domingo, 30 de outubro de 2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 31º DOMINGO COMUM - CORRIGIR COM CARINHO - 30.10.2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 31º DOMINGO COMUM – CORRIGIR COM CARINHO – 30.10.2016

Caros Leitores,

A liturgia deste domingo nos convida a refletir sobre a atitude que devemos ter para com aqueles irmãos que erram, aqueles que procedem mal e causam transtornos e dificuldades nas relações interpessoais. Na antiguidade, havia duas categorias de pessoas, que eram consideradas pecadores públicos e todos os evitavam: as prostitutas e os cobradores de impostos. De acordo com a tradição do povo hebreu, essas pessoas estavam irremediavelmente perdidas e nem podiam disfarçar as maldades que cometiam. No entanto, Jesus mostrou com suas atitudes uma outra maneira de nos relacionarmos com os irmãos 'pecadores', como é exemplificativo o episódio do seu encontro com Zaqueu, narrado no evangelho.

Na primeira leitura, extraída do livro da Sabedoria (Sb 11,22 – 12-2), vemos uma imagem de Javeh misericordioso, que de todos tem compaixão, que fecha os olhos para os pecados dos homens, a fim de que se arrependam. Diz o escritor sagrado: “A todos, porém, tu tratas com bondade, porque tudo é teu, Senhor, amigo da vida… É por isso que corriges com carinho os que caem e os repreendes, lembrando-lhes seus pecados, para que se afastem do mal e creiam em ti, Senhor.” (11,26-12,2) Este livro, cuja autoria é atribuída pela tradição a Salomão, embora haja controvérsias, reproduz a histórica cultura dos hebreus numa época de grande influência do pensamento grego materialista e imanentista no ambiente dos judeus residentes nas cidades de língua grega, muitos dos quais renegavam as suas origens para aderirem à nova cultura. O que se observa de mais curioso na leitura deste livro é a imagem de Javeh compassivo, diferente daqueloutra figura transmitida em outros textos antigos, mostrando um Deus irritado e vingativo. O autor sapiencial destaca a misericórdia de Javeh e o cuidado especial que ele dedica aos que se desviam do bom caminho, numa alusão antecipada da conduta que Cristo iria praticar com aqueles mais desprezados da comunidade judaica. E o hagiógrafo justifica essa atitude misericordiosa de Javeh da seguinte maneira: “Sim, amas tudo o que existe, e não desprezas nada do que fizeste; porque, se odiasses alguma coisa não a terias criado.” (11, 24) Jesus Cristo, tempos depois, faz uma outra afirmativa nesse mesmo sentido, quando explica: “Os sãos não necessitam de médico, mas os enfermos, sim. “(Mt 9, 12) As pessoas que, por algum motivo, vieram a desviar-se dos seus compromissos cristãos não devem ser alijados e evitados, mas atraídos de novo para o núcleo do rebanho.

Na segunda leitura, retirada da carta 2 de Paulo aos Tessalonicenses (1,11 – 2,2), o apóstolo exorta delicadamente os cristãos daquela cidade sobre certas inverdades que ali foram divulgadas, numa espécie de carta a ele atribuída, contendo informações duvidosas acerca da vinda de Cristo, fato que perturbou alguns fiéis e os levou até a abandonarem os trabalhos só esperando a vinda de Cristo. Assim, ociosos, dedicavam à maledicência e à preguiça. O Apóstolo chama a atenção deles para que prossigam regularmente com as suas atividades, porque a vinda de Cristo deve ser aguardada como um fato da vida ordinária, não se justificando o afastamento das atividades próprias de cada um, pois isso tramaria contra os ensinamentos do próprio Cristo. Naquela comunidade, havia um grande contingente de judeus adversários do cristianismo, que espalhavam notícias falsas e conseguiam convencer os cristãos de fé vacilante. Porém, Paulo sabia que não podia adotar críticas drásticas, pois isso contribuiria para uma maior divisão interna dos fiéis. Por isso, ele usa palavras bem cordiais para advertir os mais incautos e desse modo reconquistar-lhes a confiança. Diz ele, no cap. 3, 14-15 (não incluído na leitura de hoje): “Se alguém desobedecer ao que dizemos nesta carta, marquem-no e não se associem com ele, para que se sinta envergonhado; contudo, não o considerem como inimigo, mas chamem a atenção dele como irmão.” O nosso povo sertanejo tem um ditado popular, que bem se encaixa nesse contexto: “quem quer pegar a galinha, não diz xô”. A advertência ao irmão que errou não pode chegar ao ponto de distanciá-lo ainda mais do verdadeiro caminho.

Na leitura do evangelho de Lucas (19, 1-10), essa atitude de perdão compassivo da parte de Jesus está exemplarmente mostrada no episódio envolvendo Zaqueu, o cobrador de impostos de Jericó. Os publicanos, como eram chamados esses profissionais, eram odiados pela população das cidades judaicas dominadas pelos romanos, porque os consideravam traidores do povo, visto que estavam a beneficiar o inimigo com suas cobranças, além de eventualmente praticarem a extorsão e até de se apropriarem do que recolhiam. A figura do cobrador de impostos é escarnecida em todas as épocas históricas, como exemplo de arrogância, ganância, insensibilidade, desfaçatez, arbitrariedade, todos os tipos de maldades. Zaqueu não foi o único desses profissionais aos quais Jesus deu uma atenção especial. Mateus também era publicano e Jesus o interpelou de forma inapelável: segue-me! E ele se tornou um dos doze discípulos. No caso de Zaqueu, a iniciativa foi deste ao querer conhecer Jesus.

