domingo, 29 de maio de 2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 9º DOMINGO COMUM - A FÉ DOS PAGÃOS - 29.05.2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 9º DOMINGO COMUM – A FÉ DOS PAGÃOS – 29.05.2016

Caros Leitores,

No domingo depois da Santíssima Trindade, a liturgia retoma os domingos comuns, que decorrerão até o tempo do Natal. Neste nono domingo, as leituras da liturgia trazem um tema interessante, que é a fé dos pagãos, dos ateus, dos sem-religião. Muitas pessoas de boa vontade, que não professam uma religião específica, podem ter uma fé direcionada para a humanidade, para a bondade, para o espírito de cooperação. Isso já foi reconhecido pelos fiéis dos tempos antigos, como prova o exemplo de Salomão, da primeira leitura. Quando fiz curso de Teologia, li a respeito de um movimento europeu denominado “cristianismo sem religião”, referindo-se às pessoas que praticam as virtudes cristãs, mesmo sem professarem publicamente a sua fé. De acordo com recente pronunciamento do Papa Francisco, para essas pessoas também se aplicam os méritos da redenção operada por Cristo.

Na primeira leitura, do livro dos Reis (1Rs 8, 41-43), lemos a simbólica oração de Salomão, quando terminou a construção do grande templo de Jerusalém e foi inaugurar. Naquele momento, ele se lembrou que muitos estrangeiros visitavam Jerusalém e, certamente, teriam curiosidade de conhecer aquele portentoso templo. Então, no meio desta oração, Salomão “interroga” Javeh do seguinte modo: pode ser que algum estrangeiro, que não Te conhece, vendo a beleza deste templo, entre aqui e faça-Te um pedido. Então, diz Salomão, 'do céu onde moras, atende a todos os pedidos desse estrangeiro, para que todos os povos da terra conheçam o teu nome e o respeitem, como faz o teu povo Israel, e para que saibam que o teu nome é invocado neste templo que eu construí'. O que vemos aí é a preocupação do sábio rei Salomão com a fé dos pagãos. Ninguém entraria num templo, sabendo que se trata de um local religioso, sem o espírito de fé, foi o que ele deve ter imaginado. Então, este estrangeiro não deve ser expulso do templo, apenas porque não professa a nossa mesma fé, mas Javeh que conhece os corações de todos saberá se ele está ali com o espírito de fé e deve atendê-lo, mesmo ele não sendo crente. Foi isso que aconteceu com o sírio Naaman, conforme relatado em 2Rs 5,10. Naaman não era crente, no entanto, seguiu o ritual descrito pelo profeta Eliseu, com espírito de fé, e ficou curado de sua enfermidade. Foi o que aconteceu, em outro contexto, com o oficial romano, mencionado na narração de Lucas, no evangelho deste domingo, sobre o qual trataremos na sequência.

É interessante observarmos que, desde o Antigo Testamento, já existem situações exemplares em que se destaca o caráter universal da fé. No entanto, ainda nos dias de hoje, cada “igreja” se considera a única proprietária do tesouro da fé e usa isso como um instrumento de barganha para conseguir mais adeptos. Pouco tempo depois de sagrar-se Pontífice, o Papa Francisco, no dia 14.03.2013, pronunciou um sermão profético, no qual ele afirmou que, mesmo pessoas que não abraçam a fé católica, mas possuem espírito reto e praticam boas ações, também elas alcançarão a salvação. Apenas para que se avalie a grande novidade desse pronunciamento, recordo que a teologia oficial ensina que, quem conhece a Igreja Católica e se recusa a se engajar nela, mesmo que pratique boas ações, não alcança a salvação. Em outras palavras, o sermão do Papa repetiu a oração de Salomão, na inauguração do grande templo de Jerusalém, quando disse: “Fomos criados filhos à semelhança de Deus e o sangue de Cristo redimiu a nós todos! E todos temos o dever de fazer o bem. E esse mandamento para todos fazermos bem, penso ser um belo caminho para a paz. Se nós, cada um fazendo a sua parte, fizermos o bem uns aos outros, se nos encontrarmos lá, fazendo o bem, então iremos gradualmente criando uma cultura de encontro. Devemos nos encontrar na prática do bem.”

Na segunda leitura, de Paulo aos Gálatas (1, 1-10), ele diz enfaticamente que não há outro evangelho, diferente do que ele pregou e que foi deixado a nós por Jesus Cristo. Se vier um anjo do céu ensinando algo diferente, este deve ser excomungado, porque a fé em Cristo é uma só. Naqueles tempos iniciais do cristianismo, Paulo enfrentou diversas questões trazidas por judeus convertidos, que teimavam em adaptar os ensinamentos de Cristo à lei de Moisés, não reconhecendo a mudança da antiga para a nova aliança. Esses doutrinadores, dizia Paulo, não foram enviados por Cristo. Ele, Paulo, sim, tem autoridade para dizer isso, porque não se tornou apóstolo nem por iniciativa humana nem por intermédio de nenhum homem, mas pelo próprio Cristo, que o convocou.

Este é o tema também da leitura do evangelho, na narração de Lucas, o mais detalhista dos evangelistas, acerca do episódio muito conhecido, envolvendo o centurião romano, que solicitou um milagre a Jesus. Ele não era um crente professo mas, diz Lucas, ele era um homem bom, até tinha mandado construir uma sinagoga na cidade de Cafarnaum, mesmo sem ser israelita. Os anciãos que o conheciam deram testemunho a Jesus da sua personalidade. E Jesus estava, de bom grado, se deslocando para a casa do militar, quando teve seu trajeto interrompido. Aqui há uma pequena divergência entre os evangelistas. Mateus (8, 5) afirma que o próprio centurião foi pedir isso a Jesus. Lucas, em contrário (7,6), diz que o centurião mandou amigos dele fazerem o pedido a Jesus. Ainda segundo Mateus, foi o próprio centurião quem disse a Jesus que não precisava ir até a casa dele. Segundo Lucas, foram amigos do centurião que fizeram isso, pois o centurião não se considerou digno de estar na presença de Jesus e mandou seus mensageiros. Bem, estou destacando esses detalhes apenas para que todos, mais uma vez, observem que não podemos ler a Bíblia de uma maneira fundamentalista, porque muitas vezes os textos conduzem a situações complicadas.

