segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 4º DOMINGO DO ADVENTO - JESUS FILHO DE DAVI - 24.12.2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO DO ADVENTO – JESUS FILHO DE DAVI – 24.12.2017

Caros Leitores,

Neste quarto domingo do Advento, a liturgia mostra a ascendência genealógica de Jesus como filho de Davi, destacando que José e Maria são descendentes de Davi. Ou seja, Jesus é filho de Davi seja pelo lado paterno (adotivo) de José, seja pelo lado materno biológico de Maria. Os numerólogos bíblicos fizeram as contas da sequência de gerações e observaram que, desde Abraão até Davi, contam-se 14 gerações; de Davi ao cativeiro da Babilônia são outras 14 gerações e do cativeiro da Babilônia até o nascimento de Jesus são mais 14 gerações. (Ver evangelho de Mateus, 1, 1-17). O rei Davi representa o apogeu do desenvolvimento material do povo hebreu; o cativeiro da Babilônia representa a pior catástrofe étnica, o auge da destruição; o nascimento de Jesus representa, nessa linha de raciocínio, o novo apogeu com o cumprimento da promessa de Javé. Davi e Jesus significam, portanto, os pontos mais significativos da história do povo de Deus, daí a importância de se demonstrar que Jesus era um descendente de Davi.

Na primeira leitura, do segundo livro de Samuel (2Sm 7, 1-16), lemos a profecia de Natan acerca do filho de Davi, que reinaria para sempre, sendo confirmado na realeza. Historicamente, este filho de Davi foi Salomão, responsável pela construção do templo e famoso por sua legendária sabedoria. No sentido transistórico, aproveitando o cálculo genealógico das gerações anteriores a Jesus, explicado por Mateus, o filho de Davi confirmado perenemente na realeza é Jesus Cristo. A insistência do evangelista em ressaltar a descendência de Jesus da linhagem de Davi tem por objetivo interligar o nascimento de Cristo com a promessa de Javeh aos antigos patriarcas, fundamentando assim a fé no Messias salvador prometido pelas escrituras. O rei Davi queria construir uma casa digna para o Senhor, um templo suntuoso, mais do que o palácio onde ele, o rei, morava. No entanto, através do profeta Natan, Javeh fez ver a Davi que essa honra não seria dele, mas de um filho dele. Então, o filho próximo dele, Salomão, edificou o famoso templo, que se tornou referência para muitas gerações, alcançando até o tempo de Jesus. E o filho longínquo de Davi, Jesus, erigiu a sua igreja como templo vivo, não mais de tijolo e pedras, mas presente no coração dos que nele creem. Quando chegou a plenitude dos tempos, a promessa de Javé foi cumprida também de forma plena.

Na segunda leitura, retirada da carta aos Romanos (Rm 16, 25-27), o apóstolo Paulo enfatiza esse mistério, que ficara escondido ao longo dos tempos, mas que então fora revelado, por meio de Jesus Cristo. “Este mistério foi manifestado e, mediante as Escrituras proféticas, conforme determinação do Deus eterno, foi levado ao conhecimento de todas as nações, para trazê-las à obediência da fé.” O mistério referido por Paulo é exatamente este do cumprimento definitivo da antiga promessa, através de um descendente da linhagem de Davi. Diferentemente do próprio rei Davi, cujo poder se dirigia e se limitava ao povo hebreu, o poder deste filho de Davi se estende a todas as nações. Portanto, o mistério que Cristo veio revelar foi de que aquela promessa feita por Javeh aos antigos patriarcas não tinha seus limites atrelados a um determinado local geográfico nem a uma etnia específica, mas todos os povos são os destinatários dela, o seu alcance se estende a todas as nações.

O evangelho de Lucas (Lc 1, 26-38) é também enfático em afirmar que José era descendente de Davi. Não podendo afirmar que José gerou Jesus, como está escrito nas genealogias anteriores, o evangelista refere que José era da família de Davi e era esposo de Maria, a mãe de Jesus. “Eis que conceberás e darás à luz um filho, a quem porás o nome de Jesus. Ele será grande, será chamado Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai Davi. Ele reinará para sempre sobre os descendentes de Jacó, e o seu reino não terá fim' ” (Lc 1, 31). Observemos que José era pai adotivo de Jesus, porém mesmo sem ser filho biológico, Jesus era herdeiro legal de José, portanto, herdeiro da tradição de Davi. A escritura não menciona diretamente que Maria era descendente de Davi. Existe um testemunho de Santo Irineu, que viveu nos primeiros séculos do cristianismo, de que Maria também era da linhagem de Davi, portanto, isso é atestado apenas pela tradição, não consta nos relatos dos evangelistas. Talvez fosse até mais fácil de fundamentar a descendência de Jesus em relação a Davi através da análise de genealogia de Maria. Contudo, naquela época em que prevalecia a linhagem masculina, para evitar quaisquer dúvidas acerca da validade da profecia, se por acaso ficasse demonstrada apenas a descendência pelo lado feminino, os evangelistas destacam sempre a descendência pelo lado de José, deixando de considerar a genealogia de Jesus pelo lado de Maria. Daí porque tal referência só está presente na tradição.

Interessante nesse contexto é observar a forma como a revelação divina foi dada a Maria, diferente do modo tradicional em que isso acontecia. De acordo com a tradição judaica, as mensagens proféticas eram reveladas por Javeh aos seus escolhidos através de sonhos, portanto, quando eles não estavam despertos. Porém, no caso de Maria, ela não apenas estava desperta, mas chegou a dialogar com o anjo e expor suas dúvidas, ao que o anjo respondeu e a tranquilizou. O caso do sonho de José é um desses exemplos de revelação recebida em sonho. Outro caso também relacionado com José é aquele episódio em que ele recebeu uma “ordem” de fugir com Maria e o menino para o Egito, até passar a perseguição de Herodes, através de outro sonho. Com base nessa análise, pode-se afirmar que a revelação a Maria teve uma característica totalmente peculiar, fora do padrão em que isso costumava acontecer. Certamente, porque o evento que esta revelação abordava não era apenas uma intervenção de Javeh na história dos homens, mas a autêntica redenção prometida, a intervenção última e definitiva. Com bastante probabilidade, o diálogo de Maria com o anjo foi bem mais demorado e detalhado do que a narração bíblica apresenta. Maria era muito jovem e estava no início de sua vida adulta, ainda não começara sua coabitação com José. Muito provavelmente, o anjo também explicou a ela que aquele filho lhe traria muitas alegrias e também muitos sofrimentos, talvez o anjo tenha mesmo antecipado a sua morte cruel, como parte do plano da salvação. Era necessário que ela ficasse bastante segura do que estava por acontecer, para que ela finalmente concordasse ou não. E obviamente a gestação não teria iniciado, caso ela tivesse recusado. Daí a importância do “sim” de Maria, porque naquele momento, ela mesmo sabendo antecipadamente dos atrozes sofrimentos que iria suportar futuramente, ainda assim colocou-se submissa à vontade de Deus: ciente, de acordo, faça-se conforme a tua palavra. E o anjo retirou-se.

Meus amigos, a concordância de Maria é um ato de generosidade, de incomparável grandeza. A missão que cada um de nós recebe nessa vida, ou seja, aquilo que outra passagem do evangelho chama com o nome de “talentos”, é um desafio que depende também da nossa generosidade. Generosidade para aceitar e disponibilidade para executar. A preparação do Natal exalta essa virtude de Maria, que é a generosidade. “A generosidade é a capacidade de dar com desapego, onde o amor ganha do egoísmo. É na entrega generosa que fazemos de nós mesmos que se mostra a profundidade de um amor que não fica somente nas palavras. É isso que celebramos no natal: o gesto generoso de Maria em aceitar ser a mãe de Deus e o gesto generoso de Deus que se dá a si mesmo, para a redenção da humanidade.” A generosidade é o antídoto do egoísmo, é uma atitude por demais sugestiva para os nossos tempos, em que o individualismo e o isolamento são uma marca característica da nossa sociedade, sobretudo com a massificação do uso da tecnologia da comunicação. Contraditoriamente, aquilo que deveria nos unir mais é justamente aquilo que contribui para nos afastar mais uns dos outros. A lição da generosidade de Maria continua, portanto, eloquente e atual, merecendo fazer parte das nossas reflexões e dos propósitos de melhoria de vida, que todos nós devemos fazer nesse tempo de preparação para o nascimento de Jesus.

Ao ensejo, formulo a todos sinceros votos de Feliz Natal.

domingo, 10 de dezembro de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 2º DOMINGO DO ADVENTO 0 O0 PRECUSSOR - 110.12.2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 2º DOMINGO DO ADVENTO – O PRECUSSOR – 10.12.2017

Caros Leitores,

Neste segundo domingo do advento, a liturgia destaca o tema da consolação, através da palavra de conforto do profeta Isaías ao povo no cativeiro, informando que o tempo do castigo terminou, é hora de preparar o retorno a Jerusalém. O tempo litúrgico do advento nos convida a essa preparação do espírito não para a volta do exílio, mas para a chegada daquele que vem. O evangelho de Marcos destaca a importância do papel de João, o Precussor, conclamando o povo para o batismo da conversão, em preparação da chegada daquele que haveria de vir. Os temas da primeira e da terceira leituras se coordenam perfeitamente, repetindo a mensagem do pregador do deserto, profetizado por Isaías.

