domingo, 26 de janeiro de 2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 3º DOMINGO COMUM - A VOCAÇÃO DE CADA UM - 26.01.2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 3º DOMINGO COMUM – 26.01.2014 – A VOCAÇÃO DE CADA UM

Caros Amigos,

A liturgia deste 3º domingo comum nos convida a refletir sobre a vocação, isto é, o objetivo da vida de cada pessoa. A vocação de João Batista, a vocação de Cristo, dos seus apóstolos, de todos nós. E São Paulo exorta a comunidade de Corinto a evitar dissensões e concentrar-se na primeira e única vocação básica de todo cristão, que é seguir os ensinamentos de Cristo. Mais uma vez, entra em cena o profeta Isaías, com suas certeiras proferias acerca do Messias, que o evangelista Mateus faz questão de ressaltar como tendo sido cumpridas na pessoa de Cristo, fato que os judeus daquela época (assim como os do nosso tempo) recusavam-se a admitir.

Logo no início da primeira leitura (Is 8, 23-9,3), o profeta faz a seguinte referência histórica: “No tempo passado o Senhor humilhou a terra de Zabulon e a terra de Neftali; mas recentemente cobriu de glória o caminho do mar, do além-Jordão e da Galiléia das nações. ” (Is 8, 23) Esse “tempo passado” a que o profeta se refere foi o tempo do domínio assírio, por volta do ano 730 a.C. A fim de prevenir futuras rebeliões, os dominadores assírios deportavam os povos dominados, comunidades de diversas raças e línguas, para um determinado lugar, misturando as culturas e dificultando as comunicações entre eles. Assim é que vieram pagãos de diversas nacionalidades conviver nas terras das tribos de Zabulon e Neftali, nas margens do Mar da Galiléia, trazendo tumulto e dificuldades para os povos ali residentes, ficando essa região conhecida como “galiléia das nações”. De fato, a palavra “galiléia” (hagalil, em hebraico, transferido para o grego como galilaia) significa “distrito”, “província”, assim a galiléia das nações significava um território onde moravam populações de diversas origens, era uma região onde o povo não tinha uma identidade étnica ou cultural e, naturalmente, era também uma região de muita pobreza. No tempo de Isaías, o império assírio havia sido dominado pelos persas e já não dominava mais, no entanto, aqueles povos não retornaram para os seus locais de origem e formavam um conglomerado altamente disperso, um amontoado de línguas, costumes, religiões, culturas, uma população pobre e marginalizada, daí porque isso era considerado uma humilhação para os seus nativos. A maior cidade dessa região era Cafarnaum.

Então, diz o profeta: no passado, o Senhor humilhou aquela região, mas recentemente a cobriu de glória e uma luz resplandeceu para aquele povo que vivia na escuridão (Is 9, 1). O evangelista Mateus vai repetir literalmente essa passagem de Isaías, quando diz: (Mt 4, 12-14) Ao saber que João tinha sido preso, Jesus voltou para a Galiléia. Deixou Nazaré e foi morar em Cafarnaum, que fica às margens do mar da Galiléia, no território de Zabulon e Neftali, para se cumprir o que foi dito pelo profeta Isaías. Vê-se claramente a preocupação de Mateus em mostrar que Jesus é o Messias previsto pelos antigos profetas, ao dizer que Ele começou o seu ministério por Cafarnaum, logo após o encerramento da missão de João, o batista. Ele foi a luz que resplandeceu para aquele povo. Veem-se também, nesse contexto, delineadas as vocações de João Batista e de Jesus, o precursor e o precedido. A vocação de João era preparar o caminho; a vocação de Jesus era dar prosseguimento ao batismo da conversão, pregado por João, e levar a todos o anúncio da sua boa nova. Por isso, Mateus refere que Jesus começou sua missão em Cafarnaum exatamente continuando a mesma temática iniciada por João: “Daí em diante Jesus começou a pregar dizendo: 'Convertei-vos, porque o Reino dos Céus está próximo. ” (Mt 4, 17). Dizia o Batista: arrependei-vos porque é chegado o reino dos céus (Mt 3,2). E dizia mais: eu vos batizo com água, mas o que vem depois de mim vos batizará com o Espírito Santo e com o fogo (Mt 3, 11). Mateus faz, desse modo, a intercalação da profecia de Isaías com a missão de João e com a pregação de Jesus.