Pois bem, no caso específico, esse detalhe não é, de fato, importante. O que realmente interessa é a forma como o centurião demonstrou sua fé em Jesus, mesmo não sendo israelita, mesmo não sendo um seguidor seu. Este texto tornou-se um clássico exemplo de fé irrestrita e foi inserido no cânon da missa, no rito da comunhão: “Domine, non sum dignus ut intres sub tectum meum, sed tantum dic verbum et sanabitur puer meus”. E Jesus se admirou muitíssimo, a ponto de exclamar: não encontrei tanta fé em Israel (Lc 7,9). O centurião não conhecia Jesus, apenas ouvira falar nos milagres que ele fazia, no entanto, isso foi suficiente para que ele demonstrasse a sua fé, muito diferentemente dos fariseus que, mesmo vendo tudo aquilo e conhecendo as escrituras, não acreditaram. Por isso, a queixa de Jesus, por não ter encontrado tanta receptividade entre o povo da promessa. Mesmo sem ser um discípulo de Jesus, o centurião entendeu que nem seria necessária a presença d'Ele para que operasse um prodígio, pois com o Seu poder, bastava que ele mandasse, mesmo que fosse de longe. E Jesus nem colocou qualquer condição para atendê-lo, por exemplo, converta-se, pratique a minha doutrina, venha me seguir, vá batizar-se, vá fazer penitência... para que isso? Aquela demonstração irrestrita de fé era bastante por si só.

A essas alturas, pode ser que alguém esteja conjeturando: então, para que serve a Igreja, se a fé é bastante. A Igreja é realmente necessária? Pois, sim. A Igreja enquanto comunidade, somos todos nós, a fé praticada em comunhão. O templo é a estrutura dentro da qual nós vivenciamos a nossa fé. A fé na sua dimensão pessoal está no íntimo de cada um. Ocorre que a salvação, como corolário da fé, é uma realização comunitária. Deus não nos quis solitários, isolados, individualistas. O próprio Deus é Trindade, é comunhão, então a nossa fé não se expressa por completo isoladamente, solitariamente, porque a fé tem duas vertentes: a dimensão vertical, pela qual fazemos nossa comunhão com Deus, e a dimensão horizontal, pela qual praticamos a nossa comunhão com os irmãos e as duas extremidades se tocam: a comunhão com Deus leva à comunhão com os irmãos e esta leva à comunhão com Deus. É para tal vivência que precisamos engajar-nos na comunidade eclesial. O ambiente eclesial existe para nos proporcionar, de uma maneira orientada e mais facilitada, esta cultura do encontro. Pelo menos, é assim que deveria ser. A comunidade eclesial tem essa característica de ser uma união de irmãos de fé, em que uns estimulam, orientam, ajudam os outros a vivenciarem autenticamente a sua, na dimensão da oração (vertical) e na dimensão da caridade (horizontal), propiciando desse modo a realização completa da nossa fé. A salvação não é um ato individual, mas uma produção coletiva e, embora seja possível fora da comunidade, é dentro desta que as condições são mais favoráveis para o seu desenvolvimento.

Meus amigos, que a demonstração de fé do centurião nos sirva de exemplo e motivação para repensarmos os nossos atos de fé e nos inspire a vivenciar, de forma mais completa, esta fé nas nossas comunidades.

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domingo, 22 de maio de 2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - DOMINGO DA SANTÍSSIMA TRINDADE - 23.05.2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO – DOMINGO DA SANTÍSSIMA TRINDADE - 23.05.2016

Caros Leitores,

A liturgia celebra hoje a festa da Santíssima Trindade, encerrando o núcleo temático catequético, que se inicia com o Advento, passando pela Quaresma e a Páscoa, até o domingo de Pentecostes. A festa da Trindade Santa sintetiza toda a doutrina cristã, que tem no Antigo Testamento a manifestação do Deus Criador, e no Novo Testamento, as manifestações do Filho Redentor e do Espírito Santificador. A partir do próximo domingo, retornam os domingos do tempo comum, até o começo do próximo ano litúrgico, que retoma o tempo do Advento, dando início a novo ciclo.

A fé na Santíssima Trindade é o dogma fundamental do cristianismo, o grande mistério revelado por Cristo, que só se esclareceu definitivamente após o sopro do Espírito Santo. No Antigo Testamento, o conhecimento da divindade era unipessoal apenas, isto é, somente YHVH (em hebraico: יהוה), o Deus dos patriarcas havia se revelado a Abraão e prometeu um Messias. Quando veio Jesus, ele trouxe a revelação de que “Ele e o Pai são um”. Depois, Jesus prometeu o Paráclito, aquele que viria esclarecer tudo. Foi em Pentecostes que a revelação da Trindade se completou. Este é o mistério dos mistérios, aquele que perpassa toda a dimensão da fé cristã. Dizer que é um “mistério” significa que o conhecimento disso não é possível de ser alcançado apenas com o uso da razão, mas é necessário que venha a fé em suplemento, para possibilitar a compreensão. Quem se recorda daquele verso que cantávamos no Tantum ergo: praestet fides suplementum sensuum defectui. (que a fé forneça suplemento ao defeito dos sentidos)?