A primeira leitura retirada do profeta Isaías (Is 40, 1-11) nos convida a vivenciar o tempo do advento na alegria da espera da nossa libertação: “Preparai no deserto o caminho do Senhor, aplainai na solidão a estrada de nosso Deus. Nivelem-se todos os vales, rebaixem-se todos os montes e colinas; endireite-se o que é torto e alisem-se as asperezas.” Esse trecho é bastante conhecido, porque ele foi retomado por João Batista, quando pregava o batismo de penitência, nas margens do rio Jordão. O apelo do profeta e do precursor continua ressoando nos nossos dias, quando a liturgia nos põe outra vez no início da trajetória da história da nossa salvação, com a expectativa da vinda do Salvador. O profeta Isaías é aquele que melhor antecipou os acontecimentos relacionados com a chegada do Messias, o Libertador: “eis que o Senhor Deus vem com poder, seu braço tudo domina: eis, com ele, sua conquista, eis à sua frente a vitória.” Embora a mensagem do Profeta se referisse, no contexto imediato, ao final do cativeiro da Babilônia, na perspectiva transistórica, a mensagem de consolação e de libertação se prolonga nos nossos dias, visto que a salvação prometida não é ato de um dia só, mas um processo continuo de aperfeiçoamento da humanidade, em busca de novos céus e de nova terra.

Esse conceito de “novos céus e nova terra” está na segunda carta de Pedro, lida na liturgia de hoje (2Pd 3, 8-14). Como todos sabemos, Pedro não era nenhum intelectual, pois fora criado à margem do Lago de Genesaré, onde se dedicava ao ofício da pesca profissional, quando recebeu o chamado de Jesus. Estima-se que as cartas de Pedro foram escritas por Marcos, que era discípulo dele e o acompanhava. Diferentemente de Paulo, que escrevia aos gentios, isto é, aos povos que não conheciam a tradição judaica, Pedro escrevia para uma comunidade de Judeus, daí porque ele não precisava explicar muitas coisas, que os seus leitores já conheciam. No trecho dessa leitura, Pedro repete duas imagens que são recorrentes nos evangelhos sinóticos: o dia do Senhor virá como um ladrão e o cataclismo da precipitação dos céus para a terra, causando um grande incêndio que destruirá tudo. Devemos nos lembrar também que as cartas de Pedro foram escritas bem antes dos evangelhos, portanto, não se pode dizer que ele copiou esse assunto da leitura dos evangelhos, mas sim, o oposto, isto é, Pedro referiu-se a esses por primeiro.

Já tive oportunidade de me manifestar acerca desses eventos escatológicos desastrosos, em comentários anteriores, não sendo o caso de retomá-los aqui. Nesse contexto, importa destacar que Pedro se refere à promessa divina de que, no futuro, surgirão novos céus e nova terra, onde habitará a justiça. Pode-se deduzir, então, que essa imagem da destruição não deve ser compreendida no sentido físico, geocósmico, mas no sentido da destruição do pecado e da injustiça, para cederem lugar à justiça que vem de Deus. É interessante observarmos o uso do termo no plural: “novos céus” (no original grego, kainoús dé ouranoús), enquanto “terra” está no singular. Isso deve significar que Pedro acreditava na tradição judaica acerca da existência de sete céus (o primeiro, chamado Vilon, seria o local onde originalmente moravam Adão e Eva, de onde eles “caíram” para a terra; a este primeiro, seguiam-se outros até chegar ao sétimo céu, que seria propriamente a morada de Deus). Dessa concepção, parte a ideia de que os céus “cairão” sobre a terra, porque essa era a noção geográfica daquela época. Visto que Pedro escrevia aos judeus, ele não precisava explicar com detalhes o que seriam esses céus, que seriam renovados. Referindo-se à terra (no original grego, gen kainen), aparece outra vez o adjetivo “kainos”, que significa algo inédito, extraordinário, nunca visto antes. Ou seja, a tradução de ‘kainos’ por “novo” em português não indica toda a força que a palavra grega possui. Assim, os novos céus e a nova terra representam a ideia de um processo de depuração, de purificação, não sendo simplesmente uma coisa que vem substituir outra, assim como nós passamos a usar um novo sapato e jogamos o outro no lixo. O novo tem aqui o sentido da renovação plena, de tomar algo que está velho e fazê-lo tornar-se novo outra vez. E acerca dos “sete” céus, esse conceito continua vigente no talmud judaico e significa uma espécie de local físico, embora muito elevado, porém não é compatível com o conceito de céu presente na doutrina teológica cristã.

Portanto, deixando de lado essa noção dos sete céus, entendida quase no sentido cosmológico, a mensagem da carta de Pedro nos incentiva a vivermos na esperança da renovação prometida, cuja realização depende também do esforço de cada um de nós: “vivendo nessa esperança, esforçai-vos para que ele vos encontre numa vida pura e sem mancha e em paz.” Tal como Paulo fez em suas cartas, Pedro também adverte os cristãos mais apressados para que tenham paciência para esperar a vinda do Senhor, pois “para o Senhor, um dia é como mil anos e mil anos como um dia. O Senhor não tarda a cumprir sua promessa, como pensam alguns, achando que demora.” Percebe-se que tanto nas comunidades dos gentios quando nas comunidades judaicas, prevalecia uma expectativa de que Jesus retornaria “em breve”, ou seja, naqueles próximos dias, por isso tanto Paulo quanto Pedro ensinavam aos cristãos que não deviam ter pressa nem tentar adivinhar esse dia, mas que cada um permanecesse fiel e se mantivesse alerta e em prontidão. Passados mais de dois milênios e considerando a evolução dos conhecimentos científicos acerca do universo, devemos compreender esses “novos céus e nova terra” no sentido metafórico teológico e espiritual, de modo que vivendo nessa “velha” terra o “reino de Deus”, estamos antecipando pela fé a vida na Jerusalém celeste, servindo como nosso guia nessa caminhada o evangelho de Cristo.

Na leitura do evangelho de Marcos (Mc 1, 1-8), vemos repetido o mesmo trecho do profeta Isaías, fazendo expressa referência a João Batista como aquele que foi enviado para preparar o caminho, quando já estava próxima a chegada histórica de Cristo. Dizia João Batista: já está no meio de vós aquele que virá depois de mim. Depois de mim virá alguém mais forte do que eu. Eu nem sou digno de me abaixar para desamarrar suas sandálias. Eu vos batizei com água, mas ele vos batizará com o Espírito Santo”. Aqui também devemos entender que esse trecho foi escrito muito depois da época de João, pois João ainda não conhecia a pessoa divina do Espírito Santo, a qual foi revelada somente algum tempo depois, nas pregações de Cristo. É verdade que João teve uma antevisão do Espírito Santo em forma de pomba, por ocasião do batismo de Cristo por ele, mas isso não significa que ele tivesse tido uma antecipação da doutrina trinitária, que Jesus iria explicar aos apóstolos durante sua catequese com eles. A consciência do seu papel de precursor está bem expressa na metáfora de João sobre “desamarrar suas sandálias”. João tinha ciência de que a origem divina de Cristo e a missão que Ele ali iniciaria não tinha termo de comparação com o seu próprio trabalho. E sabe-se pela leitura de Mateus (3, 11) que João teria argumentado com Jesus: eu devo ser batizado por ti, mas tu vens a mim. E Jesus teria respondido: deixa assim por enquanto. Tudo devia acontecer de acordo com o plano do Pai e João era um importante personagem nesse plano.

Meus amigos, que nós saibamos, interpretar com sabedoria a temática bíblica posta diante de nós pela liturgia do advento, de modo a compreendermos sempre melhor o significado desse tempo religioso importante, mas que fica em geral obscurecido pelos apelos comerciais e emocionais relacionados com o natal da troca de presentes, desviando-nos do verdadeiro sentido do natal cristão.

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segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 1º DOMINGO DO ADVENTO - VIGILATE - 03.12.2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 1º DOMINGO DO ADVENTO – VIGILATE – 03.12.2017

Caros Leitores,

O primeiro domingo do advento dá início ao novo ano na liturgia católica romana, que não segue o calendário civil. Hoje é, portanto, o primeiro dia do ano novo religioso. Neste ano, classificado com a letra B, as leituras do evangelho serão, preferencialmente, do evangelista Marcos. Cronologicamente, o evangelho segundo Marcos foi o primeiro dos quatro a ser escrito. Consta que João Marcos era um discípulo de Pedro e teria sido também o escriba das cartas deste. O texto deste evangelista é considerado o mais próximo das fontes documentais pelo fato de apresentar-se mais resumido e com poucos detalhes dos fatos narrados. Deve ter sido escrito por volta do ano 50 d.C.

Numa interpretação literal, advento é aquilo que está para vir, ou seja, o nascimento de Cristo. É sempre conveniente recordar que a festa celebrada em 25 de dezembro é apenas uma data referencial, não significando o dia exato em que Jesus nasceu. A escolha desta data foi uma intromissão do imperador Constantino, que aproveitou uma festa tradicional pagã, em homenagem ao deus sol invencível, e que marcava a passagem do solstício de inverno no hemisfério norte. A partir de Constantino, esta solenidade foi transformada em uma festa cristã, homenageando Jesus, o novo sol do mundo. A tradição cristã oriental não segue essa data, pois não aceitou a imposição de Constantino, e celebra o nascimento de Jesus no dia 6 de janeiro. Contudo, o 25 de dezembro foi assumido pelo catolicismo romano e de lá trazido para o continente americano, associado a paisagens com pinheiros cobertos de neve. Porém devemos nos lembrar que Jesus nasceu em Belém, na Judéia, e lá não havia nem pinheiros nem neve, ao contrário, a região é predominantemente desértica. Esta é a visão européia do natal e é mais um motivo para nós compreendermos a sua simbologia coerente com o evangelho e não com os costumes tradicionais, que associam o Natal à troca de presentes e à farta ceia com iguarias típicas da data. Diferente disso, o nascimento de Cristo foi um acontecimento modesto e até austero, pois como se sabe, Maria e José não encontraram nem hospedagem decente naquele dia de grande aglomeração em Belém.

