domingo, 24 de fevereiro de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 2º DOMINGO DA QUARESMA - VISÕES FUTUROLÓGICAS - 24.02.2013


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 2º DOMINGO DA QUARESMA – VISÕES FUTUROLÓGICAS – 24.02.2013

Caros Confrades,

Neste domingo, 2º da quaresma, a liturgia nos traz, como de costume, a narração da transfiguração de Cristo perante os apóstolos escolhidos. Fala também sobre a promessa de Javé a Abrão e sobre a advertência de Paulo aos Filipenses, dizendo que nós seremos transfigurados, tal como Cristo.

Na primeira leitura, lemos o início das negociações entre Abrão e Javeh, com vistas à formação da aliança, que deu origem ao povo escolhido. Abrão pede um sinal e Javeh mandou que ele trouxesse animais e aves para sacrificar em sua homenagem, ocasião em que Javeh trouxe o fogo para a consumação do sacrifício, prometendo a Abrão uma descendência mais numerosa do que as estrelas do céu. Esta passagem do Gênesis (Gn 15, 17), assim como outras similares, formam aquele conjunto de conteúdos legendários da memória hebraica, sustentados durante séculos por uma tradição oral, com imensas probabilidades de alterações ao longo do tempo, pois nenhuma tradição oral se mantém incólume. E reflete também a cosmologia da época, no que se refere à contagem das estrelas, pois estas eram entendidas como se estivessem penduradas na abóbada celeste. De todo modo, a promessa de Javeh a Abrão diz respeito à visão futurológica do povo hebreu, que passa pela intervenção miraculosa d'Ele. Com efeito, Abrão era já idoso, assim como sua mulher Sarah, e não tinham conseguido gerar filhos até então. Como poderia ele ter uma descendência tão numerosa sozinhos, sem a ajuda de Javeh?

Por falar nos conteúdos legendários contidos sobretudo no pentateuco, os primeiros cinco livros da Bíblia, convém observar que as primeiras partes escritas da Bíblia apareceram por volta do ano 1.000 a.C., época do rei Salomão, ou seja, século X. Por sua vez, a época de Abrão está situada historicamente em torno do ano 1.800 a.C, ou seja, entre os séculos XIX e XVIII a.C., o que significa que a tradição oral que conservou a história de Abrão passou cerca de 800 anos sendo transmitida de pai pra filho. Convenhamos, é muito tempo para imaginar que tenha se mantido fiel às suas origens. Nessa linha de raciocínio, devemos entender esses conteúdos legendários pela sua mensagem finalista, pois foram escritos no futuro referindo-se a fatos passados.

Na segunda leitura, trecho da carta de Paulo à comunidade de Filipos, uma das primeiras comunidades cristãs fundadas por ele, pela qual ele tinha grande estima, constata-se a angústia de Paulo (Fl 3, 18) quando ele escreve: muitos de vocês estão se comportando como inimigos da cruz de Cristo, não façam isso, sede meus imitadores, vivam de acordo com o exemplo que eu vos dei. Não dêem maus exemplos, pensando só nas coisas terrenas, porque nós somos cidadãos do céu. Então, Paulo faz o seu discurso futurológico, ao afirmar que (Fl 3, 21), se vivermos de acordo com o evangelho, teremos no céu um corpo glorioso, semelhante ao corpo de Cristo. Os gregos eram os grandes comerciantes do Mediterrâneo, capitaneados pelo império romano. Aceitaram a pregação de Paulo e aderiram ao cristianismo, mas com a viagem deste, voltaram aos seus afazeres materiais, diversões, comedeiras e bebedeiras, daí a chamada de atenção de Paulo: o fim destes é a perdição, o deus deles é o estômago e a sua glória está na vergonha. Esta advertência de Paulo se aplica aos nossos dias, para que não deixemos que os nossos compromissos de cristãos sejam suplantados pelas urgentes e inadiáveis necessidades que a cada dia nos afetam. Não podemos deixar que o nosso deus seja a gula nem que o nosso pensamento se concentre apenas nos bens materiais. Vale lembrar nesse contexto, outra advertência de Paulo, desta ver aos Coríntios (1Cor 10, 31): quer comais, quer bebais, ou façais qualquer outra coisa, fazei tudo para glória de Deus.