João Batista tinha vários discípulos e a estes ele mostrou Jesus, dizendo: eis o Cordeiro de Deus, a ele é que vocês devem seguir. (Jo 1, 36) Os evangelhos não mencionam os nomes desses discípulos de João Batista, exceto um deles, André, que era irmão de Simão Pedro. (Jo 1, 40). Outro provável discípulo do Batista, que depois passou a seguir Jesus, seria o próprio João evangelista. Deduz-se isso pelo modo como João narra no evangelho esses fatos, dos quais ele participou. Desse modo, quando Mateus diz: “Jesus andava à beira do mar da Galiléia, viu dois irmãos: Simão, chamado Pedro, e seu irmão André. Estavam lançando a rede ao mar, pois eram pescadores. Jesus disse a eles: 'Segui-me, e eu farei de vós pescadores de homens'” (Mt 4, 18-19), se confrontarmos essa narração com os fatos contida no evangelho de João, conclui-se que não foi bem assim. André era discípulo do Batista e foi aconselhado por este a seguir o Cordeiro, tendo convencido também seu irmão Simão a fazer o mesmo. Idêntico raciocínio se pode fazer em relação ao chamado de Tiago e João, que Mateus narra assim: “Caminhando um pouco mais, Jesus viu outros dois irmãos: Tiago, filho de Zebedeu, e seu irmão João. Estavam na barca com seu pai Zebedeu consertando as redes. Jesus os chamou.” (Mt 4, 21) João já conhecia Jesus e deve ter convencido seu irmão Tiago a também segui-lo. Dizem ainda os biblistas que, quando Jesus deixou a casa dos seus pais, em Nazaré, e mudou-se para Cafarnaum, foi morar provavelmente na casa de Pedro, tendo inclusive curado a sogra dele que estava enferma (Mt 8, 14) Foram esses os quatro primeiros discípulos que Jesus vocacionou e a missão deles também ficou desde o início definida: farei de vós pescadores de homens. Aos poucos, em circunstâncias próprias, Jesus foi chamando os demais, até formar o grupo que ele catequizou por três anos e continuou a prepará-los após a sua ressurreição, para continuarem a sua missão.

Para uma pessoa que lê a Bíblia com olhos puramente formalistas, fica difícil compreender essas divergências que observamos entre os evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas) em comparação com o evangelho de João. Mas para os estudiosos do assunto, essas diferenças são perfeitamente compreensíveis e explicáveis, não ocasionando uma ruptura doutrinária, mas tão somente formas estilísticas e modelos de composição literária. Consideremos, portanto: 1. o evangelho de Mateus, assim como os de Marcos e Lucas, são bem mais antigos do que o de João, escritos por volta dos anos 60, enquanto João escreveu por volta do ano 100; 2. os evangelhos sinóticos são compilações de textos mais antigos, que circulavam nas comunidades e tinham diferentes origens, sendo cópias de tradições orais, histórias que passavam de boca em boca, narrando os ensinamentos de Cristo; 3. na época em que João escreveu, muitas dessas divergências já haviam sido observadas e corrigidas, de modo que o texto de João é mais elaborado, mais pesquisado, mais coerente; 4. João fora testemunha ocular dos fatos. Portanto, não devemos considerar que os primeiros estejam errados e com isso colocar em dúvida o que ali está escrito. O que verdadeiramente importa é o chamado, a vocação de cada um, se foi na beira do Mar da Galiléia ou num lugar qualquer, o que realmente interessa é que eles foram chamados e atenderam ao chamado, eles aceitaram a proposta de Cristo para mudarem de vida. Em vez de serem pescadores de peixes, passariam a ser pescadores de pessoas. Para isso, eles tiveram de mudar de vida, mudar o modo de pensar, fazer uma metanóia, ou seja, uma conversão.

Na carta aos Coríntios (1Cor 1, 10-13), Paulo adverte aquela comunidade para que se concentrem na sua vocação comum de seguir a Cristo, sem procurar cultivar discórdia ou formar grupos, porque a vocação básica de todo cristão é uma só: ter Cristo como modelo de sua vida. Paulo havia sido informado de que criaram-se grupos naquela comunidade, de acordo com o líder que os guiava. Será que Cristo está dividido? Em nome de quem fostes batizados? Interroga-os Paulo. Meus amigos, vê-se que essa divisão em grupos de interesses, tão prejudicial para a vivência da comunidade, que se verifica nos dias de hoje, como se fossem pequenas seitas dentro do mesmo rebanho, já começou a existir ainda no tempo dos apóstolos. Tradicionalistas, carismáticos, cebistas, vanguardistas, fundamentalistas, cançãonovistas, tridentinos, ecumênicos... cabe aqui a pergunta de Paulo: acaso Cristo está dividido? Essa situação ainda se agrava mais quando esses grupos passam à mútua refrega, como se quisessem desmerecer a tendência dos outros irmãos e um deles querendo impor aos demais o seu próprio ponto de vista, arvorando-se em detentor da verdade e condenando os que pensam de modo diferente. A mensagem de Cristo é uma só, assim como a vocação de cada um é típica e pessoal. A tolerância e o mútuo respeito devem ser as atitudes mais compatíveis com a conduta do autêntico cristão. Cada qual, na diversidade da sua vocação e na peculiaridade da sua missão, compõem o grande mosaico de formas e expressões de uma mesma ideologia: o seguimento de Jesus Cristo.
Que o Divino Mestre nos una e nos fortaleza nessa desafiante caminhada.