Nas leituras litúrgicas de hoje, temos a primeira do profeta Isaías (63, 16 – 64,7, portanto, do deutero-Isaías), em que o Profeta recorda o tempo do exílio como um castigo divino, porque o povo se afastou dos caminhos do Senhor, e faz uma declaração de humildade, ao dizer que “nós nos tornamos imundície e todas as nossas obras são como um pano sujo … por isso, escondeste de nós a tua face e nos entregaste à mercê de nossas maldades”. E logo em seguida, vem a declaração de confiança: “Assim mesmo, Senhor, tu és nosso pai, nós somos barro; tu, nosso oleiro, e nós todos, obra de tuas mãos. A figura do barro nas mãos do oleiro tem um significado bastante forte de confiança na misericórdia do Senhor, na medida em que o barro é um objeto amorfo e receberá a forma que as mãos do oleiro quiser lhe dar. Essa imagem é reforçada pelo vers. 3 do cap 64: “Nunca se ouviu dizer nem chegou aos ouvidos de ninguém, jamais olhos viram que um Deus, exceto tu, tenha feito tanto pelos que nele esperam. Essa passagem de Isaías tem tudo a ver com o tempo do advento, que é a ocasião propícia para cada cristão se desvencilhar do seu invólucro espiritual velho e construir em si um novo receptáculo, para ali depositar o Salvador, cujo nascimento esperamos. Tal como a quaresma é o tempo de penitência em preparação para a Páscoa do Senhor, o advento é também um tempo de revisão de procedimentos, de limpar as veredas e aplainar os caminhos para a chegada do Senhor. Na verdade, a festa do Natal é a segunda mais importante do calendário cristão, superada apenas pela festa da Páscoa. A vinda de Cristo é o início do mistério da redenção prometido por Javeh aos antigos Patriarcas e que não se destina mais somente àquele povo original da aliança, mas alcança todo o gênero humano. Esse é o acontecimento chave que marca o ponto de partida da caminhada eclesial que será seguida no decorrer do ano novo.

A segunda leitura traz o início da primeira carta de Paulo aos Coríntios (1Cor 1, 3-9), em cujo preâmbulo o Apóstolo felicita aquela comunidade e recomenda a perseverarem firmes na fé até “o dia de Nosso Senhor Jesus Cristo”, numa alusão evidente à segunda vinda de Cristo. Conforme já explicitado em comentários anteriores, os cristãos daquela época (e Paulo inclusive) entendiam a vinda gloriosa de Cristo “para julgar o mundo” como algo que ocorreria por aqueles dias, não iria demorar muito. No versículo 7, Paulo diz isso textualmente, quando escreve “vós que aguardais a revelação de Nosso Senhor Jesus Cristo”, ou seja, Ele irá retornar a qualquer momento. O tema dessa leitura paulina está em consonância com o tema do evangelho de Marcos, chamando a atenção para a perseverança até o final, dentro da fidelidade à graça recebida. Deus é fiel, repete Paulo, e essa fidelidade de Deus deve ser correspondida com a fidelidade do crente. Percebe-se, pela frequência com que Paulo volta a esse assunto, que essa maneira de compreender a segunda vinda de Cristo era uma idéia recorrente nas comunidades cristãs. Assim se entende porque o tema da “vigilância” é tantas vezes reprisado tanto nas cartas de Paulo quanto nos evangelhos, sendo também um apelo insistente da liturgia nessa época do ano.

A leitura do evangelho de Marcos tem essa mesma conotação da vigilância (Mc 13, 33-37). O texto tradicional latino exorta: Vigilate! (Vigiai). Podemos perceber como essa preocupação chegava a ser exagerada, pela forma como o tema nos é apresentado na parábola do patrão que viajou ao estrangeiro e deixou sua propriedade sendo cuidada pelos seus empregados. O patrão também deixou a cada empregado uma tarefa específica, encarregando um deles de ser o porteiro, que ficaria vigiando a casa. Quanto aos demais, diz a parábola, devem estar sempre preparados, porque não sabem a que dia ou hora o patrão retornará. Pode ser de tarde, de noite, de madrugada, ninguém sabe quando será este dia. Do modo como a história é contada, tem-se a impressão de que aqueles empregados não poderiam nem dormir, porque podia ser que o patrão chegasse na hora do sono deles. Ora, meus amigos, parece óbvia aqui uma figura de linguagem. Na verdade, o foco da mensagem, ao meu ver, se refere à execução da tarefa da qual cada um foi encarregado e não ao sono em si. Essa, sim, deve ser cumprida conforme o cronograma, de modo que, no retorno do patrão, a tarefa não esteja em atraso. A tarefa maior que Jesus deixou para nós, os empregados, está resumida naqueles dois mandamentos, que todos conhecemos muito bem: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. Essa é a tarefa que não pode ser deixada para depois, mas deve ser realizada constantemente.

A metáfora de “não sabemos o dia ou a hora em que o patrão retornará” faz parte daqueles denominados discursos escatológicos de Jesus e seu entendimento deve ser atualizado. A segunda vinda de Cristo, apresentada tradicionalmente como um fenômeno cósmico, com trovões e trombetas, a meu ver, será um evento privado na vida de cada pessoa. Em vez de ser Ele que virá ao nosso encontro, nós, ao contrário, é que nos dirigiremos a Ele. Devemos compreender que aquela maneira teatral de apresentar o fenômeno é resultado da noção que se tinha na época acerca da terra e sua posição relativa aos demais corpos celestes. Não há dúvida de que toda a escritura é inspirada por Deus e útil para ensinar, conforme ensinou o apóstolo Paulo (2Tim 3, 16), porém, ela é palavra divina em linguagem humana e deve ser contextualizada dentro da concepção científica e cosmológica da época em que foi escrita. Compete a nós, que hoje lemos esses textos, desapegar do fundamentalismo e da literalidade para assim alcançarmos o seu significado mais apropriado para o nosso tempo.

Portanto, o ensinamento de Cristo para que estejamos sempre vigilantes se refere ao nosso tempo existencial. Por isso, essas leituras do tempo do advento não devem ser assimiladas com um tom de ameaça ou de aterrorização, mas como um apelo de vida consciente e centrada nos nossos compromissos de cristãos. Vigilate, não deixeis dormir a vossa fé.

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domingo, 26 de novembro de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - FESTA DE CRISTO REI - 26.11.2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO – FESTA DE CRISTO REI – REINO DA CARIDADE – 26.11.2017.

Caros Leitores,

Como é praxe, no domingo que encerra o ano litúrgico, a Igreja celebra a festa de Cristo Rei do Universo. Recordando um pouco a história, esta celebração foi instituída em 1925, pelo Papa Pio XI, num contexto político internacional conturbado, período entre as guerras mundiais e com profusão de governos autocráticos e ditatoriais em vários países da Europa. A intenção do Papa era chamar a atenção do mundo para o “reino” de Cristo, que supera as divisões políticas e as disputas pelo poder material, pois o seu mandamento supremo é a caridade para com os irmãos. Particularmente, eu não vejo com simpatia essa festividade no contexto sociopolítico contemporâneo, falar em reino não condiz com o exemplo histórico de Cristo, que sempre recusou honrarias e não gostava de ser chamado de Rei. Convém ainda lembrar que na cruz de Cristo, Pilatos mandou colocar a inscrição “rei dos judeus” como um escárnio, então a inspiração litúrgica para essa memória litúrgica, por melhor que tenha sido a intenção do Papa, bem que poderia ser repaginada. Trata-se de uma festa da igreja universal, não apenas no Brasil, o que torna mais difícil ainda qualquer alteração, porque, com certeza, muitas vozes de protesto se levantariam. Mas o fato é que um símbolo de realeza e de triunfalismo religioso nos dias de hoje não são aceitos de bom grado pelas demais igrejas, o que trama contra o ecumenismo, uma das principais metas buscadas pelo Papa Francisco. Na próxima semana, o Papa estará viajando ao leste asiático (Myanmar e Bangladesh), em missão de paz e confraternização cristã, ou seja, o universo preferencial da Igreja Católica romana se direciona totalmente em sentido diverso. É um ponto de vista pessoal, peço desculpas aos leitores que dele não participarem.

Pois bem, dada essa completa modificação do contexto histórico e também das novas estratégias adotadas pela Igreja Católica romana, as leituras litúrgicas exigem de nós um maior esforço mental para ajustá-las a esse estado de coisas. A primeira leitura, do livro do profeta Ezequiel, habitualmente enigmático, no trecho lido na liturgia de hoje, faz referência às muitas ovelhas que estão dispersas e que serão resgatadas por Deus. Porém, comete um erro, na época justificável, de fazer distinção entre ovelhas, carneiros e bodes. Esse mesmo erro referencial será também cometido por Mateus, na distinção entre ovelhas e cabritos, comentarei isso mais adiante. Por sua vez, a carta de Paulo aos Coríntios (1Cor 15, 20-28) contém aquela famosa e polêmica comparação entre Adão e Jesus Cristo, que traz dificuldades teológicas para a harmonização entre a teologia e a ciência: “por um homem veio a morte, e é também por um homem que vem a ressurreição dos mortos. ” (15, 21) Conforme todos sabem, na perspectiva científica, não se sustenta mais a convicção de que toda a humanidade se originou apenas de um único casal, porém esse era o entendimento na época de Paulo. E depois, Paulo faz uma afirmação que, ao meu ver, está em total desacordo com a ideia de Cristo sobre o seu “reino”: “Pois é preciso que ele reine, até que todos os seus inimigos estejam debaixo de seus pés.” (15, 25) Ora, essa proposta de subjugar os inimigos é bem típica da época do império romano e era um arquétipo na cabeça de Paulo. No entanto, o “reino” que Cristo veio fundar é o reino do amor, cujo passaporte para nele adentrar é a caridade e, assim sendo, não está conforme a ele a imagem de submeter os inimigos debaixo dos seus pés. Os possíveis inimigos serão conquistados para fazerem parte também eles do reino da caridade. Por isso, precisamos filtrar a doutrina de Paulo para a ajustarmos à cosmovisão contemporânea. E Paulo novamente insiste naquela ideia mecanicista da vinda de Cristo “dentro de alguns dias”. Ele, Paulo, e os cristãos da época, pensavam que o retorno de Cristo era uma questão de poucos dias, Paulo pensava que ainda iria encontrar Cristo antes de morrer. Do mesmo modo, os demais cristãos entendiam que essa vinda gloriosa de Cristo seria iminente. Só com o passar do tempo e com o aperfeiçoamento da reflexão teológica esse pensamento evoluiu.

