domingo, 16 de dezembro de 2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 3º DOMINGO DO ADVENTO - 16.12.2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 3º DOMINGO DO ADVENTO – ALEGRA-TE JERUSALÉM – 16.12.2018

Caros Confrades,

Neste 3º domingo do advento, a liturgia retoma o tema da alegria sobre Jerusalém, servindo-se das palavras do profeta Sofonias. Alegra-te, Jerusalém, diz ele, o Senhor teu Deus está no meio de ti. O contexto em que o Profeta faz essa invocação é bem diferente do que se celebra no Advento, como explicarei em seguida, mas o texto aqui é utilizado para invocar o Senhor que está para chegar. Este domingo é também conhecido como o “domingo laetare”, em que a liturgia nos convida a ficarmos alegres com a aproximação do Natal. E a leitura do evangelho escrito por Lucas nos traz uma interessante sugestão de reflexão, na perspectiva do ano novo litúrgico, que nos conclama à revisão de nossas atitudes e a renovar nossos compromissos de cristãos.

O profeta Sofonias (3, 14-18) convida o povo a se alegrar, porque o Senhor afastou os inimigos de Jerusalém. Este profeta viveu antes do cativeiro da Babilônia, numa época em que o povo hebreu dividia suas preferências políticas entre os reinos do Egito e da Assíria, para fins de fazer aliança. Dentre as autoridades hebraicas, havia os simpatizantes da aliança com o Egito e os que defendiam a aliança com a Assíria, tendência esta que era a favorita do rei de Judá, na época de Sofonias (por volta do ano 630 a.C.), o rei Josias. Não demorou muito para que a Assíria fosse dominada pelos babilônicos e, com isso, pela aliança que tinham com a Assíria, os hebreus terminaram sendo levados cativos por Nabucodonosor. Então, Sofonias profetizou nessa época anterior ao domínio babilônico, conclamando o povo a alegrar-se, porque Javé é o valente guerreiro que salva seu povo. Era uma tentativa de exaltar o nacionalismo judaico diante das ameaças de dominação por povos estrangeiros. Hoje nós sabemos que essa alegria durou pouco tempo. Então, a liturgia retira o texto de Sofonias do seu contexto histórico para encaixá-lo na temática do Advento.

A segunda leitura, extraída de Paulo aos Filipenses, também está deslocada do seu contexto histórico, porque quando o Apóstolo recomendava aos cristãos de Filipos que se alegrassem sempre no Senhor, pois Ele está próximo, queria referir-se à segunda vinda de Cristo que, conforme era o entendimento da época, acreditava-se que seria 'em breve'. Outra vez, precisamos abstrair da situação concreta do texto para que possamos compreendê-lo na perspectiva da temática do Advento. O fato de Paulo exortar os Filipenses à alegria sobre a proximidade da vinda do Senhor passa a ser então apropriado dentro do roteiro do “domingo laetare”, nessa etapa de preparação para a celebração do Natal. Portanto, a liturgia faz uma espécie de silepse histórica, levando-nos a fazer um certo exercício mental para compreendermos dentro do contexto do Advento dois textos que se referem a outras circunstâncias. Na verdade, parece-me que a única justificativa é porque ambos contemplam o tema da alegria, que a liturgia pretende atribuir a este terceiro domingo.

Agora, afastando-nos do tema da alegria, examinemos o evangelho de Lucas (3, 10-18), que destaca a figura de profética de João Batista, pregando o batismo da conversão e batizando no Jordão. Diz Lucas que as pessoas convertidas procuravam João perguntando “o que devemos fazer” para viverem em coerência com a conversão. E João exortava a todos, de acordo com a atividade social exercida pelo bartizado, recomendando-lhes o fiel cumprimento da missão de cada um. Aos vendedores e compradores, ele dizia: quem tiver duas túnicas, dê uma a quem não tem; e quem tiver comida, faça o mesmo. Ou seja, saibam partilhar os bens com os mais pobres. Aos cobradores de impostos, esses que, desde aquele tempo, já eram vistos pelo povo como corruptos, pecadores públicos, João dizia: não cobreis mais do que foi estabelecido, ou seja, pratiquem a sua atividade com justiça, não façam extorsão. Aos soldados, esses que eram também considerados pessoas costumeiramente violentas e perversas, João dizia: não tomeis à força dinheiro de ninguém, nem façais falsas acusações, ou seja, não exerçam o poder com abuso de autoridade. E mais: ficai satisfeitos com o vosso salário, ou seja, controlem a ambição de sempre querer mais.

