sábado, 21 de setembro de 2019

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 25º DOMINGO COMUM - 22.09.2019

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 25º DOMINGO COMUM – SERVIR A DOIS SENHORES – 22.09.2019

Caros Confrades:

As leituras litúrgicas deste 25º domingo comum colocam para a nossa reflexão um tema político muito atual que, nos últimos anos, tem movimentado a sociedade brasileira mais do que em outros tempos: a honestidade dos dirigentes públicos, em todas as esferas do poder estatal. Isso ocorre não apenas no Brasil, mas é uma consequência da tecnologia de comunicação global, através da qual os cidadãos de todo o mundo discutem e exigem a probidade dos seus representantes nas casas legislativas. A liturgia deste domingo põe em destaque um tipo censurável de conduta que, embora lamentável, é bastante frequente nos homens e mulheres ligados à administração pública: aproveitar-se do mandato eletivo para promover a locupletação própria. Daí a advertência de Jesus: ninguém poderá servir de modo digno a dois interesses – o público e o privado.

Na primeira leitura, retirada do livro do Profeta Amós (Am 8, 4-7), o discurso do profeta até parece que se refere ao estereótipo do “político profissional” dos nossos dias, mais interessados em esfolar os concorrentes e enganar os eleitores, em proveito próprio. Tudo vale para conseguir maior número de sufrágios, até mesmo eliminar o adversário moralmente ou até fisicamente. No tempo do profeta Amós, ainda não havia os modelos políticos do capitalismo nem do comunismo, nem a economia de mercado nem a globalização, mas um sistema social arcaico, baseado na teocracia, e um sistema econômico também arcaico, fundado em grande parte na prática do escambo. Mas lamentavelmente as práticas de corrupção e de engodo da população já existiam, assim como as práticas comerciais escusas de fraudar balanças, diminuir medidas, inflacionar o preço para conseguir lucrar sempre mais. Portanto, desde os tempos do Profeta Amós, cerca de 800 anos antes de Cristo, a cobiça dos governantes e dos comerciantes já era alvo de reprovação pelos arautos de Javeh. Isso mesmo continuou a ocorrer nos séculos seguintes, dominados pela tradição romanista e depois pelo mercantilismo, que se instalou a partir do Renascimento. As mesmas práticas reprováveis de certos líderes sociais, que frequentemente são noticiadas nos dias de hoje, já ocorriam naqueles tempos. No livro de Amós, o profeta condena a injustiça social e a exploração gananciosa dos mais humildes. Fazendo-se as contas, podemos avaliar há quanto tempo esse tipo de prática vem sendo condenada e apesar disso nunca deixou de ser vergonhosamente replicada.

Na segunda leitura, retirada da carta de Paulo a Timóteo (1Tim 2, 1-8), o Apóstolo exorta à comunidade para que reze pelos administradores, pelos governantes, pelos que ocupam altos cargos, pois Deus quer que todos sejam salvos. Verifica-se, nas entrelinhas das palavras de Paulo, que os administradores públicos eram tidos por pessoas inescrupulosas, cuja ação não era agradável a Deus, daí porque era necessário orar por eles, para que cheguem ao conhecimento da verdade e sejam salvos. A preocupação de Paulo com os dirigentes da comunidade se faz sentir na necessidade de que os cristãos que ocupam cargos elevados devem dar exemplo aos não cristãos, para que a sua virtude seja imitada por estes. E para que isso aconteça, é importante a oração da comunidade em seu apoio. Naquela antiga oração que rezávamos após a bênção do Santíssimo Sacramento, havia um trecho que dizia assim, depois de orar pelo Papa, pelos Bispos, pelos administradores eclesiásticos: “rezemos por todas as pessoas constituídas em dignidade, para que governem com justiça”. E os vários documentos expedidos pelo Magistério da Igreja ao longo dos últimos séculos, desde o Papa Leão XIII, com a encíclica Rerum Novarum, tem dado continuidade a essa missão iniciada por Paulo no sentido de orientar os governantes no caminho da verdadeira justiça social. O Papa Paulo VI, na encíclica Populorum Progressio (1967) escreveu uma frase emblemática sobre a situação econômica na metade do século XX: o desenvolvimento é o novo nome da paz. A situação das nações em relação ao desenvolvimento de cada uma é o mecanismo de equilíbrio para a manutenção da paz mundial. De um modo indireto, isso quer dizer que a consciência dos administradores públicos, sobretudo dos países mais ricos, será determinante para que todas as nações vivam em paz. E podemos ver diariamente isso, na prática, e constatar o quanto o Papa estava com a razão. As guerras que eclodem em diversas partes do mundo são o contraponto para comprovar a validade dessa doutrina.

No evangelho de Lucas, lemos hoje a conhecida parábola do administrador infiel. Esta parábola contém um forte paradoxo, destacando a pedagogia do contraditório, pois ao mesmo tempo em que Cristo elogia o comportamento do administrador inescrupuloso, Ele está querendo nos dizer: não façam assim. No tempo de Cristo, a parábola se dirigia, como na maioria das vezes, aos fariseus e aos chefes do povo, que agiam de forma perdulária e opressora, transformando a religião judaica num emaranhado de regras e proibições, em que a prática exterior da religião era mais valorizada do que a intencionalidade do crente. No evangelho de Mateus (cap 23), Cristo faz essa mesma advertência com outras palavras, dizendo que os fariseus atam pesadas cargas e as colocam nos ombros do povo, enquanto eles mesmos não ajudam nem com o dedo para aliviar o peso. Noutro contexto, vemos repetida aí a mesma reprovação feita pelo Profeta Amós contra os administradores do tempo dele. E podemos encontrar semelhante atitude de reprovação no episódio em que Jesus expulsa do templo aqueles que vendiam rolinhas e carneiros para o sacrifício, chicoteando-os e quebrando suas bancas. “Ninguém pode servir a dois senhores. Porque ou odiará um e amará o outro, ou se apegará a um e desprezará o outro. Vós não podeis servir a Deus e ao dinheiro”, diz o evangelista Lucas (16, 13).