Um semelhante contorcionismo mental será necessário para ajustarmos a compreensão do texto do evangelho de Mateus, lido na liturgia de hoje (Mt 25, 31-46). Novamente, precisamos ter em mente a cosmologia da época, fundada no geocentrismo de Ptolomeu, que era o conhecimento científico dominante. Mateus coloca na boca de Jesus todo um discurso que é, provavelmente, muito mais resultado da crença da comunidade do que de palavras do próprio Cristo. Comparemos com o texto de João, quando Pilatos perguntou-lhe: “então, és rei?” Jesus respondeu: o meu reino não é deste mundo. (João 18, 34) Percebe-se que essa descrição feita por Mateus da vinda de Jesus descendo em sua glória, acompanhado dos anjos e sentado num trono glorioso é muito mais uma criação de uma cabeça pensante humana do que algo que se perceba nos outros discursos de Cristo acerca do reino de Deus. De fato, o evangelista faz uma descrição bem conforme o modelo terreno dos reis de sua época, que é também como ainda hoje as imagens de Cristo Rei são representadas: com um vistoso manto rubro, uma coroa real, um cetro de ouro, como eram os protótipos dos reis da antiguidade. Mas o Cristo Rei não precisa se apresentar com esse aparato imperialista, porque o Seu reino não é deste mundo, é o reino da caridade, do amor ao próximo, não é da ostentação nem da dominação.

Uma outra comparação totalmente desproporcional é a que o evangelista faz, ao distinguir as ovelhas dos cabritos (25, 32-33), colocando as ovelhas à direita e os cabritos à esquerda. Eu diria que é uma comparação infeliz, porque está figurando os infiéis como cabritos, da mesma forma como o profeta Ezequiel havia diferenciado entre ovelhas, carneiros e bodes (Ez 11, 17). Meus amigos, essa metáfora é totalmente fora de propósito. Deve ter sido dela que os artistas medievais tiraram aquela figura horrível de representar o demônio com pés de bode, ou seja, bodes, cabritos são imagens demoníacas. Quero crer que Jesus Cristo não tenha feito esse tipo de comparação, porque contém uma odiosa discriminação, tenho por certo que da boca de Jesus não sairiam palavras com tais significados depreciativos. Ademais, eu também tenho por certo que, na presença de Cristo, a “fila da esquerda” estará totalmente vazia, pois todos (ovelhas, carneiros, bodes e cabritos) estarão na “fila da direita”, porque o reino de Cristo é o reino do amor e o passaporte para sua entrada é a caridade. Percebe-se isso nas ações que Ele valorizou praticadas por aqueles que ficaram na fila da direita: estava com fome e me destes de comer, com sede e me destes de beber, era estrangeiro e me recebestes na vossa casa... ou seja, em uma só palavra, é a prática da caridade.

Vejamos agora o que disse o Papa Francisco, no sermão de uma missa da festa de Cristo Rei, algum tempo atrás, essa sim, uma mensagem totalmente coerente com a mensagem de Cristo: "A Salvação não começa confessando a realeza de Cristo, mas imitando as obras de misericórdia por meio das quais Ele realizou o Reino do amor, da proximidade e da ternura com os nossos irmãos. Disso dependerá a nossa entrada ou não no Reino de Deus”. Perfeito esse ensinamento do Papa, desmistificando aquela imagem triunfalista tradicional do Cristo Rei no estilo medieval. Proclamar a realeza de Cristo é agir como Ele agiu e como Ele ensinou que deveríamos agir: dando alimento aos famintos e água aos sedentos, vestindo os nus e recepcionando os estrangeiros. Se não fizermos isso, não adianta tentar se colocar sob o manto do Cristo Rei, porque não haverá espaço.

Meus amigos, concluo com uma ideia que já tive ocasião de repassar a vocês em outra oportunidade: entendo a figura de Cristo como rei não no sentido da realeza terrena, mas como o soberano da verdade, da justiça, da paz, da igualdade e da fraternidade e, para isso, Ele não precisa nem de um manto nem de um cetro nem de um trono, porque o seu manto é a verdade, o seu trono é a justiça e o seu cetro é a paz.

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domingo, 19 de novembro de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 33º DOMINGO COMUM - CAPITALISMO DE JESUS - 19.11.2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 33º DOMINGO COMUM – CAPITALISMO DE JESUS - 19.11.2017

Caros Confrades,

A liturgia do 33º domingo comum, o penúltimo do ano eclesiástico, nos traz uma imagem do que se poderia chamar de capitalismo de Jesus: o patrão da história indica como modelo de atitude a produção de algum lucro e ironiza a falta de interesse de um operário que nem ao menos colocou a sua porção no banco, a fim de “receber juros”. São os ensinamentos de Cristo na conhecida parábola dos talentos, os quais devem sempre produzir novos frutos e multiplicar-se. Chega a causar uma certa estranheza essa comparação entre talentos-dinheiro e talentos-dons, por isso devemos entender a metáfora do “lucro” com a devida ponderação.

Na primeira leitura, temos um também conhecido texto do Livro dos Provérbios, em que o sábio bíblico elogia a figura da mulher forte (Prov 31, 10-31). Não deixa de ser uma referência bastante interessante naquele contexto, porque sabe-se que a tarefa da mulher na sociedade hebraica era colocada em segundo plano, a sua função social era secundária, predominndo a cultura masculina, hoje chamada de machismo. Em geral, todos as culturas antigas seguem o modelo da família patriarcal, aquela em que o homem tem o poder e o domínio sobre todas as pessoas e os bens familiares. Entre os hebreus, isso não era diferente. Daí porque a figura da “mulher forte” lançada no livro dos Provérbios é uma referência que foge ao padrão cultural comum do tempo. Este livro teria sido escrito por Salomão, pelo menos em sua maior parte, e depois foi complementado por outros sábios hebreus, sendo considerado um livro profético e usado para leitura pública nas sinagogas judaicas, embora o seu conteúdo seja nitidamente ético e filosófico. O autor tem por objetivo ensinar o leitor a alcançar a sabedoria através da autodisciplina e de uma vida prudente.

As características da “mulher forte”, de acordo com a sabedoria salomônica, são a diligência ou a operosidade (“com habilidade trabalham as suas mãos”), a caridade ou a prestatividade (“abre suas mãos ao necessitado e estende suas mãos ao pobre”) e a piedade ou o temor de Deus (“a mulher que teme ao Senhor, essa sim, merece louvor”). E conclui o sábio: “Ela vale muito mais do que as joias. Seu marido confia nela plenamente, e não terá falta de recursos” (Pv 31, 10-11). Tenho plena certeza de que todos nós tivemos a ventura de ter pelo menos duas mulheres fortes nas nossas vidas: as nossas mães e as nossas esposas. Trabalhando sempre em silêncio, mas com todo o afinco, elas tiveram um papel importante e decisivo naquilo que cada um de nós conseguiu realizar. Foi por isso que Javeh, logo no início da humanidade, proclamou que não convém que o homem fique só. E observemos que o sábio fala na “mulher forte”, não na mulher subordinada, subjugada, inferiorizada. Se na época de Salomão ele já indicava essa qualidade feminina para a mulher que fará a companhia correta e justa para o homem (ela lhe dá só alegria e nenhum desgosto, todos os dias de sua vida), nos dias modernos, essa característica é ainda mais necessária e com maior razão deve ser reconhecida e valorizada. Fica aqui a minha homenagem a todas as nossas caras-metades, que são mesmo metades de nós.

Na segunda leitura, de Paulo aos Tessalonicenses (1Ts 5, 1-6), o Apóstolo explica a vinda de Cristo no momento em que ninguém espera, por isso, todos devem estar vigilantes, para não serem surpreendidos. Nota-se que, naquela ocasião, havia uma expectativa de que Cristo iria retornar “a qualquer momento”, o próprio Paulo no início também pensava assim. Paulo tinha esperança de poder ver a Cristo na sua vinda, já que não tivera oportunidade de vê-Lo em sua existência humana. Ou seja, parecia àqueles crentes que o retorno de Jesus era uma questão de horas, de dias, talvez, tanto que alguns daquela comunidade até deixaram de trabalhar e viviam olhando para o céu, esperando ver o momento em que “aquelas coisas” apareceriam. E lembremos que, naquele tempo, ainda não era conhecido da comunidade o Apocalipse de João, onde os “sinais” do final dos tempos estão pintados com cores bem mais nítidas. Passados todos esses anos (dois milênios), nós ainda vemos pessoas alarmistas tentando interpretar os fenômenos climáticos e os desastres provocados pela ação humana como sendo os sinais do Apocalipse. Essas pessoas, de visão curta e fundamentalista, imaginam que o universo seja somente o planeta terra e se esquecem que somos menores do que um grão de areia no infinito do cosmos. Caso (digo apenas por um raciocínio absurdo) a terra entre em colapso, podem até sucumbir a vida humana e as outras formas de vida que conhecemos, mas o mundo não será nem minimamente afetado. Na verdade, a lição que devemos tirar da leitura da carta de Paulo é a da vigilância, da prudência, da prontidão. A vinda de Cristo será a qualquer momento, disso ninguém duvida, mas a prestação de contas será de cada um de nós e não do mundo como um todo.