Sob o ponto de vista da teologia católica, os conceitos de revelação e mistério se atraem mutuamente. O mistério é aquela verdade que a nossa razão precisa aprender a identificar, o que só ocorre com a ajuda da fé. Os teólogos criaram um conceito recente (quanto eu estudei teologia, ainda não existia) para simbolizar esse aprendizado que a razão tem com a ajuda da fé: mistagogia. É uma combinação das palavras gregas “mysterion” (revelação) com “agogé” (ensinar). A revelação tem esse componente pedagógico de conduzir a razão pelos caminhos obscuros da fé. Embora o mistério da Trindade seja o fundamento e o alicerce de toda a fé cristã, ele só foi alcançado e esclarecido bastante tempo depois, dada a sua complexidade. Por isso, a discussão sobre a Trindade conduziu a muitas discussões nas primeiras comunidades cristãs, tendo sido objeto de diversas doutrinas, depois consideradas heréticas, porque não admitiam a mesma natureza do Pai ao Filho e ao Espírito Santo. Dessas doutrinas, as mais famosas e que tiveram mais adeptos foram o arianismo e o monofisismo. O arianismo, defendida por um bispo de nome Ario, ensinava que Cristo é filho de Deus, mas não é igual a ele, seria uma espécie de semideus. O monofisismo ensinava que Cristo tinha apenas uma natureza, a divina, e a sua humanidade era apenas aparente. Algo como se fosse um fantasma divino visível. Essas doutrinas, além de outras menos divulgadas, dividiam os primeiros núcleos do cristianismo e foram objeto de muitos debates, antes de serem finalmente rejeitadas por decisões conciliares.

As definições foram aprovadas em dois Concílios: Niceia e Constantinopla. No Concílio de Niceia, em 325, os padres conciliares redigiram o “símbolo dos apóstolos”, a oração do Credo, sintetizando a doutrina oficial, para que ficasse mais fácil de ensiná-la ao povo cristão. Esta oração foi depois aperfeiçoada no Concílio de Constantinopla, em 381, porque no concílio anterior não ficara definida claramente a natureza do Espírito Santo. Assim é que o Credo atualmente rezado na liturgia é também chamado de símbolo niceno-constantinopolitano, porque sua redação passou pelos dois concílios. Em relação ao Filho, o Concílio de Niceia definiu que o Filho é gerado, não é criado. Gramaticalmente, as duas palavras até são sinônimas, mas no linguajar teológico, faz-se a diferença para explicar que o mundo, as pessoas, as coisas em geral foram criadas por Deus, mas o Filho foi gerado. Esta diferença conceitual acentua que o Filho tem a mesma natureza do Pai, porque foi por ele gerado, enquanto as coisas do mundo não têm a mesma natureza do Criador, porque foram criadas. Em relação ao Espírito Santo, o Concílio de Constantinopla definiu que o Espírito procede do Pai e do Filho. Não utiliza nem o verbo gerar nem criar. O Espírito Santo origina-se de uma relação de amor entre o Pai e o Filho. Teologicamente, afirma-se que o Filho é o Verbo (a palavra) do Pai que, de tão poderosa, torna-se outra pessoa divina. A “palavra” se fez carne, diz o evangelista João. Observemos que João afirmou isso por volta do ano 100, ou seja, esse entendimento sobre a natureza do Filho como Verbo de Deus já era conhecido na época de João. E também afirma-se que o Espírito é o Amor do Pai pelo Filho que, de tão poderoso, torna-se outra pessoa divina. Assim se explica teologicamente este grande mistério, que a nossa potência racional não consegue alcançar, mas apenas a fé nos dá esta certeza.

Faz pouco tempo, eu li na internet uma matéria, onde se afirmava que a doutrina trinitária não foi inventada no cristianismo, mas é uma doutrina pagã, que o cristianismo aproveitou. Diversas divisões protestantes negam a Trindade e algumas facções racionalistas do cristianismo também. Recusam-se a aceitar a Trindade, porque afirmam que na Bíblia, em diversas passagens, Yhvh afirma ser ele o “único” Deus e não pode haver outro. Afirmam ainda que em religiões mais antigas do que o cristianismo há também suas “trindades”, como por exemplo, no hinduismo, a trindade seria Brahma (deus da criação), Vishnu (deus da manutenção) e Shiva (deus da destruição); no antigo Egito, havia diversas “trindades”, como é o caso de Hórus, Isis e Osiris. Meus amigos, as pessoas que afirmam isso não conhecem a doutrina da Trindade católica. Esses exemplos pagãos são trindades de três deuses, o que não é o caso do Pai, Filho e Espírito Santo, que são um único Deus. E também não a entendem aqueles que se justificam dizendo que Yhvh se apresentou como o “único” Deus, pois a Trindade é um único Deus, não há contradição aí. O que falta a essas pessoas é a “fidei suplementum”, isto é, o suplemento da fé, elas querem entender tudo apenas pela razão e confundem as coisas, assim como fez S. Agostinho, naquela famosa cena em que ele viu o menino tentando colocar a água do mar num buraco da areia. Depois que S. Agostinho percebeu o tamanho da sua petulância, ele fez uma descoberta fascinante. Intelligo ut credam, credo ut intelligam (entendo para crer, creio para entender). Então, ele pode finalmente solucionar a sua dúvida.

Nas leituras litúrgicas de hoje, temos na segunda leitura, um trecho da carta de Paulo aos Romanos (5, 1-5), onde o Apóstolo ensina que “estamos em paz com Deus, pela mediação do Senhor nosso, Jesus Cristo... porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado. ” Paulo escreveu isso nos primeiros anos após a morte de Cristo, quando a doutrina da Trindade ainda estava em fase de elaboração, daí o seu ensinamento acerca da Trindade não ser tão direto como no evangelho de João, escrito muitos anos depois. Porém, vê-se o modo como Paulo demonstra a interligação entre as três pessoas divinas: o Pai criador, o Filho mediador, o Espírito que nos inunda. A comunidade de Roma, a quem Paulo se dirigia, era a mais eclética de todas pela própria condição da cidade, que era então a verdadeira capital do mundo e onde viviam pessoas das mais diversas procedências, costumes, idiomas e também crenças. Sem deixar de considerar que também, naquela época, o cristianismo era uma religião proscrita, perseguida, e só podia ser ensinada e praticada às escondidas. Paulo precisou utilizar a sua sabedoria para apresentar a fé na Trindade aos romanos de uma maneira que fosse mais apropriada para ser aceita. Por isso, ele explica da forma mais didática possível esta doutrina. Em Roma, havia muita influência da cultura grega nas classes sociais mais ricas, que eram o público preferencial da pregação de Paulo, dada a sua formação acadêmica. Paulo atendia às pessoas mais cultas, enquanto Pedro e os outros atendiam às outras comunidades.