Na leitura do evangelho de Lucas (9, 29-36), temos a conhecida narração da transfiguração de Jesus diante de Pedro, Tiago e João. Pela narração do evangelista, deduz-se que eles não entenderam nada daquilo, agarraram no sono e quando acordaram, Jesus já estava se despedindo. O completo entendimento desse episódio somente chegou para eles muito tempo depois, quando Jesus já havia ressuscitado. Chega-se a essa conclusão pelo contexto da narrativa. Primeiro, aquela visão espiritualizada de Cristo conversando com dois personagens também espirituais; segundo, o assunto da conversa (de acordo com Lucas, Jesus conversava com Moisés e Elias sobre a sua futura paixão e morte, coisa que Jesus já tinha explicado para eles diversas vezes e ele não conseguiam entender); terceiro, os discípulos, muito provavelmente, ficaram como que hipnotizados com aquela visão fantástica e quedaram-se em profunda letargia. Diz Lucas (9, 36) que aqueles discípulos não falaram nada daquilo pra ninguém e nem conversavam entre eles sobre o assunto. Penso que cada um deve ter pensado que tivera um sonho (ou um pesadelo) e teve receio de comentar com o outro.

Foi quando uma nuvem os encobriu e eles ouviram a revelação do Pai: este é o meu filho prometido, escutai-O. A palavra grega escrita por Lucas é “eklelegménos”, conjugação do verbo “legow”, que São Jerônimo traduziu por 'dilectus' e anteriormente a tradução portuguesa seguia a terminologia latina (meu filho amado), mas no texto oficial da CNBB, foi traduzida por “o escolhido”. Com efeito, o verbo “legow” tem o significado como escolher, mas tem também o sentido de anunciar, declarar, então no contexto da história da salvação, parece-me que este último sentido estaria mais apropriado. Daí que eu preferi traduzir por “filho prometido, anunciado”, porque estamos tratando da visão futurológica expressa na liturgia deste domingo. Coerente com o tema da primeira leitura, onde se rememora a aliança com Abrão, o futuro desta promessa era a vinda do Salvador. Jesus é, portanto, aquele que fora prometido desde o início.

Os dois personagens com os quais Jesus dialogava (Moisés e Elias), de acordo com a explicação tradicional da exegese, representam a Lei e os Profetas, os primórdios da história do povo hebreu, quando Javeh entregou a Torah ao povo através de Moisés, e depois a continuidade dessa presença viva de Javeh falando ao seu povo, através dos profetas. Em outra reflexão, eu abordei a questão do por que não foi Isaías, que Jesus cita muito mais vezes, o personagem do diálogo e sim Elias. Talvez porque este foi o profeta que ressuscitou o filho único da viúva de Sarepta, havendo assim uma alusão indireta à ressurreição de Jesus após sua paixão. Agora, ponho outra questão: por que Jesus não chamou todos os doze apóstolos para testemunharem aquela demonstração de sua divindade, mas apenas aqueles três – Pedro, João e Tiago? Fica difícil saber com certeza, mas podemos fazer conjeturas. Talvez, um reconhecimento da liderança de Pedro, fato que seria posteriormente tomado como argumento para justificar o primado do Papa. Talvez o fato de João e Tiago terem um certo parentesco com Jesus, lembrando que, há pouco tempo, foi encontrado um túmulo com a inscrição “Tiago irmão do Senhor”, e sabe-se que João era irmão de Tiago, ambos filhos de Zebedeu e seguidores de Cristo desde as primeiras horas. Talvez por serem aqueles em quem Ele tinha mais confiança ou demonstravam melhor entendimento. Talvez porque Ele quisesse manter o fato em segredo e isso seria mais difícil com um grupo numeroso.

Qualquer que tenha sido o motivo, penso que interessa apenas que eles foram os escolhidos por Jesus, da mesma forma que Jesus havia sido escolhido e prometido pelo Pai. Felizmente para nós, diferentemente dos outros nove apóstolos que não participaram daquela experiência, somos todos escolhidos por Ele para conhecer sua doutrina e chamados a participar da construção do céu na terra. Aos apóstolos, Jesus não se revelou a todos, mas a nós, Ele se revelou sem restrição. Daí o conselho de Paulo, que pediu chorando aos Filipenses para que eles não se deixassem levar pela atração das coisas terrenas, porque assim estavam se desviando do foco da missão e perdendo a visão do seu futuro como cristãos. A figura do Cristo transfigurado é o apelo d'Ele para nós a fim de que tenhamos sempre na mente o nosso destino glorioso, mantendo sempre a esperança e combatendo o bom combate, nunca perdendo o foco em nossa atuação, mas permanecendo firmes na promessa do nosso futuro.


domingo, 17 de fevereiro de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 1º DOMINGO DA QUARESMA - AS TENTAÇÕES DE CADA UM - 17.02.2013


COMENTÁRIO LITURGICO – 1º DOMINGO DA QUARESMA – AS TENTAÇÕES DE CADA UM – 17.02.2013

Caros Confrades,

A liturgia deste 1º domingo da quaresma põe para nossa reflexão, como de costume, o tema das tentações suportadas por Jesus Cristo, nos persuadindo e incentivando a vencer as tentações de cada dia, do mesmo modo que Jesus venceu as tentações que teve no deserto. Nas duas primeiras leituras, o tema em destaque é a fé na dimensão da universalidade: no texto de Deuteronômio, a fé do povo hebreu em Javeh; no texto de Paulo a Romanos, a fé em Cristo, que congrega todos os crentes.