Na leitura de hoje do evangelho de Mateus (25, 14 30), Jesus assume uma postura nitidamente capitalista, quando proclama a parábola dos “talentos”: um homem rico deixou três empregados na administração dos seus bens, distribuindo quantias desiguais a cada um, “a cada qual de acordo com a sua capacidade”. Já começa aí a “esperteza” do patrão. Por que motivo Jesus daria um exemplo de um patrão que não trata os empregados de um modo isonômico? Por que isso, se ele havia dito que o Pai não faz acepção de pessoas? Para ajudar a clarear essa polêmica, lembremo-nos daquela outra passagem em que Judas censurou a pecadora, porque ela estava derramando perfume nos pés de Jesus, pois estava estragando um produto valoroso, que se fosse vendido daria para dar esmolas a muitos pobres. E Jesus disse: pobres sempre tereis entre vós (Jo 12, 8). Vê-se, desse modo, a falácia de certos pregadores socialistas acerca da divisão igualitária das riquezas. Temos aí já dois exemplos da pregação de Cristo, em que ele reconhece que as pessoas têm diferentes habilidades e, por que não dizer, capacidades de trabalho diferentes. Por isso, não é justo que um preguiçoso tenha retribuição igual ao que despendeu grande esforço para produzir seu trabalho. Não é justo, ao contrário, é viciante “dar dinheiro” a quem não trabalha, sob a pífia desculpa de que essas pessoas não tiveram as mesmas oportunidades na vida. Todos nós conhecemos temos em nossas vidas e ainda conhecemos exemplos práticos que contraditam essa ideologia interesseira. É uma falácia utilizada como argumento de interesse ideológico para manipulação e enganação de pessoas preguiçosas.
Então, o patrão fictício da parábola de Cristo distribuiu seus bens em proporções diferentes entre os três empregados, dando a cada um de acordo com as suas capacidades. Dois deles, os mais operosos, multiplicaram as parcelas recebidas, porém o terceiro, por medo, por preguiça, por desinteresse, o que seja, não produziu nada. Os dois primeiros foram louvados, enquanto o terceiro foi censurado e excluído. E Jesus ainda vai mais longe na sua metáfora: por que não colocaste pelo menos depositado em algum banco? Assim, poderia render juros... entendamos bem isso: Jesus não está defendendo a teoria capitalista dos juros sobre o capital como legítima, seu objetivo é outro. Ele quer dizer que ninguém deve ficar inerte, fechar-se no seu isolamento e não buscar nenhum tipo de atitude produtiva. O capitalismo de Jesus não é igual ao capitalismo de mercado, a busca do ganho constante, ilimitado, antiético, a qualquer custo, não se trata disso, mas no sentido da produtividade. Nós precisamos ser pessoas produtivas, tanto no sentido da produção de bens, porque isso é, sem dúvida, necessário, pois é assim que cada um de nós compartilha da obra divina da criação do mundo, mas também da produção de bons exemplos, de virtudes, de amor ao próximo, de fé e caridade nas nossas tarefas cotidianas. A partilha de bens materiais deve fazer-se na mesma proporção e na mesma oportunidade da partilha da palavra e da oração. E o ambiente mais adequado para se fazer isso é na comunidade paroquial, onde nós praticamos o que é ser igreja. Portanto, aquela ação caritativa tradicional de apenas dar a esmola “pelo amor de Deus” não é exatamente o tipo de partilha que Jesus quer que façamos. Se não for acompanhada do seu componente interior de religiosidade, uma tal partilha termina por ser mecânica e artificial. Daí a minha sugestão de que o ambiente legítimo para se exercitar a partilha será através das ações comunitárias, preferencialmente, nas paróquias, que me parece preferível do que na forma de ações isoladas, individuais. Assim, estaremos praticando o verdadeiro capitalismo cristão.

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COMENTÁRIO LITÚRGICO - 32º DOMINGO COMUM - DONZELAS PRUDENTES - 12.11.2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 32º DOMINGO COMUM – DONZELAS PRUDENTES – 12.11.2017

Caros Confrades,

Neste 32º domingo comum, a liturgia ainda repercute a celebração dos fiéis defuntos, trazendo como tema a vigilância constante que devemos ter, porque não sabemos o dia nem a hora em que o Senhor virá. Daí a necessidade da prudência e da prontidão. Esse assunto sempre foi muito utilizado para exercer um certo temor e tremor entre os fiéis, uma vez que aqueles apanhados desprevenidos ficarão “de fora” do banquete, ou seja, estarão excluídos da salvação. O tema está, portanto, diretamente relacionado com a crença na vida eterna e com a recomendação de cada um viver o seu dia de hoje como se fora o último. Essas ameaças, juntamente com as referências terríveis ao “fogo do inferno” já foram assuntos prediletos dos pregadores populares, sendo ainda hoje muito caros aos evangélicos, em especial aos atuantes nas “igrejas eletrônicas”, que existem em grande profusão. A incerteza e a insegurança geradas sempre trazem grande medo e podem até se tornar um terror psicológico a atormentar os fiéis, porque mexem com algo carregado de imutabilidade, de irreversibilidade. Isso sempre assusta.

A primeira leitura faz um elogio da sabedoria, mostrando a sua ligação com a prudência e apresentando-a como uma alternativa para alimentar a esperança diante das incertezas (Sab 6, 12-16). Meditar sobre a sabedoria é a perfeição da prudência. Ela é facilmente encontrada por aqueles que a procuram e até se antecipa para aqueles que desejam conhecê-la. Quem a busca não se cansará e seguir os seus ensinamentos torna a pessoa despreocupada. A sabedoria será, portanto, a chave da solução do problema colocado pela instabilidade e pela insegurança em relação ao futuro. O sábio é sempre prudente e, ao inverso, o néscio é sempre imprudente. Essa lição acerca da natureza da sabedoria sintoniza com a parábola narrada no evangelho de Mateus (25, 1-13), acerca da antítese colocada através das figuras das donzelas prudentes e das imprudentes, em que as primeiras estavam preparadas na hora incerta e as segundas não estavam. No caso, a sabedoria de umas lhas deu incomparável vantagem em relação às outras. A sabedoria será, portanto, o ideal a ser buscado por aqueles que desejam estar sempre preparados para os momentos de incerteza.

Na segunda leitura, retirada da carta de Paulo aos Tessalonicenses (1Ts 4,16-18), o Apóstolo procura animar os cristãos daquela comunidade diante da crença dos gregos acerca do destino dos mortos. Conforme os biblistas, a primeira carta aos fiéis de Tessalônica teria sido uma das primeiras escritas por Paulo. A cultura grega antiga era marcadamente materialista, não referendando a crença na vida eterna, afirmando que tudo se acaba com a morte. Por isso, alguns cristãos dali tinham certa dificuldade de acreditar na ressurreição, afirmada pela fé cristã, levando Paulo a reforçar a sua catequese sobre o tema, ao dizer: “Se Jesus morreu e ressuscitou - e esta é nossa fé - de modo semelhante Deus trará de volta, com Cristo, os que através dele entraram no sono da morte.” Em seguida, Paulo ensina como será a ressurreição do último dia, precedida “pela voz do arcanjo e pelo toque da trombeta”, uma cena que foi muitas vezes ilustrada pelos artistas da Renascença. No início do cristianismo, o entendimento literal da palavra de Cristo levava os cristãos a interpretarem como se isso fosse ocorrer naqueles dias. Alguns até ficaram sem trabalhar e sem fazer mais nada, só esperando o retorno de Cristo, fato que foi até contestado por Paulo em carta posterior. Mas o fato é que esse entendimento era mesmo predominante nos primeiros tempos. E o “retorno” de Cristo seria um grande espetáculo, sendo as pessoas arrebatadas pelos ares ao encontro do Senhor. Ao meu ver e pelo linguajar da carta, Paulo criou uma certa visão da vinda de Cristo que influenciou muito a doutrina teológica e ainda hoje faz a cabeça de muitos cristãos fundamentalistas e carismáticos. Penso que esse cenário impactante precisa ser reformulado, dentro de uma realidade mais conformada com o contexto da simbologia que Jesus adota nos seus discursos.

Na leitura do evangelista Mateus (25, 1-13), Jesus narra a parábola das dez donzelas (damas de casamento) que esperavam o noivo e deviam permanecer com as suas lâmpadas (alimentadas com óleo) acesas, pois não sabiam a que hora chegaria o noivo e as lâmpadas não poderiam se apagar. Nos casamentos antigos, o noivo e a noiva faziam um percurso a pé pelas ruas da cidade até o local da cerimônia e cada um era acompanhado por um cortejo de damas, que deveriam iluminar-lhes o caminho. No horário noturno, a lâmpada era algo essencial, não apenas para compor o visual estético do cortejo, mas sobretudo para clarear o trajeto a ser percorrido. Jesus dá um exemplo de um cortejo noturno, em que a lâmpada acesa era indispensável. Mas os noivos podiam demorar-se na preparação, tal como ainda ocorre hoje, com o costume chamado “dia do noivo” ou “dia da noiva”, os quais passam um dia inteiro num recinto apropriado, cumprindo um ritual preparatório demorado e cansativo. Então, as damas deveriam ficar de prontidão para acompanhar o noivo quando a preparação terminasse e este saísse para o cortejo. Aqui entra em cena o qualitativo da sabedoria, que fará a diferença entre um grupo e outro das damas.

Ao referir-se especificamente às jovens que se mantiveram de prontidão, o texto do evangelho, na versão atual, usa o conceito de “previdente”, ou seja, elas foram previdentes, porque se prepararam para qualquer eventualidade. A tradução anteriormente adotada para esse conceito era “prudente” que, ao meu ver, é mais consentâneo tanto com o tema da primeira leitura (livro da Sabedoria), quanto com o texto original do evangelho. Com efeito, o texto grego utiliza a palavra “fronímoi”, que significa “sensato”, “inteligente” e São Jerônimo traduziu em latim por “prudentes”; e de outro lado, o grego utiliza a palavra “môrai”, que significa “néscio”, “louco” e São Jerônimo traduziu em latim por “fatuae”, que significa “estúpido”, “inconsequente”. Partindo dessa breve análise textual, parece-me que a tradução adotada de “previdente” e “imprevidente” não condiz bem com o sentido original do texto. Talvez seja uma preocupação com o politicamente correto, para evitar o uso de uma palavra que possa ensejar qualquer interpretação preconceituosa ou homofóbica, pois nos dias de hoje, é preciso ter muita precaução acerca das palavras ditas em público. Talvez um conceito que melhor expressasse o sentido original do texto fosse “cuidadosas” e “descuidadas”, para indicar aquelas que estavam preparadas e as despreparadas. Ou ainda “proativas” e “displicentes”, na mesma ordem conceitual. O grande problema quando se traduz de um idioma para outro é a falta de correspondência plena entre os significados das palavras, porém qualquer tradução, sem a análise da palavra de origem, pode levar a conclusões bem distorcidas, o que se verifica com certa frequência no linguajar de alguns pregadores.