Na leitura do evangelho de João (Jo 14, 1-6), Tomé está ainda atormentado com suas dúvidas: Mestre, não sabemos para onde tu vais nem conhecemos o caminho. E Jesus, com toda paciência, esclarece: “Eu sou o caminho… ninguém vai ao Pai, senão por mim”. Jesus é a chave para o conhecimento da Trindade. E, para concluir, uma breve lição de S. Tomás de Aquino: “A fé católica consiste em venerar um só Deus na trindade, e a trindade na unidade, sem confundir as pessoas, nem separar a substância; pois uma é a pessoa do Pai, outra a do Filho, outra a do Espírito Santo; mas uma é a divindade, igual a glória, coeterna a majestade do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo.

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domingo, 15 de maio de 2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - DOMINGO DE PENTECOSTES - 15.05.2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO – DOMINGO DE PENTECOSTES – 15.05.2016 – O PARÁCLITO

Caros Confrades,

Mais uma vez, o ano litúrgico nos traz a celebração do domingo de Pentecostes. Encerrando o ciclo pascal, a vinda do Espírito confirma as promessas de Cristo aos apóstolos e marca o início oficial da 'ekklesia', a comunidade das pessoas de boa vontade, que acreditam n'Ele e se responsabilizam por levar adiante a sua doutrina. Naquele dia, a cidade de Jerusalém estava cheia de visitantes, de peregrinos das mais diversas regiões, porque a vinda do Espírito coincidiu com uma grande festividade judaica, chamada de 'Festa dos Tabernáculos', na qual os judeus celebram o tempo de sua passagem pelo deserto, libertados do Egito, conduzidos por Moisés. O escritor de Atos dos Apóstolos, o evangelista Lucas, com o detalhismo que lhe é peculiar, teve o cuidado de enumerar as nacionalidades dos presentes, conforme consta em Atos 2,9: “partos, medos e elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Judeia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia,da Frígia e da Panfília, do Egito e da parte da Líbia próxima de Cirene, também romanos que aqui residem; judeus e prosélitos, cretenses e árabes”, em resumo, habitantes de todo o mundo judaico e grego, desde o Oriente Médio, passando pelo norte da África, até a ilha de Creta. A Festa dos Tabernáculos fazia parte do calendário anual das peregrinações dos judeus a Jerusalém, juntamente com a Festa da Páscoa. É um agradecimento a Deus por ter suprido o povo com água no deserto, para que não viessem a morrer de sede.

É interessante observarmos de que modo Deus conduziu a história da nossa redenção, fazendo coincidir as duas datas mais importantes da economia da salvação com as festas religiosas já existentes, de modo a deixar bem caracterizada a passagem do Antigo para o Novo Testamento. Assim é que temos a Páscoa cristã na data da Parasceve, a páscoa judaica, e o Pentecostes na data da Sukkot, a festa dos tabernáculos. Esses eventos confirmam o ensinamento de Cristo, quando disse que não veio mudar a lei, mas cumpri-la com perfeição. A celebração de Pentecostes vem substituir a festa dos Tabernáculos, marcando assim o evento inaugural oficial da Igreja de Cristo. Com a vinda do Espírito, naquela tarde de festa, causando um grande barulho, o fato chamou a atenção dos visitantes, que acorreram ao local para verem o que acontecera, sendo ali o início oficial a Igreja de Cristo, com aquela memorável pregação de Pedro, que está narrada em Atos 2,2. Ali foi uma espécie de aula magna para convidados especiais, representando os povos de diversas nações e que, pela ação do Espírito, eles ouviram a pregação de Pedro no seu próprio idioma, funcionando a eloquência do Espírito como um tradutor instantâneo. A leitura do texto diz que os apóstolos passaram a falar em línguas diversas, mas na minha opinião, eles falavam a língua comum deles, o aramaico. O resultado, conduzido pela ação do Espírito, fazia com que os ouvintes, mesmo sendo povos falantes de outros idiomas, conseguiam ouvir a pregação de Pedro como se ele estivesse falando em suas próprias línguas. Foi esse o milagre operado pelo Paráclito, naquele dia memorável.

A presença do Espírito é que dá vida e sustentação à ação da Igreja de Cristo. Desse modo, embora a liturgia celebre a festa de Pentecostes apenas em um domingo do ano, devemos estar cientes de que a vinda do Espírito não foi um fenômeno que aconteceu só naquele dia, mas que continua a ocorrer todos os dias, em todas as comunidades cristãs, falando coletivamente, e em cada cristão, falando subjetivamente. Pelo sacramento da crisma, cada cristão celebra o seu Pentecostes particular, recebendo o Espírito já não mais em forma de língua de fogo, mas nem por isso de um modo menos abrasador. Pelo batismo, nós ingressamos na comunidade dos cristãos, mas é pela crisma que nos habilitamos verdadeiramente para o exercício do envio à missão, da mesma forma como aconteceu com os apóstolos, naquele dia de Pentecostes. São Paulo, na epístola aos Coríntios (1Cor 12, 4) diz que há diversidade de dons, mas um mesmo é o Espírito. Então, a missão de cada um dentro da Igreja pode ser diferente, mas nos anima e nos une o mesmo Espírito. Os cristãos ordenados, os clérigos, têm a missão de testemunhar Cristo e de anunciá-lo a todos, pregando a palavra e “presidindo” os trabalhos, seguindo na frente (esse é o sentido original do verbo latino praesum=presidir, ir na frente). Os cristãos não ordenados, os leigos, têm a missão de testemunhar Cristo e anunciá-lo a todos com o seu exemplo, com as suas obras e atitudes.

