domingo, 27 de setembro de 2015

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 26º DOMINGO COMUM - MONOPÓLIO DA FÉ - 27.09.2015

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 26º DOMINGO COMUM – MONOPÓLIO DA FÉ – 27.09.2015

Caros Leitores,

A liturgia deste 26º domingo coloca em pauta um assunto que o Papa Francisco, por diversas vezes, já citou publicamente: Deus está não apenas na Igreja Católica, mas no meio de todos os que o procuram de coração sincero, independentemente da crença religiosa. Esse é o grande tema teológico que embasa o ecumenismo, sobretudo no esforço de aproximação das grandes religiões monoteístas, que tem sido um dos pontos recorrentes nos discursos do Papa: cristianismo, judaísmo e islamismo. Ninguém possui o monopólio da fé. Essa exclusividade era uma doutrina teológica do passado, dos tempos apologéticos, porém o próprio Cristo reprova isso, conforme vemos no evangelho de Marcos.

A primeira leitura, retirada do livro dos Números (11, 25-29), narra um episódio ocorrido durante a caminhada pelo deserto, quando os israelitas chegaram ao monte Sinai. Depois de vários meses comendo perdizes, maná e frutos do deserto, o povo estava descontente, com saudade da comida que tinham no Egito, onde comiam carne fresca e legumes e começaram a murmurar contra Moisés. Então, Javeh desceu da nuvem e mandou Moisés separar 70 homens dentre os mais idosos do povo para formarem uma espécie de 'conselho' de anciãos. Moisés fez isso e, diz o livro dos Números, que Javeh “Retirou um pouco do espírito que Moisés possuía e o deu aos setenta anciãos. Assim que repousou sobre eles o espírito, puseram-se a profetizar, mas não continuaram.” (11, 25). Porém, o trecho mais curioso vem logo a seguir: dois anciãos, que não participavam daquele grupo, também receberam o espírito e passaram a profetizar no acampamento (Eldad e Medad). Os invejosos foram logo enredar a Moisés, como se eles estivessem fazendo algo errado, e Moisés deu-lhes um puxão de orelhas: que é isso? Estão com inveja? Josué chegou a pedir a Moisés que ordenasse que eles dois parassem de profetizar, ao que este respondeu: 'Tens ciúmes por mim? Quem dera que todo o povo do Senhor fosse profeta, e que o Senhor lhe concedesse o seu espírito!' (11,29). Josué era o “lugar tenente” de Moisés e talvez tenha se sentido diminuído porque ele próprio não recebera o dom de profetizar. É curioso observar como essa espécie de “ciúme” do dom do espírito continua a acontecer no meio de certas pessoas que atuam nos serviços paroquiais, cada uma disputando espaço e liderança, por vezes, até criando dissensões e inimizades.

Nesse mesmo sentido, segue a narrativa do evangelho de Marcos (9, 38-43), quando os discípulos vieram dizer a Jesus: “'Mestre, vimos um homem expulsar demônios em teu nome. Mas nós o proibimos, porque ele não nos segue'. Jesus disse: 'Não o proíbais, pois ninguém faz milagres em meu nome para depois falar mal de mim. Quem não é contra nós é a nosso favor.” Os discípulos certamente achavam que somente a eles, do grupo de seguidores próximos de Jesus, era dado o poder de expulsar demônios, mas Jesus fá-los ver que o Espírito sopra onde quer e ninguém pode inibir a ação do Espírito em sua liberdade total, ninguém manda no espírito, ninguém tem o monopólio da profecia. É lamentável que alguns grupos radicais dentro da própria Igreja não consigam perceber esse ensinamento de Cristo. Na semana passada, quando o Papa esteve visitando Cuba e teve um encontro com Fidel Castro, alguns católicos fanáticos estremeceram dos pés à cabeça e, no dia seguinte, fizeram uma manifestação de rua, propondo a volta do papa Bento, porque consideram que Francisco é o antipapa.

