segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 4º DOMINGO DO ADVENTO - JESUS FILHO DE DAVI - 24.12.2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO DO ADVENTO – JESUS FILHO DE DAVI – 24.12.2017

Caros Leitores,

Neste quarto domingo do Advento, a liturgia mostra a ascendência genealógica de Jesus como filho de Davi, destacando que José e Maria são descendentes de Davi. Ou seja, Jesus é filho de Davi seja pelo lado paterno (adotivo) de José, seja pelo lado materno biológico de Maria. Os numerólogos bíblicos fizeram as contas da sequência de gerações e observaram que, desde Abraão até Davi, contam-se 14 gerações; de Davi ao cativeiro da Babilônia são outras 14 gerações e do cativeiro da Babilônia até o nascimento de Jesus são mais 14 gerações. (Ver evangelho de Mateus, 1, 1-17). O rei Davi representa o apogeu do desenvolvimento material do povo hebreu; o cativeiro da Babilônia representa a pior catástrofe étnica, o auge da destruição; o nascimento de Jesus representa, nessa linha de raciocínio, o novo apogeu com o cumprimento da promessa de Javé. Davi e Jesus significam, portanto, os pontos mais significativos da história do povo de Deus, daí a importância de se demonstrar que Jesus era um descendente de Davi.

Na primeira leitura, do segundo livro de Samuel (2Sm 7, 1-16), lemos a profecia de Natan acerca do filho de Davi, que reinaria para sempre, sendo confirmado na realeza. Historicamente, este filho de Davi foi Salomão, responsável pela construção do templo e famoso por sua legendária sabedoria. No sentido transistórico, aproveitando o cálculo genealógico das gerações anteriores a Jesus, explicado por Mateus, o filho de Davi confirmado perenemente na realeza é Jesus Cristo. A insistência do evangelista em ressaltar a descendência de Jesus da linhagem de Davi tem por objetivo interligar o nascimento de Cristo com a promessa de Javeh aos antigos patriarcas, fundamentando assim a fé no Messias salvador prometido pelas escrituras. O rei Davi queria construir uma casa digna para o Senhor, um templo suntuoso, mais do que o palácio onde ele, o rei, morava. No entanto, através do profeta Natan, Javeh fez ver a Davi que essa honra não seria dele, mas de um filho dele. Então, o filho próximo dele, Salomão, edificou o famoso templo, que se tornou referência para muitas gerações, alcançando até o tempo de Jesus. E o filho longínquo de Davi, Jesus, erigiu a sua igreja como templo vivo, não mais de tijolo e pedras, mas presente no coração dos que nele creem. Quando chegou a plenitude dos tempos, a promessa de Javé foi cumprida também de forma plena.

Na segunda leitura, retirada da carta aos Romanos (Rm 16, 25-27), o apóstolo Paulo enfatiza esse mistério, que ficara escondido ao longo dos tempos, mas que então fora revelado, por meio de Jesus Cristo. “Este mistério foi manifestado e, mediante as Escrituras proféticas, conforme determinação do Deus eterno, foi levado ao conhecimento de todas as nações, para trazê-las à obediência da fé.” O mistério referido por Paulo é exatamente este do cumprimento definitivo da antiga promessa, através de um descendente da linhagem de Davi. Diferentemente do próprio rei Davi, cujo poder se dirigia e se limitava ao povo hebreu, o poder deste filho de Davi se estende a todas as nações. Portanto, o mistério que Cristo veio revelar foi de que aquela promessa feita por Javeh aos antigos patriarcas não tinha seus limites atrelados a um determinado local geográfico nem a uma etnia específica, mas todos os povos são os destinatários dela, o seu alcance se estende a todas as nações.

