domingo, 28 de dezembro de 2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO - FESTA DA SAGRADA FAMÍLIA - 28.12.2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO – FESTA DA SAGRADA FAMÍLIA – 28.12.2014

Caros confrades,

Neste domingo que sucede o Natal, a liturgia celebra a festa da Sagrada Família de Nazaré, exemplo de fidelidade à sua religião judaica. Convém não esquecer que Jesus era judeu, Maria era judia e José era judeu também. Certa vez, assistindo aulas de hebraico, um aluno perguntou à professora quem é Jesus para os judeus. Resposta dela: Jesus é um judeu famoso, como existiram vários outros. Aí termina o significado da figura de Jesus para a religião judaica. Porém, no evangelho de hoje, lemos o relato da profecia de Simeão, ao ver aquele menino de poucos dias, que chegava com seus pais ao templo de Jerusalém, para a consagração, conforme estava previsto na lei de Moisés. Simeão viu naquele menino judeu o Messias prometido, coisa que os demais judeus de ontem e de hoje ainda não perceberam.

Temos na primeira leitura, retirada do livro do Eclesiástico (que em hebraico, diz-se Ben Sirac), as lições da tradição judaica sobre o respeito que os membros da família devem ter entre si: os filhos para com os pais, estes para com os filhos e o casal, um em relação ao outro: “Quem respeita a sua mãe é como alguém que ajunta tesouros. Quem honra o seu pai, terá alegria com seus próprios filhos; e, no dia em que orar, será atendido. Quem respeita o seu pai, terá vida longa, e quem obedece ao pai é o consolo da sua mãe.” (Eclo 3, 5-7) De acordo com os estudiosos da Bíblia, este livro foi escrito aproximadamente 200 anos antes de Cristo, ou seja, mais de dois mil anos atrás e a sabedoria do povo de Deus do antigo testamento continua plenamente atual e aplicável aos nossos dias. Este texto era lido nos templos cristãos desde os princípios do cristianismo, embora não fosse considerado sagrado para os judeus. Estes o consideravam mais um livro histórico e referencial da sabedoria dos antigos, mas não exatamente “palavra de Deus”, talvez por seu conteúdo acentuadamente humanístico. Na nomenclatura de hoje, seria considerado um livro de conteúdo psicológico, de formação humana para a juventude, mas os cristãos sempre o consideraram um livro inspirado e o seu conteúdo, que atravessou inúmeras gerações e permanece como roteiro de vida plena e justa, é merecedor do nosso respeito e digno de ser posto em prática. Sobretudo o conselho referente à senectude dos pais: “Mesmo que ele esteja perdendo a lucidez, procura ser compreensivo para com ele.” Esta recomendação é muito oportuna nos dias de hoje, quando se veem pessoas deixando seus pais ou parentes idosos em asilos, porque não querem ter trabalho com essas pessoas, principalmente se são acometidas com algum tipo de demência. E continua o sábio judeu: “a caridade feita a teu pai não será esquecida, mas servirá para reparar os teus pecados.” Na época em que esse texto foi escrito, talvez ainda não existissem as morbidades da vida contemporânea, porque naquele tempo poucas pessoas tinham vida longa, diferentemente de hoje, quando a população envelhecida cresce até mais do que o número de nascimentos. O sábio conselho do Eclesiástico merece ser lido e meditado por todos nós, especialmente por nossos jovens.

