sábado, 13 de abril de 2024

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 3o DOMINGO DA PÁSCOA - 14.04.2024

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 3º DOMINGO DA PÁSCOA – O INTERCESSOR – 14.04.2024


Caros Confrades,


A liturgia deste terceiro domingo da Páscoa traz dois textos escritos por Lucas (Atos e Evangelho) e uma carta de João. Nas três leituras de hoje, encontramos alguma referência a Cristo como o defensor, o intercessor, o advogado. Essa palavra é da raiz do verbo grego “parakaleou” donde vem o termo “paráclito”, que se atribui ao Espírito Santo. Na sua carta, João diz: se alguém pecar, temos diante do Pai um Defensor. E no evangelho, Lucas relata a primeira aparição de Cristo aos apóstolos, após a ressurreição, deixando-os assustados e medrosos, pensando estarem vendo um fantasma. No final, coloca também a referência à ressurreição de Cristo que perdoa os pecados de todo o mundo. Nesse contexto do intercessor, parece-me oportuna uma reflexão sobre o conceito do pecado.


Na primeira leitura, dos Atos dos Apóstolos (3, 13-19), o autor narra um discurso de Pedro dirigido ao povo, certamente aos judeus, dado o conteúdo da fala, porque se refere a eles dizendo diretamente: “vós o entregastes a Pilatos, vós matastes o autor da vida...” porém, se vos arrependerdes, os vossos pecados serão perdoados. Eu percebi no teor dessa leitura o ranço que, durante séculos, a liturgia conservou em relação ao povo judeu (eram chamados de pérfidos judeus, na oração oficial da sexta feira santa), situação que só começou a se abrandar após o Concílio Vaticano II, com Paulo VI. Porém, nesse discurso de Pedro, ele mesmo diz que “agistes por ignorância”, mas desse modo, se cumpriu o que todos os profetas haviam anunciado. É curiosa essa contradição, a mesma que durante séculos também perseguiu Judas, protofigura do traidor. Se a ação deles foi necessária para que se cumprissem as Escrituras, então por que essa discriminação, esse repúdio? Talvez porque eles não manifestaram arrependimento público, assim como fez Myrian de Magdala (a Madalena), mas lembremo-nos de que Pedro dirige esse discurso aos judeus que o ouviam de bom grado, com certeza, em vias de conversão ao cristianismo. Realmente, essa conduta tradicional do cristianismo com relação aos judeus configura um pecado histórico, da mesma forma como foram discriminadas todas as demais religiões não católicas. Felizmente, vimos testemunhando um processo de restauração da verdade dos fatos, um esforço dos nossos Papas dos últimos 50 anos, no sentido de reaproximar os diversos credos, cujas divergências já provocaram tantas violências ao longo da história.


Eu achei interessante abordar esse tema do pecado, porque na catequese tradicional, havia uma “lista” de pecados com as devidas especificações: tal era um pecado leve ou venial, outro tal era um pecado grave ou mortal, que podia até levar a pessoa ao inferno, ou seja, criou-se uma tabela moralista na qual se enquadravam as condutas exteriores das pessoas, deixando de lado o que verdadeiramente interessa, o que se passa no interior de cada um. A religião de exterioridades ainda está implantada na cabeça de muitos católicos, desde bispos e padres até os fiéis leigos. Deixar de ir à missa no domingo é pecado grave; deixar de fazer a comunhão na Páscoa é pecado mortal; caluniar alguém é pecado venial; mentir é pecado venial... ora, meus amigos, é tempo de passar por cima desse tabelamento. Pecado é o que nos afasta do amor de Deus, pecado é faltar com a caridade. Até algum tempo atrás, era proibido aos católicos trabalharem aos domingos, porque esse é o dia do preceito. Nos dias atuais, em que muitas atividades profissionais envolvem o trabalho dominical, o católico consciente fica em dificuldade para conciliar sua fé com a sua profissão. Além disso, observem a expressão “dia de preceito”, isso indica uma coisa que se deve fazer por obrigação. Imaginem só: ir à missa porque é obrigação não adianta de nada, não é isso que Deus quer. Fazer abstinência de carne na sexta feira santa porque é obrigação não adianta de nada, não é isso que faz de você um cristão, um fiel a Cristo. Tudo aquilo que é realizado simplesmente porque é obrigação não tem valor. O agente deve agir porque considera que aquela ação é boa, é útil, é louvável, é para a glória de Deus, é para o seu bem espiritual e para o bem de toda a comunidade. Deixar de ajudar ao irmão necessitado, quando se tem a possibilidade de fazê-lo, mas não se faz por omissão ou por preguiça ou por desprezo é muito mais grave do que deixar de ir à missa dominical. E como tem gente que pensa que, ao ir à missa, está garantindo a sua salvação eterna e obtendo o perdão dos pecados. Vejam bem, não estou afirmando que ir à missa não é importante, estou comparando os dois comportamentos. Ir à missa e não praticar a caridade com os irmãos é uma atividade vazia de sentido e de resultados, é hipocrisia.