Ora, meus amigos, quando Jesus repreendeu os discípulos que haviam 'proibido' aqueles que não eram do grupo, para que não expulsassem demônios, era como se Jesus estivesse antevendo os diversos movimentos religiosos que iriam surgir, no futuro, as distorções que iriam fazer da sua doutrina, os diversos 'missionários' que se apresentariam em nome dele, prometendo curas e arrebanhando grupos mais ou menos numerosos de seguidores. Em outras palavras, o que Jesus propunha era uma religião enquanto modo de vida, Ele não mandou que fosse fundada uma 'organização' estruturada com cargos e hierarquias, ou seja, Ele não mandou que se constituíssem 'igrejas'. Estas foram surgindo de forma espontânea, com a reunião de fiéis em torno de um líder. De início, esse líder era um dos apóstolos, depois passou a ser uma pessoa a quem eles delegavam este poder, através da 'imposição das mãos' (ordenação), e assim foram sendo criados os vários 'cargos' internos: diáconos, sacerdotes, bispos, estruturando-se aos poucos uma hierarquia. Obviamente, essa organização é necessária e, ao longo do tempo, a Igreja tem dado demonstração da eficiência do seu modelo administrativo, apesar das inevitáveis vicissitudes, que decorrem da própria historicidade e da limitação dos seres humanos. Observando somente sob o aspecto puramente estrutural e formalista, não se pode negar a importância dessa organização, que vem atravessando séculos. Porém, não é essa a finalidade da Igreja, isso é o meio, o suporte, o objetivo último é a pregação do evangelho. E não se deve confundir os meios com os fins.

Quando se faz a reflexão sobre o monopólio da fé, a questão básica a ser enfrentada é: qualquer 'igreja' reproduz o ideal religioso proposto por Cristo? Ou somente uma delas, no caso a Igreja Católica Romana? E as outras religiões não cristãs, mas igualmente monoteístas, tais como o judaísmo e o islamismo, em que posição se enquadram? (Só uma observação necessária: falar em islamismo não deve ser confundido com o radicalismo do autodenominado Estado Islâmico, que pratica atrocidades em nome da religião, isso não representa todo o Islã). E as religiões orientais milenares, tais como o budismo, o bramanismo, taoísmo? O que dizer do espiritismo, do umbandismo, das vivências espiritualistas em geral, não ligadas a uma determinada religião? Pois é, Jesus disse claramente: quem não está contra nós, está a nosso favor. Há muito preconceito de parte a parte, reforçado ao longo dos séculos por lamentáveis acontecimentos, que dificultam as tentativas de reaproximação de todas essas formas de expressão religiosa, no entanto, a profecia de Cristo é que, um dia, haverá um só rebanho e um só pastor. Boa parte do sucesso desse empreendimento depende da forma como cada um de nós vive e pratica a sua fé.

Vemos na segunda leitura, retirada da carta do apóstolo Tiago (o irmão do Senhor) ensinamentos que parecem ser dirigidos para os donos do capital do mundo de hoje (Tg 5, 1-6): “o salário dos trabalhadores que ceifaram os vossos campos, que vós deixastes de pagar, está gritando, e o clamor dos trabalhadores chegou aos ouvidos do Senhor todo-poderoso.” Quantas pessoas ficam ricas e vivem luxuosamente como consequência de exploração do serviço dos irmãos, do aproveitamento inescrupuloso do poder social, da sonegação e dos desvios dos bens públicos em benefício próprio... contra esses o Apóstolo é bastante ríspido: “E agora, ricos, chorai e gemei, por causa das desgraças que estão para cair sobre vós. Vossa riqueza está apodrecendo, e vossas roupas estão carcomidas pelas traças. Vosso ouro e vossa prata estão enferrujados, e a ferrugem deles vai servir de testemunho contra vós.” Nesse mesmo sentido, expressou-se o papa Paulo VI , na encíclica Populorum Progressio (1967), quando disse: a terra foi dada a todos, ricos e pobres, não apenas aos ricos. Ninguém tem direito de reservar para seu uso exclusivo o que é supérfluo, enquanto para outros falta até o necessário. O Papa critica tanto o liberalismo sem freio, que conduziu ao imperialismo internacional do dinheiro, como a coletivização integral e a planificação arbitrária, que priva os homens da liberdade e dos direitos fundamentais da pessoa humana, isto é, tanto o capitalismo quanto o comunismo, pois são antiteticamente equivalentes.

Meus amigos, o desafio que a liturgia nos coloca é o de viver autenticamente a mensagem de Cristo, de forma honesta e objetiva, sem tentar adequá-la ao que é do nosso maior interesse. Se nos deixarmos levar pelos preconceitos, que ao longo do tempo fomos assimilando, corremos o risco de recair sobre nós aquela mesma repreensão que Cristo fez aos discípulos: não lhos proibais, porque quem não está contra nós, está conosco. Isso não quer dizer que agora cada um pode escolher a religião que lhe aprouver, como se todas são iguais, porque nós professamos uma fé e acreditamos nela. Significa, outrossim, que não podemos fazer discriminações de pessoas por motivos religiosos. Mais importante do que as denominações religiosas é a pureza do coração e a retidão da consciência, pois o monopólio da fé não foi dado a ninguém.