Na segunda leitura, da carta de Paulo aos Colossenses (Cl 3, 12-21), o apóstolo exorta os cristãos daquela cidade sobre os deveres recíprocos dos familiares de perdão, de misericórdia, bondade, humildade, mansidão e paciência, “suportando-vos uns aos outros e perdoando-vos mutuamente, se um tiver queixa contra o outro.” E em relação ao casal, ele traz conselhos bem específicos: “Esposas, sede solícitas para com vossos maridos, como convém, no Senhor. Maridos, amai vossas esposas e não sejais grosseiros com elas.” E complementa: “Filhos, obedecei em tudo aos vossos pais, pois isso é bom e correto no Senhor.” Ora, meus amigos, temos aqui uma nova manifestação da sabedoria judaica nos princípios do cristianismo. Embora escrevendo para as comunidades de língua grega, no entanto, Paulo era judeu, tinha formação judaica e o seu aprendizado primeiro se deu nas sinagogas. Convertido ao cristianismo, obviamente, ele permaneceu com o modo de pensar do judaísmo, porque essa era a sua formação. Portanto, os conselhos que Paulo dá aos cristãos de Colossos são inspirados, certamente, na mesma sabedoria escrita por Ben Sirac, ou seja, na milenar experiência do povo judeu, que aprendeu esse modo de ser a partir das orientações dos seus profetas, que por sua vez as recebiam de Javeh. Eu estive lendo uns artigos de um professor da Universidade Hebraica de Jerusalém, nos quais ele defende essa idéia das origens judaicas do cristianismo, que foi posteriormente influenciado pela cultura grega, e seus estudos me parecem bastante coerentes. Com efeito, na época de Paulo, essa helenização do cristianismo ainda não ocorrera, Paulo tinha o pensamento marcadamente judaico, embora inspirado pela fé cristã. Foi a partir de Santo Agostinho, no século IV, e depois com Santo Tomás, no século XIII, que se fez a opção pela matriz filosófica grega e isso trouxe inúmeras influências nem sempre benignas para o desenvolvimento da teologia cristã. Nos dias de hoje, há todo um esforço de vários estudiosos para recuperarem esse modelo primitivo da fé cristã anterior à influência grega, como ocorre desde os primórdios entre as igrejas católicas orientais. Nestas, a influência grega não se fez presente, de modo que a tendência é forte no sentido da unificação dessas comunidades, um esforço que teve início ainda com o Papa Paulo VI, que fez a primeira visita a um Patriarca oriental, após quase mil anos de cisão entre as igrejas. Quanto mais a teologia católica ocidental for capaz de se libertar das categorias do pensamento grego, tanto mais a aproximação entre as igrejas ocidental e oriental se fará sentir.

Na leitura do evangelho de Lucas (Lc 2, 22-40), encontramos o emocionante relato da obediência de José e Maria à lei mosaica. “Quando se completaram os dias para a purificação da mãe e do filho, conforme a Lei de Moisés, Maria e José levaram Jesus a Jerusalém, a fim de apresentá-lo ao Senhor.” De acordo com a lei de Moisés, a mulher ficava impura durante o período da menstruação e também durante o puerpério (aquilo que na nossa cultura chamamos de resguardo). Nesses dias, a mulher não podia ir ao templo e devia evitar ter contato com outras pessoas, porque que dela se aproximasse, também ficaria impuro. Quanta discriminação cultural com as nossas benditas mulheres e quanto isso ainda pesa sobre a nossa cultura. Pois bem. Como bons judeus, José e Maria foram levar o filho ao templo, para ser consagrado. E também como mandava a lei, para que o filho não tivesse de permanecer no templo, pagava-se uma “taxa”, de acordo com as posses do casal: os ricos ofereciam bois; os médios ofereciam carneiros; os pobres ofereciam pombos. Daí o relato de Lucas: “Foram também oferecer o sacrifício - um par de rolas ou dois pombinhos - como está ordenado na Lei do Senhor.” A mão divina colocou o intelectual Lucas no lugar certo, na época certa. Foi graças à sua presença constante na casa de Maria que ele conseguiu ouvir dela diversos depoimentos que enriquecem suas narrativas. Sem isso, nós não saberíamos de muitos detalhes que envolvem a vida de Cristo. Graças a ele e ao seu estilo narrativo, temos uma leitura emocionante desses fatos. A riqueza de detalhes da profecia de Simeão somente Lucas nos traz. José e Maria ficaram boquiabertos com a reação daquele homem de Deus. Eles chegaram ao templo de uma forma pacata e humilde, como faziam as pessoas da sua condição, e teriam certamente passado despercebidos. Mas chegou aquele homem desconhecido e reconheceu naquele menino judeu o Messias prometido pelos profetas. É óbvio que José e Maria sabiam da origem divina do Menino, mas não contaram nada para ninguém, como é que aquele homem sabia? Admirados, ouviram-no dizer: “meus olhos viram a tua salvação, que preparaste diante de todos os povos.” Essa foi a primeira declaração pública acerca da divindade de Jesus e foi feita por uma pessoa do povo, inspirada pelo espírito de Deus. Simeão não era sacerdote, não era chefe religioso, era um homem justo e temente a Deus. Pena que os líderes judaicos daquele tempo não tiveram a mesma sensibilidade e a mesma humildade de Simeão. E ele foi ainda mais além e mais veraz, quando profetizou em relação a Maria: “Quanto a ti, uma espada te traspassará a alma.” Tivemos aí a proclamação de Nossa Senhora das Dores, antecipada pelo velho judeu. Maria, que já tinha compreendido isso desde o evento da anunciação pelo anjo Gabriel, ouviu aquilo e fortificou a sua fé. Esse sofrimento fazia parte do seu “sim”, ela sabia desde o início do quanto teria de suportar no cumprimento daquela sublime missão.