Apenas para recordar um tema que já foi abordado aqui outras vezes, temos nas leituras de Deuteronônio e no evangelho de Lucas a simbologia do numero 40. Dentro do cenário bíblico, o número 40 aparece sempre antecedendo a ocorrência de um fato muito importante. Não significa literalmente a passagem de 40 dias ou meses ou anos, mas o tempo oportuno para o poder de Deus se manifestar através de alguma obra grandiosa. Na liturgia moderna, a simbologia dos 40 dias é observada no período que antecede a Páscoa (quaresma) e no período que vai da Ressurreição até a Ascensão de Jesus.

Na primeira leitura (Deuteronômio, 26, 4-10), o texto traz as instruções de Moisés ao seus auxiliares, porque ele já sabia que não chegaria até a terra prometida, apenas a veria de longe. Possivelmente, a instrução seria para Josué, que foi o sucessor de Moisés no comando do povo, na reta final. Quando eles chegassem à terra prometida, deviam levar ao altar do Senhor em oferenda os primeiros frutos da terra e ali professar o agradecimento de todo o povo pela condução que tiveram durante a peregrinação pelo deserto, tempo em que tiveram de enfrentar um sem número de desafios físicos e espirituais, tendo o Senhor os conduzido sempre e constantemente perdoado as infidelidades deles. O livro tem esse título (deuteros+nomos=segunda lei) porque se trata de um compêndio encontrado casualmente numa escavação no templo e que repete em parte normas já contidas na Torah, os cinco primeiros livros. Este livro é um verdadeiro 'código de legislação' hebraica, tantas e tão pormenorizadas são as prescrições e os rituais descritos. É uma verdadeira compilação do direito hebreu, que não fazia distinção entre normas religiosas e normas civis, porque a sua organização era um estado teocrático.

Nos dias de hoje, temos ainda a sobrevivência dos estados teocráticos no Irã, no Afeganistão, além de outros países orientais islâmicos, onde as pessoas podem ser presas por blasfêmia (transgressão religiosa em geral). Um repórter perguntou a um nativo afegão, quando em viagem por lá no período conhecido como Ramadã, tempo em que os islâmicos fazem jejum obrigatório, o que aconteceria se ele (repórter) fosse visto 'quebrando o jejum'. O nativo respondeu: as pessoas reconhecem que o senhor é um estrangeiro e não farão nada, mas se for um de nós, eles chamarão a polícia. Curioso nisso, que eu não sabia, é que o jejum é apenas durante o dia, porque após o por do sol, as pessoas podem ser alimentar à vontade. Existem os locais já conhecidos pela população onde são servidas refeições gratuitas após o por do sol, porque evidentemente ninguém aguenta passar o mês sem comer.

Temos na segunda leitura (Paulo a Romanos, 10, 8-13), a lição paulina sobre a universalidade da fé em Cristo: é irrelevante se alguém é judeu ou grego – e nós podemos acrescentar: europeu ou americano, africano ou indiano – o que importa é crer em Jesus com o coração e confessar essa fé com a boca, pois todo que nEle crer não ficará confundido. Quando Paulo fez essa afirmação, pensava apenas no mundo do seu tempo, mas por extensão, alcança todos nós. Foi naquela polêmica que surgiu em Roma dos cristãos judaizantes, que achavam que só podia ser cristão quem aderisse à lei de Moisés e fizesse a circuncisão. Então, Paulo ensinou que o batismo cristão supre e substitui todos os rituais da antiga lei. Roma, a grande metrópole na qual o cristianismo se universalizou, era uma grande babel daquele tempo, abrigando pessoas das mais diversas origens e nacionalidades, consequentemente, dos mais diversos idiomas e costumes. Foi o primeiro grande desafio enfrentado na pregação do evangelho para os pagãos ou gentios, resolvido graças à intervenção oportuna e sábia de Paulo.

