclo anual da liturgia nos coloca novamente no período mais simbólico das comemorações cristãs, que é o tempo da Páscoa. Neste ano, com fim da pandemia, podemos voltar a celebrar a Semana Santa de forma presencial. O Tríduo Pascal é antecedido pelo Domingo de Ramos, quando Jesus se dirigiu a Jerusalém para consumar a sua missão. Na condição de cristãos amadurecidos na fé, precisamos ultrapassar aquelas vetustas tradições que recebemos, não nos quedando apenas na memória dos sofrimentos da Paixão do Senhor, mas sempre recordando que se deve colocar acima desta referência a memória da Ressurreição do Senhor e da nossa redenção. Na verdade, toda a nossa fé cristã e católica se alicerça na Ressurreição de Cristo, não na sua paixão. Foi pela cruz que Jesus redimiu nossos pecados, mas foi pela ressurreição que ele nos abriu a porta do céu, por isso, todas essas comemorações só fazem sentido se estivermos olhando para a ressurreição. Se não for assim, é vã a nossa fé, já disse o apóstolo Paulo. (1Cor 15, 17).


Para melhor compreensão das narrativas relacionadas com a paixão de Jesus, é oportuno lembrar que esses eventos ocorreram no contexto dos costumes judaicos daquela época. Hoje, nós católicos nos dissociamos das datas de referência dos fatos, mas os judeus ainda hoje celebram a sua páscoa (pessach) do mesmo modo como era no tempo de Cristo: mesma data, mesmos rituais, mesma tradição. Por exemplo, quando o evangelista Mateus diz assim: “no primeiro dia dos ázimos...” (Mt 26, 17), importa saber que, para os judeus, esse período compreende os dez dias subsequentes à lua nova do mês de nissan, pra eles, o primeiro mês do ano. Isso corresponde ao mês de março, os antigos romanos também celebravam o ano novo no mês de março, antes da reforma do calendário por Júlio César. Outra curiosidade importante sobre a “pessach” (páscoa judaica) é que, nesse período, ninguém pode comer nenhum alimento proveniente do trigo, apenas esse pão ázimo, que é preparado com a massa sem fermento. Trata-se da mesma tradição milenar, que já era observada no tempo de Cristo e faz-nos lembrar daquelas regras antigas sobre o jejum, quando o Direito Canônico estabelecia a quantidade de gramas máxima para cada refeição, para não “quebrar o jejum”. O uso do pão ázimo (sem fermento) é seguido pelo catolicismo na preparação da hóstia para celebração eucarística.


Pois bem, estou comentando acerca dos costumes judaicos, porque desenvolveu-se, na nossa cultura cristã, um terrível preconceito contra os judeus, porque foram eles que mataram a Jesus. Vale a pena lembrar que uma santa italiana, Santa Gemma Galgani, relatou ter conversado com Jesus e, certa vez, perguntou-lhe: Senhor, quem te matou? E Jesus respondeu a ela: foi o amor. De fato, Jesus deu sua vida por amor da criação divina, do universo inteiro, incluído aí o ser humano, conforme fora prometido a Abraão. Os operadores dessa promessa foram os sumos sacerdotes judeus e Judas, o Iscariotes. Por causa disso, esses personagens foram historicamente execrados. Judas, encarnou a figura do inominável traidor; os judeus se tornaram os pérfidos judeus, como dizia uma antiga oração da sexta feira santa. Mas quem matou Jesus foi o amor, o imenso amor, incomensurável amor, que só cabia mesmo no seu incomensurável coração. Então, nós precisamos também ir além daquela cruel tradição com que nos martelaram a cabeça durante muito tempo: Judas traidor, pérfidos judeus. Nesse Domingo de Ramos, dediquemo-nos a falar um pouco sobre esse personagem execrado na tradição, Judas Iscariotes, aquele que, transformado em boneco, é enforcado e queimado em mastros públicos, não sem antes ser açoitado, maltratado, esfarrapado, tudo como uma espécie de vingança tardia dos seguidores de Cristo.


Comecemos por interpretar o nome dele – Judas Iscariotes. O nome em português Judas é a transliteração do grego IOUDA, que por sua vez é adaptado do hebraico Yehudhah, palavra que significa “abençoado”. Vejam só a contradição que esse nome encerra: Judas significa o abençoado. Iscariotes em hebraico corresponde a duas palavras ISH QUERYOT, significando (uma das suas compreensões) “o homem de Queryot”, filho de Simão de Queryot, sendo esse o nome de uma vila na Judéia. Existe outra interpretação mais política para esse apelido, que iscariotes vem de ISH SICARI, em que sicari significa punhal, então ish sicari seria o assassino que mata por dinheiro, o pistoleiro dos sertões nordestinos. Essa interpretação recorda um grupo de terroristas judeus, que existia dentro de um partido político daquela época, chamado de zelotes. Os zelotes eram inimigos dos romanos, que naquele tempo ocupavam a Palestina, e incitavam o povo judeu a resistir contra os invasores. Havia uma facção dos zelotes que praticavam assassinatos de adversários políticos, usando punhais. Talvez Judas fizesse parte desse grupo, mas isso não tem confirmação histórica, são apenas hipóteses dos estudiosos. Mas embora não seja certo que ele pertencia a esse grupo de assassinos, o fato de ser ele um zelote é aceito por todos. Os zelotes eram conhecidos na época, porque faziam propaganda aberta contra os romanos e, enquanto zelote, Judas lutava pela libertação da Palestina, pela expulsão dos romanos de lá e viu em Jesus um líder que tinha apoio popular para realizar isso. Desse modo, a aproximação de Judas a Cristo teria sido motivada por esse interesse político.