Que o Divino Mestre nos ajude a sermos autenticamente fiéis, para que a vivência da nossa religião não seja movida apenas pela tradição ou pelo costume.


domingo, 20 de setembro de 2015

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 25º DOMINGO COMUM - O FRUTO DA JUSTIÇA - 20.09.2015

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 25º DOMINGO COMUM – O FRUTO DA JUSTIÇA – 20.09.2015

Caros Leitores:

Na liturgia deste 25º domingo comum, desponta uma temática que está intimamente associada à missão que o Papa Francisco atualmente realiza, na sua viagem internacional a Cuba e aos Estados Unidos. A ideia está resumida na frase da epístola do apóstolo Tiago: “O fruto da justiça é semeado na paz para aqueles que promovem a paz.” (Tg 3, 18) Uma missão quase impossível, que o Papa Francisco tomou para si é essa: reconciliar Cuba e Estados Unidos, que entraram em crise de relações institucionais há 54 anos e agora, com a intermediação do Papa, o diálogo está reiniciando. Será um extraordinário ato de caridade para o povo cubano o resultado dessa negociação, o que representa também um pedagógico exemplo para os demais países latinoamericanos.

De uma forma simbólica muito oportuna, Platão colocou como subtítulo de sua conhecida obra “A República” a expressão “sobre a justiça”, pois desde os tempos mais remotos, os homens de bem sempre entenderam que o fruto da justiça é a paz. N primeira leitura litúrgica, retirada do Livro da Sabedoria, vemos também o tema da justiça, quando o sábio aborda as ciladas dos ímpios contra os justos. O livro da Sabedoria representa a tradição dos sábios do povo de Israel, aqueles ensinamentos consolidados com a prática continuada, que os mais idosos transmitiam para os mais jovens. A presença do justo incomoda o ímpio, porque faz este ver a própria maldade. Mesmo sem dizer palavras, o próprio comportamento do justo causa desconforto às pessoas maldosas que, por isso, buscam tramar contra o justo, armando-lhe ciladas: “Vamos pô-lo à prova com ofensas e torturas, para ver a sua serenidade e provar a sua paciência.” O justo incomoda o ímpio porque para este, a paz não interessa, e sim a realização dos seus propósitos escusos. Fazendo um paralelo com a visita do Papa, a sua presença no território dos países politicamente adversários deve ser bastante incômoda, isso não apenas no caso atual de Cuba e Estados Unidos, mas também quando ele visitou o Oriente Médio, onde se arrasta o infindável entre judeus e palestinos. Naturalmente, o Papa tem consciência disso, mas ele aproveita exatamente esse fato para “incomodar positivamente”, com o intuito de promover ações que resultem em bons frutos. É preciso ter muita coragem para agir assim, não é uma obra fácil. O Papa Bento esteve em Cuba, alguns anos antes, mas não enfrentou a crise política. O Papa Francisco, agora, aborda diretamente esse ponto super-sensível e, com o superior carisma que ele possui, faz isso com toda autoridade e com todo o reconhecimento do mundo inteiro, não apenas do mundo católico.

Na segunda leitura, o apóstolo Tiago demonstra claramente que a origem da injustiça, dos males sociais, das guerras, da insegurança, da violência que domina a sociedade de hoje, em todos os países, é a equivocada busca pelo poder material, político, financeiro. Diz o apóstolo: qual a origem das desavenças que há entre vós? É porque buscais primeiros os vossos interesses. Vós matais, invejais, maltratais e mesmo assim não conseguis o que quereis. O vosso problema é porque não pedis. Ou melhor, pedis mal, porque quereis somente aquilo que atende aos vossos interesses. Meus amigos, vemos nessa admoestação do apóstolo Tiago que esses equívocos que sufocam a humanidade atual são, na verdade, uma problemática muito antiga. Quando Platão escreveu uma teoria do Estado, colocando como subtítulo “a justiça”, queria ele dizer que a finalidade do poder político é promover a justiça, pois não era isso o que ele via na Grécia do seu tempo, governada por tiranos, mas entendia que esse deveria ser o objetivo a ser alcançado pelo verdadeiro Estado. Cronologicamente, Platão é bem mais antigo do que o apóstolo Tiago, além do que ambos viveram em localidades muito distantes uma da outra. No entanto, ambos tiveram a mesma intuição em relação à necessidade de se praticar a justiça, a fim de que vivamos numa sociedade pacificada. Apesar do decurso temporal de mais de dois milênios, desde que essas lições foram ensinadas, as pessoas que governam os povos ainda não as aprenderam ou delas desdenham.