Apesar dessa atitude de reprovação, Jesus utiliza o argumento do raciocínio inverso para elogiar o mau administrador, destacando a sua criatividade e inteligência: os filhos das trevas são mais hábeis nos seus negócios do que os filhos da luz (Lc 16, 8). E diz mais: usai o dinheiro injusto para fazer o bem... pois se não fordes fiéis no uso do dinheiro injusto, quem vos confiará o verdadeiro bem? (Lc 16, 9-11). Jesus está contrapondo as coisas da terra (dinheiro injusto) com as coisas do céu (verdadeiro bem). Aquele que possui bens materiais e/ou desfruta de poder social tem em mãos um 'dinheiro injusto', porque toda acumulação de bens nas mãos de alguém é resultado da falta daqueles bens nas mãos de outrem. Contudo, isso não é de todo mau, desde que a administração desses bens “injustos” esteja voltada para a satisfação das necessidades dos irmãos carentes. Este é o grande desafio que se põe para o cristão que administra bens particulares ou públicos. Jesus sabia que a sociedade sempre seria desigual, quando ele disse em João (12, 8): “pobres sempre tereis entre vós”. Ele sabia que mesmo a divulgação da sua doutrina não acabaria com as desigualdades sociais, mas, por outro lado, isso não seria empecilho para que os cristãos tivessem em suas mãos a responsabilidade de administrar bens materiais. Daí Ele dizer em Lucas (16, 8) que o dono do negócio elogiou a esperteza do seu administrador. Deus quer que nós tenhamos essa mesma “esperteza” com os bens injustos para que saibamos utilizá-los com sabedoria e disponibilizá-los em benefício dos pobres da comunidade.

A advertência de que “ninguém pode servir a dois senhores” não significa que existe uma incompatibilidade absoluta entre amar a Deus e administrar bens materiais, mas sim que o amor a Deus não pode competir com o amor desses bens, pois o amor a Deus não pode ter concorrência. A propriedade e a administração de bens materiais não deve nos desviar do amor a Deus, mas sim fazer-nos amá-lo ainda mais e isso ocorre quando os bens possuídos são postos a serviço da caridade e do amor ao próximo. Aquele cujo Deus é a riqueza ou o poder, este sim estará desvirtuando os bens recebidos e colocando-os a serviço do próprio egoísmo, tal como fez o mau administrador. Podemos dizer, em resumo, que a diferença entre o bom e o mau administrador está sintetizada naquele critério que Jesus já ensinara aos apóstolos e a todos nós, através da palavra do evangelista Mateus (6, 21): “porque onde estiver o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração”. Se o nosso tesouro estiver em Deus, o nosso coração não se apegará ao dinheiro injusto, mas nós saberemos administrá-lo para fazer amigos que nos receberão, depois, na morada eterna.

Que assim saibamos compreender a esperteza dos filhos deste mundo para conseguirmos colocá-la em prática no exercício da nossa fé.

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COMENTÁRIO LITÚRGICO - 24º DOMINGO COMUM - 15.09.2019

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 24º DOMINGO COMUM – A LÓGICA DE DEUS – 15.09.2013

Caros Confrades,

Nas leituras deste 24º domingo comum, sobressai o tema da misericórdia divina. O Papa Francisco, dirigindo-se aos peregrinos em Roma, abordou esse tema, afirmando ele que a alegria de Deus é perdoar. Isso me fez lembrar daquele oráculo do profeta Isaías, quando disse sobre Javeh que “os meus pensamentos não são os vossos pensamentos” (Is 55, 8), querendo dizer que a lógica de Deus é diferente da nossa. Para nós, seres humanos, perdoar nunca é uma alegria, ao contrário, o perdão é uma atitude dolorosa, que mesmo quando é exercitada de forma consciente, nem por isso deixa de passar uma sensação estranha de que algo está faltando. Precisamos evoluir muito na vivência dos ensinamentos de Jesus, para compreendermos essa lógica do perdão e mais ainda para conseguirmos pô-la na prática.

Na primeira leitura, do livro do Exodo (32, 7), Javeh se enfurece com os hebreus, que O substituiram por um bezerro de ouro e, na sua ira, quer exterminar o povo. Essa era a “personalidade” do Deus hebreu do Antigo Testamento, mas ele recua dessa pretensão ante as ponderações de Moisés. Se observarmos bem, temos aí dois comportamentos bem curiosos e atípicos. De um lado, a figura de um Javeh irado e violento, bem diferente do Pai que Jesus veio revelar na sua pregação. Para os hebreus, Javeh aparecia sempre como um pai raivoso, com o chicote na mão, mas mesmo assim, o povo teimava em desobedecê-lo, por isso era preciso que os profetas estivessem, a todo momento, recordando a promessa e o compromisso. Mas, por outro lado, Javeh aparece também como manso e compassivo, dando ouvidos aos argumentos de Moisés, atitude que lembra a figura do Pai amoroso, apresentada por Jesus Cristo. Chega a ser um comportamento contraditório, pois Javeh, o todo poderoso, acima do qual não existe nenhum, no entanto, amolece diante de um subordinado. É uma lógica totalmente diferente da nossa, como bem explicou o profeta Isaías.

Na segunda leitura, da carta a Timóteo (1, 12), Paulo humildemente se penitencia por ter sido perseguidor da Igreja e agradece a misericórdia de Cristo, que o escolheu para a missão de pregador. E diz: “eu encontrei misericórdia porque agia com a ignorância de quem não tem fé”, para em seguida se classificar como o pior de todos os pecadores, aquele que está na cabeceira da fila do perdão. Do mesmo modo como Javeh, no Antigo Testamento, teve misericórdia para com o povo pecador, Cristo teve misericórdia para com ele, Paulo, para demonstrar a grandeza do Seu coração. Paulo tenta explicar, com outras palavras, a mesma lição de Isaías acerca dos pensamentos de Deus, que não seguem a lógica humana.