Meus amigos, a questão se coloca, portanto, na relação entre viver com sabedoria e estar preparado ou não buscar a sabedoria e arriscar-se a se expor a situações vexatórias. O exemplo dado por Cristo me parece por demais desconcertante. Parecia que ele estava usando uma pedagogia do impacto, do mesmo como muitas vezes os pais fazem com os filhos pequenos, incutindo-lhes certo temor de algo, com o fito de modelar-lhes a conduta. Atualmente, essa prática é muito repudiada pelos teóricos do comportamento, mas nós, que fomos educados em outra época, quando não havia essas “teorias modernas”, sabemos que essas formas tradicionais, quando usadas com moderação e dentro de limites razoáveis, produziam efeitos muito positivos. Há que considerar ainda outro ponto pouco edificante no exemplo dado por Cristo, que foi a falta de solidariedade das donzenas cuidadosas com as displicentes, em não quererem repartir com estas a sua sobra de azeite. Se contextualizarmos com o ensinamento de Cristo em outras parábolas, poderemos classificar como egoísta essa conduta das donzelas que tinham levado azeite de sobra. Afinal, o ensinamento cristão é no sentido de repartir os bens e não de cada um querer preservar o seu apenas para si. Essa incoerência textual, associada a outras já citadas em outros comentários, fazem-me supor que o texto do evangelho de Mateus pode ter passado por “ajustes” literários ao longo do tempo. Nos demais evangelhos, essa parábola não aparece. Em Lucas (12, 35), o tema se encontra em outro contexto: mantende os vossos rins cingidos e as vossas lâmpadas acesas e sede semelhantes aos homens que esperam o seu senhor, quando retornar das bodas. Bem diferente da descrição de Mateus, portanto. Peço desculpas se alguém, por acaso, se melindrar com essas considerações, mas ressalto que são apenas minhas especulações como estudioso, que coloco como ponto de reflexão e discussão.

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domingo, 5 de novembro de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - TODOS OS SANTOS - 05.11.2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO – IMENSA MULTIDÃO (TODOS OS SANTOS) – 05.11.2017

Caros Leitores,

A liturgia deste domingo traz a comemoração da festa de Todos os Santos. Comumente, quando se fala em “santos”, vem logo à mente os cristãos e cristãs que foram canonizados. No entanto, tomando como referência a leitura do Apocalipse, o apóstolo João teve a visão de “uma grande multidão de gente de todas as nações, tribos, povos e línguas, que ninguém podia contar”, composta por aqueles que lavaram e alvejaram suas vestes no sangue do Cordeiro. Essa multidão, que se sucedeu à visão joanina daqueles assinalados, os membros das doze tribos de Israel, somos nós, os cristãos espalhados pelos diversos quadrantes do universo conhecido, e que poderão ser ainda mais, se pensarmos na possibilidade de outros mundos habitados.

Nesta semana, ocorre em Juazeiro do Norte uma das suas mais concorridas romarias, a de finados. Era uma devoção pessoal do Padre Cícero (as almas do purgatório), que ele repassou para os fiéis de sua freguesia e se transformou num grandioso fenômeno sócio-religioso. Ali se reúnem anualmente cristãos provenientes dos diversos Estados do nordeste para rezar e expressar sua fé. Meus amigos, parece-me óbvio que essa multidão de fiéis que lota a cidade de Juazeiro do Norte nesses dias é uma representação exemplar da imensa multidão descrita no texto de João, tanta que ninguém podia contar. Alguém poderá contradizer: ah, mas isso não é fé cristã, é cultura, é fanatismo religioso. Seja qual for o nome que queiramos dar, o fato é que, para as pessoas que experimentam isso, é a mais autêntica fé do modo que eles sabem melhor expressar. Vê-se isso nos seus semblantes, nas suas atitudes.

Na leitura litúrgica de hoje do Apocalipse (Ap 7, 13), João dialoga com um ancião, que lhe perguntou: quem são essas pessoas? João não soube responder e o próprio ancião completou: São os que vieram da grande tribulação, lavaram e alvejaram as suas roupas no sangue do Cordeiro. Ora, só podiam ser nordestinos, os que saíram da grande tribulação da seca e foram fortalecer a sua fé batismal nos lugares sagrados ciceronianos. É oportuno salientar que, nos primeiros dez séculos do cristianismo, não havia canonização, quem proclamara os santos era o povo. Somente a partir do primeiro milênio, o Papa atraiu para si essa tarefa de proclamar oficialmente os “santos”. Ora, todos sabemos que o nosso povo já proclamou santo o Padre Cicero, independentemente de qualquer pronunciamento oficial eclesiástico. Assim, se olharmos o fato pela antiga tradição da proclamação popular dos santos, o povo nordestino está seguindo a regra primitiva, mesmo que a hierarquia oficial ainda não tenha feito isso.

Meus amigos, essa é a autêntica comunhão dos santos, a Igreja peregrina se unindo com a Igreja celestial através da fé. Quem nunca esteve presente numa romaria não consegue avaliar o grau de seriedade com que o romeiro se comporta. Uma coisa é a reportagem que se vê pela televisão, outra coisa é o fenômeno que se observa “in loco” e a energia que se sente emanar dessas pessoas. No Apocalipse, João fala no número dos que foram marcados na fronte (Ap 7, 4) para serem salvos, cujo quantitativo era de cento e quarenta e quatro mil. Ora, somente em Juazeiro, na romaria de finados, este número é mais do que quadruplicado. A previsão do apóstolo João deve ser, portanto, calculada com a correção do fator multiplicador do tempo decorrido, sendo mais coerente a passagem do versículo 9, onde ele diz que ninguém podia contar a multidão. Nós não somos descendentes genéticos das doze tribos de Israel, mas todos nós lavamos e alvejamos nossas roupas no sangue do Cordeiro, portanto, também fomos assinalados para a salvação. Se nós computarmos as diversas comunidades de igrejas cristãs, então esse número se torna deveras incontável. Dentro de uma perspectiva ecumênica, todos os que foram validamente batizados, foram assinalados na testa com o sinal da salvação.

A segunda leitura, que também é da autoria de João, complementa o tema acima, quando afirma que desde já somos filhos de Deus, embora ainda não tenha se manifestado em nós o que seremos. Essa manifestação somente ocorrerá no futuro, “quando Jesus se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque o veremos tal como Ele é.” (1Jo 3, 2). Ou seja, pelo batismo, somos assinalados e já podemos ser chamados filhos de Deus, embora essa condição só se resolva de modo pleno na futura morada de todos nós. Este foi o grande presente que Deus nos deu, diz João, o de sermos chamados Seus filhos desde já. E isso é possível por causa da redenção trazida por Cristo, que apagou todos os nossos pecados e nos abriu as portas da morada divina. Essa situação é descrita na teologia como a dialética do “já e ainda não”, isto é, já somos filhos de Deus, porém, ainda não o somos plenamente. O teólogo Francis Scraeffer, no seu livro “A verdadeira espiritualidade” (p. 89), assim explica essa doutrina: “A salvação, no sentido em que essa palavra é usada na Bíblia, é mais ampla do que a justificação. Na salvação, há passado, futuro e, com o mesmo grau de realidade, há presente. A obra infinita realizada por Cristo na cruz traz mais do que justificação ao cristão. No futuro, haverá a glorificação. Quando Cristo retornar, haverá a ressurreição do corpo e a eternidade; mas há também um aspecto em que a salvação é presente. A santificação constitui nosso atual modo de relacionamento com o Senhor, é a nossa conjugação verbal presente na vida de comunhão com Deus”. Achei interessante esse texto e o reproduzi aqui porque, em outras igrejas cristãs, prega-se a justificação do fiel em Cristo, mas o teólogo explica que o conceito de salvação é muito superior à simples justificação, porque inclui desde a forma da vida atual, no mundo corporal, e se prolonga até a vida definitiva, sendo coerente com a passagem da carta de João citada logo acima (3, 2), “quando Jesus se manifestar”. Esse conjunto de palavras expressa de uma forma dinâmica o estado da nossa vida de fé que, por ora nos deixa ver as coisas como encobertas por um véu, como diz Paulo na carta a Coríntios:” …porque agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido” [1Coríntios 13].

A riqueza litúrgica da festa da comunhão dos santos se completa com o famoso sermão da montanha, no qual Cristo chama a todos de bem aventurados. Dizer que somos bem aventurados é o mesmo que dizer que somos santos. Em latim, bem aventurados = 'beati' (plural de beatus), que é a mesma palavra que em português se traduz por 'felizes', tanto assim que algumas traduções do evangelho usam esta palavra nos textos. Curiosamente, Cristo chama de bem aventurados todos aqueles que, pelo status social, seriam pessoas desventuradas. Esse assunto se encaixa com um episódio bastante conhecido, narrado no evangelho de Mateus (13, 31), quando Jesus escolheu hospedar-se na casa de Zaqueu. Este era um cobrador de impostos, portanto, um publicano, um pecador público, um excluído do mundo religioso pela hipocrisia dos fariseus. Querendo conhecer Jesus, mas sendo de baixa estatura, ele subiu numa árvore, pensando que iria passar despercebido. No entanto, Jesus conhecia a sua fé e mandou que ele descesse da árvore, pois queria hospedar-se na sua casa. Os fariseus, que sempre estavam por perto, ao verem aquilo, murmuravam: com tantas pessoas honradas e dignas nesta cidade, porque Jesus vai escolher a casa de um publicano para visitar? Pois é, dentro da lógica humana (e do próprio Zaqueu, que não imaginava que isso fosse acontecer), ele estaria fora dos “beati” referidos no sermão da montanha. Mas dentro da lógica de Cristo, a ele foi ofertada a salvação e ele muito que aceitou e, por isso, tornou-se também um “beatus”.