O compromisso com a lei divina e a fidelidade a ela é a grande lição que devemos aprender com a Sagrada Família de Nazaré. Que o seu exemplo continue inspirando as nossas famílias no seguimento dos ensinamentos cristãos.

Cordial abraço a todos e votos de Feliz Ano Novo.

Antonio Carlos

domingo, 21 de dezembro de 2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 4º DOMINGO DO ADVENTO - O FILHO DE DAVI - 21.12.2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO DO ADVENTO – O FILHO DE DAVI – 21.12.2014

Caros Confrades,

Neste quarto domingo do Advento, destaco a referência que as leituras litúrgicas fazem de Jesus como filho de Davi. O conhecido refrão cantado no domingo dos ramos exalta o filho de Davi, em diversas outras passagens esta mesma ligação de Jesus com Davi é repetida. Os numerólogos bíblicos fizeram as contas de que desde Abraão até Davi contam-se 14 gerações; de Davi ao cativeiro da Babilônia são outras 14 gerações e do cativeiro da Babilônia até o nascimento de Jesus são mais 14 gerações. (Ver evangelho de Mateus, 1, 1-17). O rei Davi representa o auge do desenvolvimento material do povo hebreu; o cativeiro da Babilônia representa o momento da queda, o auge da destruição; o nascimento de Jesus representa, nessa linha de raciocínio, o apogeu da promessa de Javé. Davi e Jesus significam, portanto, os pontos mais significativos da história do povo de Deus, daí a importância de se demonstrar que Jesus era um descendente de Davi.

Na primeira leitura, do segundo livro de Samuel (2Sm 7, 1-16), lemos a profecia de Natan acerca do filho de Davi, que reinaria para sempre, sendo confirmado na realeza. Historicamente, este filho de Davi foi Salomão, responsável pela construção do templo e famoso por sua legendária sabedoria. No sentido transistórico, aproveitando o cálculo genealógico de Jesus explicado por Mateus, o filho de Davi confirmado perenemente na realeza é Jesus Cristo. A insistência do evangelista em ressaltar a descendência de Jesus da linhagem de Davi tem por objetivo interligar o nascimento de Cristo com a promessa de Javeh aos antigos patriarcas, fundamentando assim a fé no Messias salvador prometido pelas escrituras. O rei Davi queria construir uma casa digna para o Senhor, um templo suntuoso, mais do que o palácio onde ele, o rei, morava. No entanto, através do profeta Natan, Javeh fez ver a Davi que essa honra não seria dele, mas de um filho dele. Então, o filho próximo dele, Salomão, edificou o famoso templo, que se tornou referência para muitas gerações, alcançando até o tempo de Jesus. E o filho longínquo de Davi, Jesus, erigiu a sua igreja como templo vivo, não mais de tijolo e pedras, mas presente no coração dos que nEle creem. Quando chegou a plenitude dos tempos, a promessa de Javé foi cumprida também de forma plena.

Na segunda leitura, retirada da carta aos Romanos (Rm 16, 25-27), o apóstolo Paulo enfatiza esse mistério, que ficara escondido ao longo dos tempos, mas que então fora revelado, por meio de Jesus Cristo. “Este mistério foi manifestado e, mediante as Escrituras proféticas, conforme determinação do Deus eterno, foi levado ao conhecimento de todas as nações, para trazê-las à obediência da fé.” O mistério referido por Paulo é exatamente este do cumprimento definitivo da antiga promessa, através de um descendente da linhagem de Davi. Diferentemente do próprio rei Davi, cujo poder se dirigia e se limitava ao povo hebreu, o poder deste filho de Davi se estende a todas as nações. Portanto, o mistério que Cristo veio revelar foi de que aquela promessa feita por Javeh aos antigos patriarcas não tinha seus limites atrelados a um determinado local geográfico nem a uma etnia específica, mas todos os povos são os destinatários dela, o seu alcance se estende a todas as nações.