Há uma curiosidade etimológica a ser destacada aqui, em relação ao nome de Zaqueu, que se escreve em hebraico “zakkay” e significa puro, justo. Contraditoriamente à sua profissão, o seu nome indicava as virtudes que ele devia possuir, embora estas ficassem obscurecidas pela sua atividade rotineira. Mas Jesus sabia o que se passava na sua alma, quando ele subiu na figueira, para poder vê-Lo, já que era de baixa estatura e havia grande multidão ao redor de Jesus, naquela sua passagem por Jericó. Zaqueu não podia perder aquela oportunidade, pois não sabia quando isso iria acontecer novamente, porém jamais esperava vê-Lo assim tão de perto, tencionava olhar de cima da figueira e passar despercebido de Jesus e da multidão. Qual não foi o seu espanto, quando Jesus o chamou pelo nome e ordenou que descesse. Como Jesus sabia o nome dele, pois nunca o tinha visto? E a sua surpresa maior ainda estava por vir, quando Ele falou: hoje vou hospedar-me na tua casa. Zaqueu tinha consciência fama associada à profissão que exercia e não se sentia digno de aproximar-se de Jesus, quanto mais de recebê-lo na própria casa. O autoconvite de Jesus para visitar a casa de Zaqueu desmontou totalmente as suas estruturas psicológicas: eu não sou digno disso, vou ter que fazer algo para merecer, algo em retribuição a tamanha distinção. E então declarou: vou distribuir metade dos meus bens para os pobres e retribuir em quádruplo para quem eu tenha fraudado. E Jesus arrematou: hoje entrou a salvação nesta casa, porque também este homem é filho de Abraão.

Meus amigos, a imagem de Zaqueu simboliza o arrependimento do pecador diante da misericórdia de Deus. Se Jesus tivesse aplicado a ele uma repreensão, como provavelmente os fariseus esperavam, quando Jesus mandou que ele descesse, a reação de Zaqueu teria sido de distanciamento e de raiva. No mundo religioso hipócrita dos fariseus, não havia espaço para um pecador público. Eles deviam pensar que, naquela cidade, havia tantas pessoas boas, honradas e dignas, que poderiam muito bem hospedar Jesus e se sentiriam sumamente prestigiadas com isso. Porque Jesus vai escolher a casa de um publicano para visitar e hospedar-se? Pois é, dentro da lógica humana (e do próprio Zaqueu, que não imaginava que isso fosse acontecer), ele estaria excluído dos “bem-aventurados” referidos no sermão da montanha, mas dentro da lógica de Cristo, a ele foi ofertada a salvação e ele muito que aceitou.

O Papa Francisco, no sermão para os fiéis que estavam na Praça de São Pedro, fez o seguinte comentário, a propósito desse evangelho: Não existe profissão ou condição social, não há pecado ou crime de qualquer gênero que possa cancelar da memória e do coração de Deus um filho sequer. “Deus recorda, sempre, não esquece nenhum daqueles que criou; Ele é Pai, sempre à espera vigilante e amorosa de ver renascer no coração do filho o desejo de retornar à casa. E quando reconhece este desejo, mesmo que simplesmente manifestado, e tantas vezes quase inconsciente, imediatamente põe-se a seu lado, e com o seu perdão lhe torna mais leve o caminho da conversão e do retorno.O convite que Jesus fez a Zaqueu, ignorando que ele era um pecador público e, como filho de Abraão, era também digno da salvação, enche de esperança a todos nós, que ainda estamos na “grande tribulação” e, portanto, sujeitos às maiores adversidades no cumprimento fiel à nossa vocação cristã. A atitude de Cristo é a certeza de que, em qualquer circunstância, ele não levará em consideração as nossas fraquezas, mas a intensidade da nossa fé.

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domingo, 23 de outubro de 2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 30º DOMINGO COMUM - ORAÇÃO E HUMILDADE - 23.10.2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 30º DOMINGO COMUM – ORAÇÃO E HUMILDADE – 23.10.2016

Caros Leitores,

As leituras da liturgia deste 30º domingo comum nos levam a meditar sobre a atitude interior que devemos ter, quando oramos. A oração supõe sempre uma confissão de impotência e um sentimento de humildade. A oração do humilde atravessa as nuvens e não passará despercebida pelo Senhor. Ele é um justo juiz, que consegue sondar os nossos sentimentos mais profundos e é inútil tentar camuflar o orgulho e a autossuficiência com palavreados sonoros e encenações caprichosas. Orar somente com os lábios, sem a humildade do espírito, é igual ao címbalo que tine: faz grande barulho, mas seu interior é oco, sem conteúdo.

Na primeira leitura, extraída do livro do Eclesiástico (35, 15-22), temos a descrição de Javeh como o justo juiz, aquele que não faz distinção entre as pessoas nem usa de parcialidade nos seus julgamentos. O livro do Eclesiástico, cuja autoria é atribuída a Jesus Ben Sirac, foi escrito para lembrar aos hebreus, numa época de mudanças sócio políticas, a fidelidade de Javeh contida na Lei de Moisés, que é a verdadeira sabedoria divina. Esta expressão “lei de Moisés” não significa um texto legislativo específico, mas refere-se à aliança e à promessa de Javeh com Abraão e seus descendentes, lembrando ao povo que não podem misturar o judaísmo tradicional com os novos costumes dos povos estrangeiros, porque isso deturpa a aliança celebrada com os antigos patriarcas. Sendo um justo juiz, o Senhor não deixa de atender às preces daqueles que o invocam, sobretudo os excluídos da sociedade (pobres, órfãos e viúvas), os mais humildes. “A prece do humilde atravessa as nuvens: enquanto não chegar não terá repouso; e não descansará até que o Altíssimo intervenha, faça justiça aos justos e execute o julgamento.” (Eclo, 35, 21) O Senhor não se deixa levar pelas aparências, mas perscruta a nossa interioridade, atendendo aos que o procuram com coração sincero e humilde. Esta referência do Eclesiástico irá encontrar eco, tempos depois, na oração do publicano, que Jesus compara com a oração do fariseu, no trecho do evangelho de Lucas, lido também neste domingo.