Não podemos esquecer, porém, que o grupo dos doze foi escolhido por Jesus, Ele os chamou para a sua companhia, não foi imposição de ninguém. Ora, todos cremos que Jesus sabia de todos os desafios que iria enfrentar, sabia que Judas seria o intermediário dos acontecimentos, então, por que razão Jesus teria chamado e mantido Judas no grupo dos doze até o final? Com certeza, era porque Jesus tinha consciência do papel dele, da sua importância, fazia parte do 'plano' do Pai. De acordo com um manuscrito descoberto há pouco tempo, denominado o evangelho de Judas, documento escrito por volta do século II ou III, Judas era o discípulo que mais conversava com Jesus, era da sua total confiança. Se Jesus fosse apenas um ser humano comum, poderíamos dizer que ele fora enganado. Mas Jesus, sendo homem e Deus, não teria como ser enganado por Judas. Portanto, Jesus sabia de tudo e sabia que Judas seria “necessário” para que o plano do Pai se concretizasse. Aquele conhecido filme de Hollywood – Jesus Cristo Superstar – aborda bem essa temática sobre a missão de Judas.


A partir desse raciocínio, podemos concluir que a infâmia de “traidor” foi atribuída a Judas pelos outros onze apóstolos, após os acontecimentos, com a finalidade de execrá-lo. Todos os evangelistas tratam Judas como traidor, mas Mateus é o que carrega mais na difamação dele, descrevendo até o seu suicídio. Na verdade, podemos dizer que o evangelho de Mateus tem dois objetivos básicos: um é mostrar que Jesus é o Messias esperado e predito pelos Profetas; o outro é execrar Judas. Quando lemos o texto de Mateus, vemos que ele está, com frequência, dizendo algo assim: isso aconteceu para que se cumprisse o que disse o profeta tal. Na narração da Paixão, Mateus até inclui a história das 30 moedas, relacionando com um trecho de Jeremias (Mt 27, 9), quando na verdade, a citação é de Zacarias (11, 12-13), ele até confundiu os profetas. Mas ele queria apenas justificar a história das 30 moedas. Os demais evangelistas não falam na quantidade de moedas, dizendo apenas que os sumos sacerdotes haviam lhe prometido dinheiro (Mc 14, 10; Lc 22,5) e João nem comenta sobre alguma recompensa. Com certeza, foi o evangelista Mateus o responsável pela tremenda má fama que recai ainda hoje sobre o personagem Judas, fato que leva as pessoas a evitarem colocar tal nome nos seus filhos. Contudo, nessa linha de raciocínio que estamos desenvolvendo, pode perceber-se que há uma grande injustiça embutida nessa tradição e, em nome da verdade e da caridade, devemos procurar observar Judas como um agente necessário para a economia da salvação. Num arroubo poético, Santo Agostinho chamou o pecado de Adão de “feliz culpa”, porque nos proporcionou tão insigne Redentor. Parafraseando Agostinho, podemos fizer que o ato de Judas foi também uma espécie de “feliz denúncia”, necessária para a arrematação dos fatos da história da salvação.


Na leitura dos relatos evangélicos, observamos que nenhum dos evangelistas comentou o fato de que Jesus sabia de tudo desde o início e, mesmo assim, manteve a presença de Judas no grupo e não o discriminou. Ao contrário, Jesus até confiava nele e fez dele o “caixa” do grupo. Os discípulos aproveitaram esse fato e transmitiram a imagem de Judas como um avarento, que só estava preocupado com as finanças do grupo. Provavelmente, Mateus também se aproveitou disso para ajudar a compor esse personagem avaro e odiado, em que Judas se transformou. Por outro lado, segundo o texto do evangelho apócrito citado acima (evangelho de Judas), não teria havido traição, mas sim o atendimento a um pedido de Jesus, para que Judas informasse aos sacerdotes onde Ele estava. Como se pode deduzir, há muitos aspectos desse episódio e da própria pessoa de Judas que necessitam de maiores estudos e esclarecimentos a fim de que, numa perspectiva de maior serenidade, possamos reescrever a antiga tradição que o difama e o abomina. Com efeito, quem matou Jesus foi o grande amor que ele tem por todos nós.


Com essas reflexões, antecipo meus votos de Feliz Páscoa a todos.

Com um cordial abraço.

Antonio Carlos