No evangelho de Marcos, o evangelista continua a narração do episódio do domingo anterior, quando Jesus ia viajando a pé para Cafarnaum, já a caminho de Jerusalém, onde a sua missão iria se consumar, e ele ensinava aos discípulos as últimas lições da sua catequese. Depois daquele puxão de orelhas em Pedro, que foi sugerir a Jesus que não falasse assim, porque os discípulos ficavam embaraçados, Jesus prossegue e repete: é necessário ele eu vá a Jerusalém, onde serei torturado e morto, mas depois de três dias, ressuscitarei. Aí, diz o evangelista, eles não entendiam, mas ficavam com vergonha de perguntar e especulavam sobre a situação deles, como ficaria o grupo sem a presença de Jesus, como seria a hierarquia entre eles. Chegando em Cafarnaum, depois de acomodados em casa (o evangelista não diz de quem era a casa), Jesus puxou o assunto: sobre o que vocês conversavam enquanto estávamos caminhando? Eles ficaram calados e não quiseram responder, com medo do carão, que com certeza viria, pois Jesus sabia muito bem do que eles tinham conversado. Foi quando ele reuniu os doze e repassou a lição: aquele dentre vós que quiser ser o maior, seja o menor; o que quiser ser o primeiro, seja o último. Convenhamos, isso embaralhava ainda mais o entendimento deles. Como é que alguém poderia ser o primeiro, chegando por último? Como poderia ser maior se desvalorizando? Percebendo a confusão na mente deles, Jesus tomou uma criança e colocou no meio deles, para servir de exemplo. Sede como esta criança... Por que Jesus fez comparação com a criança? Ora, naquele tempo, as mulheres e as crianças não tinham vez na sociedade, acentuadamente machista e patriarcalista. Somente os homens adultos tinham direitos, tinham reconhecimento. Ao colocar a criança como exemplo, Jesus estava usando um recurso pedagógico para dizer: o pensamento de vocês está ao contrário. De acordo com a mentalidade dos judeus, uma criança não tinha direito a acolhimento, ela era subjugada ao pai (nem a mãe podia ter qualquer atitude). De acordo com a doutrina romana, que prevalecia na Galiléia naquele tempo, o pai tinha direito de vida e de morte sobre os filhos, sobre a esposa, sobre os servos, sobre os bois e cabritos, todos estavam no mesmo pé de igualdade.

Então, Jesus diz: quem não se tornar igual a uma criança, não terá lugar no Reino do Céu... aquele que acolhe uma criança, acolhe a mim, e quem acolhe a mim, acolhe o Pai que me enviou. Se algum de vós quer ser o primeiro, pois que seja o servo de todos. Ou seja, Jesus estava ensinando que a verdadeira justiça não faz distinção entre grandes e pequenos, ele próprio estava ali se colocando como o menor de todos. Foi o exemplo que ele deu na última ceia, quando passou o avental na cintura e foi lavar os pés de todos. Quando Jesus disse aos discípulos que seria preso, torturado e morto, para depois ressuscitar, ele estava indiretamente ensinando que por mais cruéis que sejam as maldades humanas, elas nunca superarão a justiça, a sua ressurreição seria (e foi) uma prova disso. Fez-me lembrar agora de uma composição de Roberto Carlos, de 1971, na qual ele dizia: “Tanta gente se esqueceu que o amor só traz o bem, que a covardia é surda e só ouve o que convém”, logo em seguida, ele faz um apelo para que Jesus venha ensinar tudo de novo, porque a humanidade ainda não aprendeu. Voltando ao tema da viagem do Papa, eu diria que ele está fazendo isso, ou seja, está ensinando novamente aquilo que Jesus ensinou dois milênios antes, mas as pessoas não aprenderam ou então já esqueceram: que a paz é fruto da justiça.

Para nós, cristãos, a leitura desses textos litúrgicos vem lembrar que, ao vivermos a nossa fé através da realização de boas obras, buscando em primeiro lugar o Reino de Deus, estaremos contribuindo para neutralizar a ganância do ter em demasia, do poder a qualquer custo. O Papa está fazendo isso. Diversos pontífices, antes dele, escreveram e discursaram sobre a justiça e a paz, mas pouco fizeram. O Papa Francisco não é muito de escrever e discursar, mas de fazer, de demonstrar. Meses atrás, ele convidou os líderes políticos do Oriente Médio e, juntamente com eles, plantou uma oliveira nos jardins do Vaticano. Fazer é muito mais do que falar. Agora, ele está fazendo a visita da paz no Caribe e na América do Norte, em mais uma notória demonstração de que a fé sem as obras não tem valor. Até parece o encontro de São Francisco com o lobo de Gubbio, pacificando a cidade e trazendo tranquilidade aos seus moradores. Que Deus ilumine os seus passos.