Porém, o exemplo mais perfeito dessa lógica diferenciada está no evangelho de Lucas (15, 1-32), em especial naquela conhecida história do filho esbanjador. Como em diversas outras ocasiões, Jesus usava figuras alegóricas para exemplificar o comportamento dos fariseus, que agiam assim como o filho mais velho da parábola, e não conseguiam entender o comportamento de Jesus, voltado para os pecadores (figura do filho esbanjador), algo totalmente diferente da lógica deles. Como é que Jesus, sendo filho de Deus (como se auto apresentava), ia reunir-se com os publicanos e pecadores, deixando de lado eles, fariseus, os verdadeiros cumpridores da Lei, que nunca haviam abandonado a casa do Pai? Dentro da compreensão judaica, publicanos e prostitutas eram pecadores públicos, ou seja, todo mundo peca, mas faz isso sigilosamente, de modo que as outras pessoas não ficam sabendo. Mas os publicanos e as prostitutas fazem isso abertamente, sem se incomodar que os outros saibam disso. As prostitutas, pela prática aberta da sexualidade, que sempre foi um tabu entre os hebreus e até o cristianismo, por muito tempo, também ensinava que o sexo existia apenas para a finalidade procriativa, não com finalidade recreativa. Os publicanos, pela natureza do seu ofício de cobrador de impostos, eram pessoas reconhecidamente corruptas, mesmo aqueles que não recebiam propinas mas arrecadavam apenas o percentual regular, porque eles tiravam o dinheiro do povo hebreu para beneficiar os invasores romanos. Só isso já era o suficiente para eles serem considerados pecadores públicos. Para os judeus, o ato de tocar fisicamente nessas pessoas os deixava impuros, era necessário fazer as abluções rituais, a fim de purificarem-se. O simples fato de estar junto com essas pessoas no mesmo ambiente físico, mesmo que involuntariamente, era também causa de impureza, havendo a necessidade das abluções purificadoras. Não obstante isso, Jesus se reunia com esse povo, comia com eles, conversava com eles sem qualquer cerimônia e não fazia as abluções purificadoras (nem Jesus nem seus discípulos), os fariseus não entendiam como é que alguém, que se dizia cumpridor da lei, agisse assim. Sabendo do que se passava nos seus pensamentos, Jesus começou a contar as parábolas conhecidas como “da misericórdia”, que relatam a alegria pela recuperação de algo perdido (a ovelha perdida, a moeda perdida) ou de alguém que havia se perdido (o filho inconsequente). Jesus estava dizendo claramente, embora numa metáfora, para eles que o filho obediente, que se considerava justo e cumpridor dos deveres, eram eles próprios, os fariseus. Mas eles não conseguiam perceber isso, isso era muito difícil para eles compreenderem, e assim como aconteceu com eles, muitas vezes também os nossos pensamentos se embotam e nos impedem de descobrir o verdadeiro sentido das ações de Deus na nossa vida.

Pois bem. Não irei repetir aqui a história do filho aventureiro, porque todos a conhecem bem. Quero concentrar-me no diálogo entre o pai e o filho resmungão, porque encontramos ali dois padrões de pensamento completamente antagônicos. O filho mais velho não gostou nada daquela festa e passou na cara do pai: Tu nunca me deste nem um cabritinho sequer para eu festejar com meus amigos. Quando chegou esse teu filho, que esbanjou teus bens com prostitutas, matas para ele o novilho cevado'.” Vejam bem: ele não disse “quando chegou esse meu irmão”, disse “esse teu filho”, ou seja, não reconhecia aquele viajante como seu irmão, da mesma forma como os fariseus não reconheciam os publicanos e pecadores como irmãos deles. Mas o pai, em suprema compreensibilidade, não recriminou a raiva do filho mais velho e lhe respondeu mais ou menos assim: você tem razão de estar zangado, masera preciso festejar e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto e tornou a viver; estava perdido, e foi encontrado'.” Por outras palavras: foi o teu irmão que retornou, isso já é motivo bastante para alegria. O perdão e a misericórdia devem estar acima de qualquer rancor.

Se nós observarmos pelo aspecto da lógica humana, o pai estava sendo injusto, porque afinal o filho mais novo havia recebido a parte dele na herança e, teoricamente, havia renunciado a tudo mais. Do ponto de vista estritamente jurídico, ele não tinha mais direito a nada da parte do pai, por isso, ele chegou pedindo para ser admitido como empregado. Foi também nesse sentido o raciocínio do irmão mais velho: ele já recebeu a parte dele e ainda voltou pra levar mais, aquela parte que me pertence, eu estou sendo injustiçado. Era mais ou menos assim que os fariseus se sentiam, em relação aos pecadores (pois fariseus não se consideravam pecadores, e sim observantes da lei). Esses pecadores se refestelam com coisas que eles (fariseus) renunciam em nome da lei, beneficiam-se das coisas erradas (esbanjam os bens) e depois vêm querer se beneficiar também das promessas contidas na lei, que eles não cumprem.

Se observarmos agora pelo aspecto da lógica daquele pai misericordioso, a totalidade dos bens materiais passou a ter um valor insignificante diante do arrependimento do filho pecador. A parcela dos bens que ele recebeu e esbanjou não tem comparação com o seu reencontro, com a mudança que se operou na sua personalidade. É uma mensagem semelhante àquela que está também em Lucas (7, 6), a respeito da pecadora que beijava os pés de Jesus na casa de outro fariseu: muito lhe foi perdoado porque muito amou. Aqui nos lembramos do discurso do Papa aos peregrinos: a alegria de Deus é perdoar. Para aquele pai que recuperou o filho, a alegria do seu retorno é infinitamente superior ao valor material dos bens que ele desperdiçou. O fato de ele ter retornado já demonstra o grau de arrependimento e de amor que lhe passava na alma. “Eu não sou digno de ser chamado de teu filho, trata-me como um de teus empregados...”, que conversa mais besta, pensou o pai, o teu retorno é o que de fato interessa.