PS: Na data de hoje, 26.01.2014, estou comemorando 50 anos de chegada ao Ceará, quando entrei no Seminário Seráfico Nossa Senhora do Brasil, em Messejana, vindo de Parnaíba-Piauí.

domingo, 19 de janeiro de 2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 2º DOMINGO COMUM - O CORDEIRO DE DEUS - 19.01.2014

COMENTARIO LITURGICO – 2º DOMINGO COMUM – O CORDEIRO DE DEUS – 19.01.2014

Caros Confrades,

Na liturgia deste domingo, 2º do tempo comum, Jesus é apresentado como o Cordeiro de Deus, no evangelho de João. Mas essa figura do cordeiro já estava preconizada na profecia de Isaías, com o título Servo de Javé. De acordo com o Profeta, Ele viria para reunir novamente o povo de Deus e conduzi-lo à salvação e, por intermédio desse povo, estender a salvação a todos os confins de terra. João evangelista reescreve a narração do batismo de Jesus de forma diferente dos evangelhos sinóticos, afirmando que foi pela manifestação do Espírito em forma de pomba que o Batista reconheceu Jesus como o Cordeiro de Deus-Servo de Javé, prefigurado na profecia de Isaías.

De início, lembremo-nos que o livro de Isaías era o preferido por Cristo para fazer referências a respeito de si próprio, sempre que isso era necessário. Na leitura de hoje (Is 49, 6), destaco o seguinte trecho: “'Não basta seres meu Servo para restaurar as tribos de Jacó e reconduzir os remanescentes de Israel: eu te farei luz das nações, para que minha salvação chegue até aos confins da terra'.” Vejam só o trocadilho dos nomes: Jacó e Israel eram a mesma pessoa, o terceiro Patriarca, neto de Abraão. Jacó foi aquele que “tomou” do seu irmão gêmeo Esaú (que embora sendo gêmeo, havia nascido em primeiro lugar) os direitos de primogenitura, naquele estratagema armado pela mãe deles, Rebeca, que preferia Jacó a Esaú. Este ficou iradíssimo com o irmão, com toda razão, pois teve o seu direito usurpado, passou a ameaçar Jacó. Para evitar uma carnificina entre os irmãos, Rebeca mandou Jacó para passar uns tempos bem longe, com um tio chamado Labão (que não era o que se chamaria de cidadão exemplar), na esperança de que a ira de Esaú se acalmasse. Lá nos confins onde morava com o tio, Jacó casou com as duas primas (Lia e Raquel), porque o tio também trapaceou com ele e entregou a filha “errada”, em vez de devolver, Jacó ficou com as duas. Meus amigos, esses fatos narrados na Bíblia não são, de forma alguma, modelos de comportamento compatíveis com a aliança entre aquele povo e Javé, quantas tramóias estão aqui envolvidas de parte a parte. Mas a história do povo de Deus é assim mesmo, cheia de contradições.

Fiz aqui esse breve retrospecto para contextualizar com a leitura do profeta Isaías, deste domingo, quando ele diz que o Servo de Javé virá restaurar as tribos de Jacó e reconduzir os remanescentes de Israel. Para compreendermos isso, devemos também lembrar que Jacó teve seu nome mudado para Israel após uma luta misteriosa que travou com um anjo, cuja personalidade a Bíblia não explica, mas que os intérpretes entendem que tenha sido o próprio anjo protetor de Esaú, que veio batalhar com Jacó, a fim de evitar que os dois irmãos se matassem num encontro que se aproximava. Essa é uma passagem nebulosa da Bíblia, pois o fato é que, quando os irmãos raivosos finalmente se encontraram, abraçaram-se e choraram mutuamente, celebrando a paz. Porém, isso só foi possível por causa de uma mudança radical que aconteceu com Jacó, após a luta deste com o anjo, que mudou o seu nome para Israel, porque ele havia vencido alguém mais poderoso do que ele. Hoje, se poderia explicar essa “luta” misteriosa e simbólica como se Jacó estivesse duelando consigo mesmo em espírito, levando-o a uma mudança completa no seu comportamento, após o que ele ter-se-ia tornado uma pessoa com um outro perfil psicológico, operado pela interveniência de Javé. A troca do nome significaria isso, assim como Javé mandou que Abrão mudasse o nome para Abraão, que significava pai de uma multidão. Essa questão do nome no AT tem um simbolismo muito curioso e um sentido próprio, que não se encontra nas demais culturas.