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COMENTÁRIO LITÚRGICO - 24º DOMINGO COMUM - VADE RETRO - 13.09.2015

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 24º DOMINGO COMUM – VADE RETRO – 13.09.2015

Caros Leitores,

Na liturgia deste 24º domingo comum, o evangelista Marcos destaca uma ríspida resposta de Cristo a Pedro, que foi falar-lhe coisas inconvenientes: vade retro, satanas (afasta-te, vai-te embora, satanás), uma das poucas demonstrações de atitudes de Cristo em que se vislumbra o quanto o seu lado humano, por vezes, conflitava com a fidelidade à missão que ele viera realizar. Outra vez, foi no Jardim das Oliveiras, quando ele suou sangue. Esse episódio representa de forma bem eloquente a presença em Cristo das naturezas divina e humana e mostra que, enquanto humano, ele sofria mesmo, não apenas fingia sofrimento, como afirmaram os seguidores do docetismo, nos primeiros tempos do cristianismo.

A primeira leitura, extraída do profeta Isaías (50, 5-9), apresenta os versos clássicos do servo sofredor, fazendo eco com a narrativa do evangelista Marcos (8, 27-35), quando Jesus falava para os discípulos dos sofrimentos pelos quais deveria passar, como parte integrante da sua tarefa messiânica, antecipando os acontecimentos que estavam por vir. Essa parte do livro de Isaías, chamada de deutero-Isaías, foi escrita durante o cativeiro da Babilônia, daí as referências ao sofrimento do povo, junto com as exortações de penitência e de confiança em Javeh, que na hora certa virá libertá-los. O servo sofredor do exílio babilônico é a premonição do futuro Messias, que irá personificar de forma plena esta figura, através da sua paixão e morte, para nossa redenção. A profecia de Isaías impressiona pela riqueza de detalhes com que seu autor descreve o futuro sofrimento do Messias, através de citações verdadeiramente inspiradas, que se confirmaram com elevada precisão.

Acerca desse tema do sofrimento de Cristo, é valioso recordar uma temática que foi objeto de múltiplas polêmicas, nos primeiros séculos do cristianismo, acerca da natureza humana e também divina de Cristo. Enquanto Ario (fundador do arianismo) afirmava que Cristo não era igual a Deus, pois era filho e, portanto, subordinado a ele e hierarquicamente inferior, de outro lado havia os cristãos gnósticos, que afirmavam que Jesus tinha apenas uma aparência humana, quando na verdade, ele era Deus e o seu corpo humano era só uma ilusão de ótica. Essa doutrina era chamada de docetismo e afirmava que Cristo de fato não sofreu nada, a paixão foi toda uma grande encenação de sofrimento, pois sendo Deus, ele não poderia sofrer. Desnecessário dizer que ambas as doutrinas foram rejeitadas como heresias, pois a doutrina que se consolidou nas discussões acerca da pessoa de Jesus foi a de que ele possuía duas naturezas (divina e humana) sendo assim, verdadeiramente, Deus e homem, ou seja, ele sofreu de verdade como qualquer ser humano sofreria todas aquelas torturas, feridas, dores, enfim, tudo o que é tipicamente humano.

Pois bem, esse prólogo tem como finalidade esclarecer o diálogo de Pedro com Jesus, conforme está narrado no evangelho de Marcos (8, 27-35), sobre os episódios da vida de Cristo que antecedem sua ida a Jerusalém, onde viria a ser sacrificado. Após três anos de catequese diária com os discípulos, Jesus vendo aproximarem-se os seus dias finais, foi fazer uma espécie de pré-teste, como se diz no vocabulário moderno, um exame simulado, para saber como estava o entendimento do seu grupo acerca da sua pessoa. Ele começa perguntando por longe: quem as pessoas dizem que eu sou? Jesus não queria saber o que o povo pensava dele, mas o que os discípulos pensavam, mas pedagogicamente começou com uma pergunta bem genérica. Eles responderam: uns dizem que é João Batista, outros que é Elias ou algum dos profetas que ressuscitou. Então, Jesus vai direto ao ponto: e vocês, o que dizem? Antes que alguém respondesse, Pedro saiu na frente: Tu és o Messias. Eu não gosto dessa tradução da CNBB, porque na tradução de São Jerônimo, o texto está coerente com o termo original do grego: tu és o Cristo, então acho que assim devia ser mantida essa tradução. Embora se trate de conceitos sinônimos, penso que é mais correto conservar o original, por uma questão de fidelidade ao texto, já que não dificulta a compreensão.