Meus amigos, precisamos nos acautelar para não fazermos igual aos fariseus, quando estamos em situação de aparente superioridade em relação a alguém. Não devemos repetir como o filho mal criado “esse teu filho”, mas devemos imitar a resposta do pai “esse teu irmão”... O irmão necessitado que nos procura deve ser para nós motivo de alegria, pela oportunidade que temos de praticar o bem.

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COMENTÁRIO LITÚRGICO - 23º DOMINGO COMUM - 08.09.2019

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 23º DOMINGO COMUM – O DESAPEGO – 08.09.2019

Caros Confrades,

Neste 23º domingo comum, a leitura do evangelho proclama a necessidade do desapego dos bens materiais, ou seja, ser pobre em espírito, esta que deve ser a atitude padrão de quem quer ser discípulo de Jesus. Desapegar não significa desprezar os bens materiais, mas colocá-los no segundo plano, deixando em primeiro plano os bens espirituais. No caso, o desapego não abrange apenas os bens de consumo e os objetos de valor, mas tudo aquilo que, de alguma maneira, impede ou dificulta a nossa vida cristã, inclusive as relações familiares. Este tema está presente também nas outras leituras: do livro da Sabedoria e da carta de Paulo a Filêmon.

Na primeira leitura, retirada do livro da Sabedoria (9, 13-18), o autor destaca uma doutrina que muito se assemelha com a teoria do filósofo grego Platão, quando ele contrapõe o mundo da matéria e o mundo das ideias. No versículo 15 do cap 9, lemos: “porque o corpo corruptível torna pesada a alma e, tenda de argila, oprime a mente que pensa.” A imagem do corpo como “tenda de argila que oprime a alma” faz eco com a narração da criação do homem, de acordo com o Gênesis, quando Deus fez o homem do limo da terra. O peso da matéria corporal impede a alma de alcançar os desígnios profundos de Deus. É o que diz no vers. 16: “Mal podemos conhecer o que há na terra, e com muito custo compreendemos o que está ao alcance de nossas mãos; quem, portanto, investigará o que há nos céus?” É curioso como essa doutrina filosófica, conhecida como dualismo, era comum entre os povos daquela época. O dualismo teve uma importância muito grande nos princípios do cristianismo, sendo defendida por vários teólogos cristãos, estudiosos de Platão. Santo Agostinho foi o principal deles e, de início, ele tinha simpatia até pela doutrina da reencarnação, também ensinada por Platão, vindo depois a abandoná-la, pois observou que era incompatível com o cristianismo. Grande parte da catequese católica tradicional foi elaborada com base nessa doutrina, que ainda está presente também no catecismo oficial atual. Contudo, na época contemporânea, com a influência da filosofia fenomenológica, tanto a teoria de Platão quanto a de Aristóteles ficaram superadas com o conceito da subjetividade intencional, que procura unir corpo e espírito como uma realidade integrada, de modo que não se cogita mais em separação entre corpo e espírito. A doutrina filosófica contemporânea compreende o homem como um ser integrado de corpo e espírito, de tal maneira que este deve ser entendido como um corpo espiritualizado ou um espírito corporificado, não fazendo sentido referir-se a um sem incluir também o outro, assim como também não faz sentido falar-se em “separação” entre corpo e espírito, como se fossem duas realidades opostas e incompatíveis. A ressurreição de Cristo e também a assunção de Maria são fatos que demonstram, a título de antecipação, o que ocorrerá com todos os crentes, por ocasião de sua passagem para o plano da eternidade. Não é o espírito que “se salva”, mas a salvação abrande o ser humano inteiro, incluindo corpo e alma. Não o corpo-matéria, mas o corpo glorioso e desmaterializado, tal como sugere a estampa da efígie de Cristo no Santo Sudário.

Na segunda leitura, da carta de Paulo a Filêmon (9-17), o Apóstolo destaca a doutrina da reconciliação como uma atitude decorrente do desapego cristão. Nesta carta, encontramos três personagens em situações bastante diferentes: o apóstolo Paulo levando adiante a sua pregação do evangelho, o amigo dele Filêmon, um cristão rico que morava na cidade de Colosso e tinha uma igreja funcionando na sua própria casa, e o (ex) escravo Onésimo, que é o portador da carta. Paulo deixa entender, nas entrelinhas, que Onésimo tinha sido escravo de Filêmon e estava como fugitivo em Roma, onde o encontrou. Com muita discrição, Paulo não entra em detalhes sobre o provável motivo da fuga, no entanto, apenas a fuga por si mesma já era uma afronta ao patrão. O fato transparecido nas entrelinhas da carta é que Paulo encontrou Onésimo em Roma na prisão, onde ambos estavam enclausurados, e este aceitou o batismo, após a catequese de Paulo. Vindo a saber do vínculo anterior de Onésimo com Filêmon, de quem Paulo era amigo, este fez questão que Onésimo fosse reconciliar-se com seu antigo senhor, não para que ele retornasse à condição de escravo, mas dando seu aval ao amigo Filêmon da conversão de Onésimo e da sua nova condição de irmão na fé, a fim de que o ex-patrão o recebesse na sua casa como se fosse o próprio Paulo, reforçando desse modo aquela comunidade eclesial que Paulo bem conhecia. Ao pedir a Filêmon que aceitasse Onésimo como se fosse ele próprio (Paulo), estava solicitando a ele uma dupla atitude: primeiro, que perdoasse a má conduta do seu ex-escravo e, mais do que isso, que o aceitasse como irmão na fé, recomendado pelo Apóstolo para trabalhar com ele na comunidade. O texto da carta demonstra o cuidado de Paulo na redação, para que Filêmon entendesse bem o seu pedido e demonstra mais a grande confiança que Paulo depositava nele, porque era um pedido muito delicado. Vejamos o que Paulo diz no vers. 14: “eu não quis fazer nada sem o teu parecer, para que a tua bondade não seja forçada, mas espontânea. ” E mais adiante, no vers. 17: “se estás em comunhão de fé comigo, recebe-o como se fosse a mim mesmo. ” A carta desenvolve a teologia do perdão e da reconciliação que cada um de nós deve ter para com o irmão que peca, assim como Deus tem para conosco, quando pecamos. Por certo, Filêmon concordou com Paulo e fez conforme a recomendação deste.