A segunda leitura, dando continuidade ao texto da segunda carta a Timóteo, iniciada nos domingos anteriores (2Tim 4, 6-18), é o epílogo da carta, no qual Paulo comenta que combateu o bom combate, terminou a carreira e guardou a fé. Tendo cumprido a sua missão, recebida de Cristo, ele agora espera apenas o desfecho final de sua vida, sabendo que o seu sacrifício está cada vez mais próximo. E faz sua confissão de fé e confiança no Senhor, justo juiz, que outorgará a coroa da vitória a ele e a todos os que permanecerem firmes na fé. Fala ainda, com tristeza, dos amigos que o abandonaram no seu julgamento perante o tribunal, pedindo que o mesmo justo juiz não leve isso em conta, quando chegar o tempo do julgamento deles. Segundo os historiadores, esta carta teria sido, provavelmente, a última escrita por Paulo, pouco antes de sua morte, na época da grande perseguição dos cristãos pelo imperador Nero, que mandou incendiar a cidade de Roma e colocou a culpa disso nos cristãos, insuflando os romanos a persegui-los. Numa época de grandes arbitrariedades cometidas pelo imperador Nero, que usava os cristãos como bodes expiatórios dos seus próprios desmandos, Paulo aproveita a imagem do sádico imperador para fazer o contraponto com o justo juiz, que é o Senhor, e que dará a coroa a todos os que combatem o bom combate. A queixa de Paulo sobre ter sido abandonado na prisão em Roma, segundo os historiadores, deveu-se ao fato de que, com a grande perseguição, os amigos de Paulo na sociedade romana, que eram cristãos em sigilo, tinham muita dificuldade em ir visitá-lo, por causa dos evidentes riscos que isso acarretava.

Na leitura do evangelho deste domingo, dando sequência ao evangelista Lucas (18, 9-14), temos a muito conhecida parábola em que Jesus faz a comparação entre a oração do fariseu e a oração do publicano (cobrador de impostos). De acordo com o próprio evangelista, o objetivo que Jesus tinha em mente era ensinar que não se deve confiar nos próprios julgamentos, nem a respeito de si nem a respeito dos outros. A cena descrita é clássica: o fariseu orgulhoso e arrogante reza fazendo autoelogios e, ao mesmo tempo, lançando um ar de desdém para o publicano, pecador público, que estava rezando ao seu lado. Enquanto isso, o publicano, em atitude de humildade, rezava apenas pedindo perdão. Como em diversas outras ocasiões, Jesus toma o exemplo do fariseu para nos ensinar que as ações exteriores não bastam, mas é necessário que essas sejam o reflexo do nosso sentir interior. Os fariseus se consideravam justos e automaticamente salvos, porque cumpriam rigorosamente a lei (“jejuo duas vezes por semana e dou o dízimo de toda a minha renda”), mas faziam assim apenas para serem vistos e elogiados pelos outros, isso não correspondia a um sentimento íntimo de piedade e de convicção. Por isso, tal oração não tinha nenhum valor.

Observemos que Jesus não diz que o fariseu agia mal em cumprir a lei, pois a lei é mesmo para ser cumprida. O problema está no julgamento que o fariseu fazia de si próprio, ou seja, na sua falta de humildade. O livro do Eclesiástico, conforme visto na primeira leitura, já dizia que a prece do humilde atravessa as nuvens e chega até o céu e suas súplicas são sempre atendidas. O fariseu da parábola tinha uma elevada presunção de santidade, segundo a sua própria justiça, não segundo a justiça divina. E com a mesma facilidade com que julgava a si mesmo uma pessoa santa, também arriscava-se a julgar o seu próximo, pecador público, como alguém que não merecia a salvação e o perdão. Ora, diz Jesus, o publicano voltou para casa justificado; o fariseu, não.

Podemos fazer aqui uma ligação com outra parábola na qual Jesus compara a oferta da viúva com a oferta do fariseu (Marcos 12, 43), quando a viúva colocou apenas duas pequenas moedas, enquanto o fariseu depositou vários dobrões, que tilintavam no fundo do cofre. E Jesus concluiu: a viúva ofertou mais do que o outro, porque ela deu tudo o que possuía. Enquanto o fariseu doava o que lhe sobrava, a viúva doava toda a sua fortuna. Seguindo a mesma linha de raciocínio do parágrafo anterior, Jesus não censura o fariseu por colocar moedas valiosas, mas recrimina o modo como ele se considera autêntico cumpridor da lei, porque dá o dízimo de toda a sua renda. O problema não está no tamanho da oferta, mas no autojulgamento, isto é, no fato de ele se considerar, por isso, merecedor da salvação, confiando-se na sua própria justiça e não na justiça divina.