Pois bem, retomando o trecho de Isaias (49, 6), restaurar as tribos de Jacó e reconduzir os remanescentes de Israel significa a reunião do passado com o presente, do antes com o depois, dos descendentes de Jacó com os descendentes de Esaú, que agora não são mais rivais, mas fizeram as pazes, enfim, a união de todo o povo de Deus. No sentido trans-histórico dessa imagem, podemos vislumbrar aí a união de todos os povos dos diferentes continentes, raças e costumes sob a mesma liderança do Servo de Javé, aquele que foi preparado desde o nascimento para ser a luz das nações e o portador da salvação a toda a humanidade.

Na segunda leitura, do início da carta de Paulo aos Coríntios, o apóstolo repete esse mesmo mote de Isaías, já citando o nome de Cristo, quando coloca como destinatários da carta assim: “à Igreja de Deus que está em Corinto: aos que foram santificados em Cristo Jesus, chamados a ser santos junto com todos que, em qualquer lugar, invocam o nome de nosso Senhor Jesus Cristo, Senhor deles e nosso.” (1Cor 1, 2). Firme na fé de que Cristo é o Servo de Javé, aquele que veio para unir todas as nações, povos e culturas, Paulo destina sua carta a todos que, em qualquer lugar, invocam o nome de Jesus, isto é, a nós e a todos os cristãos. Isaías referiu-se àquilo que ainda iria acontecer no futuro, enquanto Paulo se refere a algo que já havia se tornado realidade, com o novo mandamento de Cristo. O discurso de Paulo dá sequência e complementa o discurso de Isaías. As tribos de Jacó, infelizmente, não reconheceram em Cristo o Messias, mas os remanescentes de Israel, os povos de boa vontade, gentios e de terras distantes, ouviram a sua palavra e a ela aderiram. Coincidentemente, hoje mesmo eu estava vendo na internet uma videoconferência com uma professora de Bíblia de Jerusalém e, quando um dos assistentes perguntou a ela o que significava Jesus para os judeus, ela respondeu assim: ele foi um judeu famoso, não mais do que isso. Cabe lembrar aqui a frase de Cristo a Tomé: felizes os que creram mesmo sem ter visto... ou seja, felizes somos nós, cristãos.

Agora, uma referência ao evangelho de João (1, 29-34). No domingo passado, lemos o texto de Mateus (3, 13-17), no qual o evangelista diz que, após Jesus ter sido batizado, o Espírito Santo apareceu sobre ele em forma de pomba. A narração do evangelista João inverte a ordem desses fatos. Diz que, quando Jesus ia se aproximando para ser batizado, o outro João, o Batista, disse logo: este é o Cordeiro de Deus (Jo 1, 29). É uma afirmação curiosa, porque o próprio Batista disse que não conhecia Jesus: “Também eu não o conhecia, mas se eu vim batizar com água, foi para que ele fosse manifestado a Israel'.” (Jo 1, 31). Então, se o Batista não conhecia Jesus, como foi que o identificou de imediato? O próprio evangelista explica como o Batista o reconheceu: “Eu vi o Espírito descer, como uma pomba do céu, e permanecer sobre ele. Também eu não o conhecia, mas aquele que me enviou a batizar com água me disse: `Aquele sobre quem vires o Espírito descer e permanecer, este é quem batiza com o Espírito Santo'.” (Jo 1, 32-33) Com essa leitura, faz sentido aquela outra exclamação do Batista ao ver Jesus, conforme narra Mateus (3, 14): “'Eu preciso ser batizado por ti, e tu vens a mim?'” Ora, se o Batista não conhecia Jesus, por que teria dito isso antes de batizá-lo? Assim, a narrativa de João é mais coerente: quando o Batista avistou Jesus, mesmo antes que ele se aproximasse para ser batizado, viu já o Espírito sobre ele e desse modo o reconheceu. Pode até ser que a forma de pomba tenha se tornado visível para os demais presentes após o batismo de Jesus, porém, com certeza, o Batista já o havia vislumbrado bem antes. Foi por isso que o Batista pôde afirmar: “'Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo. Dele é que eu disse: Depois de mim vem um homem que passou à minha frente, porque existia antes de mim. ” (Jo 1, 29).