A leitura do evangelho (Lc 14, 25-33), como antecipado, enfoca a atitude de desapego que deve ter o cristão em relação às coisas materiais. Na tradução latina desse texto, a exigência de Cristo é bem mais forte do que na tradução oficial. Diz assim: “si quis venit ad me et non odit patrem suum et matrem et uxorem...”, ou seja, se alguém vem a mim e não odeia seu pai, mãe, esposa... a tradução de São Jerônimo é literal do verbo grego “miseô”, que significa odiar, detestar. Porém, o sentido original desta palavra no hebraico (sanê) tem relação com “sentir ciúme”, “não ter a preferência”, ou falando numa expressão positiva, de “amar mais”, ou seja, sentir ciúme se alguém amar mais seu pai, sua mãe, sua esposa … do que a Mim... Daí porque a tradução da CNBB para a frase citada é “se alguém vem a mim, mas não se desapega do seu pai, sua mãe, sua esposa...” Neste caso, a tradução oficial está bem mais conforme o texto hebraico do que com a tradução latina. E é este o sentido mais autêntico da exigência que Jesus faz aos seus seguidores, ou seja, ele não quer dizer que o cristão deve literalmente “odiar” o pai, a mãe, a esposa, os irmãos, os filhos, mas sim que não deve dedicar maior amor aos familiares do que ao próprio Jesus. Não quer dizer que devemos rejeitar, detestar os familiares, mas sim que o amor que dedicamos a estes deve ser fruto do amor primordial a Cristo, amar os familiares no amor de Cristo, com o amor de Cristo. E, em último caso, se as relações familiares ou as relações de amizade forem motivo de afastar o cristão do seu verdadeiro ideal, então o fiel deve fazer a sua escolha radical pela adesão ao ensinamento de Cristo. Esta é a grande dificuldade de se ler a Bíblia nas traduções, sem ter conhecimento do significado dos termos na língua original, ou seja, pode conduzir a conclusões bem divergentes daquele que é o melhor significado da mensagem. Este é o grande problema que ocorre quando o fiel apenas “lê” a Bíblia. Ler não é bastante, é necessário “estudar” a Bíblia, a fim de obter da leitura o melhor aprendizado. Desse modo, num entendimento mais humanizado, a interpretação dessa exigência de Cristo se desloca mais para o sentido espiritual do desapego interior, na linha de pensamento da pobreza em espírito.

Os outros dois exemplos citados pelo evangelista vão também nessa mesma linha de raciocínio. Sobre o homem que queria construir a torre, mas não tinha economias suficientes para levar adiante a pretensão, Cristo quer dizer que devemos nos desapegar também de projetos mirabolantes, que estão mais a serviço da nossa vaidade do que da nossa fé. Qual o objetivo de alguém construir uma torre? Devia ser para tornar-se famoso, para ser visto e conhecido pelas outras pessoas. Mas, até que ponto isso irá contribuir para o bem do próximo, para o serviço da comunidade? Então, os nossos projetos devem estar coerentes com as exigências da nossa fé, não com a nossa vaidade pessoal. Sobre o outro exemplo do rei que vai guerrear com o rival, qual seria o seu objetivo, senão enaltecer o seu egoísmo e o seu orgulho, pensando na vitória sobre o outro? Ora, reconhecer a superioridade do outro é também uma atitude de desapego, de renúncia da própria vaidade. Embora a narrativa sugira que o rei evitou o confronto com receio de ser derrotado, visto que o rival tinha um exército mais numeroso, devemos nos lembrar que Cristo fazia essas preleções para pessoas do povo e usava exemplos simples de casos mais compreensíveis, porém depois ele explicava o verdadeiro significado para os discípulos.

O sentido cristão do desapego, portanto, não é simplesmente largar tudo e ir morar debaixo da ponte. Desapegar-se significa ser pobre em espírito, porque há pessoas extremamente pobres de bens materiais, mas demonstram espírito rico e de exagerada avareza, invejando o que os outros possuem.

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COMENTÁRIO LITÚRGICO - 22º DOMINGO COMUM - 01.09.2019

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 22º DOMINGO COMUM – HUMILDADE X SOBERBA – 01.09.2019

Caros Confrades,

Nesta liturgia, as leituras do 22º domingo comum nos advertem a evitar a soberba, por ser esta uma atitude incompatível com a conduta do cristão. No evangelho de Lucas, temos um exemplo prático dado por Jesus, num evento público ao qual compareceu. Ele destaca uma das condutas mais corriqueiras da pessoa soberba: querer aparecer, receber elogios, ser reconhecida em público, fazer amizade com os poderosos da sociedade. Com isso, o soberbo já recebe a sua recompensa passageira. Por outro lado, diz ele: fazer o bem a quem não pode nos recompensar com favores gera um crédito na eternidade.