Meus amigos, o discurso de João até parece que está direcionado para a sociedade dos nossos dias. O tempo do Advento é uma época adequada para fazermos um exame das nossas atitudes e avaliarmos como está a fidelidade à nossa vocação. João Batista está mostrando que, para cada um de nós, o Menino Deus tem um pedido especial, qual seja, a de vivermos com dignidade a nossa missão no dia a dia. Se tivermos o cuidado de 'ouvir' a voz de Deus nas nossas consciências em cada decisão que tomamos na vida, poderemos perceber que, em cada situação, Ele nos pede e espera de nós uma atitude de compromisso com a solidariedade, com a justiça, sempre no sentido do melhor cumprimento das verdades que Ele ensinou. Essa leitura do evangelho de Lucas nos sugere que, antes de cada tarefa e diante de cada nova missão que assumamos, na vida pessoal ou profissional, façamos perante a nossa própria consciência aquela indagação: para podermos viver a cada dia a nossa constante conversão ao chamado de Cristo, o que devemos fazer? E fiquemos atentos para o que Deus falará ao nosso coração.

E João Batista, ciente de sua própria missão, quis deixar claro, para aqueles seus discípulos que viam nele a figura de um provável Messias, quem era ele, confessando humildemente: virá aquele que é mais forte do que eu e eu não sou digno de desamarrar os cadarços da Suas sandálias (Lc 3, 16) e Ele vos batizará no espírito santo e no fogo. E completa: Ele virá com uma pá para limpar sua eira e uma peneira para separar o trigo do carrapicho. Embora o texto apresentado na versão oficial da CNBB use a palavra pá na mão, no texto latino, a palavra é “ventilabrum”, cuja tradução mais própria seria “joeira”, palavra que não é comum na nossa cultura, e que é algo mais parecido com a peneira. A ideia é fazer aquilo que os produtores rurais fazem com o feijão, o milho, o arroz depois que eles põem pra secar, para separar os grãos quebrados dos inteiros, separar as palhas dos grãos. No nosso meio sertanejo, além da peneira, faz-se também a prática de “ventilar” o feijão, o milho, ou seja, passar pelo vento, pra separar os grãos das cascas, é outra técnica rudimentar que tem o mesmo objetivo.

A meu ver, seria essa a mensagem que João Batista queria transmitir. Eu não sou o Messias, mas ele está perto de chegar e virá com uma peneira pra separar os grãos perfeitos das cascas, os grãos inteiros dos quebradiços. Os grãos selecionados serão recolhidos ao celeiro, enquanto as palhas serão lançadas ao fogo (Lc 3, 17). Então, o caminho de preparação para a celebração do Natal coloca na nossa frente os desafios que devemos enfrentar para sermos dignos de vê-Lo nascer em nosso espírito, em nossas famílias, em nossa comunidade. Traz um alerta para que não relaxemos nos nossos compromissos de cristãos e uma oportunidade para fazermos um balanço sobre as práticas realizadas no período que termina. Ou seja, a liturgia nos remete à reflexão sobre o modo como realizamos, no dia a dia das nossas atividades, aquelas ações e práticas que devem espelhar o estilo de vida do verdadeiro cristão.


COMENTÁRIO LITÚRGICO - 2º DOMINGO DO ADVENTO - 09.12.2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 2º DOMINGO DO ADVENTO – LEVANTA-TE JERUSALÉM – 09.12.2018

Caros Confrades,

No segundo domingo do advento, a liturgia traz outra vez a figura da nova Jerusalém, agora na palavra do profeta Baruc. Este profeta, que era também escriba e antes fora secretário do profeta Jeremias, viveu durante o exílio da Babilônia e descreve a alegria de Jerusalém, com o retorno dos seus filhos. Outra leitura evoca o tema da pregação de João no deserto: endireitai os caminhos, aplainai as veredas. Ele veio materializar a profecia de Isaías (40, 3): a voz que clama no deserto.