O evangelho de Lucas (Lc 1, 26-38) é também enfático em afirmar que José era descendente de Davi. Não podendo afirmar que José gerou Jesus, como está escrito nas genealogias anteriores, o evangelista refere que José era da família de Davi e era esposo de Maria, a mãe de Jesus. “Eis que conceberás e darás à luz um filho, a quem porás o nome de Jesus. Ele será grande, será chamado Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai Davi. Ele reinará para sempre sobre os descendentes de Jacó, e o seu reino não terá fim' ” (Lc 1, 31). Observemos que José era pai adotivo de Jesus, porém mesmo sem ser filho biológico, Jesus era herdeiro legal de José, portanto, herdeiro da tradição de Davi. A escritura não menciona que Maria era descendente de Davi. Existe um testemunho de Santo Irineu, que viveu nos primeiros séculos do cristianismo, de que Maria também era da linhagem de Davi, mas isso é atestado apenas pela tradição, não consta nos relatos dos evangelistas. Talvez fosse até mais fácil de fundamentar a descendência de Jesus em relação a Davi através da análise de genealogia de Maria. Contudo, naquela época em que prevalecia a linhagem masculina, para evitar quaisquer dúvidas acerca da validade da profecia, se por acaso ficasse demonstrada apenas a descendência pelo lado feminino, os evangelistas destacam sempre a descendência pelo lado de José, deixando de considerar a genealogia de Jesus pelo lado de Maria. Daí porque tal referência só está presente na tradição.

Interessante nesse contexto é observar a forma como a revelação divina foi dada a Maria, diferente do modo tradicional em que isso acontecia. De acordo com a tradição judaica, as mensagens proféticas eram reveladas por Javeh aos seus escolhidos através de sonhos, portanto, quando eles não estavam despertos. Porém, no caso de Maria, ela não apenas estava desperta, mas chegou a dialogar com o anjo e expor suas dúvidas, ao que o anjo respondeu e a tranquilizou. O caso do sonho de José é um desses exemplos de revelação recebida em sonho. Outro caso também relacionado com José é aquele episódio em que ele recebeu uma “ordem” de fugir com Maria e o menino para o Egito, até passar a perseguição de Herodes, através de outro sonho. Com base nessa análise, pode-se afirmar que a revelação a Maria teve uma característica totalmente peculiar, fora do padrão em que isso costumava acontecer. Certamente, porque o evento que esta revelação abordava não era apenas uma intervenção de Javeh na história dos homens, mas a autêntica redenção prometida, a intervenção última e definitiva. Com bastante probabilidade, o diálogo de Maria com o anjo foi bem mais demorado e detalhado do que a narração bíblica apresenta. Maria era muito jovem e estava no início de sua vida adulta, ainda não começara sua coabitação com José. Era necessário que ela ficasse bastante segura do que estava por acontecer, para que ela finalmente concordasse. E obviamente a gestação não teria iniciado, caso ela tivesse recusado. Daí a importância do “sim” de Maria, porque naquele momento, ela também deve ter antevisto os grandes problemas e as grandes dores que iria suportar futuramente. Isso também deve ter sido objeto do diálogo com o anjo. Por fim, ela aquiesceu: faça-se conforme a tua palavra. E o anjo retirou-se.

Meus amigos, a concordância de Maria é um ato de generosidade, de generosa grandeza. A missão que cada um de nós recebe nessa vida, ou seja, aquilo que outra passagem do evangelho chama com o nome de “talentos”, é um desafio que depende da nossa generosidade. Generosidade para aceitar e disponibilidade para executar. Do folheto da novena do Natal, que celebramos hoje em família, destaco o seguinte trecho, que achei bastante significativo: “A generosidade é a capacidade de dar com desapego, onde o amor ganha do egoísmo. É na entrega generosa que fazemos de nós mesmos que se mostra a profundidade de um amor que não fica somente nas palavras. É isso que celebramos no natal: o gesto generoso de Maria em aceitar ser a mãe de Deus e o gesto generoso de Deus que se dá a si mesmo, para a redenção da humanidade.” A generosidade é o antídoto do egoísmo, é uma atitude por demais sugestiva para os nossos tempos, em que o individualismo e o isolamento são uma marca característica da nossa sociedade, sobretudo com a massificação do uso da tecnologia da comunicação. Contraditoriamente, aquilo que deveria nos unir mais é justamente aquilo que contribui para nos afastar mais uns dos outros. A lição da generosidade de Maria continua, portanto, eloquente e atual, merecendo fazer parte das nossas reflexões e dos propósitos de melhoria de vida, que todos nós devemos fazer nesse tempo de preparação para o nascimento de Jesus.