Meus amigos, nesse contexto, devemos nos lembrar da advertência do apóstolo Paulo aos Coríntios (10, 12): aquele que pensa estar de pé, cuide para que não caia. O autojulgamento é uma tentação constante na nossa vida. Nos nossos dias, há muitos cristãos que pensam já estar com a salvação garantida porque vão à missa aos domingos, participam dos sacramentos, rezam o terço, pagam o dízimo, etc., mas fazem isso como uma obrigação formal, como um costume tradicional, uma prática de exterioridade, não colocam o coração junto com a sua oferta. Essa atitude do fariseu, reprovada por Cristo na parábola, pode ser uma ameaça velada e constante na nossa prática de cristãos, quando cumprimos nossos deveres religiosos apenas por obrigação e sem refletir sobre o significado eclesial de nossas atitudes, sobretudo quando tais atos são acompanhados do julgamento que fazemos do nosso próximo, com o qual inconscientemente nos comparamos. Se eu vou à missa dominical e recebo os sacramentos, mas na vida social não pratico a caridade com os irmãos, meus atos religiosos são vazios de significado. A parábola do fariseu e do publicado deve ser permanente motivo de exame de consciência de todos nós, para que evitemos a sempre cômoda atitude de fazer julgamento das atitudes dos outros, valendo-nos do nosso próprio conceito de justiça. Algumas vezes, censuramos o comportamento de outras pessoas e, posteriormente, nos surpreendemos praticando aquelas mesmas atitudes. Daí a oportuna exortação do apóstolo Paulo: quem pensa estar de pé, cuide para que não caia. Antes de observarmos maldosamente as ações do nosso próximo, devemos tentar compreender seus motivos e, se for o caso, ajudá-lo a superar seus defeitos e dificuldades, em vez de criticá-los. Assim, evitaremos julgar pela nossa justiça pessoal, deixando essa tarefa para o justo juiz de todos nós.

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domingo, 16 de outubro de 2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 29º DOMINGO COMUM - ORAR SEMPRE - 16.10.2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 29º DOMINGO COMUM –ORAR SEMPRE – 16.10.2016

Caros Leitores,

Neste 29º domingo comum, as leituras litúrgicas enfocam o tema da oração perseverante. Orar e orar sempre é o ensinamento de Cristo. No domingo passado, comentamos sobre a importância do agradecimento. Neste domingo, a liturgia fala da importância do pedido em forma de oração, lembrando-nos de que devemos orar sempre e sem cessar. Tal como Jesus ensinou no “Pai Nosso”, na oração devemos, em primeiro lugar, louvar e agradecer, em seguida, formular os nossos pedidos.

É bem verdade que o Pai do céu sabe das nossas necessidades, então, vem a pergunta: por que devemos pedir-lhe algo, que ele já sabe que nos falta? Qual o pai que não está sempre pronto para atender às carências dos seus filhos, mesmo sem que eles peçam? Sendo assim, porque Jesus ensina que o Pai do céu quer que sempre peçamos e de forma insistente? Pode parecer uma incoerência no ensinamento de Jesus, mas a verdade é que, embora Ele saiba das nossas necessidades, Deus quer a nossa colaboração, para que sejamos merecedores. Quando Jesus diz “orai sempre, orai sem cessar”, isso não significa ficar o dia todo de joelhos, com o terço na mão ou com um livro devocional, recitando coleções de preces das mais diversas espécies seguindo formulários já prontos, mas sim que a nossa vida toda deve ser uma oração. Nós estamos orando não apenas quando pronunciamos palavras ou quando as temos no pensamento, mas a nossa oração se expande para as nossas atividades rotineiras, quando através do nosso trabalho, dos nossos relacionamentos, estamos manifestando aos irmãos elementos concretos da nossa fé, pelo nosso testemunho de vida do evangelho. Esta é a colaboração que Deus espera de nós. Podemos ver isso nos textos litúrgicos deste domingo.

Na primeira leitura, do livro do Êxodo (17, 8-13), lemos o episódio da batalha dos hebreus com os amalecitas, contando com a participação ativa de Moisés, à distância. Enquanto as tropas lutavam, as mãos de Moisés erguidas para o céu carreavam a vitória para os israelitas; quando Moisés abaixava os braços, os amalecitas levavam vantagem. Contudo, pela idade e pelo longo tempo naquela posição, Moisés não conseguia manter os braços levantados e isso punha em risco o resultado da batalha. Então, seus auxiliares Ur e Aarão apoiaram os braços de Moisés, para que ele conseguisse mantê-los erguidos até a vitória final dos israelitas. Excluindo desse episódio o seu conteúdo violento da batalha, podemos descobrir no ato de Moisés levantar os braços uma atitude de oração, que deve ser contínua e persistente. Abaixar os braços significa fraquejar na oração, o que acontece, muitas vezes, na nossa vida de pessoas imperfeitas. Daí a necessidade que Moisés teve de ser ajudado por seus assessores. Isso significa a necessidade que nós temos de buscar apoio e solidariedade na comunidade dos irmãos. O Papa Francisco, no sermão de hoje aos peregrinos em Roma, chamou a atenção para a importância da oração compartilhada. A oração solitária tem seu valor, sem dúvida, mas para ele ser mais fortalecida, precisa de ser realizada com a comunidade. Daí a importância da liturgia, da oração comunitária, da missa, das atividades devocionais realizadas no templo. Nos momentos desta oração eclesial, os nossos braços simbólicos erguidos ao céu, tais como os de Moisés, são ajudados pela comunidade, para que as nossas forças sejam multiplicadas. Nesses momentos, ocorre uma colaboração recíproca: ao mesmo tempo em que os irmãos nos ajudam a manter os “braços erguidos”, cada um de nós também ajuda o outro no mesmo sentido. Sem deixar de reconhecer a importância da oração individual, interior, devemos também reconhecer a importância da oração comunitária, como forma de exercer uma troca recíproca de energias e um ressoar mais forte do nosso brado orante.