O evangelho de Lucas (Lc 1, 26-38) é também enfático em afirmar que José era descendente de Davi. Não podendo afirmar que José gerou Jesus, como está escrito nas genealogias anteriores, o evangelista refere que José era da família de Davi e era esposo de Maria, a mãe de Jesus. “Eis que conceberás e darás à luz um filho, a quem porás o nome de Jesus. Ele será grande, será chamado Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai Davi. Ele reinará para sempre sobre os descendentes de Jacó, e o seu reino não terá fim' ” (Lc 1, 31). Observemos que José era pai adotivo de Jesus, porém mesmo sem ser filho biológico, Jesus era herdeiro legal de José, portanto, herdeiro da tradição de Davi. A escritura não menciona diretamente que Maria era descendente de Davi. Existe um testemunho de Santo Irineu, que viveu nos primeiros séculos do cristianismo, de que Maria também era da linhagem de Davi, portanto, isso é atestado apenas pela tradição, não consta nos relatos dos evangelistas. Talvez fosse até mais fácil de fundamentar a descendência de Jesus em relação a Davi através da análise de genealogia de Maria. Contudo, naquela época em que prevalecia a linhagem masculina, para evitar quaisquer dúvidas acerca da validade da profecia, se por acaso ficasse demonstrada apenas a descendência pelo lado feminino, os evangelistas destacam sempre a descendência pelo lado de José, deixando de considerar a genealogia de Jesus pelo lado de Maria. Daí porque tal referência só está presente na tradição.

Interessante nesse contexto é observar a forma como a revelação divina foi dada a Maria, diferente do modo tradicional em que isso acontecia. De acordo com a tradição judaica, as mensagens proféticas eram reveladas por Javeh aos seus escolhidos através de sonhos, portanto, quando eles não estavam despertos. Porém, no caso de Maria, ela não apenas estava desperta, mas chegou a dialogar com o anjo e expor suas dúvidas, ao que o anjo respondeu e a tranquilizou. O caso do sonho de José é um desses exemplos de revelação recebida em sonho. Outro caso também relacionado com José é aquele episódio em que ele recebeu uma “ordem” de fugir com Maria e o menino para o Egito, até passar a perseguição de Herodes, através de outro sonho. Com base nessa análise, pode-se afirmar que a revelação a Maria teve uma característica totalmente peculiar, fora do padrão em que isso costumava acontecer. Certamente, porque o evento que esta revelação abordava não era apenas uma intervenção de Javeh na história dos homens, mas a autêntica redenção prometida, a intervenção última e definitiva. Com bastante probabilidade, o diálogo de Maria com o anjo foi bem mais demorado e detalhado do que a narração bíblica apresenta. Maria era muito jovem e estava no início de sua vida adulta, ainda não começara sua coabitação com José. Muito provavelmente, o anjo também explicou a ela que aquele filho lhe traria muitas alegrias e também muitos sofrimentos, talvez o anjo tenha mesmo antecipado a sua morte cruel, como parte do plano da salvação. Era necessário que ela ficasse bastante segura do que estava por acontecer, para que ela finalmente concordasse ou não. E obviamente a gestação não teria iniciado, caso ela tivesse recusado. Daí a importância do “sim” de Maria, porque naquele momento, ela mesmo sabendo antecipadamente dos atrozes sofrimentos que iria suportar futuramente, ainda assim colocou-se submissa à vontade de Deus: ciente, de acordo, faça-se conforme a tua palavra. E o anjo retirou-se.

Meus amigos, a concordância de Maria é um ato de generosidade, de incomparável grandeza. A missão que cada um de nós recebe nessa vida, ou seja, aquilo que outra passagem do evangelho chama com o nome de “talentos”, é um desafio que depende também da nossa generosidade. Generosidade para aceitar e disponibilidade para executar. A preparação do Natal exalta essa virtude de Maria, que é a generosidade. “A generosidade é a capacidade de dar com desapego, onde o amor ganha do egoísmo. É na entrega generosa que fazemos de nós mesmos que se mostra a profundidade de um amor que não fica somente nas palavras. É isso que celebramos no natal: o gesto generoso de Maria em aceitar ser a mãe de Deus e o gesto generoso de Deus que se dá a si mesmo, para a redenção da humanidade.” A generosidade é o antídoto do egoísmo, é uma atitude por demais sugestiva para os nossos tempos, em que o individualismo e o isolamento são uma marca característica da nossa sociedade, sobretudo com a massificação do uso da tecnologia da comunicação. Contraditoriamente, aquilo que deveria nos unir mais é justamente aquilo que contribui para nos afastar mais uns dos outros. A lição da generosidade de Maria continua, portanto, eloquente e atual, merecendo fazer parte das nossas reflexões e dos propósitos de melhoria de vida, que todos nós devemos fazer nesse tempo de preparação para o nascimento de Jesus.