Ao ensejo, envio a todos sinceros votos de Feliz Natal.


domingo, 14 de dezembro de 2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 3º DOMINGO DO ADVENTO - O ÚLTIMO PROFETA - 14.12.2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 3º DOMINGO DO ADVENTO – O ÚLTIMO PROFETA – 14.12.2014

Caros Confrades,

Na liturgia deste 3º domingo do advento, o tema predominante é o refrão “alegrai-vos, Ele está bem perto”, sendo este o domingo da alegria. No evangelho, destaca-se a questão da identidade de João Batista, questionado pelos fariseus: quem és tu, afinal? E ele, humildemente, nega ser o Messias ou um profeta, autodefinindo-se como “a voz que clama no deserto”, porém, Jesus irá dizer dele, em outra ocasião (Mt 11,11) que João Batista é muito mais do que um profeta, dentre os nascidos, ninguém é maior do que ele. Com efeito, João Batista foi o último profeta, aquele que anunciou que o Messias já está no meio de nós.

A primeira leitura, do profeta Isaias (61, 1-11 – deuteroIsaías), contém aquela passagem que está repetida em Lucas (4, 18), quando Jesus fez a leitura na sinagoga e se autodeclarou para os presentes: o profeta falava a meu respeito. O trecho é o seguinte: “O Espírito do Senhor Deus está sobre mim, porque o Senhor me ungiu; enviou-me para dar a boa-nova aos humildes, curar as feridas da alma, pregar a redenção para os cativos e a liberdade para os que estão presos; para proclamar o tempo da graça do Senhor.” (Is 61, 1) Quando Jesus foi convidado para fazer a leitura na sinagoga, onde ele comparecia como todos os bons judeus, Ele escolheu propositalmente esse trecho de Isaías e, ao final, completou: hoje se cumpriu aquilo que foi dito pelo profeta. Jesus havia há pouco iniciado suas pregações e aquela era a primeira vez que ele ia a Nazaré, sua terra natal, após o início de sua vida pública. Ao proclamar-se abertamente que Ele era o ungido, os nazareenses presentes na sinagoga ficaram se entreolhando e se perguntando: mas, esse não é o filho de José? Não foi ele que vimos nascer e crescer aqui? (Lc 4, 22) Ou seja, entre surpresos e incrédulos, os habitantes de Nazaré não souberam reconhecer naquele “filho de José” o Messias, filho de Deus, fato que levou Jesus a dizer: nenhum profeta é bem recebido na sua pátria (Lc 4, 23), o que deixou aqueles seus conterrâneos irritados, a ponto de quererem lançá-lo do precipício. A escolha desse trecho para a leitura demonstra o quanto Jesus era conhecedor das escrituras, em especial, do profeta Isaías, o seu livro predileto.

Na segunda leitura, da carta de Paulo aos Tessalonicenses (1Ts 5, 16-24), o Apóstolo exorta os cristãos daquela cidade a estarem preparados para a vinda de Cristo, afastando-se de toda maldade. Estai sempre alegres e rezai sem cessar, recomendava Paulo. O conselho dele acerca da alegria na espera do Senhor está em sintonia com o tema deste terceiro domingo: a alegria da espera. No sermão de hoje para os peregrinos presentes no Vaticano, o Papa assim comentou essa carta de Paulo: “Neste terceiro domingo a liturgia nos propõe outra atitude interior para viver a espera do Senhor, ou seja, alegria. Mais uma vez São Paulo na liturgia de hoje nos indica as condições para ser "missionários da alegria": orar sem cessar, sempre dar graças a Deus, seguir o seu Espírito, buscar o bem e evitar o mal. Nunca se ouviu falar de um santo triste ou de uma santa com cara fúnebre, nunca se ouviu, seria uma contradição.” (cf boletim do site www.zenit.org) Essa última afirmação do Papa nos faz lembrar uma frase que o Frei Higino costumava dizer: um frade triste é um triste frade. São Francisco era o protagonista da alegria, isso está documentado nos escritos dos seus contemporâneos. A vocação cristã não é um convite à tristeza e ao isolamento, pelo contrário, é como disse o Papa, uma convocação para sermos missionários da alegria. Em outro trecho do seu sermão de hoje, o Papa diz assim: “Não é só uma alegria esperada ou deslocada para o paraíso, ‘aqui na terra estamos tristes, mas no paraíso estaremos alegres’, não, não é isso. Mas, de uma alegria já real e que já é possível sentir agora, porque o mesmo Jesus é nossa alegria, é nossa casa.” O paraíso não é uma situação futura, mas uma realidade que já se faz presente. Nesse contexto, aquela narração bíblica da “queda” de Adão e Eva deixa de ter um sentido de perda para adquirir um significado de conquista. Nós não fomos expulsos do paraíso, nós estamos a caminho de lá e a simples expectativa da chegada já nos deixa alegres. O reino de Deus, que Jesus veio anunciar, é uma experiência antecipada, na vida terrena, daquilo que nos está prometido para uma vida futura. Ou seja, nós não precisamos esperar que isso aconteça algum dia, pois pelo batismo, nós fomos colocados no umbral do paraíso e já podemos antever o que ocorre naquela dimensão transcendental.