Na segunda leitura, prosseguindo com o texto da 2a carta de Paulo a Timóteo, que vem sendo lida já há vários domingos, temos hoje o trecho em que o Apóstolo adverte o seu discípulo sobre a leitura orante da Sagrada Escritura: “Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para ensinar, para argumentar, para corrigir e para educar na justiça.” (2Tim 3, 16) A oração da comunidade sempre deve ter como ponto de referência a Escritura, pois é dela que retiramos os conteúdos mais próprios para compor a nossa oração e os ensinamentos mais eficazes para se transformarem em ações na nossa vida cotidiana. É esse o sentido da liturgia da palavra, que compõe a primeira parte da celebração da missa. Além disso, a Palavra também tem o dom de aconselhar diante de situações problemáticas da vida e de repreender o nosso comportamento, quando ele se distancia daquilo que Deus quer de nós. Por isso, Paulo exorta a Timóteo: “eu te peço com insistência – proclama a palavra” (4,1), insiste, admoesta quer agrade, quer desagrade, usando de toda paciência e doutrina. As Sagradas Escrituras “têm o poder de te comunicar a sabedoria que conduz à salvação pela fé em Cristo Jesus.” (2Tim 3, 15) Mais do que simplesmente ler a Bíblia, deve-se meditar a Bíblia, compreender a Bíblia, esta é a oração mais produtiva para o direcionamento das nossas práticas cristãs. Eu diria que a leitura do Novo Testamento deve ser preferida, dado o seu conteúdo cristológico mais explícito.

Na leitura do evangelho de Lucas (18, 1-8), Jesus recorre à sua conhecida pedagogia das parábolas para explanar de forma bem didática a sua doutrina sobre a oração. O próprio evangelista diz que o objetivo desta parábola é demonstrar a necessidade de orar sempre e nunca esmorecer. Mas antes de adentrar nesse conteúdo, eu gostaria de destacar a figura do juiz injusto, uma contradição em si mesma. Todos sabemos que o objetivo da função do juiz é distribuir a justiça. Assim pensando, um juiz injusto seria um antijuiz. Dentro das tribulações de cada dia, é bem possível que um juiz cometa injustiças, mas certamente isso não seria intencional, ao menos, não se espera isso de nenhum juiz. Pois bem, mas prescindindo do ofício de julgar típico da sociedade organizada, podemos também considerar que nós, que não somos juízes por profissão, por vezes nos tornamos juízes das ações dos nossos irmãos, quando avaliamos e tiramos conclusões sobre o comportamento das pessoas e podemos até ofendê-las com a falta de equilíbrio nos nossos julgamentos. Se para um juiz profissional a prática de atos injustos acarreta uma autocontradição, assim também para nós, quando nos tornamos juízes inescrupulosos das atitudes do nosso próximo, estamos contradizendo o significado mais profundo da fraternidade, que deve ser a marca registrada do cristão.

Passando agora ao tema da oração sem cessar, através da parábola do juiz injusto, Jesus nos ensina que devemos orar sempre e nunca perder a confiança. A viúva retratada na parábola insistiu por muito tempo com o juiz ímprobo, pedindo que ele lhe fizesse justiça. Por fim, o juiz resolveu atendê-la, ainda que não pelo seu amor à justiça, mas ao menos para livrar-se da importunação. Daí, Jesus conclui: se até um juiz injusto, diante da insistência de uma viúva, acaba por atendê-la, quanto mais o vosso Pai do céu, que é sempre justo, nunca deixará de atender os pedidos dos seus filhos. Ou seja, Jesus destaca nesse contexto o poder da oração para fazer acontecer na nossa vida aquilo do que nós realmente necessitamos. Isso não quer dizer que devamos todos os dias pedir a Deus para acertar sozinho na mega sena, até que um dia Deus vai atender, nem que seja para se livrar da importunação. Não se trata disso, claro. O que devemos pedir na oração é para sermos pessoas melhores, para conseguirmos superar as nossas fraquezas e imperfeições, para sermos sempre fiéis à nossa vocação de cristãos. A oração de quem simplesmente pede a Deus que lhe conceda bens materiais não se enquadra no conceito de orar sempre, que Jesus ensina na parábola do juiz injusto. Para conseguir obter bens materiais o que é preciso é ter disposição para trabalhar com afinco e dedicação na sua labuta profissional e, aí sim, vamos pedir a Deus que abençoe o nosso trabalho, para que os seus frutos sejam férteis e se multipliquem.

Uma prática devocional que é muito corriqueira no meio do nosso povo é “fazer promessas” aos santos para obter isso e aquilo. É uma espécie de “comércio” sagrado: dá-me isso que eu te darei aquilo. Certamente, não é esse o modelo de oração que Jesus ensina na parábola do juiz injusto. Tal como no caso de Moisés com os braços elevados ou no caso da viúva que insistia perante o juiz, o que Deus espera de nós é que façamos a nossa parte. Não se trata de desafiar Deus com uma promessa, pois Deus não precisa de nenhum favor nosso, ao contrário, nós é que precisamos dos favores divinos. Não se trata de fazer o pedido e ficar com os braços cruzados, esperando que um milagre aconteça simplesmente. O milagre vai acontecer se nós fizermos a nossa parte com fé, seriedade, sinceridade e persistência. O milagre vai acontecer na proporção do tamanho da nossa fé, da qual a oração deve ser a fiel expressão.

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domingo, 9 de outubro de 2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 28º DOMINGO COMUM - A SOLIDARIEDADE - 09.10.2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 28º DOMINGO COMUM – A SOLIDARIEDADE – 09.10.2016

Caros Leitores,

Neste 28º domingo comum, as leituras da liturgia estão sintonizadas com o tema do atual ano da misericórdia, instituído pelo Papa, enfocando a solidariedade com os sofredores. Compadecer-se e emprestar apoio às pessoas que passam por dificuldades ou necessidades é uma das obras de misericórdia ensinadas no catecismo. E, ao mesmo tempo, devemos nos lembrar de agradecer os favores recebidos e sentir a felicidade de poder ser útil aos irmãos, porque a vida de cada dia é uma grande dádiva que Deus nos concede a cada amanhecer.