O livro da profecia de Baruc teria sido sugerido pelo próprio Jeremias, quando aquele o acompanhara na fuga para o Egito, a fim de não serem compelidos a ir para a Babilônia. Depois da morte de Jeremias, Baruc passou a escrever também as suas profecias, certamente a partir do que aprendeu com o mestre, mostrando a presença de Javeh nos fatos históricos. Assim, ele diz que Jerusalém verá o retorno triunfante daqueles que foram levados cativos e humilhados algum tempo atrás. E o nome Jerusalém passará a significar “paz da justiça” e “glória da piedade”. A bem da verdade, é importante destacar que existem dúvidas entre os estudiosos sobre a autoria destes escritos, se teriam sido do próprio Baruc ou apenas atribuídos a ele. Trata-se de um livro deuterocanônico, isto é, que não estava na lista antiga dos livros bíblicos judaicos, tendo sido reconhecido como autêntico e incluído no rol somente tempos depois. De todo modo, o contexto referido é o mesmo em que viveu o profeta Jeremias, no tempo do cativeiro babilônico. O profeta Baruc declama a alegria de Jerusalém, ao ver o retorno de seus filhos que foram levados pelo inimigo: “Saíram de ti, caminhando a pé, levados pelos inimigos. Deus os devolve a ti, conduzidos com honras, como príncipes reais.” (Br 5,6) Por isso, ele diz: Levanta-te, Jerusalém, despe de uma vez por todas as vestes de luto e reveste-te para sempre dos adornos da glória. A Nova Jerusalém, a igreja de Cristo, está representada nesta figura desenhada pela profecia de Baruc.

O profeta Baruc também antecipou as palavras que seriam repetidas por João Batista, no deserto da Judeia, na sua pregação preparatória do Messias que estava para chegar: “Deus ordenou que se abaixassem todos os altos montes e as colinas eternas, e se enchessem os vales, para aplainar a terra, a fim de que Israel caminhe com segurança, sob a glória de Deus.” (Br 5, 7) Foi a mesma temática recolocada por João Batista, quando pregava: “'Esta é a voz daquele que grita no deserto: 'preparai o caminho do Senhor, endireitai suas veredas.” (Lc 3, 4) Na visão de Baruc, ele se referia à Jerusalém geográfica, capital do reino de Judá. Mas dentro do simbolismo trans-histórico, que está presente na adequação entre o antigo e o novo testamentos, João explicava que os caminhos a serem preparados não eram as estradas de pedra da Palestina, mas as vias internas do coração de cada um. Desse modo, João convertia os judeus para um novo sentido a ser encontrado nas palavras da promessa de Javeh e por isso João Batista é considerado o último profeta do Antigo Testamento.

Na carta de Paulo aos Filipenses (Fl 1, 4-11), o Apóstolo se congratula com a comunidade de Filipos, a primeira onde ele pregou o evangelho, de modo que a sua lembrança dos filipenses era sempre cheia de muito carinho e gratidão. A cidade de Filipos recebera este nome em homenagem a Filipe da Macedônia, seu conquistador, e era uma das comunidades mais queridas por Paulo. Lá ele encontrou muita receptividade, quando foi pregar o evangelho pela primeira vez, desde quando tomou rumo diferente do apóstolo Barnabé, e obteve muitas conversões. Foi a partir de Filipos que o cristianismo começou a se espalhar pela Europa, até porque quando escreveu essa carta Paulo já estava preso e ele não tinha mais condições de sair pregando, como fizera antes. Os filipenses foram os continuadores do seu apostolado e Paulo os considerava uma espécie de comunidade modelo do cristianismo.