A leitura do evangelho de hoje, de Lucas 4, 1-13, repete a narração contida nos outros dois sinóticos: após ter sido batizado por João Batista, o Espírito conduziu Jesus ao deserto, onde ele jejuou durante 40 dias e foi tentado por Satanás. Conforme já mencionei em comentário similar no ano passado, retiremos da nossa mente aquele personagem com chifres na cabeça e pés de bode, exalando enxofre, figura produzida pelos pintores medievais. As tentações de Jesus representam os 'perigos' que a sua natureza divina poderia significar em situações de extrema pressão psicológica. Para cumprir os desígnios do Pai e para cumprir o plano salvífico, Jesus precisava passar por todo aquele padecimento enquanto pessoa humana. De fato, nós sabemos que Jesus enfrentou diversos desafios, que para Ele seriam facilmente resolvidos se usasse o poder divino, mas ele não podia fazer assim. Foi uma espécie de treinamento que ele realizou para comportar-se plenamente conforme a natureza humana.

Então, quais foram mesmo as grandes 'tentações' de Jesus? 1. Transforma essas pedras em pão... tentação do poder; 2. Eu te darei todos os reinos... tentação da riqueza; 3. Joga-te daqui para baixo... tentação do orgulho/vaidade. Quantas vezes, os fariseus tentaram Jesus para que Ele realizasse um milagre na presença deles. Herodes foi um que disse na cara de Jesus: “você é uma piada”, porque insistiu pra Jesus fazer um 'milagrezinho' na presença dele (cf Lucas 9, 7 e 23, 6), e Ele nada disse. Portanto, se quisermos encontrar a figura de satanás tentando Jesus, não busquemos essa no deserto, onde ele jejuou, mas nos diversos fariseus que o tentaram em vão. O próprio Judas, que certamente vira Jesus fazer vários milagres, não conseguia acreditar que Ele fosse suportar todas aquelas humilhações impostas pelos chefes dos sacerdotes e iria 'dar a volta por cima', até pagou pra ver, mas perdeu a aposta. Desculpem-me, meus amigos, porque talvez alguns não concordem com o que vou escrever, mas muitas vezes, a figura de satanás é utilizada para encobrir nossas próprias fraquezas e nossa personalidade imperfeita. As grandes tentações que nos afetam não nos vêm de um agente exterior, mas da nossa “trindade” interior: id, ego e superego (tomando emprestada a terminologia de Freud).

Meus amigos, veio-me a lembrança agora uma frase emblemática do filósofo austríaco Edmund Husserl, que insistia sempre: “voltemos às coisas mesmas”. Este apelo de Husserl corresponde ao início da filosofia fenomenológica, por ele defendida, instruindo-nos a reconhecer e valorizar as nossas próprias percepções e não procurarmos a todo custo racionalizar os acontecimentos, buscar explicações lógicas e racionais para tudo, através da generalização conceitual abstrata. Trago esta frase para este contexto pela mensagem que ela encerra. Encaremos de frente o nosso próprio ser, sem ocultações ou subterfúgios. Voltemo-nos para nós mesmos e tenhamos coragem de assumir nossas fraquezas, pois somente assim estaremos criando condições de superá-las. Foi o que Jesus foi fazer no deserto: refletir sobre ele mesmo, sobre sua condição divina e humana, sobre a sua missão espinhosa e dolorosa da qual ele não podia se esquivar. A literatura transformou essa autoanálise em tentação e os subterfúgios inconscientes dele na figura do tentador. Mas nós devemos ir além dessa metáfora tradicional. Quando fazemos algo do qual depois ficamos arrependidos, não foi um satanás exterior que nos tentou, foi ação daquele satanás que reside num canto escuro do nosso ser mais íntimo e nós tentamos fugir dele, através de processos de racionalizações das nossas próprias decisões equivocadas. Se sairmos disso, seremos capazes de reciclar também a nossa noção de pecado.

Que o Mestre nos ensine sempre e nos dê sempre força para superarmos as nossas imperfeições e frustrações.


domingo, 10 de fevereiro de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 5º DOMINGO COMUM - A VOCAÇÃO DE CADA UM - 10.02.2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 5º DOMINGO COMUM – A VOCAÇÃO DE CADA UM – 10.02.2013

Caros Confrades,

Na liturgia deste 5º domingo comum, as leituras mostram três situações diferentes, pelas quais a vocação divina foi dirigida a personagens importantes na história da salvação. Esses exemplos nos levam a refletir sobre a vocação de cada um, pois Deus se serve de acontecimentos diversos para nos chamar a realizar uma missão que Ele nos destinou.