Na primeira leitura, do segundo livro dos Reis (5, 14-17), lemos o episódio da cura de um estrangeiro, o sírio Naaman. O profeta Eliseu compadeceu-se daquele homem enfermo, que veio de um país distante pedir ajuda e, através do seu dom profético, receitou-lhe um “plano de cura”, demonstrando com isso que Javeh é Deus não apenas dos hebreus, mas também dos povos estrangeiros. A misericórdia de Deus não alcança apenas aqueles que o louvam e lhe oferecem sacrifícios, mas a todas as pessoas de coração sincero. Naaman representa todas as raças e nações que não nasceram sob o signo da aliança com Javeh, ou seja, ele é um exemplo precoce da nossa situação de cristãos, que não somos descendentes dos povos da aliança, no entanto, estamos todos alcançados por ela.

Duas particularidades chamam a nossa atenção no episódio da cura de Naaman. Primeiro, o fato de ele não ter acreditado de início. Na leitura de hoje, não há esse trecho, mas nos versículos anteriores, o autor sagrado narra que Naaman teria se recusado, quando o profeta Eliseu mandou que ele fosse tomar banho sete vezes no rio Jordão. Ora, disse ele, na minha terra há rios de águas mais límpidas e cristalinas, porque tenho eu de tomar banho nesse rio sujo daqui? Foi quando um servo ponderado o repreendeu: se o profeta tivesse mandado fazer algo difícil, tu farias, então por que não fazes isso, que é tão fácil? Naaman, que era uma pessoa sensata, compreendeu e obedeceu. E por que sete banhos? Porque Deus, quando faz sozinho as coisas para nós, ele quer a nossa participação, não entrega o objeto já pronto. Naaman precisou cumprir os sete banhos para, no final, ficar sarado. Se ele não tivesse colaborado com a sua parte integralmente, banhando-se as sete vezes, a cura não teria ocorrido. Nós também precisamos fazer a nossa parte completamente, para ficarmos em condições de receber a misericórdia divina.

A segunda particularidade que destacarei no episódio de Naaman é o seu agradecimento. Tão logo percebeu que estava curado, ele retornou ao profeta Eliseu para agradecer. Na verdade, ele queria pagar pela cura e o profeta recusou-se totalmente a receber qualquer pagamento. Os dons de Deus não estão à venda, não são objeto de comércio. Naaman tinha a mentalidade pagã de que a divindade deve ser agraciada com bens em troca dos favores recebidos. Mas o profeta fê-lo perceber que a cura dele foi uma manifestação da solidariedade de Javeh para com o sofrimento dele, mesmo não sendo ele um dos seus fiéis. Em agradecimento, Naaman levou consigo uma porção da terra de Israel, para que pudesse louvar a Javeh em sua terra distante, fazendo um altar com aquele material. Sem esquecer ainda que o banho miraculoso de Naaman no rio Jordão foi uma antecipação do batismo de Jesus, que ocorreria naquele mesmo rio, séculos depois. Foi como se o profeta Eliseu estivesse antecipando o que seria a pregação futura de João Batista naquele local.

Na segunda leitura, prosseguindo a carta a Timóteo que vem sendo lida nesses últimos domingos, o apóstolo Paulo, sofrendo as agruras da prisão por causa do evangelho, busca a solidariedade do discípulo no seu infortúnio, destacando a fidelidade de Deus, mesmo quando nós somos infiéis a ele (2Tim 2, 13). Certamente, Paulo temia que a prisão dele pudesse arrefecer os ânimos dos cristãos que ele convertera e era necessário que o ânimo de todos não se abatesse. E se ele não podia, naquelas circunstâncias, continuar pregando a palavra, era dever de Timóteo e de todos os fiéis fazê-lo. As orações da comunidade e os relatos do seu testemunho de “suportar qualquer coisa pelos eleitos, para que eles também alcancem a salvação, que está em Cristo Jesus” eram uma demonstração de solidariedade recíproca: do Apóstolo e dos discípulos dele.

Na leitura do evangelho de Lucas (17,11-19), temos aquele conhecido episódio da cura dos dez leprosos, dos quais apenas um retornou para agradecer. E Jesus cobra essa desatenção perante a comunidade que assistiu ao retorno daquele estrangeiro agradecido. Convém recordar que a lepra era, desde tempos remotos e até tempos recentes, uma moléstia segregativa. Os doentes eram obrigados a sair da cidade e viver à distância, às margens das estradas, única forma que tinham para não morrerem de fome, já que também não podiam trabalhar. Na sua caminhada para Jerusalém, Jesus deve ter encontrado vários grupos deles, assim como todos os viajantes encontravam e, em geral, os socorriam com bens materiais. Mas no caso do episódio narrado pelo evangelista, eles queriam do viajante Jesus algo mais valioso do que o alimento: a cura. As notícias sobre o poder de Jesus corriam de boca em boca, impossível não saber de quem se tratava naquela comitiva passante. O evangelista não menciona o nome de nenhum dos dez enfermos curados, nem mesmo daquele que retornou para agradecer, porque o seu intuito era destacar a solidariedade de Jesus para com os sofredores, inclusive com os estrangeiros, pois a misericórdia divina não se destina apenas a um grupo de eleitos, mas a todos os povos. No caso específico, o fato de somente um samaritano ter retornado para agradecer possui um simbolismo especial. Para os hebreus, samaritano era mais do que um estrangeiro, era um inimigo. O destaque que Jesus dá ao samaritano, assim como aos estrangeiros em geral, significa que todas as pessoas de boa vontade, mesmo não pertencendo ao “povo da aliança”, têm garantida a solidariedade divina.