Ma mesma carta a Coríntios (1Cor 12,12), Paulo explica e exemplifica de maneira bem didática essa diversidade de dons, de carismas, de tarefas, através da analogia com o corpo humano: “Como o corpo é um, embora tenha muitos membros, e como todos os membros do corpo, embora sejam muitos, formam um só corpo, assim também acontece com Cristo.” É a conhecida doutrina teológica do “corpo místico de Cristo”, da qual já ouvimos falar tantas vezes, mas é sempre oportuno recordá-la, para que nos conscientizemos da função que cada um de nós deve assumir nesse contexto. Não é necessário fazer nenhum esforço, basta deixar agir o Espírito que está em cada um de nós, basta ouvir a voz da nossa consciência, que nos transmite a mensagem vinda do Espírito. Todos sabemos que o exemplo vale mais do que as palavras. Então, o nosso maior testemunho será viver o dia a dia como autênticos cristãos. Mais do que pregar, discursar ou discutir religião com as pessoas, o nosso maior testemunho será com o bom exemplo silencioso, coerente, convicto, que produz muito mais efeito do que certas pregações de palavras bíblicas ao vento, levadas por aparelhos sonoros.

Há um pequeno trecho do evangelho de hoje (Jo 14, 16), que eu considero bastante significativo: “...e eu rogarei ao Pai, e ele vos dará um outro Defensor, para que permaneça sempre convosco.” Nesta frase, eu destaco a expressão “outro defensor”. Em grego, temos “allon parákliton”, que São Jerônimo traduziu em latim para “alium paraclitum”. Primeiramente, consideremos a palavra “parákliton”. Essa palavra, em grego, deriva do verbo “parakaléô”, que significa 'convidar para ir junto'. Vamos aqui recordar uma praxe comum das culturas antigas grega e romana, na época em que não havia ainda os advogados. Uma pessoa, que fosse chamada para ir a um tribunal, podia chamar um amigo para “ir junto” a fim de ajudar na defesa. Esse é o sentido etimológico de “paráclito”. Então, a tradução simples de “defensor” não diz todo o sentido que a palavra original possui. O paráclito é o que vai com o amigo, que fica ao lado, que dá apoio e também defende, ou seja, é muito mais do que apenas um defensor. Agora, consideremos que o Espírito é o “outro paráclito”. O que podemos concluir daí? Que o primeiro paráclito é o próprio Cristo, que mesmo sem ser convidado, veio para ficar junto, para nos dar apoio e incentivo e também para nos defender. Mas a sua missão foi concluída, e agora virá ou “outro paráclito”, cuja missão é dar continuidade em modo permanente à missão do anterior. A missão do “outro paráclito” é perene, por isso diz o evangelista: “para que permaneça sempre convosco”.

Meus amigos, que grande dádiva e que grande conforto é saber que o outro Paráclito vai permanecer para sempre conosco, nos inspirando, nos incentivando, nos defendendo. Na linguagem contemporânea, existe uma palavra inglesa que se usa até sem tradução em português, o termo “coaching”, que tem de certo modo essa tarefa, sob o aspecto profissional. Pois bem, o Espírito é o nosso “coaching” espiritual, que nos acompanha na missão do dia a dia. E a pessoa que é mais assistida, porque é também a que mais necessita desse ajuda, é o nosso Papa Francisco, obstinado por construir uma nova Igreja. Na semana passada, a imprensa internacional deu destaque a um discurso do Papa durante uma reunião com Madres Superioras de diversas Congregações Religiosas, que estavam reunidas em Roma. Durante a assembléia geral, duas religiosas questionaram o Papa perguntando por que a Igreja Católica ainda faz discriminação com as mulheres e não permite que elas sejam diaconisas, como já foram nos primeiros tempos do cristianismo. O Papa, com a sinceridade e a simplicidade que lhe são características, topou imediatamente o desafio e disse mais ou menos assim: aí está uma boa idéia, nós precisamos compreender melhor com era a missão das diaconisas na igreja primitiva, eu vou designar uma Comissão especial para fazer um estudo sobre esse tema. A repercussão foi imediata e recebida com entusiasmo no meio feminino. Eu me recordo que, quando cursava teologia, nos anos 70, o Papa era Paulo VI, nos anos imediatos que se seguiram ao Concilio Vaticano II, dizia-se que o outro Papa que viesse após ele iria defender a ordenação das mulheres como sacerdotisas. Havia duas freiras, que estudavam na nossa turma, e nós dizíamos que elas seriam as primeiras a receber a ordenação aqui. Lamentavelmente, o Papa que veio depois (João Paulo II) adotou procedimentos bem conservadores e tradicionais, não era o que se esperava.

Que nós saibamos reconhecer e dar ouvidos às mensagens de apoio e incentivo que o nosso Paráclito está diuturnamente a nos soprar. Apuremos os ouvidos do coração para conseguir isso.

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domingo, 8 de maio de 2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - DOMINGO DA ASCENSÃO - HOMENS DA GALILEIA - 08.05.2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO – DOMINGO DA ASCENSÃO – HOMENS DA GALILÉIA – 08.05.2016

Caros Leitores,

Celebramos neste domingo a festa da Ascensão do Senhor. Aqueles homens da galiléia, mesmo após todo o curso de catequese que Jesus fizera com eles, naquele momento final, ainda estavam a perguntar ao mestre: é agora que vais restaurar o reino de Israel? Parece que não haviam entendido muita coisa dos ensinamentos de Jesus. É curioso observar como ainda hoje vemos alguns cristãos fazendo perguntas semelhantes, porque não conseguem entender o significado mais autêntico da mensagem de Cristo.