Ao ensejo, formulo a todos sinceros votos de Feliz Natal.

domingo, 10 de dezembro de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 2º DOMINGO DO ADVENTO 0 O0 PRECUSSOR - 110.12.2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 2º DOMINGO DO ADVENTO – O PRECUSSOR – 10.12.2017

Caros Leitores,

Neste segundo domingo do advento, a liturgia destaca o tema da consolação, através da palavra de conforto do profeta Isaías ao povo no cativeiro, informando que o tempo do castigo terminou, é hora de preparar o retorno a Jerusalém. O tempo litúrgico do advento nos convida a essa preparação do espírito não para a volta do exílio, mas para a chegada daquele que vem. O evangelho de Marcos destaca a importância do papel de João, o Precussor, conclamando o povo para o batismo da conversão, em preparação da chegada daquele que haveria de vir. Os temas da primeira e da terceira leituras se coordenam perfeitamente, repetindo a mensagem do pregador do deserto, profetizado por Isaías.

A primeira leitura retirada do profeta Isaías (Is 40, 1-11) nos convida a vivenciar o tempo do advento na alegria da espera da nossa libertação: “Preparai no deserto o caminho do Senhor, aplainai na solidão a estrada de nosso Deus. Nivelem-se todos os vales, rebaixem-se todos os montes e colinas; endireite-se o que é torto e alisem-se as asperezas.” Esse trecho é bastante conhecido, porque ele foi retomado por João Batista, quando pregava o batismo de penitência, nas margens do rio Jordão. O apelo do profeta e do precursor continua ressoando nos nossos dias, quando a liturgia nos põe outra vez no início da trajetória da história da nossa salvação, com a expectativa da vinda do Salvador. O profeta Isaías é aquele que melhor antecipou os acontecimentos relacionados com a chegada do Messias, o Libertador: “eis que o Senhor Deus vem com poder, seu braço tudo domina: eis, com ele, sua conquista, eis à sua frente a vitória.” Embora a mensagem do Profeta se referisse, no contexto imediato, ao final do cativeiro da Babilônia, na perspectiva transistórica, a mensagem de consolação e de libertação se prolonga nos nossos dias, visto que a salvação prometida não é ato de um dia só, mas um processo continuo de aperfeiçoamento da humanidade, em busca de novos céus e de nova terra.

Esse conceito de “novos céus e nova terra” está na segunda carta de Pedro, lida na liturgia de hoje (2Pd 3, 8-14). Como todos sabemos, Pedro não era nenhum intelectual, pois fora criado à margem do Lago de Genesaré, onde se dedicava ao ofício da pesca profissional, quando recebeu o chamado de Jesus. Estima-se que as cartas de Pedro foram escritas por Marcos, que era discípulo dele e o acompanhava. Diferentemente de Paulo, que escrevia aos gentios, isto é, aos povos que não conheciam a tradição judaica, Pedro escrevia para uma comunidade de Judeus, daí porque ele não precisava explicar muitas coisas, que os seus leitores já conheciam. No trecho dessa leitura, Pedro repete duas imagens que são recorrentes nos evangelhos sinóticos: o dia do Senhor virá como um ladrão e o cataclismo da precipitação dos céus para a terra, causando um grande incêndio que destruirá tudo. Devemos nos lembrar também que as cartas de Pedro foram escritas bem antes dos evangelhos, portanto, não se pode dizer que ele copiou esse assunto da leitura dos evangelhos, mas sim, o oposto, isto é, Pedro referiu-se a esses por primeiro.

Já tive oportunidade de me manifestar acerca desses eventos escatológicos desastrosos, em comentários anteriores, não sendo o caso de retomá-los aqui. Nesse contexto, importa destacar que Pedro se refere à promessa divina de que, no futuro, surgirão novos céus e nova terra, onde habitará a justiça. Pode-se deduzir, então, que essa imagem da destruição não deve ser compreendida no sentido físico, geocósmico, mas no sentido da destruição do pecado e da injustiça, para cederem lugar à justiça que vem de Deus. É interessante observarmos o uso do termo no plural: “novos céus” (no original grego, kainoús dé ouranoús), enquanto “terra” está no singular. Isso deve significar que Pedro acreditava na tradição judaica acerca da existência de sete céus (o primeiro, chamado Vilon, seria o local onde originalmente moravam Adão e Eva, de onde eles “caíram” para a terra; a este primeiro, seguiam-se outros até chegar ao sétimo céu, que seria propriamente a morada de Deus). Dessa concepção, parte a ideia de que os céus “cairão” sobre a terra, porque essa era a noção geográfica daquela época. Visto que Pedro escrevia aos judeus, ele não precisava explicar com detalhes o que seriam esses céus, que seriam renovados. Referindo-se à terra (no original grego, gen kainen), aparece outra vez o adjetivo “kainos”, que significa algo inédito, extraordinário, nunca visto antes. Ou seja, a tradução de ‘kainos’ por “novo” em português não indica toda a força que a palavra grega possui. Assim, os novos céus e a nova terra representam a ideia de um processo de depuração, de purificação, não sendo simplesmente uma coisa que vem substituir outra, assim como nós passamos a usar um novo sapato e jogamos o outro no lixo. O novo tem aqui o sentido da renovação plena, de tomar algo que está velho e fazê-lo tornar-se novo outra vez. E acerca dos “sete” céus, esse conceito continua vigente no talmud judaico e significa uma espécie de local físico, embora muito elevado, porém não é compatível com o conceito de céu presente na doutrina teológica cristã.