O Papa Francisco, no sermão dirigido aos fiéis que lotavam a na Praça de São Pedro, lembrou que o nome Zaqueu, em hebraico, significa “Deus recorda”, e fez o seguinte comentário: Não existe profissão ou condição social, não há pecado ou crime de qualquer gênero que possa cancelar da memória e do coração de Deus um filho sequer. “Deus recorda”, sempre, não esquece nenhum daqueles que criou; Ele é Pai, sempre à espera vigilante e amorosa de ver renascer no coração do filho o desejo de retornar à casa. E quando reconhece este desejo, mesmo que simplesmente manifestado, e tantas vezes quase inconsciente, imediatamente põe-se a seu lado, e com o seu perdão lhe torna mais leve o caminho da conversão e do retorno.O convite que Jesus fez a Zaqueu, ignorando que ele era um pecador público, assim como o sermão da montanha, no qual Ele exalta as virtudes contrárias ao que o mundo aceita, enche de esperança a todos nós, que ainda estamos na “grande tribulação” e, portanto, sujeitos às maiores adversidades no cumprimento fiel à nossa vocação cristã.
Permaneçamos fiéis ao ensinamento de Cristo, para que possamos ser dignos de participar das suas promessas de santidade.

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domingo, 29 de outubro de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 30º DOMINGO COMUM - O MAIOR MANDAMENTO - 29.10.2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 30º DOMINGO COMUM – O MAIOR MANDAMENTO – 29.10.2017

Caros Leitores,

Na liturgia deste 30º domingo comum, o tema central enfoca a questão do maior mandamento da lei divina. Desde a antiguidade bíblica, o profeta Moisés apresentou ao povo hebreu a lista com os mandamentos, isto é, com as determinações divinas para serem por eles cumpridas. O primeiro da lista é exatamente o amor de Deus, conforme consta em Êxodo cap.20 e com mais detalhes em Deuteronômio 6,5. No Antigo Testamento, eles são listados em número de dez. No evangelho, Jesus os resume a dois. E Santo Agostinho, nos seus comentários bíblicos, resume a um só: ama e faze o que quiseres.

Na primeira leitura, extraída do livro do Êxodo (22, 20-26), vemos que nas lições iniciais de Javeh ao povo hebreu já constava o cuidado com o próximo, o amor ao próximo, que Jesus iria enfatizar mais tarde. No trecho lido hoje, Javeh instrui o povo a tratar bem os estrangeiros: “Não oprimas nem maltrates o estrangeiro, pois vós fostes estrangeiros na terra do Egito. Não façais mal algum à viúva nem ao órfão. Se os maltratardes, gritarão por mim, e eu ouvirei o seu clamor.” (Ex 22, 20) O estrangeiro, nesse contexto, é a figura do próximo, que só iria aparecer no evangelho. Não era esse o costume antigo, isto é, tratar bem os estrangeiros. Esses eram potenciais inimigos, não faziam parte do povo, por isso deviam ser tratados com reserva e de forma diferente dos irmãos de sangue. Na Roma antiga, era assim também o costume em relação aos não romanos. Os estrangeiros eram excluídos da sociedade, não possuíam direitos, eram explorados em seus serviços e não podiam reclamar dos maus tratos, porque não tinham o sangue romano. E Javeh lembra ao povo: vós também fostes estrangeiros na terra do Egito e sofrestes humilhações, por isso, deveis ter um comportamento diferente dos povos pagãos. E diz mais: o estrangeiro maltratado recorrerá a Mim e “minha cólera, então, se inflamará e eu vos matarei à espada; vossas mulheres ficarão viúvas e órfãos os vossos filhos”. (Ex 22, 23) Ou seja, neste caso, Javeh se voltará contra o seu próprio povo, para vingar os maus tratos feitos aos estrangeiros.

É interessante a liturgia chamar a atenção para esse comportamento que não era comum na época e que Javeh determinava para o seu povo. Digo determinava, porque isso era um mandamento, não era um conselho, uma recomendação. E pairava uma gravíssima ameaça contra quem não cumprisse. Curiosamente, essa regra do “amor ao próximo” não foi bem assimilada pelos fariseus doutores da lei, sendo necessário que Jesus viesse a chamar-lhes a atenção para isso. Basta lembrar aquela famosa parábola do “bom samaritano”, que foi contada por Jesus quando um dos fariseus perguntou a Ele: quem é o meu próximo. Outra regra interessante colocada nesse contexto é a não cobrança de juros dos empréstimos aos estrangeiros. A usura era também regulada na prática dos romanos de modo similar. Se o contrato de empréstimo era entre romanos, era proibida a cobrança de juros; mas se fosse entre um romano e um não romano, então aí podia. Os judeus também não cobram juros entre eles próprios, no entanto, podia cobrar dos estrangeiros. E daí que todos nós conhecemos a história do enriquecimento dos judeus europeus no período anterior às guerras mundiais, pela sua habilidade em negociar com os não judeus cobrando juros, a ponto de despertar a ganância do governo “quebrado” da Alemanha, após a depressão econômica de 1930, levando-os ao holocausto. Por incrível que pareça, isso está na Torah deles, porém sempre foram palavras mortas na hora de colocar em prática. Até parece que sofreram a vingança do próprio Javeh, quando prometeu que os mataria à espada, caso praticassem a usura.

Na segunda leitura, da carta de Paulo aos Tessalonicenses (1Ts 1, 5-10), o Apóstolo os exalta porque, pelo seu comportamento, eles se tornaram modelo para as demais comunidades da Macedônia e da Acaia. Diz Paulo: nem é mais preciso que eu diga nada, porque “as pessoas mesmas contam como vós nos acolhestes e como vos convertestes, abandonando os falsos deuses, para servir ao Deus vivo e verdadeiro ” (1Ts 1, 9). A cidade de Tessalônica era a capital da Macedônia, um importante porto comercial e um local estrategicamente colocado no meio das grandes estradas romanas, de modo que para lá acorriam muitas pessoas de diversificadas culturas, então Paulo tinha a preocupação para que a semente do cristianismo ali lançada por ele não fosse suplantada por essa variedade de povos e costumes. Daí o seu motivo de felicidade quando soube, através de Timóteo e Silvano, que os cristãos de lá continuavam firmes na fé e até influenciavam os estrangeiros, servindo-lhes de exemplo. Uma outra característica dessa carta é a crença que Paulo tinha, no sentido de que o “retorno” de Cristo estava próximo, assim era o entendimento de então, Jesus havia ressuscitado mas logo logo retornaria. O próprio Paulo parecia acreditar que ele ainda estaria vivo, quando Jesus retornasse. Por isso, lê-se no versículo 10: “Jesus, que nos livra do castigo, está por vir”. Consta que essa carta foi escrita por volta do ano 50 d.C., ou seja, nessa época a doutrina cristã ainda era muito incipiente e muitas questões ainda não estavam amadurecidas na reflexão teológica. Essa afirmação sobre a vinda de Cristo era uma delas.

Na leitura do evangelho, retirada de Mateus (Mt 22, 24-30), lemos outra disputa doutrinária entre Jesus e os fariseus, que mais uma vez tentavam apanhá-lo em alguma contradição e por isso testavam Seu conhecimento das escrituras. Daí que diz o evangelista: para testá-lo, perguntaram: “Mestre, qual é o maior mandamento da lei?” E Jesus, demonstrando que conhecia a lei de Moisés melhor do que eles próprios, dá a resposta que eles já sabiam: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento!” (Mt 22, 37). Essa frase está contida textualmente em Deuteronômio 6, 5 e eles queriam ver se Jesus dizia algo diferente, mas com essa resposta, Jesus não os surpreendeu. A surpresa veio quando Ele continuou e disse também o segundo mandamento, algo que eles nem tinham perguntado: “Não procurem vingança nem guardem rancor contra alguém do seu povo, mas ame cada um o seu próximo como a si mesmo. Eu sou o Senhor.” (Levitico 19, 18). Isso, sim, foi novidade para eles, sobretudo quando Jesus completou a resposta dizendo: “Toda a Lei e os profetas dependem desses dois mandamentos”.(Mt 22, 40). Talvez, eles esperassem que Jesus fosse citar os mandamentos na sua forma tradicional, como eles (fariseus) costumavam fazer. E Jesus outra vez os surpreende. O amor ao próximo já estava determinado na Torah e eles, fariseus, não haviam se tocado para isso. A religião era, para eles, uma relação puramente vertical com Javeh, cada um por si, individual e privadamente. E a surpresa foi ainda maior quando Jesus falou que o segundo mandamento era semelhante ao primeiro. Não basta amar a Deus sobre todas as coisas, se não somos capazes de amar o próximo como a nós mesmos.