O oposto da soberba é a humildade. Etimologicamente, a palava humilde é a tradução do latim “humilis”, termo relacionado com o húmus, com a nossa origem do limo da terra. A imagem bíblica do homem criado por Deus a partir da lama pretende ressaltar a consciência da nossa finitude, da efemeridade da existência. Muitas pessoas vivem como se fossem permanecer no mundo para sempre e se utilizam dos bens materiais para obter prestígio e poder a todo custo, até mesmo pisoteando as outras pessoas. É importante esclarecer que, quando se fala em humildade, isso não significa ser subserviente ou viver como mendigo, como indigente, usar roupa esfarrapada, porque ser humilde é, antes de tudo, uma atitude do espírito. Assim como há pessoas abastadas e humildes, também há pessoas miseráveis gananciosas e soberbas. Ser humilde, pois, é antes de tudo ser pobre de espírito e isso significa desapego e generosidade, significa possuir bens sem ser escravo deles, significa acumular tesouros que a traça não consome e o ladrão não rouba (Mt 6, 19).

Na primeira leitura, extraída do Livro do Eclesiástico (3, 20), o escritor sagrado nos adverte: “Na medida em que fores grande, deverás praticar a humildade, e assim encontrarás graça diante do Senhor. Muitos são altaneiros e ilustres, mas é aos humildes que ele revela seus mistérios. ” O livro do Eclesiástico faz parte dos escritos deuterocanônicos, isto é, foi escrito em época mais recente, após o retorno do exílio da Babilônia, não compondo os livros sagrados do antigo judaísmo, portanto, não era lido nas sinagogas judaicas. Seu autor é um sábio de nome Jesus, filho de Sirac, daí porque o livro também é conhecido como Ben Sirac ou Sirácida. Os cristãos primitivos sempre consideraram este livro como sagrado, mas é um dos livros que Lutero recusou e por isso não está na bíblia protestante. Mas se compararmos o seu texto com os ensinamentos de Cristo, especialmente nas ocasiões em que Ele censura o comportamento dos fariseus, percebe-se que ambos se põem na mesma linha de raciocínio. No livro do Eclesiastes, o autor expõe a tradição judaica mais autêntica e Jesus, tendo sido educado na tradição judaica, o conhecia muito bem, aproveitando-se disso para mostrar a hipocrisia dos fariseus que, como mestres da lei, não a praticavam. Semelhanças com o texto desta leitura podemos encontrar também no cântico de Maria, após ouvir a saudação do anjo (Lc 1, 52): derrubou os poderosos dos seus tronos e exaltou os humildes... pôs os olhos na humildade de sua serva. Não é, portanto, de se admirar que desde os primeiros tempos do cristianismo este livro tenha sido sempre prestigiado e lido nos templos.

No evangelho deste domingo, podemos identificar um verdadeiro sermão sobre a humildade, através das parábolas ditas por Jesus na casa de um dos chefes dos fariseus. Diz o evangelista Lucas (14, 1), que Jesus fora convidado para ir almoçar na casa de um importante fariseu, num dia de sábado. Observa-se que Jesus tinha um bom relacionamento com os fariseus, apesar de criticá-los muito também. É de supor-se que Ele, como bom judeu, tenha comparecido à sinagoga naquele dia e até provavelmente tenha sido convidado para fazer a leitura da Torah. Após o culto, um dos lideres dos fariseus o teria convidado para ir almoçar na casa dele. Ali chegando, Jesus observou como os convidados ficavam disputando a preferência do dono da casa, escolhendo os melhores lugares à mesa. Cada qual queria demonstrar ter mais prestígio com o anfitrião. E ao mesmo tempo, todos observavam qual seria a atitude de Jesus, como um convidado de honra. Percebendo isso e mesmo antevendo alguma provável armadilha, Jesus tomou a iniciativa das ações e passou a contar-lhes uma parábola.

Os fariseus gostavam daquele tipo de religiosidade das aparências, do cumprimento da lei pela sua literalidade, sem uma atitude de interiorização. Por isso, Jesus aproveitou o contexto e contou mais uma das suas historinhas: houve um banquete em que um convidado que estava sentado no lugar de honra foi solicitado pelo anfitrião para ceder seu lugar para outro conviva mais importante do que ele, tendo que ir sentar-se lá atrás. Era exatamente o que eles estavam fazendo, escolhendo os melhores lugares. Então, Jesus arrematou: quando tu fores convidado, senta-te nos últimos lugares, porque será honroso para ti ser chamado para chegar mais para a frente e, ao contrário, será decepcionante para ti ser mandado lá para trás. Essa parábola de Jesus foi tradicionalmente interpretada pelos biblistas no seu sentido mais literal de uma posição ou local físico. Contudo, podemos compreendê-la também noutro sentido mais simbólico, da busca por elogios, da necessidade de ser aplaudido, bajulado, da vaidade de ser notado, ser reconhecido. Essa procura psicológica pelos “primeiros lugares” na opinião pública tem o mesmo sentido da disputa pelo melhor lugar na mesa do banquete. A frustração que daí resulta, quando a expectativa não se materializa, é semelhante à humilhação daquele que foi “convidado” a sentar na última fileira, pode até provocar doenças físicas. Sim, porque, mais importante do que a pobreza de bens materiais é a pobreza do espírito, o reconhecimento sincero da nossa fragilidade, da nossa incompletude. O espírito orgulhoso não percebe isso e necessita de estar sempre sendo incensado e colocado em alto pedestal. Ao contrário, o espírito humilde raciocina como Cristo disse no evangelho: somos servos inúteis, fizemos o que tínhamos de fazer. (Lc 17, 7)

Daí a complementação que Jesus faz desta primeira parábola com uma segunda: “Quando tu deres um almoço ou um jantar, não convides teus amigos, nem teus irmãos, nem teus parentes, nem teus vizinhos ricos. pois estes poderiam também convidar-te e isto já seria a tua recompensa. ” (Lc 14, 12) Ele não está dizendo que não se deve oferecer recepções aos amigos e parentes. Está advertindo que quem pratica o bem somente para os semelhantes, os da sua mesma classe social, recusando-se a fazer o mesmo com as pessoas mais humildes, na verdade, não age como cristão. Recentemente, o Papa Francisco fez uma comparação interessante, quando disse: de que adianta ir à missa e comungar se, quando chega de volta ao seu apartamento, nem cumprimenta o porteiro do prédio? O profissional que escolhe a sua clientela olhando apenas o poder aquisitivo e a consequente possibilidade da retribuição material não está agindo como cristão. Atender com alegria o cliente bem-vestido e perfumado, enquanto o cliente de aparência modesta é recepcionado com frieza e má vontade, não é atitude digna de quem se considera discípulo de Cristo. Novamente, devemos entender que não se trata de um local físico, de um almoço ou jantar convencionais, mas é preciso alcançar o nível do simbolismo da mensagem.