Na segunda leitura, o apóstolo João, com a sua linguagem carinhosa de um pai idoso, admoesta: meus filhinhos, eu digo isso para que não pequeis; mas se alguém pecar, fique calmo, você não está perdido, nós temos um intercessor, um Defensor junto do Pai, Jesus Cristo, o Justo. E depois, dá uma alfinetada forte: se alguém diz que conhece a Deus, mas não guarda seus mandamentos, esse é um mentiroso. É mais ou menos o que eu escrevi acima, com outras palavras. E que mandamentos são esses? São aqueles que todos nós já sabemos de cor: amar a Deus e amar ao próximo, nesses dois, estão resumidos toda a lei e os profetas. Então, não basta dizer: Senhor, Senhor... todo mundo se lembra disso. Não adianta se confessar toda semana, comungar todos os dias, rezar três terços por dia, etc, se não praticar a caridade. Paulo disse isso naquele conhecido texto aos Coríntios (1Cor, 13): praticar a religião sem amor é igual a um sino que tine, só faz barulho, não tem nada no seu interior. Com outras palavras, diz João: conhecer a Deus sem cumprir os mandamentos é uma mentira. Não podemos ter assim um comportamento religioso de mentira, de fachada, de barulho. Então, é importante o ensinamento de João, porque ele sabe que todos nós somos imperfeitos, sujeitos a falhas na nossa conduta. Por isso, ele diz: eu digo isso para que não pequeis; mas, se alguém pecar, tem um jeito: Jesus é o nosso defensor, é a nossa fé nEle que possibilita a nossa remissão. Naquele que guarda a sua palavra, o amor de Deus se realiza plenamente.


Na leitura do evangelho de Lucas (24, 35-48), temos a sequência do episódio conhecido, ocorrido no próprio domingo da ressurreição, quando Jesus ressuscitado dialogou com os discípulos que iam para Emaús e os fez voltarem a Jerusalém. Ainda estavam contando o fato para os outros, quando Jesus apareceu no meio deles. Aqui estou eu, ressuscitei conforme prometi. E então, foi relembrar aos apóstolos o que havia lhes ensinado. Se não fosse essa 'prova de segunda chamada' da pedagogia de Jesus, os ensinamentos de antes teriam ficado esquecidos, pois os apóstolos eram homens rudes, não acostumados a leituras e estudos. E no final da lição, profetizou: no meu nome, serão anunciados a conversão e o perdão dos pecados a todas as nações, começando por Jerusalém e vós sereis testemunhas de tudo isso. Jesus passou quarenta dias fazendo a reciclagem, dando aulões de reforço àqueles ex-pescadores, demonstrações fantásticas de seu poder, para que assim eles se firmassem na fé. Nenhum dos evangelistas relata que Jesus tenha perguntado a Pedro porque o negara diante dos palacianos, pois Jesus sabia que o conhecimento deles ainda era muito superficial, era necessário um aprofundamento, uma revisão geral. Quando, por fim, receberam o Espírito, então estavam preparados pro que desse e viesse, foi o que aconteceu. Então, se explica aquele discurso de Pedro aos judeus, relatado por Lucas na primeira leitura deste domingo.


Nas leituras da liturgia diária da semana, são lidos vários trechos dos Atos dos Apóstolos, relatando as primeiras pregações dos apóstolos, as prisões que eles sofreram, as chicotadas e a perseguição dos fariseus e saduceus, proibindo-os de falar em nome de Jesus. Quanto mais eles eram proibidos de falar, mais falavam. Dentre essas, uma que merece destaque é a leitura de Atos (5, 34), onde temos o ponderado discurso de Gamaliel, que era mestre da lei e membro do Sinédrio, dizendo: 'deixai esses homens irem embora, porque se o projeto deles for obra humana, daqui a pouco se acaba, mas se for obra divina, vós não conseguireis detê-los.' E o seu conselho foi seguido pelo Sinédrio. Através desse conselho de 'deixar os apóstolos irem embora', Gamaliel estava, com sábia argumentação lógica e jurídica, ao mesmo tempo, querendo livrar os apóstolos daquela incômoda situação e ainda insinuando que a obra deles era de origem divina e que as perseguições não iriam detê-los. Como de fato, a história comprovou que a profecia de Cristo sobre o anúncio do Seu nome para o perdão dos pecados de todas as nações foi testemunhado tanto pelos apóstolos, como é ainda testemunhado por nós nos nossos dias. Porém, para sermos autênticos discípulos de Cristo e testemunhas da sua palavra, será necessário desmistificar o conceito burocrático de pecado, que a pedagogia catequética tradicional nos ensinou, para assumirmos aquele compromisso definido por João: conhecer a Deus é guardar os seus mandamentos.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 6 de abril de 2024