Portanto, deixando de lado essa noção dos sete céus, entendida quase no sentido cosmológico, a mensagem da carta de Pedro nos incentiva a vivermos na esperança da renovação prometida, cuja realização depende também do esforço de cada um de nós: “vivendo nessa esperança, esforçai-vos para que ele vos encontre numa vida pura e sem mancha e em paz.” Tal como Paulo fez em suas cartas, Pedro também adverte os cristãos mais apressados para que tenham paciência para esperar a vinda do Senhor, pois “para o Senhor, um dia é como mil anos e mil anos como um dia. O Senhor não tarda a cumprir sua promessa, como pensam alguns, achando que demora.” Percebe-se que tanto nas comunidades dos gentios quando nas comunidades judaicas, prevalecia uma expectativa de que Jesus retornaria “em breve”, ou seja, naqueles próximos dias, por isso tanto Paulo quanto Pedro ensinavam aos cristãos que não deviam ter pressa nem tentar adivinhar esse dia, mas que cada um permanecesse fiel e se mantivesse alerta e em prontidão. Passados mais de dois milênios e considerando a evolução dos conhecimentos científicos acerca do universo, devemos compreender esses “novos céus e nova terra” no sentido metafórico teológico e espiritual, de modo que vivendo nessa “velha” terra o “reino de Deus”, estamos antecipando pela fé a vida na Jerusalém celeste, servindo como nosso guia nessa caminhada o evangelho de Cristo.

Na leitura do evangelho de Marcos (Mc 1, 1-8), vemos repetido o mesmo trecho do profeta Isaías, fazendo expressa referência a João Batista como aquele que foi enviado para preparar o caminho, quando já estava próxima a chegada histórica de Cristo. Dizia João Batista: já está no meio de vós aquele que virá depois de mim. Depois de mim virá alguém mais forte do que eu. Eu nem sou digno de me abaixar para desamarrar suas sandálias. Eu vos batizei com água, mas ele vos batizará com o Espírito Santo”. Aqui também devemos entender que esse trecho foi escrito muito depois da época de João, pois João ainda não conhecia a pessoa divina do Espírito Santo, a qual foi revelada somente algum tempo depois, nas pregações de Cristo. É verdade que João teve uma antevisão do Espírito Santo em forma de pomba, por ocasião do batismo de Cristo por ele, mas isso não significa que ele tivesse tido uma antecipação da doutrina trinitária, que Jesus iria explicar aos apóstolos durante sua catequese com eles. A consciência do seu papel de precursor está bem expressa na metáfora de João sobre “desamarrar suas sandálias”. João tinha ciência de que a origem divina de Cristo e a missão que Ele ali iniciaria não tinha termo de comparação com o seu próprio trabalho. E sabe-se pela leitura de Mateus (3, 11) que João teria argumentado com Jesus: eu devo ser batizado por ti, mas tu vens a mim. E Jesus teria respondido: deixa assim por enquanto. Tudo devia acontecer de acordo com o plano do Pai e João era um importante personagem nesse plano.

Meus amigos, que nós saibamos, interpretar com sabedoria a temática bíblica posta diante de nós pela liturgia do advento, de modo a compreendermos sempre melhor o significado desse tempo religioso importante, mas que fica em geral obscurecido pelos apelos comerciais e emocionais relacionados com o natal da troca de presentes, desviando-nos do verdadeiro sentido do natal cristão.