Os filipenses também estimavam muito Paulo, por causa do intenso trabalho que ele realizara lá, de modo que quando chegou a Filipos a notícia da sua prisão, a população organizou uma coleta e a mandou para Paulo, pois sabiam que ele passava necessidades. Daí que Paulo retribui, na carta, toda a amizade e afeição que os filipenses lhe dedicavam. E principalmente por saber que os filipenses se tornaram ardorosos divulgadores do cristianismo, então isso deixava Paulo ainda mais entusiasmado com os resultados do seu trabalho naquela comunidade. Daí ele dizer: “Deus é testemunha de que tenho saudade de todos vós, com a ternura de Cristo Jesus. E isto eu peço a Deus: que o vosso amor cresça sempre mais. ” E lhes recomenda que permaneçam fiéis até o “dia de Cristo”, ou seja, até a sua segunda vinda. Essa referência constante de Paulo à “segunda vinda” de Cristo bem denota o entendimento que ele tinha (e os cristãos da época) sobre este retorno de Cristo em breves dias. No nosso caso, o Advento nos convida a nos prepararmos para a chegada comemorativa daquele que vem, não apenas uma ou duas vezes, mas vem a nós todas as vezes que o buscamos. Com a liturgia do advento, nós fazemos essa preparação para o retorno de Cristo, espiritualmente, na vida da Igreja e nas nossas vidas de cristãos.

O evangelista Lucas, como de costume, muito detalhista, faz referências históricas bem precisas sobre a época em que João exerceu sua profecia: No ano décimo quinto do império de Tibério César, foi a palavra de Deus dirigida a João, no deserto. Tibério iniciou seu reinado no ano 14 d.C., portanto, o décimo quinto ano seria o ano 29. Pouco tempo depois, quando Jesus tinha 30 anos, ele foi batizado por João e assim iniciou sua vida de pregador. Essa referência histórica de Lucas fundamenta a contagem do tempo para o estabelecimento da data do nascimento de Jesus. E Lucas diz que João percorreu toda a região do Jordão, pregando o batismo da conversão, para o perdão dos pecados, a metanóia, ou seja, a mudança de mentalidade, aplicando um novo modo de compreender os textos sagrados, fazendo a passagem do antigo para o novo testamento. Na liturgia, o tempo do advento, em todos os anos, nos conclama a essa renovação interior, a viver a conversão pregada por João, a despertar para o cumprimento da promessa de Javeh aos patriarcas, fato que está para acontecer. Lucas se refere também às outras autoridades da época: Pilatos, governador da Judéia; Herodes, governador da Galiléia; Filipe, governador da Ituréia; Lisânias, governador de Abilene; Anás e Caifás, os sumos sacerdotes do templo. Ao contextualizar assim historicamente o início da vida missionária de Jesus, Lucas nos dá um testemunho bastante preciso não apenas deste fato, mas também da confirmação histórica da vida terrena de Jesus, pois esses personagens, cuja presença é bem viva nos textos dos evangelhos, tem existência real indubitavelmente confirmada. Ainda assim, há pessoas que duvidam se Jesus Cristo realmente existiu...

Podemos observar na exortação de Paulo aos filipenses uma correlação com a pregação de João Batista, acerca da preparação dos caminhos, da seguinte forma. João se refere às ações iniciais da conversão, enquanto Paulo se refere à continuidade desta. A conversão do coração não é algo que acontece apenas uma vez na vida, não é um fenômeno único, mas permanente, renova-se a cada dia. Quando Paulo diz que aquele que começou em vós uma boa obra (a conversão), há de levá-la à perfeição, quer dizer, há de sustentá-los na fé perseverantes até o final. A isso chamamos de conversão contínua e que representa o crescimento espiritual, tanto no conhecimento quanto no discernimento. Essa é a mensagem que, a cada ano, o tempo do advento vem nos trazer.

A exortação de Paulo aos Filipenses, assim como a pregação de João Batista, se aplicam a todos nós. A preparação do Natal do Senhor é um tempo oportuno de renovação das nossas esperanças e dos nossos compromissos de cristãos, no sentido de tornar o nosso mundo um lugar melhor para todos.