Na primeira leitura, temos o relato da vocação do profeta Isaías (6, 1), onde ele diz que foi no ano da morte do rei Ozias (740 a.C.) que ele começou a profetizar. Diz Isaías que viu o Senhor dos exércitos sentado no trono, rodeado de serafins e ficou com medo, porque era apenas um pecador. Então, um dos serafins tirou uma brasa do altar e com ela tocou a boca de Isaías, purificando-lhe os lábios para que ele pudesse falar em nome de Javé. Após isso, ele disse ao Senhor: estou pronto, envia-me. Este é, sucintamente, o relato de Isaías e daí podemos fazer algumas considerações.

Primeiro, destaco o fato de que foi Isaías o profeta que mais se aproximou da realidade do futuro Messias, inclusive sobre o martírio a que ele teria de se submeter, tanto assim que Jesus o cita por diversas vezes, no período de sua pregação. Mas Isaías, por causa do contexto histórico e político do reino de Judá, onde ele vivia, sempre às voltas com guerras e ameaças de invasões por parte dos inimigos, tinha a visão de Javeh como um chefe guerreiro, o Senhor dos exércitos, de modo que as previsões que ele fez do Messias eram também de um destemido guerreiro, que viria expulsar os inimigos. Não é de admirar, portanto, que o povo hebreu tenha resistido em reconhecer a messianidade de Jesus, porque ele não veio na condição de libertador político, conforme haviam predito os profetas. Quando Jesus veio pregar um reino do amor e da mansidão, eles não compreenderam nada, porque a expectativa histórica que se formara, ao longo de tantos séculos, era de um Messias lutador e aguerrido.

Esse trecho de Isaías contém ainda uma invocação que foi colocada no cânon da missa como parte fixa: o santo, santo, santo (Is 6, 3) que era o canto entoado pelos serafins que ladeavam o trono de Javeh. Em primeiro lugar, gostaria de explicar algo sob o aspecto gramatical, que não sei se todos sabem. Na língua hebraica, não há uma mudança morfológica na palavra, quando ela se põe no superlativo. Por exemplo, em português, o superlativo de santo é santíssimo, mas no hebraico, por falta dessa versatilidade da língua, o superlativo da palavra se expressa com a sua repetição por três vezes. Desse modo, 'santo, santo, santo' (em hebraico: kadosh, kadosh, kadosh) quer dizer santíssimo. Outro detalhe é que Isaías escreve: Senhor Deus Sabaoth, palavra hebraica que significa exércitos. Quem se recorda da invocação latina, lembra disso: Sanctus, sanctus, sanctus, Dominus Deus Sabaoth. É o Senhor que vence as guerras e derrota os inimigos, como faziam os reis daquele tempo.

Outro detalhe interessante é que o serafim tomou uma brasa do altar com uma tenaz (para não se queimar) e com ela tocou os lábios de Isaías (que não se queimou), ficando com isso purificado para falar em nome de Javeh. É interessante notar essa figura do fogo como símbolo da purificação, que tem presença constante nas imagens bíblicas. A brasa foi retirada do próprio fogo aceso para o sacrifício das vítimas que eram oferecidas ao Senhor. Ora, esse detalhe insinua que Isaías teve esta visão enquanto estava no templo. Isaías teve a árdua missão de denunciar os pecados do povo de Deus, desde os simples fiéis até os governantes, fato que ele fez com muita coragem, mesmo sabendo dos riscos que corria. Não é fato confirmado, mas há uma tradição que afirma que Isaías morreu ao ser serrado no meio do corpo, por ordem do rei Manassés.

Na segunda leitura, o apóstolo Paulo conta, de sua própria pena, a sua vocação, história que todos conhecemos. Mas ele faz alguns complementos interessantes sobre as aparições de Cristo após sua ressurreição, narrativas que estão em certa divergência com os evangelhos. Por exemplo: diz que Jesus apareceu primeiro a Cefas (Pedro) e depois aos doze (2Cor 15, 5); esta aparição a Pedro isoladamente não consta nos evangelhos. Diz depois: mais tarde, apareceu a mais de 500 irmãos de uma vez, depois apareceu a Tiago e depois aos apóstolos todos juntos. Pelas narrativas evangélicas, essas aparições a 500 irmãos e a Tiago não estão documentadas, no entanto, não se pode dizer que Paulo esteja faltando com a verdade. Isso significa que Jesus fez muito mais aparições do que os evangelhos relatam.