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segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 1º DOMINGO DO ADVENTO - VIGILATE - 03.12.2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 1º DOMINGO DO ADVENTO – VIGILATE – 03.12.2017

Caros Leitores,

O primeiro domingo do advento dá início ao novo ano na liturgia católica romana, que não segue o calendário civil. Hoje é, portanto, o primeiro dia do ano novo religioso. Neste ano, classificado com a letra B, as leituras do evangelho serão, preferencialmente, do evangelista Marcos. Cronologicamente, o evangelho segundo Marcos foi o primeiro dos quatro a ser escrito. Consta que João Marcos era um discípulo de Pedro e teria sido também o escriba das cartas deste. O texto deste evangelista é considerado o mais próximo das fontes documentais pelo fato de apresentar-se mais resumido e com poucos detalhes dos fatos narrados. Deve ter sido escrito por volta do ano 50 d.C.

Numa interpretação literal, advento é aquilo que está para vir, ou seja, o nascimento de Cristo. É sempre conveniente recordar que a festa celebrada em 25 de dezembro é apenas uma data referencial, não significando o dia exato em que Jesus nasceu. A escolha desta data foi uma intromissão do imperador Constantino, que aproveitou uma festa tradicional pagã, em homenagem ao deus sol invencível, e que marcava a passagem do solstício de inverno no hemisfério norte. A partir de Constantino, esta solenidade foi transformada em uma festa cristã, homenageando Jesus, o novo sol do mundo. A tradição cristã oriental não segue essa data, pois não aceitou a imposição de Constantino, e celebra o nascimento de Jesus no dia 6 de janeiro. Contudo, o 25 de dezembro foi assumido pelo catolicismo romano e de lá trazido para o continente americano, associado a paisagens com pinheiros cobertos de neve. Porém devemos nos lembrar que Jesus nasceu em Belém, na Judéia, e lá não havia nem pinheiros nem neve, ao contrário, a região é predominantemente desértica. Esta é a visão européia do natal e é mais um motivo para nós compreendermos a sua simbologia coerente com o evangelho e não com os costumes tradicionais, que associam o Natal à troca de presentes e à farta ceia com iguarias típicas da data. Diferente disso, o nascimento de Cristo foi um acontecimento modesto e até austero, pois como se sabe, Maria e José não encontraram nem hospedagem decente naquele dia de grande aglomeração em Belém.

Nas leituras litúrgicas de hoje, temos a primeira do profeta Isaías (63, 16 – 64,7, portanto, do deutero-Isaías), em que o Profeta recorda o tempo do exílio como um castigo divino, porque o povo se afastou dos caminhos do Senhor, e faz uma declaração de humildade, ao dizer que “nós nos tornamos imundície e todas as nossas obras são como um pano sujo … por isso, escondeste de nós a tua face e nos entregaste à mercê de nossas maldades”. E logo em seguida, vem a declaração de confiança: “Assim mesmo, Senhor, tu és nosso pai, nós somos barro; tu, nosso oleiro, e nós todos, obra de tuas mãos. A figura do barro nas mãos do oleiro tem um significado bastante forte de confiança na misericórdia do Senhor, na medida em que o barro é um objeto amorfo e receberá a forma que as mãos do oleiro quiser lhe dar. Essa imagem é reforçada pelo vers. 3 do cap 64: “Nunca se ouviu dizer nem chegou aos ouvidos de ninguém, jamais olhos viram que um Deus, exceto tu, tenha feito tanto pelos que nele esperam. Essa passagem de Isaías tem tudo a ver com o tempo do advento, que é a ocasião propícia para cada cristão se desvencilhar do seu invólucro espiritual velho e construir em si um novo receptáculo, para ali depositar o Salvador, cujo nascimento esperamos. Tal como a quaresma é o tempo de penitência em preparação para a Páscoa do Senhor, o advento é também um tempo de revisão de procedimentos, de limpar as veredas e aplainar os caminhos para a chegada do Senhor. Na verdade, a festa do Natal é a segunda mais importante do calendário cristão, superada apenas pela festa da Páscoa. A vinda de Cristo é o início do mistério da redenção prometido por Javeh aos antigos Patriarcas e que não se destina mais somente àquele povo original da aliança, mas alcança todo o gênero humano. Esse é o acontecimento chave que marca o ponto de partida da caminhada eclesial que será seguida no decorrer do ano novo.