Na primeira leitura, retirada dos Atos dos Apóstolos (At 1, 1-11), o escritor sagrado narra a subida de Jesus ao céu, após despedir-se dos apóstolos. Coincidentemente, a leitura do evangelho de hoje é retirada do mesmo escritor dos Atos, o médico São Lucas e, se observarmos com atenção os dois textos, veremos que ele comete uma pequena incoerência acerca dos detalhes que cercam a ascensão de Jesus. Em At 1, 4 e 1, 9, ele escreveu: “Durante uma refeição, deu-lhes esta ordem: 'Não vos afasteis de Jerusalém … Depois de dizer isto, Jesus foi levado ao céu, à vista deles.” Lucas gosta muito de falar nos detalhes das cenas que descreve, mas desta vez ele (parece) se esqueceu do que havia escrito no evangelho, que é anterior (Lc 24, 50-51): “Então Jesus levou-os para fora, até perto de Betânia. Ali ergueu as mãos e abençoou-os. Enquanto os abençoava, afastou-se deles e foi levado para o céu.” Se fossem escritos de diferentes autorias, esta inconsistência da narrativa seria fácil de explicar, mas visto que são textos do mesmo autor, fica difícil ser compreendida. No entanto, isso importa apenas por uma questão de análise textual, pois na verdade, não altera o conteúdo da mensagem: Ele subiu ao céu depois de passar mais um tempo (40 dias) após a sua morte reforçando a catequese com os seus discípulos, para que eles entendessem melhor a doutrina que iriam pregar.

Aliás, os textos dos evangelhos se prestam mesmo a múltiplas interpretações. Nesse texto, os seguidores do espiritismo interpretam essa narração dos Atos para robustecer a sua tese de que, após a morte, o “espírito” não vai logo para a sua morada eterna, mas ainda passa algum tempo (tempos diferentes, de acordo com as necessidades de cada um) numa situação intermediária, em que já não tem mais corpo material, mas ainda não chegou ao nivel espiritual mais elevado. Provavelmente, por isso algumas pessoas sejam capazes de “ver os espíritos” dos mortos, porque eles ainda estão na situação vacante, ainda não fizeram a viagem definitiva até o outro mundo. Teoricamente, isso significaria que a “missão” daquela pessoa ainda não terminou, assim como a missão de Cristo não teria terminado e por isso a necessidade ficar aparecendo e ensinando aos apóstolos. Na minha opinião, trata-se de uma simples acomodação do texto a uma posição doutrinária diversa da oficial, algo que deve ser uma mera coincidência literária. Eu não creio que cada pessoa tenha uma “missão fechada”, que deva ser sempre obrigatoriamente terminada, sob pena de não poder o ser humano desvincular-se completamente do mundo terreno enquanto não a concluir. Essas teorias reencarnacionistas são muito antigas, anteriores até ao cristianismo e, provavelmente, Cristo as conhecesse. Entre os gregos, havia defensores dessa doutrina, como os pitagóricos e os órficos. Porém, Cristo nunca se referiu a essa possibilidade nos seus ensinamentos e nem existe referência a isso nas cartas de Paulo, que era o mais entendido de cultura grega dentre os escritores sagrados. Penso que a missão de Cristo era única e o seu exemplo não pode servir de modelo para algo que ele nunca ensinou.

Ainda outro fato que está associado à festa da Ascensão diz respeito a um trecho conclusivo do escritor sagrado Lucas, quando ele escreveu (At 1, 11): “Apareceram então dois homens vestidos de branco, que lhes disseram: 'Homens da Galiléia, por que ficais aqui, parados, olhando para o céu? Esse Jesus que vos foi levado para o céu, virá do mesmo modo como o vistes partir para o céu.” Entra em ação, outra vez, o detalhismo de Lucas, percebam: dois homens vestidos de branco. Ele nem diz que são dois anjos, mas por terem saído das nuvens e estarem trajando branco, a tradição entendeu sempre que são dois anjos. Mas o que eu quero chamar a atenção também é para o outro detalhe: “Ele virá do mesmo modo como o vistes subir.” Por causa deste detalhe, muitos pintores da arte sacra têm mostrado Jesus, com um semblante resplandescente, descendo do céu para julgar a humanidade, no final dos tempos. Contudo, de acordo com as interpretações mais recentes dos biblistas, essa descrição deve ser entendida metaforicamente, não do modo como está escrito. Esta descrição corresponde ao modo como os primeiros cristãos entendiam a mensagem de Jesus, quando Ele disse que retornaria para julgar a todos. Por causa dessa compreensão do fato e por causa dessa descrição de Lucas, muitos cristãos dos primeiros tempos viviam na expectativa de ver Jesus voltando já naquela época. São Paulo até adverte os cristãos de Tessalônica (II Tes 2, 1-12) para que ninguém queira adivinhar o dia em que o Senhor voltará. Isso porque alguns cristãos primitivos, achando que Jesus estava quase para vir, deixaram até seus trabalhos e ficavam o dia todo ociosos só esperando a volta de Jesus. Havia, dentre alguns, esse entendimento de que Ele estava para retornar em breve e muito provavelmente o evangelista Lucas transferiu essa ideia para o seu texto. A interpretação em que eu acredito é de que cada fiel vai encontrar-se com o Julgador por ocasião da sua passagem, não havendo um determinado dia, no qual todos os vivos e mortos fariam tal apresentação. Apesar disso, a forma tradicional de interpretar essa passagem de Lucas ainda é amplamente majoritária.