Ao ouvir a confissão de Pedro, diz o evangelista Marcos que “Jesus proibiu-lhes severamente de falar a alguém a respeito.” Em seguida, passou a dizer-lhes que “devia sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e doutores da Lei; devia ser morto, e ressuscitar depois de três dias.” Pedro, que era sempre muito falastrão, se meteu de novo na conversa, chamou Jesus um pouco ao lado e foi pedir-lhe para não falar essas coisas, porque nada disso iria lhe acontecer. Parece que Pedro tinha receio que as pessoas, ouvindo aquilo, começassem a se desiludir de segui-lo, porque muitos dos que o ouviam tinham a esperança de que Jesus fosse liderar uma rebelião contra os romanos, para expulsá-los do território da Judéia. Inclusive dentro do grupo dos apóstolos, a missão de Cristo não era bem entendida, aliás foi percebendo isso mesmo que Jesus começou esse diálogo incômodo e desgastante, mas necessário. Imaginemos que, para Jesus, era também muito constrangedor ficar falando nessas coisas, porque ele sabia da extensão dos acontecimentos, sabia das agruras pelas quais ia passar e a sua natureza humana entrava em conflito com a sua vontade divina, não devia ser nada confortável para Jesus ficar tocando nesse assunto tão delicado. Daí porque ele não gostou nada quando Pedro foi insinuar que ele não devia falar aquilo. Ora, ele já falava com grande esforço e superando enormes dificuldades, e ainda tendo de escutar alguém tentando desvanecê-lo daquela idéia, aquilo passou dos limites. A reação de Jesus foi bastante ríspida, até mesmo com certa violência verbal: ýpage opíso mou, satana, diz o texto grego, que São Jerônimo traduziu por vade retro me, satanas. Essa expressão equivale a uma daquelas que nós dizemos quando estamos com raiva de alguém: vai pro raio que o parta... ou algo assemelhado. E Jesus ainda chamou Pedro de 'satanás', por isso convém explicar também isso. Essa palavra satanás, no nosso idioma, adquiriu o sentido de demônio, porém, o seu sentido original é bem mais brando. Na verdade, trata-se de uma palavra original do hebraico (satan), transliterada em grego, isto é, não é uma palavra da língua grega, e o seu significado próprio é adversário, inimigo, opositor. Então, é como se Jesus estivesse chamando Pedro de inimigo dele, porque estava dificultando o cumprimento da sua missão, não de demônio. A irritação de Jesus também pode ser entendida se imaginarmos que ele sabia que um dos componentes do grupo estava ali com outros objetivos, então aquele puxão de orelhas que Pedro levou tinha também o objetivo de atingir, mesmo que indiretamente, Judas Iscariotes. Ademais disso, conforme já referi antes, essa atitude encolerizada de Jesus ressalta o seu lado humano, o lado emotivo, o sangue que esquenta diante de uma situação desagradável, enfim, a natureza humana de Jesus.

Podemos fazer aqui um link com a segunda leitura, do apóstolo Tiago (2, 14-18), onde ele fala que a fé autêntica não é válida sozinha, mas deve estar sempre acompanhada pelas obras: “a fé, se não se traduz em obras, por si só está morta.” Encontramos atitude similar nos ensinamentos e nos exemplos que Jesus deixou. Nas várias parábolas que utilizou, ele sempre ressaltou a importância da ação, como fato exterior que acompanha o ato interior do cumprimento dos mandamentos. É isso que confirma o apóstolo João na sua carta: Se alguém diz: Eu amo a Deus, e odeia a seu irmão, é mentiroso. Pois quem não ama a seu irmão, ao qual viu, não pode amar a Deus, a quem não viu.” (1Jo 4, 20) Em relação aos sofrimentos associados à sua missão redentora, ele poderia muito bem ter operado um grande milagre, não se submeter a tantos padecimentos. Se observarmos bem, esse era o tema das “tentações” que Jesus sofreu quando se preparava para começar a sua vida de pregador e foi fazer um retiro no deserto. “Pra que isso?”, dizia-lhe o tentador? Por que não chamas teus anjos para te levarem nos braços... por que não ordenas a essas pedras que se transformem em pão para saciar a tua fome... porque... era o conflito interno que se passava na mente dele. Era muito mais simples e rápido obrar um milagre, como um passe de mágica, e tudo estaria resolvido. Mas assim ele não estaria sendo fiel ao mandato do Pai. Aquilo tudo era doloroso ao extremo, mas precisava ser enfrentado. Por isso, aquela insinuação de Pedro ecoou tão forte e perfurou tão fundo, como um grande espinho de mandacaru. “Sai pra lá”, foi mais uma tentação que ele precisou superar, para o correto exercício da sua messianidade.

Meus amigos, às vezes, precisamos dizer também “vade retro” para diversas pessoas e situações, a fim de nos mantermos fiéis à nossa missão Que o divino Mestre nos ilumine nas nossas tarefas de cada dia, para sabermos sempre discernir e seguir fielmente a missão que Deus nos deu.