No evangelho de João (Jo 1, 6-28), lemos aquele episódio em que os fariseus vão até João Batista a fim de indagarem sobre a sua identidade. A fama de João Batista se espalhara na região e os líderes judeus queriam certificar-se de quem era ele, para isso, mandarem mensageiros a indagar-lhe. Quem és, afinal, para que possamos informar os que nos enviaram? João Batista, então, serviu-se das palavras do profeta Isaías para falar de si próprio: eu sou a voz que clama no deserto – aplainai os caminhos do Senhor. E ao afirmar que ele não era o Messias, acrescentou que “no meio de vós, está aquele que virá depois de mim”, isto é, eu não sou o Messias, mas Ele já está no meio de vós. João tinha consciência plena da sua missão preparatória, conforme ele mesmo proclamou em outra ocasião: é preciso que Ele cresça e eu desapareça. (Jo 3, 30) Ou como ele diz no evangelho de hoje: eu não sou digno nem de desamarrar as correias das Suas sandálias. (Jo 1, 27)

Os fariseus estranharam porque João batizava sem ser um profeta. Aqui, podemos considerar dois aspectos. Primeiro, Jesus mesmo disse que João era mais do que um profeta. Etimologicamente, a palavra “profeta” deriva do grego pro+fainô, isto é, falar por alguém, falar em nome de alguém. Essa palavra surgiu, portanto, com a tradução da escritura em hebraico para a língua grega, conhecida como a tradução dos setenta ou septuaginta. A palavra correspondente, em hebraico, é NAVI (ou NABI), que significa ter uma antevisão dos fatos, o que ocorria geralmente com as manifestações de Javeh em sonhos para certas pessoas. Então, João Batista era mais do que isso, porque ele não falava em nome de alguém, mas em nome próprio, porque ele foi a primeira testemunha da chegada do Messias; e ainda porque ele não recebera nenhuma antevisão através de sonhos, como acontecera com os profetas anteriores. Os teólogos consideram João Batista o último profeta do Antigo Testamento, e de fato, ele foi um profeta especial, um profeta-testemunha, enquanto os outros eram apenas porta-vozes. A maior profecia de João Batista, na verdade, a sua maior revelação, foi a de dizer para aqueles que iam ouvi-lo na margem do Jordão, onde ele batizava: o Messias já está no meio de vocês.

Um outro fato a merecer destaque era o batismo trazido por João, donde lhe advém o cognome de Batista. Os outros profetas não batizavam. Os judeus ficaram intrigados com isso. Como é que ele batiza e nem profeta ele é. De fato, os judeus praticavam um ritual (tevilah) de purificação, que era adotado sobretudo pelas mulheres, após o ciclo menstrual ou após o parto, para poderem novamente frequentar a sinagoga. João utiliza esse ritual, dando a ele um significado novo, a tevilah de arrependimento, a mudança de vida, preparando o caminho para a chegada do Messias. O ritual feito por João era praticado através da imersão do corpo todo no rio, significando que ao emergir, o fiel estaria renascendo, abandonando a sua vida de pecados para reviver purificado. Jesus também se submeteu a esse ritual, conforme sabemos pelas narrativas evangélicas, embora Ele não necessitasse de arrependimento. Mas o fato de Jesus ter-se associado a esse ritual é uma amostra de que Ele estava aprovando aquilo e reconhecendo o valor daquele rito simbólico. Com a tradução pra o grego, a palavra hebraica tevilah passou para baptizô (ou baptismô), que significa também lavar, derramar, aspergir, tendo essa palavra grega assumido todos os significados da tevilah hebraica, inclusive as abluções que os judeus faziam (lavagem das mãos) antes das refeições. João deu um significado mais amplo e profundo para a tevilah (ou baptismô), que deixou de ser um ritual simples e repetitivo para tornar-se uma atitude única de mudança de comportamento, de assunção de um novo modo de vida, de maneira que não haveria mais necessidade de ser repetido. Aqui está mais uma razão para ele ser considerado o último profeta e “mais do que um profeta”, porque depois dele, não haveria mais outro, e sim a manifestação do próprio Deus, em Jesus Cristo.