Alguém poderia admirar-se com certas discrepâncias observadas no texto bíblico e, de fato, isso faz com que pessoas não crentes se utilizem desses pormenores para justificarem sua falta de fé. No entanto, devemos sempre contextualizar para melhor entender. O evangelho de João foi escrito cerca de 40 a 50 anos após os primeiros. Estima-se que os evangelhos sinóticos datem dos anos 50 ou 60, enquanto o evangelho de João teria sido escrito por volta dos anos 95 a 100. Além do mais, João deu seu testemunho pessoal dos ensinamentos de Cristo, enquanto os outros três escreveram baseando-se em fontes escritas por terceiros. Isso não significa que os outros estejam errados e só João esteja certo, não devemos concluir assim. Cada um deles representa um traço comunitário da fé cristã dos tempos primitivos e pequenas divergências são perfeitamente justificadas com as diferenças espácio-temporais. Apesar delas, contudo, a fé no Cristo Cordeiro de Deus é a mesma e não fica comprometida. Que a nossa vida brilhe sempre mais com a felicidade que brota desta fé.


domingo, 12 de janeiro de 2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO - BATISMO DO SENHOR - 12.01.2014

COMENTARIO LITURGICO – DOMINGO APÓS EPIFANIA – BATISMO DO SENHOR – 12.01.2014

Caros amigos,

No domingo após a Epifania, a liturgia celebra a festa do Batismo do Senhor. A sequência dos domingos do ano litúrgico reproduz para nós os momentos mais significativos da história da nossa salvação, por isso há saltos temporais imensos. No domingo anterior, tivemos a manifestação de Jesus aos povos do Oriente, ou seja, o tempo de Jesus criança. Neste domingo, temos a festa do batismo de Jesus no rio Jordão, quando ele já tinha mais de 30 anos e estava prestes a iniciar a sua pregação pelas cidades e povoados da Galileia. Sabemos que, na verdade, Jesus não precisava ser batizado, pois o batismo se destina ao perdão dos pecados, mas Ele quis cumprir todo o protocolo e foi nessa ocasião que, pela primeira vez, ocorreu a manifestação da Trindade divina.

O tema do batismo é um dos que desperta mais polêmica entre a Igreja Católica e as demais igrejas cristãs, por diversas razões históricas, que todos conhecemos, porém penso que as querelas mais significativas se concentram em dois pontos: 1. o batismo de crianças recém-nascidas, fato que não ocorria no início do cristianismo, tendo sido introduzida como prática muito tempo depois; 2. o ritual do batismo por mera aspersão (derramamento de pouca água na cabeça do batizando) e não por imersão (mergulho na água).

Em relação a essa crucial polêmica, o fato histórico é que o batismo por imersão era a prática dominante no Antigo Testamento e o próprio Jesus se submeteu a ela. Contudo, no Novo Testamento, os diversos relatos sobre o batismo sugerem uma forma de batismo diferente da imersão, como por exemplo, em Atos 16, 33, quando Paulo batizou pessoas na prisão, certamente ali não havia um local com água para imersão. O próprio batismo de Paulo por Ananias (Atos 9, 18), realizado na casa de Judas, não deve ter sido por imersão. Do mesmo modo, o episódio ocorrido após Pentecostes (Atos 2, 37-41), quando cerca de 3.000 pessoas foram batizadas após a pregação de Pedro, não deve ter sido por imersão. De qualquer modo, as duas formas (imersão e aspersão) eram conhecidas desde os tempos cristãos primitivos, mas a oficialização do batismo por aspersão ocorreu após as disputas com Lutero (que não o aceitava), já no século XVI. E as razões teológicas para justificar a aspersão são duas fundamentais: 1. o fato de que a pessoa deve ser purificada do pecado (no caso da criança, o pecado original) o quanto antes possível, ou seja, logo após ao nascer, sem esperar a idade adulta; 2. embora a criança de pouca idade não saiba o que está ocorrendo, a Igreja age como mãe amorosa e faz isso por ser o melhor para o pequeno fiel, assim como toda mãe só quer o bem dos filhos, ficando com os pais e padrinhos a responsabilidade de ensinar a criança e conscientizá-la, quando tiver entendimento.

Além dessas questões histórico-doutrinárias, analisando sob o aspecto gramatical, o vocábulo batizar deriva do verbo grego BAPTIZÔ, que significa mergulhar, submergir, mas também lavar. Por exemplo, batizar era uma espécie de suplício em que se mergulhava o condenado até ele morrer sem fôlego. Mas em Lucas (11, 38), quando os fariseus se admiraram porque os discípulos de Jesus não lavavam as mãos antes de comer, a frase latina é “quare non baptizatus esset” e a frase grega é “ou proton ebaptiste”, demonstrando assim o significado do verbo “baptizô” no sentido de lavar. Para lavar as mãos, nem sempre as mergulhamos em água, muitas vezes apenas derramamos água sobre elas. Ou seja, além dos aspectos puramente doutrinários, há ainda o suporte no estudo etimológico dos termos. E podemos ainda levar em consideração o aspecto da praticidade. Como batizar por imersão uma criança que esteja enferma, sem correr o risco de piorar sua condição de saúde? E mesmo no caso de pessoas sadias, o ritual seria extremamente incômodo pela necessidade de ter de realizar o batismo nos rios, lagoas, açudes, etc., ou em tanques de água preparados dentro dos templos, o que (ao meu ver) desvirtua o sentido da imersão de acordo com o batismo de Jesus, que ocorreu numa fonte de água natural. Se é para seguir o ritual, então, que se o siga por completo.