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domingo, 6 de setembro de 2015

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 23º DOMINGO COMUM - AOS DESANIMADOS - 06.09.2015

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 23º DOMINGO COMUM – AOS DESANIMADOS – 06.09.2015

Caros Leitores,

Neste 23º domingo comum, a mensagem do profeta Isaías se dirige aos desanimados: criai ânimo, não tenhais medo. Esta exortação do Profeta aos israelitas, que aguardavam a sua libertação do cativeiro da Babilônia, bem se aplica aos nossos conturbados tempos. O panorama geopolítico, tanto no nível nacional quanto no internacional, causa-nos grande apreensão e medo. Quem será o portador da recompensa, que vem de Deus, prometida pelo Profeta? As ondas migratórias, na Europa e na América Latina, deixam-nos em dúvida quanto à eficiência dos modelos políticos e administrativos aplicados nos países subdesenvolvidos, desafiam a nossa crença na recuperação da humanidade.

O profeta Isaías, na primeira leitura (35, 4-7), procura animar os desiludidos israelitas, vencidos pelo cansaço de um cativeiro que já demorava vários anos, e se entregavam às lamentações e aos impropérios contra Javeh, que os tinha abandonado: até quando teremos de suportar tal castigo? por onde anda o Messias prometido? E o Profeta os consolava: “Vede, é vosso Deus, é a vingança que vem, é a recompensa de Deus; é ele que vem para vos salvar”. De fato, pouco tempo depois, o messias político esperado para libertá-los chegou: foi o rei Ciro, da Pérsia, que derrotou o rei da Babilônia, Nabucodonosor, e libertou os judeus, que assim puderam retornar à sua terra. E diz mais o profeta Isaías:“Então se abrirão os olhos dos cegos e se descerrarão os ouvidos dos surdos …  brotarão águas no deserto e jorrarão torrentes no ermo.” Assim aconteceu, quando eles retornaram para a terra de Israel. Só que este messias-Ciro apenas de muito longe lembrava a figura do futuro Messias, que iria libertar não só o povo judeu, mas todo a raça humana da escravidão do pecado e da morte. Por isso, naquela ocasião, dizia o Profeta: 'criai ânimo' porque logo logo virá a recompensa de Deus, que nos vem salvar. A Bíblia tem sempre um sentido histórico e outro transistórico, e assim, no primeiro momento, a profecia se referia ao messias-Ciro da Pérsia, mas no sentido do futuro, ao Messias-Cristo. Ciro não tinha o poder de devolver a visão aos cegos nem a deambulação aos coxos nem de soltar a língua dos mudos, mas o Profeta previu que isso aconteceria quando viesse o Messias verdadeiro. E sucedeu realmente como ele previra.

Na leitura do evangelho de Marcos (7, 31), temos a concretização da profecia de Isaías na ação histórica do verdadeiro Messias, através da narração do episódio da cura de uma pessoa surda e gaga. Ele colocou os dedos nos ouvidos moucos dele e com Sua saliva, molhou a língua trôpega do felizardo, e depois pronunciou a palavra forte “ephatá”, a qual o próprio evangelista explica que significa 'abre-te'. E logo aquele que era surdo e gago transformou-se num incontrolável falante/ouvinte. E quanto mais Cristo pedia para que ele se calasse, mais ele falava e proclamava as maravilhas realizadas nele. Esta palavra foi escrita por São Jerônimo, no texto latino, como 'ephphetha', enquanto no texto grego está escrito “effathá”, certamente por isso a tradução da CNBB utiliza o termo 'efatá' e eu estou usando com o símbolo antigo do F=PH, para distinguir com um sentido especial.