Por fim, em 2Cor 15, 8, Paulo diz que Jesus apareceu também a ele (“como um abortivo”), afirmando não ser merecedor de tamanha honra. Nesse ponto, Paulo está fazendo um discurso de humildade, arrependido do tempo em que foi perseguidor da Igreja. Mas logo depois (vers. 10), ele faz um autoelogio, ao dizer: tenho trabalhado mais do que os outros apóstolos. Do modo como está escrito, fica transparecendo que Paulo achava os demais apóstolos preguiçosos ou, no mínimo, não tão dedicados quanto eles. Talvez ele tenha exagerado um pouco na valorização do seu trabalho. Mas o fato é que isso é verdade mesmo. A colaboração de Paulo, na divulgação do evangelho no território grego e depois na Europa toda, foi inigualável, não apenas pela extensão da área visitada, mas principalmente pela qualidade de sua pregação e da sua pedagogia. Paulo era o único intelectual do grupo. Aliás, na minha convicção, a vocação de Paulo é uma das maiores provas da divindade de Cristo, porque se dependesse dos doze, dificilmente o cristianismo teria alcançado a expansão que atingiu, em termos de locais habitados naquela época.

O evangelho de Lucas (5, 1-11) expõe a vocação dos primeiros apóstolos: Pedro, seu irmão André, Tiago e João, filhos de Zebedeu, todos pescadores. Primeiro, Jesus entrou na barca de Pedro e pediu que se afastasse um pouco da margem do Mar da Galiléia (ou Lago de Genesaré), para que pudesse pregar para a multidão que estava na praia. Depois, Jesus ordena que Pedro adentre para águas mais profundas, a fim de pescar. Ele estava meio desanimado, porque na noite anterior, a pescaria tinha sido um fiasco. Foi então que se deu a pesca milagrosa: eram tantos peixes que o peso deles rompia as redes e foi preciso chamar a outra barca (de Tiago e João), para que o auxiliassem. Foi o sinal para que Pedro se rendesse diante do poder de Jesus e Este o convidasse para ser pescador de gente, estendendo o mesmo convite aos demais. O resto da história é por demais conhecido.

Pois bem, meus amigos. O que vemos de comum nesses três episódios? É o fato de que Deus se serve de fatos da existência das pessoas para chamá-los a colaborar na Sua missão. A Bíblia utiliza muito o conceito tradicional de “reino” de Deus e toda a literatura teológica também o repete com abundância. A ideia do 'reino' era algo usual e frequente nos tempos mais antigos, quando a forma política da monarquia era a mais adotada. Por isso, penso eu que, nos tempos atuais, se torna uma palavra arcaica e com pálido sentido. Falar-se em “reino” de Deus (venha a nós o Vosso reino) parece algo muito distante ou com um simbolismo que não se encaixa na nossa realidade cotidiana. Com isso em mente, parece-me preferível utilizar o conceito de “missão”, pois os outrora denominados “trabalhadores do reino” são, de fato, os missionários de hoje. Missão é um conceito mais próximo da nossa realidade, identifica-se mais com a nossa vida social, na qual somos chamados a agir dando testemunho da nossa fé perante a comunidade. O nosso compromisso de cristãos é um compromisso missionário.

Vemos também, nesses episódios das leituras de hoje, que o chamado missionário de cada pessoa é diferente, Deus se serve de fatos relacionados com a rotina de cada um e, por intermédio desta, faz o seu chamamento. Todos nós, que um dia estivemos no Seminário, podemos refletir sobre o que nos conduziu até lá (e também o que nos conduziu para fora de lá) e tentar descobrir os termos pelos quais Deus se dirigiu a nós e nos incumbiu de uma missão. Nós não precisamos sair da nossa rotina para recebermos o chamado de Deus, nem para realizar na nossa vida o que Ele deseja e espera de nós. As leituras deste domingo nos dão o ensejo de repensar e redescobrir a nossa missão, bem como de avaliar como está sendo a nossa fidelidade a ela. Se estamos apenas na beira da praia ou se somos capazes de navegar em águas mais profundas, como Jesus fez com Pedro e André.



domingo, 3 de fevereiro de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 4º DOMINGO COMUM - 03.02.2013 - A CARIDADE E A PROFECIA


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO COMUM – 03.02.2013 – A CARIDADE E A PROFECIA

Caros amigos,

Após três semanas de intervalo, em decorrência de viagem e dificuldade de acesso à internet, volto com as nossas reflexões semanais, animado por mensagens recebidas dos generosos confrades, instando-me a continuar a fazê-las. Fico deveras agradecido.

Neste quarto domingo comum, a liturgia traz para nossa reflexão dois temas interessantes: o hino da caridade, uma inspirada página do apóstolo Paulo a Coríntios (1Cor 12,31) e a vocação para a profecia, nas pessoas de Jeremias e do profeta que falava em nome próprio, Jesus Cristo.