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COMENTÁRIO LITÚRGICO - 1º DOMINGO DO ADVENTO - 01.12.2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 1º DOMINGO DO ADVENTO – O FINAL E O COMEÇO – 01.12.2018

Caros Confrades,

Antes do final do ano civil, o calendário da Igreja Católica dá início ao seu novo ano litúrgico, que costumeiramente coincide com a primeira semana de dezembro do ano anterior, de acordo com a posição do dia de Natal no calendário civil, pois o ano litúrgico se inicia quatro semanas antes do Natal. A organização litúrgica da Igreja Católica distribui, no período de doze meses, toda a história da salvação, que historicamente demorou vários séculos, fazendo-nos reviver, a cada ano, todos os fatos marcantes da intervenção de Deus junto aos homens. Esta prática de dividir a Bíblia em porções correspondentes ao número de semanas do ano já existia entre os judeus, desde os tempos de Esdras, porém o calendário judeu se limita à Torah. No calendário litúrgico católico, as leituras litúrgicas abrangem toda a história da salvação, desde a aliança de Javeh com Abraão até a morte e ressurreição de Cristo e a vinda do Espírito Santo. Com a liturgia de hoje, 1º domingo do advento, tem início o ano litúrgico de 2019. De acordo com as regras da instrução oficial do Secretariado da Liturgia, este ano litúrgico é identificado com a letra C. Isso porque as leituras bíblicas são divididas em três grupos temáticos, repetindo-se a cada três anos.

Neste primeiro domingo do advento, a liturgia nos leva a refletir sobre as coisas que hão de vir, ou seja, os fenômenos indicadores do “final dos tempos” (adventura), bem como sobre o Menino que vai chegar (adveniens), convidando-nos a preparar o coração para recebê-lo com espírito renovado. É curioso esse contraponto que a liturgia faz entre o “final” e o “começo”, colocando as leituras com temas escatológicos e apocalípticos (evangelho de Lucas) junto da leitura do profeta Jeremias, anunciando aquele que vai chegar, para fazer valer a lei e a justiça sobre a terra, isto é, o Messias. Essa junção de temas conflitantes vem marcar a constante renovação que deve ocorrer em nossas vidas, demonstrando que o fim pode ser sempre um novo começo. O advento recorda a primeira vinda de Jesus, em forma humana e no tempo histórico; as coisas futuras recordam a segunda vinda de Jesus, não mais como criança nem no plano cronológico, mas como supremo juiz.

Esse tema da segunda vinda de Jesus, conforme abordamos em comentários anteriores, foi muito caro aos primeiros cristãos, que esperavam isto como algo iminente, de modo que alguns até deixaram de trabalhar, porque ele estava já chegando. O apóstolo Paulo era um dos que esperavam ver a segunda vinda de Jesus. Porém com a demora desse retorno, a compreensão foi mudando de perspectiva e, ao longo dos tempos, passou por diversos quadros interpretativos. Agora, muitos séculos depois e com a evolução do conhecimento humano, já não se deve pensar numa “data” determinada no calendário, nem mesmo num dia incerto e indefinido, como está escrito no evangelho (Lc 21, 35). Na minha modesta opinião, sou levado a crer que não cabe mais pensar num evento de dimensões cósmicas, como consta com detalhes na narração do evangelho lido neste domingo (Lc 21, 25), e sim numa circunstância que se realizará na dimensão atemporal, no plano da eternidade, quando ultrapassarmos o umbral da materialidade. Quando adentrarmos a dimensão da eternidade, encontraremos o Filho do Homem sentado sobre as nuvens, com todo o seu poder e glória, julgando e premiando os seus seguidores de coração sincero.

Na primeira leitura, o profeta Jeremias diz que “naqueles dias, farei brotar a semente da justiça que fará valer a lei... e Jerusalém terá uma população confiante... e será designada como 'o Senhor é a nossa justiça'”. (Jr 33, 15). A Igreja é a nova Jerusalém, lembrando aquela que um dia foi destruída, mas Deus a restaurou com o nome de Justiça. Isso ocorrerá 'naqueles dias' que não se sabe quando serão, mas que, com certeza, será na Jerusalém celeste. Dizer que o seu nome será “o Senhor é nossa justiça” significa que devemos considerar que a justiça divina não tem comparação com a justiça dos homens. A justiça de Deus é, na verdade, a sua misericórdia, o seu infinito amor para conosco, porque se Ele fosse nos julgar, do modo como nós costumamos julgar os nossos semelhantes, coitados de nós.