No domingo de hoje, celebra-se também o dia mundial das comunicações, um fenômeno super importante do mundo moderno. Em nenhuma outra época, foi tão fácil e tão disponível, das mais variadas maneiras, a comunicação, sobretudo aquela que se faz através dos canais eletrônicos. O próprio Papa utiliza as redes sociais e incentiva os cristãos a utilizarem os meios eletrônicos de comunicação para o serviço da evangelização. As cerimônias religiosas transmitidas pela TV e pela internet são muito bem recebidas no mundo todo. Ou seja, a Igreja enquanto instituição vem usando os modernos canais de comunicação a serviço da evangelização, nos mais diversos modelos de transmissão. Ainda do ponto de vista institucional, temos os “padres cantores”, os canais de TV específicos para a divulgação de temas religiosos, das mais variadas comunidades religiosas, desde aquelas que oferecem um serviço de boa qualidade, até aquelas que tem um intuito comercial maior do que propriamente o interesse de evangelizar. Sinceramente, tenho dúvidas se se pode denomiar isso de evangelização, no sentido da missão que Jesus confiou aos seus discípulos: ide pelo mundo e ensinai o que eu vos ensinei. Essa apropriação indevida (ao meu ver) dos canais de comunicação para outros interesses, contudo, não justifica a total supressão da divulgação da mensagem religiosa por esses meios. Afinal, será o conhecimento e o discernimento de cada cristão que deverá saber separar o joio do trigo, por isso, a forma tradicional de evangelizar, através da pregação da palavra e dos ofícios religiosos presenciais não pode ser substituída pelas formas eletrônicas, as quais são válidas, mas devem ser utilizadas parcimoniosamente.

A festa da Ascensão do Senhor prepara a festa de Pentecostes, que será celebrada no próximo domingo. Ao se despedir dos discípulos, Jesus pediu que eles não se afastassem de Jerusalém, para que recebessem a “visita” do enviado especial do Pai, o Espírito, que iria confirmar tudo e abrir-lhes as mentes para o seu correto entendimento. A segunda leitura, de Paulo aos Efésios, contém uma invocação do Apóstolos aos fiéis daquele tempo, que pode muito bem ser aplicada a nós, nesse momento, sem quaisquer adaptações do texto (Ef 1, 18-19): “Que ele [o Espírito] abra o vosso coração à sua luz, para que saibais qual a esperança que o seu chamamento vos dá, qual a riqueza da glória que está na vossa herança com os santos, e que imenso poder ele exerceu em favor de nós que cremos, de acordo com a sua ação e força onipotente. ” O mesmo Espírito que veio confirmar e esclarecer os ensinamentos de Cristo aos apóstolos deve continuar a sua atuação no nosso meio, para que possamos exercitar a amizade e a fraternidade através dos recursos técnicos que temos à nossa disposição.

Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

domingo, 1 de maio de 2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 6º DOMINGO DA PÁSCOA - LUMINÁRIA CELESTE - 01.05.2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 6º DOMINGO DA PÁSCOA – LUMINÁRIA CELESTE – 01.05.2016

Caros Leitores,

Nas leituras deste 6º domingo da Páscoa, atraiu a minha atenção o trecho do Apocalipse de João, onde ele diz que, na Nova Jerusalém, a luminária é o Cordeiro. A cidade celeste não necessita de sol nem de lua para alumiá-la. Merece também uma referência, na leitura dos Atos dos Apóstolos, ao primeiro Concílio de Jerusalém, convocado para ser discutida uma das primeiras questões doutrinárias que dividiu os cristãos: como fica a observância da Lei de Moisés diante dos ensinamentos de Cristo? Deve ser mantida ou está superada? Ora, mas Jesus disse que não veio abolir a lei, e sim cumpri-la com prefeição… assim pode ser delineada a questão dos cristãos judaizantes, que queriam manter a obrigatoriedade da circuncisão como condição para a salvação.

É assim que se percebe a preocupação da comunidade cristã de Antioquia, conforme está descrita nos Atos (15, 1-2), primeira leitura de hoje. Paulo havia fundado a igreja daquela cidade e, ao passar por lá algum tempo depois, soube da polêmica que se instalara entre os convertidos judeus e pagãos. Alguns judeus vindos do norte afirmavam que “Vós não podereis salvar-vos, se não fordes circuncidados, como ordena a Lei de Moisés”. Paulo e Barnabé enfrentaram aquela dificuldade e argumentaram com os dissidentes, porém sem convencê-los. A situação se tornou tão delicada que os dois preferiram levar o caso para ser decidido pelo colegiado dos Apóstolos em Jerusalém, para que não ficasse apenas no entendimento deles dois. Assim deu-se o primeiro Concílio da Igreja, para a apreciação e decisão sobre questões cruciais da doutrina. Muitos outros já se sucederam ao longo dos séculos. Naquela ocasião, a resposta foi enviada através dos porta vozes Judas e Silas, em nome da comunidade hierosolimitana: “Porque decidimos, o Espírito Santo e nós, não vos impor nenhum fardo, além destas coisas indispensáveis: abster-se de carnes sacrificadas aos ídolos, do sangue, das carnes de animais sufocados e das uniões ilegítimas. Vós fareis bem se evitardes essas coisas.” (Atos 15, 28-29)

Esta frase necessita de uma análise gramatical mais detalhada, pois a tradução pode parecer confusa. Conferindo os textos originais grego e latino dos Atos, percebe-se que são apenas duas as exigências da Lei de Moisés que permanecem para os judeus e pagãos convertidos: 1. abster-se das carnes sacrificadas aos ídolos, seja por meio de sangramento ou de sufocação, e 2. abster-se das uniões ilegítimas. Isto é, o objetivo é manter a unidade do culto cristão, que não deve ser misturado com os cultos dos deuses pagãos, esse foi o grande problema enfrentado por Moisés no passado hebraico. Em relação às uniões ilegítimas, São Jerônimo usa o termo latino “fornicatione”, que é a tradução do grego “pornéias”. Essa palavra é habitualmente relacionada com o adultério, então essa seria a segunda regra a ser mantida. Com relação à circuncisão, não deveria ser mais obrigatória, porque esse ritual de purificação indificual foi totalmente superado com o sacrifício de Cristo e foi substituído pelo batismo, então a circuncisão tornou-se obsoleta nesse contexto. Aliás, sabe-se que a exigência da circuncisão, no tempo dos hebreus, tinha também como finalidade facilitar o ato humano procriador, pois com a expectativa que se fazia do nascimento do Messias, todos deviam colaborar para isso. Após a vinda de Cristo, isso também não faz mais sentido de ser mantido como obrigatório. E assim o Concílio de Jerusalém solucionou a questão dos judaizantes, referendando o ensinamento de Paulo e Barnabé.