Nesse antológico texto, que já foi transformado em música popular, Paulo foi de uma felicidade muito grande, ao tecer louvores à caridade. No texto grego, Paulo usa o vocábulo “agape”, que é uma das palavra traduzidas por “amor”, mas como palavra amor é polissêmica em português, para evitar uma compreensão equivocada do seu sentido, costuma-se traduzir por 'caridade'. Apenas para esclarecer aos confrades, na língua grega, utiliza-se a palavra “eros” para significar o amor carnal, aquele voltado para a satisfação dos sentidos corporais, quase sempre numa perspectiva egoista, individualista e interesseira, enquanto a palavra “agape” é utilizada para significar o amor doação, desinteressado, amor que quer o bem do outro e não o seu próprio, daquele que é capaz de tudo para fazer feliz o seu semelhante. É o amor compartilhado, que se perfaz na entrega de si e que se plenifica com a felicidade do(a) amado(a). Como podem ver, não há uma palavra em português que carregue todo esse significado, nem mesmo a palavra 'caridade' tem essa conotação total. No entanto, é o vocábulo que mais se aproxima do significado da palavra grega “agape”, embora na nossa língua a palavra 'caridade' seja também variadamente polissêmica.

Pois bem, no famoso 'hino à caridade', Paulo adverte para a verdadeira expressão dessa forma de amor, que não se limita a meras atitudes externas, mas deve unir o interior com o exterior, para alcançar o seu pleno significado. Se eu falasse todas as línguas, isto é, se eu fosse um exímio comunicador, mas sem a caridade, seria igual a uma sineta que toca; se eu tivesse toda ciência e toda fé, ou seja, se eu fosse um sábio extraordinário e um crente ardoroso, mas sem a caridade eu nada seria. Se eu me desfizesse de todos os meus bens a serviço dos pobres, ou seja, se eu praticasse a filantropia para ser elogiado pelas pessoas, mas não tiver a caridade, de nada isso serve. E por aí segue. Meus amigos, que fantástico desafio Paulo põe diante de nós. De nada valem as nossa devoção, nossos jejuns, nossas obras de misericórdia, nossa pregação, nossas leituras da Bíblia, nossos grupos de oração, nossas participações na missa e nos sacramentos, nosso dízimo pago para o culto divino, nossos trabalhos pastorais, etc, se tudo isso não vier de uma convicção interior, de um ato original de entrega plena e total do nosso próprio ser a Deus, de um compromisso firme e permanente de seguir o ensinamento de Cristo. Se tudo o que fizermos tiver como motivação só o cumprimento do dever, a tradição familiar ou social, o peso na consciência ao ver um irmão ou irmã necessitado(a), ou pior ainda, se for para mostrar-se aos outros, se for para angariar elogios e fama na comunidade, meus amigos, estaremos sendo o que Paulo chama de 'címbalo que tine', ou seja, um corpo sem espírito, que não funciona por si, mas manipulado por uma força externa.

E passa a discorrer sobre as qualidades do amor-ágape: “A caridade é paciente, é benigna; não é invejosa, não é vaidosa, não se ensoberbece; não faz nada de inconveniente, não é interesseira, não se encoleriza, não guarda rancor; não se alegra com a iniqüidade, mas se regozija com a verdade. Suporta tudo, crê tudo, espera tudo, desculpa tudo. ” (1Cor 13, 4-7) Se nós observamos bem, Paulo está descrevendo a personalidade de Jesus Cristo, está colocando em conceitos aquilo que Jesus praticou em toda a sua vida e nos deixou como exemplo. Ele é a 'caridade' (amor-ágape) em pessoa, o modelo acabado e perfeito desta virtude. Não era à toa que entoávamos com frequência aquela jaculatória, que todos ainda devem se lembrar: “Deus charitas est et qui manet in charitate in Deo manet et Deus in eo”. A caridade é o próprio Deus. Daí porque, Paulo conclui: a caridade nunca acabará. Todas as profecias, todas as palavras, promessas e virtudes acabarão, a esperança desaparecerá e a própria fé se extinguirá um dia, mas a caridade permanecerá para sempre. Fica fácil de compreender o porquê disso: a caridade é o próprio Deus e estando na caridade, estamos nele.