No final desta parábola, Jesus diz: “quando deres uma festa, convida os pobres, os aleijados, os coxos, os cegos. ” (Lc 14, 13) Ora, isso não deve ser entendido na sua literalidade, mas no sentido metafórico: quando tu tratas bem os iguais a ti, aqueles que podem também te fazer o mesmo, a tua recompensa já foi dada, através dos elogios que recebes e das promessas que ouves. Mas se ages desse mesmo modo também com aqueles que não podem te retribuir, a recompensa será dada pelo Senhor, justo juiz. E de nada nos adiantaria cumprir a literalidade desse texto, promovendo banquetes para os indigentes, os excluídos, os moradores de rua, se o nosso espírito, a nossa atitude interior demonstrar superioridade, distanciamento, ojeriza ou indiferença. A humildade não está nas práticas exteriores, mas no sentimento de solidariedade que deve acompanhá-las. Esta é a diferença entre praticar a humildade e ser humilde. Alguém pode praticar atos exteriores de humildade e manter o espírito soberbo, isso de nada adianta. A humildade não é medida pela quantidade de bens materiais que alguém possui, mas pelo grau de desapego que tal pessoa demonstrará em relação a esses bens. Vale lembrar, nesse contexto, o inspirado comentário de Paulo sobre Jesus, na carta aos Filipenses (2, 5-7): sendo de condição divina, Jesus não se prevaleceu disso, mas esvaziou-se a si mesmo, assumindo a forma de servo e tornando-se semelhante a nós. Ele, sendo Deus, não precisava passar por todos aqueles tormentos. No entanto, Ele optou pela humildade até as últimas consequências, para nos dar o maior exemplo de capacidade de renúncia, quando Ele se desapegou até de sua condição divina, para sacrificar-se por nós homens, que nada temos para dar-Lhe em recompensa. Esse é o desafio que Jesus deixou para aqueles que aderem ao seu projeto e aceitam ser seus discípulos.

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COMENTÁRIO LITÚRGICO - 21º DOMINGO COMUM - 25.08.2019

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 21º DOMINGO COMUM – A PORTA ESTREITA – 25.08.2019

Caros Confrades,

As leituras litúrgicas deste 21º domingo comum nos convidam a refletir sobre o tema da salvação, que é oferecida universalmente, ou seja, Deus não escolheu apenas um grupo, ainda que numeroso, para distribuir com este a sua graça, mas a oferece a todos. Porém exige certos requisitos para que a graça salvífica passe a agir na vida do crente. A graça divina é infinita e está disponível para todas as pessoas de boa vontade, todos os que procuram a Deus com o coração sincero, isso significa que há diversas “portas” por onde é possível entrar para a vida eterna, no entanto, o cristão deve desconfiar das portas largas, pois estas levam a paragens ilusórias. A salvação vem associada à cruz, portanto, não é merecedor da salvação quem não carrega alegremente a sua cruz, seguindo o exemplo de Cristo.

A primeira leitura, retirada do livro de Isaías (66, 18-21- deuteroIsaías, parte do livro escrita após o cativeiro da Babilônia) é de uma clareza extraordinária. É impressionante a visão de futuro do profeta, a precisão dos detalhes com que ele aponta os acontecimentos da salvação: “virei para reunir todos os povos e línguas; eles virão e verão minha glória.” (Is 66, 18) E prossegue mais adiante: “Escolherei dentre eles alguns para serem sacerdotes e levitas.” (Is 66, 21) O profeta anuncia como será o futuro da humanidade. Obviamente, ele escrevia para as pessoas do seu tempo. Porém, numa perspectiva escatológica, o profeta se refere a todos nós, quando explica: “...para as terras distantes, e, para aquelas que ainda não ouviram falar em mim e não viram minha glória.” (Is 66, 19) Com isso, o profeta estava anunciando ao povo hebreu que a aliança de Javeh com Abraão não se referia apenas a eles, ou seja, quando Ele disse que a descendência de Abraão seria mais numerosa do que as estrelas do céu, isso significava o alcance universal da promessa, ultrapassando os limites da nação hebraica. E o profeta complementa: dentre estes estrangeiros, escolherei alguns para serem sacerdotes e levitas, ou seja, esses que ainda não Me conhecem também serão meus anunciadores. É curioso como alguns pregadores de visão curta e fundamentalistas insistem em contar o número de pessoas a quem Javeh dirigiu a mensagem da salvação, ligando essa ideia aos 144.000 assinalados do Apocalipse (Ap 7,1). A imagem transcrita por João contém um enigma a ser decifrado e comporta divergências. Ao contrário, a profecia de Isaías é clara e direta: a mensagem da salvação é dirigida a todos os povos, inclusive àqueles que ainda não conhecem Javeh, mas que virão a conhecê-lo, através dos seus mensageiros. O momento histórico vivido pelo povo de Israel naquela época, retornando à pátria após livrar-se do cativeiro babilônico, era de grande euforia e isso refletia o desejo do Profeta de levar a todos os povos a misericórdia e a fidelidade de Javeh.