Observemos que Jesus repete a lei antiga, demonstrando que ela continuava em vigor, que Ele não veio mudar a lei, e sim aperfeiçoá-la. E o aperfeiçoamento consiste exatamente nessa nova visão da religião voltada para a comunidade, para o próximo. Assim como se deve amar a Deus com todo o coração, toda a alma e todo o entendimento, assim também se deve amar o próximo. O Padre João Mohana, conhecido escritor maranhense que fez sucesso literário nos anos 70, dizia uma frase, que eu acho muito criativa e nunca esqueci: Deus mandou que nos amássemos, não que nos amassemos. Um trocadilho bem interessante, que nos mostra o quão difícil é amar o próximo, tão difícil que os fariseus haviam “esquecido” esse trecho da lei, como se não fosse necessário. E é imperativo observarmos também as três dimensões do amor a Deus e ao próximo: com todo o coração, ou seja, o amor emotivo, espontâneo, intuitivo; com toda a alma, ou seja, o amor sobrenatural, divino transcendente; com todo o entendimento, ou seja, o amor racional, esclarecido, voluntário e intencional. Os povos antigos, que não tinham muito conhecimento sobre a anatomia humana, pensavam que o ser humano tinha três “almas”, sendo que uma delas se localizava no coração (fonte da emoção), outra se localizava nos rins (fonte da agressividade) e outra na inteligência (fonte da racionalidade). Assim era a doutrina de Platão, que naturalmente não foi inventada por ele, mas sistematizada nos seus escritos, algo que era comum nas culturas antigas. Com isso, devemos entender que o nosso amor a Deus e ao próximo não admite reservas nem limitações, mas deve envolver o nosso ser inteiro, com todas as nossas forças e potencialidades.

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domingo, 22 de outubro de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 29º DOMINGO COMUM - O CIDADÃO E O CRISTÃO - 22.10.2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 29º DOMINGO COMUM – O CIDADÃO E O CRISTÃO - 22.10.2017

Caros Leitores,

Neste 29º domingo comum, as leituras litúrgicas põem em destaque a nossa vida cotidiana e chamam a nossa atenção para a nossa conduta de cristãos, que deve ser exemplar tanto quanto como cidadãos. Uma atitude não deve colidir com a outra. Enquanto cristãos, temos o mandamento de Cristo para seguir; enquanto cidadãos, temos as normas governamentais para obedecer. Por mais que os valores éticos e a credibilidade dos nossos representantes políticos estejam abalados, a nossa responsabilidade de cristãos e de cidadãos nos recomenda que devemos ter sempre em vista o país na sua integridade, independentemente de simpatias, antipatias, preferências ou rejeições. O respeito aos dirigentes do país, mesmo quando demonstrada sua indignidade, é um dever que se impõe a nós, cristãos, como corolário da nossa fé.

A primeira leitura, do livro do profeta Isaías (45, 1-6), refere-se ao imperador persa Ciro II, como o governante ungido por Javeh sem que ele próprio soubesse disso, porque Javeh o havia escolhido para ser o libertador do povo de Israel. Com efeito, Ciro derrotou os exércitos de Nabucodonosor, dominou a Babilônia e deu a liberdade aos hebreus. A habilidade militar de Ciro II fez dele o monarca do maior reino que se viu naquele tempo, além de ter sido um rei tolerante com os inimigos vencidos, dado o seu bom coração. Tudo isso fez com que os hebreus vislumbrassem na pessoa dele um enviado de Javeh e, ao retornarem para a Palestina, tornaram-se seus aliados políticos, fazendo com que o reinado dele ganhasse ainda maior território. Conforme já tive ocasião de comentar alhures, o livro do profeta Isaías, a partir do cap 45, é chamado pelos biblistas como “deutero Isaías”, ou “ Isaías”, pois os fatos que aborda são historicamente posteriores à morte de Isaías. No caso, Isaías morreu no ano 681 a.C., enquanto o reinado de Ciro II teve início em 559 a.C. e a libertação dos hebreus cativos se deu em 539 a.C., ou seja, mais de um século após a morte de Isaías. O deutero Isaías foi escrito pelos discípulos do profeta, dando continuidade ao seu vaticínio. Em várias passagens anteriores, Isaías havia prenunciado a libertação do povo, quando chegasse o momento escolhido por Javeh. Então, os seus discípulos quiseram mostrar que o Profeta havia acertado suas previsões.

Durante muito tempo, os estudiosos acreditaram que o texto completo houvesse sido escrito por Isaías, mas a crítica histórica que começou a organizar os livros da Bíblia, a partir do final do século XIX, confrontando os relatos bíblicos com os fatos da história universal, chegou a essa distinção entre o proto Isaías (1º Isaías), escrito pelo Profeta mesmo, e o deutero Isaías, escrito por seus discípulos. Na fé do povo hebreu, o grande império que Ciro II veio a formar, mesmo ele não sendo crente em Javeh, no entanto, isso mostra mais ainda o poder de Javeh, que é insuperável por qualquer outro deus. “Armei-te guerreiro, sem me reconheceres, para que todos saibam, do oriente ao ocidente, que fora de mim outro não existe. Eu sou o Senhor, não há outro.” Santo Agostinho, interpretando essa tradição hebraica de sempre perceber a presença de Javeh nos eventos históricos, mostrando a ação divina através desses acontecimentos, criou uma doutrina conhecida como “teologia da história”, que está no seu livro A Cidade de Deus, uma grande contribuição dele para a cultura ocidental.

Na leitura do evangelho (Mt 22, 15-21), lemos aquele famoso diálogo de Jesus com os fariseus, acerca da moeda do tributo. Temos lido, nesses domingos sucessivos, diversas altercações de Jesus com os fariseus, narradas por Mateus sempre com a finalidade de mostrar a dureza dos seus corações e para justificar o fato de que o evangelho fora anunciado aos pagãos, porque aqueles para quem a mensagem se destinava, recusaram-se a recebê-la. Por diversas vezes, os fariseus armaram ciladas para apanharem Jesus em algum passo em falso e essa foi uma das mais ardilosas que eles tramaram. De fato, eles colocaram Jesus num beco sem saída, porque qualquer resposta que Ele desse seria comprometedora. O povo hebreu amargava o fato de estar dominado pelos romanos e uma das consequências dessa dominação era o pagamento de pesados impostos. Pagar imposto ao imperador romano era uma humilhação para os hebreus, além de que era uma sangria na economia da região. Vários protestos se levantaram contra o pagamento desses impostos, sendo que o grupo mais revoltado com essa situação eram os zelotes, que tentavam convencer o povo a sonegar, porém esse era um risco enorme e o castigo para os sonegadores era cruel. Consta que Judas Iscariotes pertencia ao grupo dos zelotes e tinha a ideia de que Cristo lideraria uma grande rebelião do povo contra os romanos, expulsando-os do seu território. Teria sido esse o motivo pelo qual Judas se aproximou de Jesus e também teria sido esse o motivo pelo qual, no final das contas, entregou Jesus aos romanos e depois suicidou-se, porque ficara desiludido quando percebera que Jesus não planejava revolta nenhuma.

Então, nesse contexto político de grande insatisfação, se Jesus dissesse que não era para pagar os tributos, Ele estaria se pondo contra os romanos e os fariseus teriam um motivo forte para acusá-lo. E se ele dissesse que o tributo era lícito, atrairia para si a ira do povo que o seguia, porque todos tinham aquele pagamento como iníquo e injusto. Porém, Jesus percebeu desde logo o embuste em que queriam lançá-lo e os desmascarou de uma forma totalmente inesperada: se vocês usam a moeda romana, então paguem aos romanos o que eles cobram; por outro lado, se vocês dirigem suas orações a Javeh, então façam isso com a mesma fidelidade. E os fariseus, como se diz no popular, tiveram que enfiar a viola no saco e sair pra cantar em outra freguesia. Eu me referi, há pouco, ao livro de Santo Agostinho “A Cidade de Deus”, pois bem, lá ele coloca as coisas mais ou menos nos seguintes termos: nós somos cidadãos do mundo e também cidadãos do céu, um fato está inteiramente incluído no outro, não há como separar. E nem é isso necessário, porque a nossa salvação é alcançada a partir da nossa vida na comunidade e nós não precisamos deixar de ser cidadãos para ser cristãos. A nossa cidadania celeste é construída junto com a nossa cidadania terrena, uma não obstrui nem substitui a outra. Ao contrário, elas se sustentam reciprocamente. O que Jesus quer de nós é que vivamos a nossa cidadania civil exercitando nela os deveres e compromissos da nossa fé. Nós não somos cristãos apenas quando vamos à igreja, quando rezamos o terço, quando damos esmolas, quando fazemos leitura espiritual, etc. No nosso dia a dia do trabalho, das relações sociais, dos círculos de amizade, das atividades de lazer, em tudo o nosso comportamento deve demonstrar a nossa opção de vida e de fé cristã.

Vivemos um período político conturbado e grandemente vulnerável e preocupante, em que a massa popular oscila entre a dúvida e a polarização de opiniões. Muitas lideranças cristãs, sejam clérigos ou leigos, assumem por vezes posições de extremismo tendendo seja para o extremismo conservadorista ou para a recíproca oposta. E a imprensa, assim como as mídias sociais em geral, divulgam incessantemente informações duvidosas e ardilosas, contribuindo para tornar o ambiente social mais inseguro e confuso. Outros partem para um absenteísmo irresponsável, do tipo “não votar em ninguém” ou boicotar o processo eleitoral. Jesus nos mostra, na narração de Mateus, que o cristão deve ser esperto e estar atento ao momento político, enxergando-o com clareza e serenidade, buscando alternativas válidas e factíveis, evitando os extremos e as abstenções. Trata-se de uma atitude sem dúvida difícil de se fazer com equilíbrio, sobretudo por causa da falta de confiabilidade das informações que circulam, mas o nosso compromisso de fé nos impele a buscar incessantemente e com sã consciência descobrir as melhores alternativas dentro das atuais circunstâncias, posto que nunca estaremos vivendo uma situação ideal na sociedade. Devemos, portanto, obter os melhores resultados com os recursos disponíveis.

O domingo de hoje é celebrado como o “dia das missões”, dia de rendermos uma homenagem especial àqueles bravos religiosos europeus, que acompanhavam as esquadras dos navegantes, dos quais a história registrou poucos nomes, mas bastante conhecidos: Frei Henrique de Coimbra, franciscano português, e os jesuítas espanhóis Manoel da Nóbrega e José de Anchieta. Graças ao seu ardor missionário, a religião cristã chegou até nós e ajudou a moldar a nossa cultura e a nossa sociedade. Um grande “viva” para eles.

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