Passo agora ao assunto da vocação à profecia. Em primeiro lugar, o exemplo de Jeremias, lido na primeira leitura (Jr 1, 4). Primeiramente, explico o sentido da palavra 'profeta'. Deriva do grego “prophetés”, que por sua vez, é uma palavra ligada à raiz do verbo “phêmi”, que significa 'dizer, proclamar'. A palavra 'prophetés' significa 'aquele que fala em nome de alguém', no caso da Bíblia, fala em nome de Javeh. Jeremias foi aquele profeta que ousou desafiar Javeh ao dizer: eu não vou mais falar em teu nome, porque todas as vezes em que faço isso, sou ameaçado, sou humilhado, sou expulso, não vou mais fazer isso. Então, o próprio Jeremias confessa: eu não consigo ficar calado, há um fogo abrasador dentro de mim que me impele a profetizar, mesmo que eu não queira. Foi aí que Javeh o tranquilizou: “ põe a roupa e o cinto, levanta e comunica-lhes tudo o que eu mandei dizer … eu te transformarei hoje numa cidade fortificada, numa coluna de ferro, num muro de bronze contra todo o mundo, ” (Jr 1, 18) E Jeremias se enche de coragem e vai cumprir a sua missão, enfrentando todos os riscos decorrentes dela.

A nossa vocação profética também nos coloca diante de desafios semelhantes e não podemos nos acovardar. O exemplo de Jeremias é uma motivação para nós. Ai de mim se eu não anunciar o evangelho, disse Paulo parafraseando Jeremias. (1Cor 9, 16) Cada um de nós, no exercício da nossa missão de seguidor de Cristo e de Francisco, deve também sentir dentro de si esse fogo abrasador que não permite que a nossa voz se cale, que não deixemos passar uma ocasião para testemunhar a nossa fé, para comunicar aos outros o ensinamento que recebemos de Cristo. Os profetas de outrora falavam em nome de Javeh, nós hoje falamos em nome de Cristo, que é a própria Palavra de Javeh materializada e encarnada, que nos mandou para continuarmos a sua missão, quando chamou os apóstolos e estes criaram as primeiras 'ekklesias' (comunidades), através das quais nós somos hoje chamados ao mesmo apostolado.

E aqui passamos a considerar a missão profética de Cristo, que não falava em nome de Javeh, como os profetas antigos, mas falava em nome próprio, porque Ele é a própria Palavra de Javeh. No evangelho do domingo passado, cuja continuação lemos hoje, vemos o autotestemunho de Cristo, quando ele se proclama o Messias, ao ler a passagem do profeta Isaías, cap 61: (O Espírito do Senhor Deus está sobre mim. E Ele me ungiu para pregar o evangelho. Para resgatar o pobre da sua pobreza) e depois, fechando o livro, acrescentou: hoje se cumpriu aquilo que foi dito pelo profeta. Foi uma rara ocasião em que Cristo assumiu publicamente que Ele era o Messias esperado. Alguns judeus o chamava de 'profeta', mas na verdade, ele era mais que um profeta porque falava em nome próprio. Mas os seus concidadãos tinham dificuldades em aceitar isso: como pode? É o filho de José carpinteiro, como pode ser o Messias? E ficavam esperando dele sinais extraordinários para que acreditassem, o que Cristo se recusava a fazer.

Pode até parecer estranha essa atitude de Cristo. Por que ele não dava logo os “sinais” que eles tanto queriam e assim os convencia de uma vez? Por que ficava se negando a fazer milagres em sua própria cidade? A resposta é simples: Ele queria que todos acreditassem na sua pregação, no seu testemunho, não em demonstrações de poder, em exibicionismos. Jesus queria que eles cressem na Sua pessoa sem a necessidade de ter de provar isso por meios miraculosos, porque isso levaria a uma atitude de submissão da parte deles, não a uma adesão consciente. Fazer um milagre para demonstrar poder era como obrigá-los a acreditar e esse não era o Seu objetivo. A crença devia ser fruto de uma decisão da vontade livre, não de uma situação forçada. Ele esperava que os seus concidadãos, aqueles que conheciam a sua família e O conheciam desde criança, fossem capazes de enxergar n'Ele mais do que os olhos carnais mostravam, mas isso não aconteceu. Ao contrário. Ficaram irritados e tentaram linchá-los. E Jesus terminou fazendo um milagre diferente nessa ocasião, como diz o evangelista Lucas (4, 30): passando pelo meio deles, continuou o seu caminho. Ora, de que modo Jesus teria conseguido se libertar de uma multidão irada, senão tornando-se invisível a eles e passando pelo meio da turba sem que O vissem? No entanto, mesmo assim, não perceberam o milagre nem acreditaram n'Ele.

Meus amigos, para não me alongar demasiado, concluo convidando todos a meditarem sobre a nossa vivência da vocação profética, à qual fomos chamados pelo batismo, e que em nós se consolidou com a formação recebida nas dependências seráficas.