Devemos ainda considerar a hipótese da carência da água em quantidade suficiente para a imersão, como ocorre, por exemplo, em certas localidades nordestinas. Conta-se que um certo pastor “evangélico” fazia pregações na África, num local onde a água era escassa e cara. Ele mandou fazer um tanque para mergulhar as pessoas e comprava água de um certo comerciante. Ao saber do destino da água, o comerciante começou a aumentar o preço da água e o pastor foi reclamar dele. Resposta do vendedor: o que tem muito aqui é areia, se você quiser fazer seu ritual com areia, não vai precisar comprar, mas se quer se dar ao luxo de fazer com água, deve ter condições de pagar... Em síntese, digo que a forma de realizar o batismo, se por imersão ou por aspersão, não é relevante, e sim a fé que deve motivar o fiel a receber o batismo. No caso de crianças pequenas, a fé é dos adultos que as levam a batizar e que se comprometem a catequizar o batizado na mesma fé que professam.

Acerca das leituras litúrgicas dessa festa, o evangelho de Mateus (3, 13-17) relata o batismo de Jesus por João, que já foi cognominado Batista exatamente pelo ritual que ele fazia com as pessoas convertidas, o batismo da penitência. João preparava os caminhos para a chegada do Messias e conclamava todos a fazerem penitência. O sinal da adesão era o batismo no rio Jordão. Para lá foi Jesus, com a finalidade de também ser batizado. Evidentemente, Jesus não precisava ser batizado e o próprio João se recusou, conforme relata Mateus (13, 14): 'Eu preciso ser batizado por ti, e tu vens a mim?' Porém, Jesus o persuadiu a fazer igual como fazia aos outros, e assim ele fez. Sobre este fato, eu li um comentário interessante hoje, no site Zenit, do padre Antonio Rivero, nos seguintes termos: “podemos dizer que Jesus se batizou por nós. Submergiu-se naquelas águas para purificá-las, no contato com sua carne santíssima, e assim conferiu-lhes o poder de purificar. Submergiu-se também para fecunda-las, dando-lhes a capacidade de gerar filhos para Deus. ” Então, nessa linha de raciocínio, Jesus batizou-se não para purificar-se, porque já era totalmente puro, mas para purificar as águas do Jordão, e nestas simbolicamente todas as águas da terra, para conferir a elas o poder de nos purificar pelo batismo na fé da sua doutrina.

Além disso, o batismo de Jesus foi o primeiro momento em que se manifestou publicamente a Trindade divina, quando “o céu se abriu e Jesus viu o Espírito de Deus, descendo como pomba e vindo pousar sobre ele. E do céu veio uma voz... ” (Mt 13, 16), isto é, o início da pregação pública de Jesus foi oficialmente homologado pelas três pessoas divinas. Obviamente, naquele momento, as pessoas não compreenderam o que havia acontecido, mas posteriormente, após a ressurreição de Jesus, quando as comunidades dos primeiros fiéis fizeram a rememoração dos acontecimentos da Sua vida, de onde provêm os textos primitivos que deram origem aos evangelhos, puderam compreender o alcance desse fato deveras significativo.

Uma curiosidade que releva tratar aqui é que, do ponto de vista da fé, a data do batismo do cristão deveria ser comemorada assim como se comemoram as datas natalícias, porque essa data representa o nascimento para a comunidade eclesial. Com certeza, todos se recordam de que, quando recebíamos a batina no seminário, nós não comemorávamos mais o dia do aniversário, mas o dia do onomástico, isto é, o dia do santo padroeiro do seu nome, numa clara referência a um novo nascimento, que ocorria com a vestição religiosa. Essa mesma ideia bem que poderia ser adotada em relação à data do batismo. Porém, o que mais comumente ocorre é que a maioria dos cristãos não sabe ou não se recorda o dia do seu batismo, como se não atribuísse importância a essa data. As Paróquias mesmo não estimulam os fiéis a essa lembrança, o que fariam muito bem se assim procedessem.