Sabiamente, o Concílio de Jerusalém entendeu que não devia exigir dos novos cristãos nada além do necessário, ou seja, do essencial. E afirmou isso de uma forma que se tornou clássica: “decidimos, o Espírito Santo e nós...” Não foi uma decisão assim na base das opiniões pessoais e do apego à tradição, mas após a invocação das luzes do Espírito Santo. Essa forma de enfrentar e decidir as questões sensíveis acerca da doutrina é chamada, no vocabulário teológico, de “magistério de Igreja”, tornando-se uma das fontes da teologia, ao lado da Sagrada Escritura e da Tradição. Essa foi uma grande polêmica levantada por Lutero, no século XVI, pois ele entendia que a teologia devia ter como única fonte a Bíblia (princípio da “scriptura sola”) e ainda hoje é um dos pontos de divergência mais cruciais entre os teólogos católicos e protestantes. Para os protestantes, não há tradição nem magistério.

Na segunda leitura, do Apocalipse (21, 10-14), o apóstolo João faz um interessante trocadilho com o numero doze, em relação à cidade de Jerusalém, conforme a visão que teve. A nova Jerusalém, que desceu do céu, de junto de Deus, imagem da Igreja de Cristo, brilhava como uma pedra preciosíssima e estava cercada com uma alta muralha, que possuía doze portas, cada uma com o nome de uma das tribos de Israel. E esta muralha se assentava sobre doze alicerces e em cada um destes estava escrito um nome dos doze apóstolos de Cristo. Vejamos que curiosa imagem João nos apresenta, comparando a Jerusalém antiga com a nova, transmitindo a ideia de que a lei antiga prevalecia, simbolizada esta com as doze portas com os nomes dos filhos de Jacó, no entanto, estas portas estavam construídas sobre uma muralha dotada de doze alicerces, estes representados pelos doze apóstolos. Os doze apóstolos representam, portanto, a nova aliança, que sustenta a antiga e que lhe confere uma nova funcionalidade. A Igreja de Cristo é o alicerce desta nova aliança.

Nessa ocasião (Ap 21, 22), João faz um comentário muito significativo: não vi um templo na cidade (Nova Jerusalém), pois o seu templo é o próprio Senhor. Essa cidade também não precisa de sol nem de lua para clareá-la, pois a glória de Deus é a sua luz e a sua luminária é o Cordeiro. Jesus é o novo sol, pelo qual se reflete a luz de Deus. Essa intrigante descrição de João no Apocalipse está coerente com a lição de Cristo que, ao ser interrogado sobre “onde” se deve adorar a Deus, ele disse que os verdadeiros adoradores não precisam ir a um lugar determinado, um local físico, porque Deus deve ser adorado em espírito e em verdade. E onde estiverem dois ou mais reunidos em nome de Cristo, ali está um ambiente adequado para a oração. Infelizmente, ainda há cristãos que imaginam que só se pratica a religião indo à igreja e, ao sairem de lá, esquecem que a sua prática de cristãos deve prosseguir nas ações do dia a dia. Ser cristão não é apenas rezar o terço, assistir à missa, comungar e fazer o sinal da cruz quando passa diante de um templo. A principal exigência que Cristo faz para nós é que vivamos a nossa fé nos nossos relacionamentos, nas nossas atividades laborais, na vida privada e pública. Essa cisão entre a devoção e a vivência da fé é a característica mais presente na catequese do passado e a mais difícil de ser superada na religiosidade popular. A vinculação a um local físico é a grande marca do catolicismo devocionista, tão bem representado nas romarias e movimentos de massa, mas que (ao meu ver e com todo respeito) não realiza o verdadeiro ensinamento de Cristo.

No evangelho de hoje, o evangelista João (14, 23) diz com simplicidade e clareza o que Jesus requer de seus seguidores: “'Se alguém me ama, guardará a minha palavra, e o meu Pai o amará, e nós viremos e faremos nele a nossa morada.” E prossegue explicando isso: “E a palavra que escutais não é minha, mas do Pai que me enviou. […] o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, ele vos ensinará tudo e vos recordará tudo o que eu vos tenho dito.” (14, 24-26). Guardar a palavra não é escondê-la numa gaveta da memória e lembrar-se de vez em quando. O guardador não é um simples custódio, aquele que detém a guarda da coisa, mas deve ser sobretudo o executor, aquele que conhece a palavra e a pratica. É isso que Deus quer de nós. Teoricamente, é para isso que existe a Igreja de Cristo, com o seu corpo de pastores, sucessores dos apóstolos, que ficaram com o papel de conduzir a comunidade da fé na autêntica guarda da palavra, os alicerces da muralha, de que João fala no Apocalipse. Porém, não apenas os sucessores dos Apóstolos têm essa missão, eles fazem isso como obrigação, por delegação especial. Mas, na prática, todos os cristãos são autênticos guardadores e cumpridores do ensinamento de Cristo.

O Papa Francisco, desde o início de seu pontificado, tem trabalhado com grande esforço para tentar reverter essa prática religiosa antiquada e ainda muito forte, no meio religioso popular, estimulada e mantida pela catequese tradicional e por uma estrutura organizacional arcaica, porém muito conveniente para a hierarquia eclesiástica, pois agrada aos católicos tradicionalistas, que ainda são poderosos em nossas comunidades. Que o Espírito ilumine sempre e cada vez mais as nossas autoridades eclesiais e todos nós, para sermos fiéis guardadores da palavra como Cristo ensinou, não daquele modo que a influência externa do poder sociopolítico a transformou e que precisa ser mudado.

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