O agradecimento demonstrado pelo leproso samaritano curado, posto em evidência por Jesus, nos proporciona diversas lições. Primeiro, que sempre devemos nos lembrar de agradecer. Não é que Jesus precisasse daquele agradecimento, porque ele sempre fez tudo de forma absolutamente gratuita e às vezes até proibia que as pessoas saíssem falando a respeito dele. Portanto, o elogio pelo agradecimento daquele que retornou, e ao mesmo tempo a crítica pelos que não retornaram, não significa que Jesus quisesse isso, esperasse por isso, mas vem nos ensinar que devemos ser agradecidos com os que nos são solidários. Segundo, tal como no caso de Naaman, Jesus também não curou os dez leprosos imediatamente, mas mandou que antes eles fizessem alguma coisa, no caso, mandou que eles fossem se apresentar ao sacerdote. E, enquanto caminhavam, eles observaram que estavam curados. Novamente aqui está presente a mesma lição de que, para recebermos as graças divinas, nós precisamos fazer a nossa parte e não ficarmos de braços cruzados esperando que as coisas aconteçam automaticamente. Terceiro, Jesus chamou a atenção para os outros nove curados, que eram hebreus e, tal como os fariseus, tinham o coração insensível, eram incapazes de reconhecer os favores recebidos e de saber agradecer por eles. Já o samaritano, que era odiado pelos hebreus, soube demonstrar o reconhecimento que os outros não tiveram. E Jesus louva a fé daquele estrangeiro, pois for por ela que ficou curado. Não só neste caso, mas em diversos outros momentos, Jesus sempre repetiu o mesmo bordão: vai em paz, a tua fé te salvou.

Meus amigos, se nós nos acostumarmos a observar os acontecimentos do dia a dia, iremos enxergar que Deus nos cumula de favores a todo momento, até mesmo sem que nós mereçamos ou peçamos. Deus é sempre solidário conosco, pedindo de nós o mesmo espírito de solidariedade para com os irmãos, especialmente os mais necessitados. Ser solidário significa fornecer ajuda sem nenhum interesse. O exemplo do profeta Eliseu ao recusar o presente oferecido por Naaman nos indica a conduta correta a ser seguida, quando Deus se serve de nós para prestar auxílio a alguém: os dons divinos não são mercadorias, são recebidos de graça e são distribuídos gratuitamente. E a atitude de Jesus, ante aquele samaritano agradecido, prostrado aos pés dele em pose de subserviência, é também significativa e modelar: levanta-te e vai em paz, foi a tua fé que te salvou. Quando nós prestamos a solidariedade a alguém, estamos agindo como intermediários dos dons divinos e aquelas pessoas beneficiadas nada nos devem, nem um favor. Na verdade, nós é que estamos retribuindo, porque fomos antes favorecidos.

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domingo, 2 de outubro de 2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 27º DOMINGO COMUM - O TAMANHO DA FÉ - 02.10.2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 27º DOMINGO COMUM – O TAMANHO DA FÉ – 02.10.2016

Caros Leitores,

Neste 27º domingo comum, as leituras litúrgicas abordam o tema da fé e a sua inserção na nossa vida cotidiana, questionando-nos sobre o tamanho da nossa fé (se é que podemos medi-la). A vivência na fé é um exercício reflexivo permanente, dinâmico, sempre em progresso, aumentando cada vez que somos capazes de perceber e compreender a ação de Deus na nossa vida. O resultado da fé é a justiça. O justo vive pela fé. Observando os fatos da vida cotidiana à luz da fé, podemos descobrir a mão de Deus no comando dos acontecimentos, até nos menores detalhes.

Na primeira leitura, retirada do profeta Habacuc (trechos dos cap. 1 e 2), vemos o profeta reclamando de Javeh porque clama e não é atendido. Habacuc tem a ousadia de questionar Javeh: “até quando clamarei sem que me atendas?”, o que é uma atitude incomum no Antigo Testamento, onde a figura de Javeh é mostrada como um Deus irado e vingativo, quase intolerante. Interpelar Javeh dessa forma era uma atitude arriscada. Mas o profeta não tinha dúvidas de que fazia a súplica do modo correto e esperava o resultado, no entanto, nada acontecia. Javeh, então, mostrou a Habacuc uma visão desoladora, da qual ele teve muito medo, e Javeh disse: escreve isso em tábuas, para que fique fácil para o povo ler. E espera, porque ainda nesta geração, essas coisas acontecerão: “Os infiéis morrerão, mas os justos viverão pela sua fé.” A grande catástrofe que estava por vir contra os infiéis era a invasão dos exércitos da Babilônia, a destruição de Jerusalém e a condução do povo hebreu como escravos daquele país. O profeta ficou deveras preocupado, porque pedia a Deus um castigo para o povo infiel, mas não imaginava que Ele fosse tão impiedoso. O próprio Habacuc foi levado como escravo para a Babilônia, algum tempo depois, de acordo com a promessa de Javeh. No entanto, sendo justo, ele sobreviveu e foi libertado, também de acordo com a promessa de Javeh.

Na segunda leitura, sequência da carta de Paulo a Timóteo, que vem sendo lida nos domingos anteriores, o Apóstolo exorta o discípulo a permanecer firme na fé, “pois Deus não nos deu um espírito de timidez mas de fortaleza, de amor e sobriedade.” (2Tim 1,7). Paulo escreveu esta carta enquanto estava preso, aguardando julgamento pelo tribunal romano, por causa da sua fé em Jesus Cristo e convida Timóteo a sofrer com ele. Na carta a Filipenses (1, 21), Paulo também escreveu que “para mim, viver é Cristo e morrer é lucro”, porque ele sabia muito bem que a morte não tiraria a sua vida na fé em Cristo, pelo contrário, morrer pela fé apenas abrevia os sofrimentos e introduz o fiel na vida plena. Paulo escreveu diversas cartas enquanto estava preso e, em todas elas, dá o testemunho de sua fé irrestrita, mesmo antevendo as provações que o aguardavam. Ele compreendia muito bem a palavra de Javeh ao profeta Habacuc: o justo vive pela fé.