Para finalizar, gostaria de ponderar que o batismo não deve ser um fato longínquo e esquecido na nossa caminhada existencial, mas um fato a ser testemunhado diuturnamente, na nossa vivência de cristãos, seja na família, seja no trabalho, nas relações familiares, nas amizades, na vida social em geral, através do nosso comportamento de pessoas engajadas e comprometidas com a fé assumida no batismo. Que o divino Espírito nos assista constantemente no exercício dessa missão.


domingo, 5 de janeiro de 2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO - EPIFANIA DO SENHOR - 05.01.2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO – EPIFANIA DO SENHOR – 05.01.2014

Caros Confrades:

Celebramos, na liturgia deste domingo, a Epifania do Senhor. É a festa popularmente conhecida como dos Santos Reis, contudo, eles nem são reis nem são santos (no sentido estrito). O folclore trazido para cá pelos portugueses introduziu o costume dos “reizados”, tradição que se encontra em franco declínio, mas ainda se pratica em algumas localidades. Tempos atrás, era mais comum verem-se pessoas “tirando reis” de casa em casa. Atualmente, com o crescimento da violência urbana e sobretudo depois do vício da televisão, esses folguedos populares foram caindo em desuso e somente alguns “heróis” os mantêm. Os jovens e as crianças de hoje não reconhecem mais essas práticas, que eram muito fortes há 40 ou 50 anos.

A epifania do Senhor designa a universalidade da salvação trazida por Cristo. Apesar de os profetas sempre se referirem ao Messias como salvador de todos os povos, havia entre os judeus uma crença de que a salvação alcançaria apenas os descendentes das doze tribos de Jacó (Israel). Então, logo por ocasião do nascimento de Cristo, a presença de pessoas ilustres vindas de terras orientais, isto é, de fora do território judaico, vem confirmar os profetas acerca da salvação extensiva a todos. Mateus, cujo evangelho tem como tema básico a apresentação de Jesus como salvador, reforça a ideia da salvação universal. O texto bíblico não informa de que cidade eles vieram, mas apenas que vieram de terras distantes no oriente, guiados pela estrela. O evangelho fala somente nos 'magos', não diz que eles são reis e também não se deve entender esta palavra no sentido da prática de magias. Muito provavelmente, eles eram sacerdotes de uma religião diferente, talvez do zoroastrismo, religião fundada por Zaratustra, cerca de 1.500 anos antes de Cristo e praticada na região que hoje corresponde ao Irã. Há pouco tempo, um colega me informou sobre a existência de um romance intitulado “O quarto sábio”, havendo também um filme com o mesmo nome, abordando a provável existência de um quarto “mago”, que se desencontrou dos outros três, por ter chegado atrasado ao local combinado, e saiu seguindo os passos dos outros, vindo a encontrar-se com Jesus somente quando ele já estava sendo levado para o Calvário. Trata-se de uma história bem interessante, que eu sugiro aos Colegas lerem o livro ou verem o filme, ajuda a esclarecer algumas noções acerca desses estudiosos antigos.

Gramaticalmente, o termo grego “epiphania” é um substantivo derivado do verbo “epiphainow”, que significa aparecer, mostrar-se, apresentar-se. A epifania é a festa da manifestação do Salvador, e isso se deu efetivamente no seu nascimento. Por essa razão, as igrejas católicas orientais celebram hoje o seu dia de Natal. A Igreja Católica Romana separou as comemorações do nascimento de Jesus em duas festas: uma em 25 de dezembro, o Natal – nascimento de Cristo, e hoje, a manifestação de Cristo às nações do mundo, representados na pessoa dos “magos” orientais. Se observarmos bem, a tradição das igrejas orientais, mais antiga, é mais coerente, porque realmente a manifestação de Cristo ao mundo se deu com o seu nascimento. A divisão da festa em duas representou uma interferência indevida da cultura romana sobre o cristianismo, o que foi repudiado pelos Padres orientais, que mantiveram a sua tradição.

As leituras litúrgicas da Epifania procuram integrar os textos do antigo e do novo testamento, no caso, o livro de Isaías com o evangelho de Mateus. No livro de Isaías, na verdade, o deutero-Isaías, cap. 60, 1, o autor conclama Jerusalém a se alegrar, porque “sobre ti apareceu o Senhor e a sua glória se manifestou”. E diz mais adiante (60, 6): “será uma inundação de camelos e dromedários de Madiã e Efa a te cobrir; virão todos os de Sabá, trazendo ouro e incenso e proclamando a glória do Senhor. ” Por certo, os “magos” viajavam em camelos, o transporte característico do Oriente Médio, mas a narração de Mateus parece sugerir que a chegada deles não foi motivo de alvoroço, porque diz que eles encontraram o Menino e Maria, sua mãe, ofereceram os presentes e o adoraram. Depois foram embora.