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domingo, 7 de dezembro de 2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 2º DOMINGO DO ADVENTO - NOVOS CÉUS E NOVA TERRA - 07.12.2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 2º DOMINGO DO ADVENTO – NOVOS CÉUS E NOVA TERRA – 07.12.2014

Caros Confrades,

Neste segundo domingo do advento, a liturgia destaca o tema da consolação, através da palavra de conforto do profeta Isaías ao povo no cativeiro, informando que o tempo do castigo terminou, é hora de preparar o retorno a Jerusalém. O tempo litúrgico do advento nos convida a essa preparação do espírito não para a volta do exílio, mas para a chegada daquele que vem. O Papa Francisco, no sermão de hoje aos peregrinos presentes na Praça do Vaticano, assim comentou esse assunto da consolação do profeta Isaías: “Todos somos chamados a consolar os nossos irmãos, testemunhando que somente Deus pode eliminar as causas dos dramas existenciais e espirituais.” Essas são as formas de cativeiro nos nossos dias.

Portanto, a primeira leitura retirada do profeta Isaías (Is 40, 1-11) nos convida a vivenciar o tempo do advento na alegria da espera da nossa libertação: “Preparai no deserto o caminho do Senhor, aplainai na solidão a estrada de nosso Deus. Nivelem-se todos os vales, rebaixem-se todos os montes e colinas; endireite-se o que é torto e alisem-se as asperezas.” Esse trecho é bastante conhecido, porque ele foi retomado por João Batista, quando pregava o batismo de penitência, nas margens do rio Jordão. O apelo do profeta e do precursor continua ressoando nos nossos dias, quando a liturgia nos põe outra vez no início da trajetória da história da nossa salvação, com a expectativa da vinda do Salvador. O profeta Isaías é aquele que melhor antecipou os acontecimentos relacionados com a chegada do Messias, o libertador: “eis que o Senhor Deus vem com poder, seu braço tudo domina: eis, com ele, sua conquista, eis à sua frente a vitória.” Embora o foco imediato da mensagem do Profeta fosse a libertação dos cativos da Babilônia, na perspectiva transistórica, a mensagem de consolação e de libertação se prolonga nos nossos dias, visto que a salvação prometida não é ato de um dia só, mas um processo continuo de aperfeiçoamento da humanidade, em busca de novos céus e de nova terra.

Aliás, este conceito de “novos céus e nova terra” está na segunda carta de Pedro, lida na liturgia de hoje (2Pd 3, 8-14). Como todos sabemos, Pedro não era nenhum intelectual, pois fora criado à margem do Lago de Genesaré, dedicando-se ao ofício da pesca, quando recebeu o chamado de Jesus. Estima-se que as cartas de Pedro foram escritas por Marcos, que era discípulo dele e o acompanhava. Diferentemente de Paulo, que escrevia aos gentios, isto é, aos povos que não conheciam a tradição judaica, Pedro escrevia para uma comunidade de Judeus, daí porque ele não precisava explicar muitas coisas, que os seus leitores já conheciam. No trecho dessa leitura, Pedro repete duas imagens que são recorrentes nos evangelhos sinóticos: o dia do Senhor virá como um ladrão e a precipitação dos céus para a terra, causando um grande incêndio que destruirá tudo. Devemos nos lembrar que as cartas de Pedro foram escritas antes dos evangelhos, portanto, não se pode dizer que ele retirou esse assunto da leitura dos evangelhos, mas sim, o oposto. Isso denota ainda que tais comentários deviam ser bastante corriqueiros nas comunidades cristãs primitivas.