Na segunda leitura, retirada da Carta aos Hebreus, o tema da salvação universal também está presente em outra perspectiva, numa dimensão do castigo disciplinar, da correção educativa, para aqueles que não estão comprometidos com a sua missão. O autor da carta, antes atribuída ao apóstolo Paulo, exorta os seus compatriotas hebreus, após a morte de Cristo, sobre a nova forma de compreender o sofrimento. Havia entre os hebreus uma entendimento antigo que interpretava o sofrimento como castigo divino, de modo que uma pessoa infeliz era tida como alguém que não gozava da amizade de Javeh. Vemos diversas passagens no evangelho em que Cristo recrimina os fariseus por causa dessa ideia (por ex: Jo 9, 1-3). O autor da Carta aos Hebreus vem repetir essa mesma lição de Cristo em outro contexto, dizendo que o sofrimento faz parte da vida e que devemos compreendê-lo como um recurso pedagógico para nos aproximar do caminho da verdade. Assim diz: “não te desanimes quando ele te repreende; pois o Senhor corrige a quem ele ama e castiga a quem aceita como filho'.” (He 12, 6) E complementa: qual o filho a quem o pai não corrige, quando aquele erra? Daí a advertência em He 12, 13: “acertai os passos dos vossos pés', para que não se extravie o que é manco, mas antes seja curado.” Isso quer dizer que as pessoas que sofrem e as mais necessitadas não devem ser excluídas, mas trazidas para o convívio fraterno, para que não se percam, mas sejam socorridas. “É para a vossa educação que sofreis, e é como filhos que Deus vos trata. ” (He 12, 7) Exemplo dessa linha pedagógica nós encontramos também nas cartas de Paulo, quando trata da questão dos judaizantes (por ex: Romanos 14, 5), pois o povo hebreu tinha aquela ideia de que, por serem descendentes de Abraão e, portanto, os legítimos herdeiros da promessa, eles eram os primeiros da fila, ou seja, os demais deviam inspirar-se no exemplo deles. A Carta aos Hebreus, assim como as outras lições de Paulo, vêm mostrar que esse raciocínio é ilegítimo, pois pode até ocorrer o oposto, isto é, os últimos serem os primeiros, conforme está no evangelho de Lucas (13, 30).

A terceira leitura é exatamente do evangelista Lucas (13, 22-30), no trecho em que narra a pergunta feita por alguém a Jesus: é verdade que são poucos os que se salvam? Curiosamente, o evangelista não identifica quem foi o autor da pergunta, mas por se tratar de um tema muito preocupante para os fariseus, podemos supor que tenha sido um deles. Muitos fariseus de boa vontade acompanhavam Jesus e escutavam seus ensinamentos. Partindo do estilo da resposta dada por Jesus, deve ter sido mesmo um fariseu o perguntador, por causa dos exemplos que Ele dá. Como costuma acontecer, Jesus nunca responde diretamente às perguntas, mas faz isso através de exemplos e de situações ilustrativas. Neste caso, Ele usa o exemplo da porta estreita, afirmando indiretamente que não existe um número determinado de pessoas aptas à salvação, mas que quem quiser salvar-se deverá escolher a porta estreita. Sabe-se que uma porta larga é um lugar mais cômodo de passar, mas neste caso, ela deve ser evitada. No caso dos fariseus, a “porta larga” significava a mentalidade que eles tinham de serem os herdeiros da promessa de Javeh e, portanto, já estavam com a salvação garantida. Então, Jesus quer mostrar que a salvação é um dom divino dirigido a todos e que, embora seja gratuito, exige atitude de quem quer salvar-se, por isso, deve escolher a porta mais difícil de entrar. Portanto, não alcança a salvação quem fica de braços cruzados, pensando que já foi escolhido e isso basta, e não cuida de fazer a sua parte. Por isso, Ele cita uma situação hipotética: o patrão fechou a porta e quando o servo pede para abrir, o patrão responde que não o conhece. O servo insiste: eu comi e bebi junto contigo... mas o patrão continua dizendo: não sei de onde sois.

Quais são, concretamente, essas “tarefas árduas”, que Jesus simboliza com a imagem da porta estreita? Falando num linguajar também simbólico, será cada um carregar a sua cruz de cada dia, não se queixando nem reclamando, mas na alegria e na esperança. A tolerância com os irmãos, a prática da justiça, o exercício da caridade são alguns comportamentos práticos associados à porta estreita. Quem se acomoda na presunção de estar salvo pelo sangue de Cristo e se descuida dos seus deveres de cristão, de testemunhar o amor de Cristo através das suas ações ouvirá do Mestre, diante da porta fechada: não sei de onde sois. Foi por isso que Jesus advertiu que muitos tentarão entrar na porta estreita e não conseguirão, estes são os que se contentam com uma religião de exterioridades, como acontecia com os fariseus do seu tempo. Estes achavam que bastava o cumprimento da lei, bastava jejuar, dar esmolas, ir ao templo nos dias de preceito, fazer suas orações e pronto. Saindo do templo, lá estavam eles com o coração cheio de orgulho, inchado pela prática da injustiça, obeso pelo desprezo para com os irmãos… meus amigos, precisamos vigiar para que isso não aconteça conosco. Esse puxão de orelhas de Jesus hoje é dirigido a todos nós. A nossa participação nesse projeto universal salvífico de Cristo se encontra descrito na passagem de Lc 13, 29: Virão homens do oriente e do ocidente, do norte e do sul, e tomarão lugar à mesa no Reino de Deus. Devemos, a todo custo, evitar nos colocarmos na posição dos fariseus, porque essa tentação da soberba sempre acometeu os cristãos em todos os tempos. A porta estreita não é compatível com essa conduta.

A porta estreita, enfim, não significa sofrimento, doença, tristeza, escassez, como outrora se interpretou, como se fosse necessário o autoflagelo, a privação das coisas materiais a fim de obter a salvação. Os bens materiais são dons divinos e eles somente atrapalham a nossa vocação para o Reino de Deus quando são direcionados para o nosso egoísmo e para a nossa ganância, porém se forem colocados ao serviço da comunidade, se forem objeto da partilha e instrumentos da prática do bem, eles não causarão embaraço ao projeto de Deus.

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