Na leitura do evangelho (Lc 17, 5-10), vemos exemplos práticos dados pelo próprio Cristo sobre a avaliação que cada um pode fazer da medida da sua fé. É a conhecida passagem: “'Se vós tivésseis fé, mesmo pequena como um grão de mostarda, poderíeis dizer a esta amoreira: `Arranca-te daqui e planta-te no mar', e ela vos obedeceria. ” (Lc 17, 6) Meus amigos, é hora de cada um de nós baixar a cabeça e refletir sobre o “tamanho” da nossa fé. Talvez seja necessário usar uma grande lupa para podermos observá-la. Um grão de mostarda é menor do que um caroço de arroz cru, do que uma semente de gergelim. É óbvio que se trata de um raciocínio metafórico, porque a fé não pode ser comparada a um objeto físico. Mas se alguém fizer uma comparação entre a sua altura e o tamanho de uma semente dessas, verá uma enorme desproporção. Assim também deverá acontecer quando compararmos a altura do nosso soberba com o tamanho da nossa fé. E imaginemos que essa fé, ainda que minúscula, seria capaz de transportar uma montanha. Nem vamos continuar essa linha de raciocínio...

Refletindo sobre o tema da fé, vale recordar o evangelho de Mateus, cap. 14, onde lemos aquele conhecido episódio em que os discípulos estavam pescando à noite, com um mar agitado, e viram Jesus caminhando sobre as águas. Pedro, como sempre, impetuoso, disse logo: posso ir também? E Jesus disse: vem. Mas logo ele começou a afundar. “E Jesus, estendendo a mão, segurou-o, e disse-lhe: Homem de pouca fé, por que duvidaste?” (Mt 14, 31). Homens de pouca fé é o que nós também somos. Quantas vezes, nos lamentamos diante de certas ocorrências e até pensamos que Deus se esqueceu de nós. Nesse momento, deve soar no nosso ouvido a advertência de Jesus a Pedro: Homem de pouca fé, por que duvidaste? O justo viverá pela sua fé, ecoa do outro lado a visão do profeta Habacuc.

Acerca da fé, o autor da carta aos Hebreus faz a definição talvez mais perfeita em linguagem humana: “A é uma posse antecipada do que espera, um meio de demonstrar as realidades que não se veem.” (Hb 11,1) Para a teologia cristã, a fé é um estado de espírito no qual a pessoa se envolve irresistivelmente com o objeto de sua crença, convencendo-se da realidade invisível por meio de uma experiência existencial profunda. Em vista de uma melhor compreensão deste fenômeno, ao longo do tempo, os teólogos têm buscado na filosofia um auxílio racional para esclarecer o sentido do enigma que envolve a fé. Os grandes expoentes da filosofia e teologia medievais foram unânimes em afirmar que não existe oposição, mas uma relação de complementaridade entre a fé e a razão. Santo Agostinho, Santo Tomás de Aquino, São Boaventura, Santo Alberto Magno, sempre defenderam esse ponto de vista, o que vem servindo de apoio logístico para a doutrina teológica até os dias de hoje.

O Papa Francisco, no ano de 2013, publicou uma encíclica, cujo rascunho fora escrito por Bento XVI, mas que o Papa concluiu e publicou em nome próprio. Trata-se da encíclica “Lumen Fidei” (Luz da Fé). No n.º 7 desse documento, ele admite isso: «Estas considerações sobre a fé - em continuidade com tudo o que o magistério da Igreja pronunciou acerca desta virtude teologal - pretendem juntar-se a tudo aquilo que Bento XVI escreveu nas cartas encíclicas sobre a caridade e a esperança. Ele já tinha quase concluído um primeiro esboço desta carta encíclica sobre a fé. Estou-lhe profundamente agradecido e, na fraternidade de Cristo, assumo o seu precioso trabalho, limitando-me a acrescentar ao texto qualquer nova contribuição». E no número 32, ele prossegue: “O encontro da mensagem evangélica com o pensamento filosófico do mundo antigo constituiu uma passagem decisiva para o Evangelho chegar a todos os povos e favoreceu uma fecunda sinergia entre fé e razão, que se foi desenvolvendo no decurso dos séculos até aos nossos dias.” A antiga formação seminarística, no curso de filosofia, abordava exatamente essas “contribuições” dos filósofos antigos e medievais para o melhor esclarecimento da fé, pois o curso era baseado na filosofia tomista. Lamentavelmente, o curso seguido pelos seminaristas de hoje já não segue essa perspectiva, em vez disso, carrega forte acento no pensamento filosófico contemporâneo, o qual não fornece base teórica suficiente para o entendimento do pensamento teológico católico, totalmente ainda embasado na filosofia medieval. Por isso, percebe-se claramente a diferença quando se ouve uma homilia de um sacerdote mais antigo, em comparação com os presbíteros mais modernos, em relação ao fundamento filosófico que cada um demonstra (ou não) possuir.

Nos tempos modernos, a tecnologia e o cientificismo tendem a anular a fé ou mostrá-la como atitude de pessoas fracas e sem argumentos. A fé ficou associada à escuridão, adverte o Papa. Mister se faz encontrar o seu verdadeiro sentido. Ora, se na época de Cristo, os discípulos pediram para que Ele lhes aumentasse o tamanho da fé, quando mais devemos pedir isso nos tempos atuais. É útil ter sempre em mente a advertência do profeta Habacuc: o justo viverá por sua fé. Uma maneira didática de obter um aumento da fé é buscar sempre encontrar a mão de Deus nos acontecimentos da nossa vida. Assim, estaremos continuamente aumentando o tamanho da nossa fé.

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