Tirante aqui essa descrição das chamas, que tudo irão desintegrar, assunto já abordado em comentários anteriores, importa destacar que Pedro afirma isso no contexto da realização da promessa divina de que surgirão novos céus e nova terra, onde habitará a justiça. Deduz-se que essa imagem da destruição não deve ser compreendida no sentido físico, geográfico, mas no sentido da destruição do pecado e da injustiça, para cederem lugar à justiça que vem de Deus. É curioso observarmos o uso do plural em “novos céus” (no original grego, kainoús dé ouranoús), enquanto “terra” está no singular. Isso demonstra que Pedro acreditava na tradição judaica acerca da existência de sete céus (o primeiro, chamado Vilon, seria o local onde originalmente moravam Adão e Eva, de onde eles “caíram” para a terra, depois seguiam-se outros até chegar ao sétimo céu, que seria propriamente a morada de Deus). Dessa concepção, parte a idéia de que os céus “cairão” sobre a terra, porque essa era a noção geográfica daquela época. Visto que Pedro escrevia aos judeus, ele não precisava explicar com detalhes o que seriam esses céus, que seriam renovados. Referindo-se à terra (no original grego, gen kainen), aparece outra vez o adjetivo “kainos”, que significa algo inédito, extraordinário, nunca visto antes. Ou seja, a tradução de kainos por novo em português não indica toda a força que a palavra grega possui. Assim, os novos céus e a nova terra representam a idéia de um processo de depuração, de purificação, não sendo propriamente uma coisa que vem substituir outra, assim como nós passamos a usar um novo sapato e jogamos o outro no lixo. O novo tem aqui o sentido da renovação, de tomar algo que está velho e fazê-lo tornar-se novo outra vez. E acerca dos “sete” céus, esse conceito continua vigente no talmud judaico e significa uma espécie de local físico, embora muito elevado, porém não é compatível com o conceito de céu presente na doutrina teológica cristã.

Portanto, conforme escrevi acima, deixando de lado essa noção do sétimo céu como morada de Deus, a mensagem da carta de Pedro nos incentiva a vivermos na esperança da renovação prometida, cuja realização depende também do esforço de cada um de nós: “vivendo nessa esperança, esforçai-vos para que ele vos encontre numa vida pura e sem mancha e em paz.” Tal como Paulo fez em suas cartas, Pedro também adverte os cristãos mais apressados para que saibam esperar a vinda do Senhor, pois “para o Senhor, um dia é como mil anos e mil anos como um dia. O Senhor não tarda a cumprir sua promessa, como pensam alguns, achando que demora.” Percebe-se que tanto nas comunidades dos gentios quando nas comunidades judaicas, prevalecia uma expectativa de que Jesus retornaria “em breve”, ou seja, naqueles próximos dias, por isso tanto Paulo quanto Pedro ensinavam aos cristãos que não deviam ter pressa nem tentar adivinhar esse dia, mas que cada um permanecesse fiel e se mantivesse alerta e em prontidão. Passados mais de dois milênios e considerando a evolução dos conhecimentos científicos acerca do universo, devemos compreender esses “novos céus e nova terra” no sentido teológico espiritual, de modo que vivendo nessa “velha” terra o “reino de Deus”, estamos antecipando pela fé a vida na Jerusalém celeste, servindo como nosso guia nessa caminhada o evangelho de Cristo.

Na leitura do evangelho de Marcos (Mc 1, 1-8), vemos repetido o mesmo trecho do profeta Isaías, juntamente com a referência a João Batista, como aquele que foi enviado para preparar o caminho quando já estava próxima a chegada histórica de Cristo. Dizia João: já está no meio de vós aquele que virá depois de mim. Depois de mim virá alguém mais forte do que eu. Eu nem sou digno de me abaixar para desamarrar suas sandálias. Eu vos batizei com água, mas ele vos batizará com o Espírito Santo”. Aqui também devemos entender que esse trecho foi escrito muito depois da época de João, pois João ainda não conhecia a pessoa divina do Espírito Santo, a qual foi revelada somente depois, durante as pregações de Cristo. João teve uma antevisão do Espírito Santo em forma de pomba, por ocasião do batismo de Cristo por ele, mas isso não significa que ele tivesse tido uma antecipação da doutrina trinitária, que Jesus iria explicar aos apóstolos durante sua catequese com eles. A consciência do seu papel de precursor está bem expressa na metáfora de João sobre “desamarrar suas sandálias”. João tinha ciência de que a origem divina de Cristo e a missão que Ele ali iniciaria não tinha termo de comparação com o seu próprio trabalho. E sabe-se pela leitura de Mateus (3, 11) que João teria argumentado com Jesus: eu devo ser batizado por ti, mas tu vens a mim. E Jesus teria respondido: deixa assim por enquanto. Tudo devia acontecer de acordo com o plano do Pai e João era um importante personagem nesse plano.

Que nós saibamos, portanto, interpretar com sabedoria a temática bíblica posta diante de nós pela liturgia do advento, de modo a compreendermos sempre melhor o significado desse tempo religioso importante, mas que fica em geral obscurecido pelos apelos comerciais e emocionais relacionados com o natal da troca de presentes, desviando-nos do verdadeiro sentido do natal cristão.

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