Meus amigos, este ephatá pode ser entendido de múltiplos modos. No sentido próprio utilizado por Cristo na ocasião do milagre, significou para o surdo-gago o abrir-se fisiológico dos seus ouvidos e da sua glote, para que ele pudesse articular sons e ouvi-los. Mas no sentido figurado, que se refere a nós, o ephatá se dirige à nossa mente, ao nosso coração, à nossa vontade, ao nosso intelecto. Cristo está nos dizendo 'abre-te' para que possamos compreender melhor a nossa missão e assim podermos melhor testemunhar a nossa fé. Esse seria o significado intelectual do ephatá. Saber interpretar com maior clareza a palavra de Cristo dentro dos desafios que a vida social nos coloca a cada dia, em meio a tantas e tão variadas dissensões, alternativas, exigências, falsas promessas e diversas quimeras que nos rodeiam. Abrir a nossa mente para compreendermos de que modo o nosso viver pode dar testemunho de que somos a Igreja de Cristo no meio do mundo, com a maior naturalidade e sem afetação. Nesse contexto, vale aqui uma referência ao grande problema mundial das migrações, tanto na Europa quanto na América Latina. Pessoas que deixam tudo por motivos de guerra ou por motivos econômicos e partem em busca de novos horizontes. Uma parte deles tem sorte e consegue chegar ao seu destino; outros terminam suas vidas nessa rota de travessia, ao enfrentarem os mais variados desafios. Nessa última semana, correu pelo mundo a imagem de um menino sírio, que morreu afogado ao tentar chegar à Europa, junto com sua família, que conseguiu salvar-se. O Papa Francisco, numa demonstração de profetismo contemporâneo e de inigualável solidariedade cristã, apelou para que cada diocese e cada paróquia da Europa aceitasse dar amparo a uma família em processo migratório, pois as autoridades locais estão simplesmente fechando-lhes todas as portas. Inclusive, amanhã (7/9), o Papa escolheu para ser um dia de orações e jejum pela paz na Síria, paz no Oriente, paz no mundo, e ainda pela receptividade do povo sírio, que se desloca pelo mundo. O ephatá do evangelho de Marcos vem nos alertar para, ao menos no plano espiritual, abrirmos o nosso entendimento e o nosso coração em prol desses irmãos desafortunados.

Um outro sentido que podemos descobrir no comando ephatá, associado ao anterior, é o volitivo, quando a mensagem cristã nos convida a ser solidários com os que nos estão mais próximos. E aqui eu trago à colação a segunda leitura, retirada da carta de São Tiago (2, 1), que vai direto ao assunto, sem rodeios, dando um exemplo que até parece estar se referindo aos dias de hoje: “ imaginai que na vossa reunião entra uma pessoa com anel de ouro no dedo e bem vestida, e também um pobre, com sua roupa surrada, e vós dedicais atenção ao que está bem vestido, dizendo-lhe: 'Vem sentar-te aqui, à vontade', enquanto dizeis ao pobre: 'Fica aí, de pé', ou então: 'Senta-te aqui no chão, aos meus pés'.” Mais direto, impossível. Quantas vezes, isso pode ter acontecido conosco, por não estarmos com a mente aberta para perceber além das aparências, além das etiquetas sociais. Um pobre que bate à nossa porta pedindo um pouco de alimento tem a mesma dignidade como pessoa do q ue um profissional liberal que nós recebemos na nossa casa de portas abertas. Não estou dizendo que se deva deixar entrar em sua casa qualquer pessoa desconhecida, pois a cautela também faz parte da vida do cristão. Refiro-me à atitude de falta de respeito humano com que, muitas vezes, vemos as pessoas mais humildes serem tratadas por outros e até por nós mesmos. Infelizmente, há cristãos que se orgulham de ser católicos de carteirinha (até mesmo sacerdotes) e tratam mal as pessoas de vestes maltrapilhas ou surradas, usando a expressão do apóstolo Tiago. Daí a exortação dele: “a fé que tendes em nosso Senhor Jesus Cristo glorificado não deve admitir acepção de pessoas”, isto é, não deve permitir que sejamos injustos com pessoas menos favorecidas, exatamente aquelas mais precisadas.

Num terceiro sentido, que eu chamaria de afetivo, o conceito de ephatá nos leva a refletir sobre a nossa abertura interior para compreender a nossa missão, o que Deus quer de nós. Estar aberto à graça divina é condição indispensável para que esta graça opere em nós. Deus não nos obriga, não nos impõe, não vem a nós em qualquer condição, mas apenas quando encontra a porta da nossa alma aberta para recebê-Lo. Os teólogos, desde S. Tomás de Aquino, sempre foram acordes em reconhecer que Deus dá a sua graça a todas as pessoas, no entanto, para que esta graça seja eficaz, é necessário que estejamos abertos, disponíveis, atentos, desejosos de recebê-la. Deus nos dá a graça da salvação, porém, sem a nossa colaboração, sem a nossa disponibilidade, sem que façamos a nossa parte, esta graça não operará seus efeitos em nós. Estar aberto à graça divina é condição indispensável para que ela penetre em nós e nos faça verdadeiros filhos d'Ele.

Na terça feira próxima, dia 8 de setembro, tínhamos no Seminário a festividade de Nossa Senhora do Brasil, na ocasião também comemorávamos o onomástico do Frei Mariano, que na minha época, foi Diretor ali. Que a Nossa Mãe do Brasil fortaleça na fé todos os que por lá passaram e nos ajude a manter sempre a nossa mente e o nosso espírito disponíveis à graça divina, assim como Ela fez e que tornou possível a nossa redenção.

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