A segunda leitura traz o início da primeira carta de Paulo aos Coríntios (1Cor 1, 3-9), em cujo preâmbulo o Apóstolo felicita aquela comunidade e recomenda a perseverarem firmes na fé até “o dia de Nosso Senhor Jesus Cristo”, numa alusão evidente à segunda vinda de Cristo. Conforme já explicitado em comentários anteriores, os cristãos daquela época (e Paulo inclusive) entendiam a vinda gloriosa de Cristo “para julgar o mundo” como algo que ocorreria por aqueles dias, não iria demorar muito. No versículo 7, Paulo diz isso textualmente, quando escreve “vós que aguardais a revelação de Nosso Senhor Jesus Cristo”, ou seja, Ele irá retornar a qualquer momento. O tema dessa leitura paulina está em consonância com o tema do evangelho de Marcos, chamando a atenção para a perseverança até o final, dentro da fidelidade à graça recebida. Deus é fiel, repete Paulo, e essa fidelidade de Deus deve ser correspondida com a fidelidade do crente. Percebe-se, pela frequência com que Paulo volta a esse assunto, que essa maneira de compreender a segunda vinda de Cristo era uma idéia recorrente nas comunidades cristãs. Assim se entende porque o tema da “vigilância” é tantas vezes reprisado tanto nas cartas de Paulo quanto nos evangelhos, sendo também um apelo insistente da liturgia nessa época do ano.

A leitura do evangelho de Marcos tem essa mesma conotação da vigilância (Mc 13, 33-37). O texto tradicional latino exorta: Vigilate! (Vigiai). Podemos perceber como essa preocupação chegava a ser exagerada, pela forma como o tema nos é apresentado na parábola do patrão que viajou ao estrangeiro e deixou sua propriedade sendo cuidada pelos seus empregados. O patrão também deixou a cada empregado uma tarefa específica, encarregando um deles de ser o porteiro, que ficaria vigiando a casa. Quanto aos demais, diz a parábola, devem estar sempre preparados, porque não sabem a que dia ou hora o patrão retornará. Pode ser de tarde, de noite, de madrugada, ninguém sabe quando será este dia. Do modo como a história é contada, tem-se a impressão de que aqueles empregados não poderiam nem dormir, porque podia ser que o patrão chegasse na hora do sono deles. Ora, meus amigos, parece óbvia aqui uma figura de linguagem. Na verdade, o foco da mensagem, ao meu ver, se refere à execução da tarefa da qual cada um foi encarregado e não ao sono em si. Essa, sim, deve ser cumprida conforme o cronograma, de modo que, no retorno do patrão, a tarefa não esteja em atraso. A tarefa maior que Jesus deixou para nós, os empregados, está resumida naqueles dois mandamentos, que todos conhecemos muito bem: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. Essa é a tarefa que não pode ser deixada para depois, mas deve ser realizada constantemente.

A metáfora de “não sabemos o dia ou a hora em que o patrão retornará” faz parte daqueles denominados discursos escatológicos de Jesus e seu entendimento deve ser atualizado. A segunda vinda de Cristo, apresentada tradicionalmente como um fenômeno cósmico, com trovões e trombetas, a meu ver, será um evento privado na vida de cada pessoa. Em vez de ser Ele que virá ao nosso encontro, nós, ao contrário, é que nos dirigiremos a Ele. Devemos compreender que aquela maneira teatral de apresentar o fenômeno é resultado da noção que se tinha na época acerca da terra e sua posição relativa aos demais corpos celestes. Não há dúvida de que toda a escritura é inspirada por Deus e útil para ensinar, conforme ensinou o apóstolo Paulo (2Tim 3, 16), porém, ela é palavra divina em linguagem humana e deve ser contextualizada dentro da concepção científica e cosmológica da época em que foi escrita. Compete a nós, que hoje lemos esses textos, desapegar do fundamentalismo e da literalidade para assim alcançarmos o seu significado mais apropriado para o nosso tempo.

Portanto, o ensinamento de Cristo para que estejamos sempre vigilantes se refere ao nosso tempo existencial. Por isso, essas leituras do tempo do advento não devem ser assimiladas com um tom de ameaça ou de aterrorização, mas como um apelo de vida consciente e centrada nos nossos compromissos de cristãos. Vigilate, não deixeis dormir a vossa fé.

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