Então, no advento, a cada ano, nós reiniciamos a nossa preparação para esse futuro encontro com o Filho do Homem em seu tribunal da misericórdia, através dos atos litúrgicos que nos rememoram a vida histórica de Cristo, para que estejamos sempre vigilantes, como Ele próprio ensinou. Na segunda leitura, carta de Paulo aos cristãos Tessalonicenses (1Ts 4,1), o apóstolo os exorta a viverem como foi ensinado a eles, para agradar a Deus, seguindo as instruções que lhes foram passadas em nome do Senhor Jesus. Paulo estava preocupado com os Tessalonicenses, porque em sua visita àquela cidade, houve uma ríspida discussão entre ele e os judeus, fato que levou Paulo a fugir da cidade. Depois, ele mandou para ali Timóteo, para sondar o ambiente e ficou muito feliz com a informação deste de que os tessalonicenses continuavam fiéis à mensagem cristã. Por isso, Paulo os exorta a continuarem com aquele mesmo fervor religioso, preparando-se para o retorno de Cristo que, segundo o entendimento da época, se daria dentro de pouco tempo.

O evangelho de Lucas (Lc 21, 25-36) traz a clássica narrativa daqueles fatos que são indicativos do “final dos tempos”: “Haverá sinais no sol, na lua e nas estrelas. Na terra, as nações ficarão angustiadas, com pavor do barulho do mar e das ondas.” Em relação à conduta das pessoas, o texto do evangelho é assustadoramente dramático: “Os homens vão desmaiar de medo, só em pensar no que vai acontecer ao mundo, porque as forças do céu serão abaladas.” Os cristãos de todas as épocas, mas sobretudo dos primeiros tempos, tremiam diante dessas leituras e alguns até deixaram de trabalhar, porque a volta do Senhor estava próxima. Ora, Jesus disse diversas vezes que somente o Pai sabe esse dia, nem Ele sabia, como é que uns pobres mortais poderão adivinhá-lo? Por isso, mais importante do que tremer com a expectativa daquele “dies irae, dies illae” (como dizia o antigo cântico gregoriano), o que nós devemos fazer é seguir o que Jesus recomendou: “Tomai cuidado para que vossos corações não fiquem insensíveis por causa da gula, da embriaguez e das preocupações da vida, e esse dia não caia de repente sobre vós; pois esse dia cairá como uma armadilha sobre todos os habitantes de toda a terra.” (Lc 21, 34-35). Esse dia é aquele em que iremos nos encontrar diante do tribunal da misericórdia e desse dia ninguém conseguirá escapar. Daí que a preocupação de Cristo conosco é para que não nos deixemos dispersar pelos prazeres materiais e pelas preocupações da vida, para que a nossa fé esteja sempre atenta. Mais do que impressionar-se com o abalo das forças celestes, a nossa preocupação deve estar voltada para a nossa própria conduta, para a nossa fidelidade com os compromissos do nosso batismo. Cristo sabe o quanto isso é difícil para cada um de nós, frente a tantas distrações e encantamentos que a realidade material lança sobre nós. Daí o conselho que ele nos dá: ficai atentos e orai a todo momento, para terdes força pra ficar de pé diante do Filho do Homem.

É curioso como, ao longo do tempo, as pessoas leram essa passagem do evangelho e se concentraram na descrição dos fenômenos cósmicos, que na verdade estão fora do nosso controle, e esqueceram dessa outra parte em que Jesus nos exorta a agir com moderação, sem nos deixarmos seduzir pelos apelos dos prazeres corporais, pois isso sim depende de nós. Então, o ensinamento de Cristo para que fiquemos vigilantes sempre não se refere a um tempo futuro e indefinido, mas ao nosso tempo existencial. A nossa fé n'Ele deve ser renovada a cada dia, para que nossa expectativa não se volte para um fim catastrófico do mundo, mas para um fim sereno dos nossos dias, porque estes têm um prazo até certo ponto previsível. E será nesse momento que precisaremos ter forças para ficar de pé diante do Filho do Homem. A nossa força será medida pela nossa perseverança. Desse modo, quando o advento nos convida a estar vigilantes porque não sabemos o dia nem a hora, a nossa atenção não deve se voltar para “o Filho do Homem, vindo numa nuvem com grande poder e glória”, mas para o dia em que cada um de nós deveremos ficar em pé diante d'Ele.

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