Parece que Mateus (2, 2) quis mostrar a realização da profecia de Isaías: “eis que alguns magos do Oriente chegaram a Jerusalém, perguntando: 'Onde está o rei dos judeus, que acaba de nascer? Nós vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo.' ” Até o Salmista (71, 10), faz coro com essa proclamação, ao cantar: “Os reis de Társis e das ilhas hão de vir e oferecer-lhes seus presentes e seus dons; e também os reis de Seba e de Sabá hão de trazer-lhe oferendas e tributos. ” A escritura está permeada de passagens assemelhadas, nas quais essas referências se reproduzem. Os evangelistas, que conheciam a Lei e os Profetas, trataram de integrar as profecias nos seus textos, como forma de comprovar que Jesus é o Messias prometido, numa época em que muitos judeus duvidavam e teimavam em não admitir isso.

É curioso notar que nem o evangelista Lucas nem Marcos se referem ao episódio da visita dos “magos”. É de admirar sobretudo que Lucas não trate dessa visita, quando se sabe que os detalhes mais particulares da infância de Cristo se encontram no seu evangelho, talvez porque lhe tenham sido repassados por Maria. Ora, a visita dos “magos” nos primeiros dias após o nascimento de Jesus devia ser um fato importante, do qual Maria certamente se lembraria. E por que não o teria repassado a Lucas, assim como fez com outros acontecimentos? De acordo com os estudiosos, uma explicação para o fato de que apenas Mateus relata isso seria porque esse evangelho foi escrito originalmente em aramaico e só depois traduzido para o grego, isto é, certamente, o local onde foi escrito era distante de onde moravam os outros dois evangelistas, os quais assim não chegaram a conhecer essa tradição dos “magos”. Bem, nunca se saberá com certeza o que há por trás dessa narrativa. Mas visto que os evangelhos não são propriamente registros históricos e sim proclamações de fé das comunidades primitivas, o que mais importa nessa narrativa é a doutrina da universalidade da salvação.

Com efeito, a aliança original de Javé foi com os judeus, mas estes não reconheceram em Jesus o Salvador que veio confirmar a promessa. Então diante da descrença deles, a boa nova trazida por Jesus, o seu evangelho foi pregado aos gentios, ou seja, àqueles que não descendem dos antigos patriarcas. Num contexto trans-histórico, esses gentios somos nós, cristãos, que não descendemos do povo hebreu. A figura dos “magos” colocada nesse contexto próximo (ou mesmo junto) com o nascimento de Jesus faz parte do propósito do evangelista de mostrá-Lo como o Salvador de todas as nações, e não apenas do povo de Israel. É verdade que alguns judeus aceitaram o evangelho e creram em Cristo, porém sabemos que foram em minoria. Os diversos episódios, conhecidos através das epístolas de Paulo, acerca do problema dos “judaizantes”, isto é, daqueles que queriam manter as tradições judaicas junto com o evangelho, demonstram que houve adesão por parte dos judeus. No entanto, a pregação do evangelho aos gentios não foi somente porque os judeus, enquanto povo da aliança, não o aceitaram, mas é da natureza da própria mensagem de Cristo. Ou seja, mesmo que todos os judeus tivessem crido e se convertido ao evangelho, ainda assim o anúncio do cristianismo teria sido feito também aos gentios, porque essa era a sua proposta.

A universalidade da salvação trazida por Cristo é também o tema da carta de Paulo aos Efésios (3, 2-6), onde ele retoma a ideia da recusa dos judeus e o anúncio do evangelho aos gentios: “os pagãos são admitidos à mesma herança, são membros do corpo, são associados à mesma promessa em Jesus Cristo, por meio do Evangelho. ” Sabemos, pelos estudos históricos, que foi nas colônias gregas do império romano onde o cristianismo começou a ganhar corpo como religião, foi lá onde se fundaram as primeiras comunidades e se ergueram as primeiras igrejas formalmente organizadas, aquelas que hoje nós chamamos de “Igrejas orientais”. Antioquia, Alexandria, Filipos, Éfeso, Galácia, Colossos, Esmirna, Tessalônica, só bastante tempo depois, o cristianismo ao mundo romano. Foi por esse motivo que os Patriarcas das Igrejas orientais não aceitaram a mudança da data do Natal para 25 de dezembro, porque as suas Igrejas eram muito mais antigas e a sua tradição já muito consolidada. E eu, sinceramente, gostaria que a Igreja Romana reparasse esse equívoco histórico e se unisse à liturgia das igrejas orientais, onde se encontra a tradição cristã mais genuína.

Meus amigos, independentemente dessas polêmicas históricas e literárias, o que nos interessa é destacar o símbolo da universalidade da mensagem cristã, quando os tempos se completaram e o Verbo se encarnou. Com a festa da Epifania, a liturgia encerra o ciclo do Natal e passa para o tempo comum, que irá até a quarta feira de cinzas, quando se inicia a quaresma.