COMENTÁRO LITÚRGICO - 2o DOMINGO DA PÁSCOA - 07.04.2024

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 2º DOMINGO DA PÁSCOA – CRER SEM TER VISTO – 07.04.2024


Caros Confrades,


Neste segundo domingo da Páscoa, a liturgia nos oferece apenas leituras do Novo Testamento – Atos dos Apóstolos e escritos de João (epístola e evangelho). A leitura dos Atos sinaliza o tempo inicial das comunidades cristãs, enquanto os escritos de João representam o pensamento teológico mais evoluído dos tempos posteriores, final do primeiro século. Observemos que o evangelho e as cartas de João são, no aspecto cronológico, os últimos escritos do NT, pois foram elaborados por volta do ano 100 d. C., muito após João ter saído do seu exílio na ilha de Patmos, onde escreveu o Apocalipse. Na tradição medieval, este domingo era conhecido como Pascoela, que era a oitava da Páscoa. Naquela época, as festas mais importantes duravam oito dias, por isso, este era o domingo da oitava da Páscoa, nomenclatura ainda hoje mantida na ligurgia. O Papa João Paulo II instituiu, neste segundo domingo da Páscoa, a festa da Divina Misericórdia, no ano 2000.


Na leitura dos Atos dos Apóstolos (4, 32-35), o cronista relata a vida das primeiras comunidades cristãs, onde os convertidos colocavam todos os seus bens à disposição dos Apóstolos, para divisão entre os irmãos mais necessitados, de modo que ninguém se sentia dono de alguma coisa, mas tudo era literalmente de todos. Esse sentimento de comunidade autêntica, historicamente, só se verificou nesses primeiros tempos, os chamados tempos apostólicos, pois logo que o cristianismo foi-se divulgando entre os povos das culturas diversas, e sobretudo após a morte dos Apóstolos, novas práticas e novas influências culturais foram-se infiltrando nas comunidades. Tal sentimento de pertença foi revivido nas nossas congregações religiosas, também nos tempos românticos até os anos de 1960. Depois, com a abertura pós Concílio Vaticano II e mais adiante, com o fenômeno da globalização, nem mesmo nas comunidades religiosas houve mais espaço para esse tipo de conduta solidária. Pensando com base na mentalidade contemporânea, apresenta-se essa conduta como uma vivência utópica e inexequível, no entanto foi esse o modelo proposto, por exemplo, por São Francisco, quando disse que os frades não deveriam receber pecúnia, mas apenas o necessário para o seu sustento. Bem diferente é a situação nos dias atuais.


Na segunda leitura deste domingo, temos a Carta de João (1Jo 5, 1-6), de cujo texto podemos destacar duas lições. A primeira está no vers. 3: “pois isso é amar a Deus: observar os seus mandamentos, e os mandamentos de Deus não são pesados.” Ou seja, trata-se do mandamento do amor, aquele que Cristo resumiu no lava-pés, quando disse: “eu vos dou um novo mandamento – que vos ameis uns aos outros”, este é o sinal pelo qual os cristãos devem ser reconhecidos. Por isso, João diz que os mandamentos não são pesados, porque não existe algo mais digno e prazeroso do que amar. E quem ama aquele que gerou amará também o que d'Ele nasceu. Portanto, ficam em segundo plano aqueles mandamentos da lei de Moisés, da antiga aliança. Agora, com a nova aliança, os antigos 10 mandamentos são resumidos em apenas 2: amar a Deus e ao próximo.


A segunda lição está no vers. 6: “Este é o que veio pela água e pelo sangue: Jesus Cristo. Não veio somente com água, mas com a água e o sangue.” João refere-se claramente ao batismo e ao calvário, isto é, o batismo apenas não salva, não basta ser batizado, mas é preciso participar também da morte e da ressurreição de Cristo, através do sacrifício eucarístico. Para sermos merecedores da salvação, direito conquistado com o batismo, devemos participar com Ele da sua cruz através da memória da redenção, que se renova a cada dia na celebração eucarística. João reforça o trabalho de Paulo, com o objetivo de evitar certas deturpações da doutrina cristã por parte dos judeus convertidos, no tempo das primeiras comunidades cristãs, colocando em choque os ditames do antigo testamento com o novo testamento. O batismo representa o final da antiga aliança e a morte- ressurreição de Cristo representam o início da nova aliança. Os dois são inseparáveis: água e sangue.


Na leitura do evangelho de hoje, também de João (Jo 20, 19-31), está relatado o conhecido episódio da incredulidade de Tomé, que se transformou em conhecida história popular – o teste de São Tomé. Mas passando um pouco adiante dessa história, vamos observar, no vers 22, uma declaração importante de João. Diz ele que Jesus “soprou sobre eles e disse: recebei o Espírito Santo...” Vemos aqui o Pentecostes descrito por João, bem diferente das narrações dos outros textos, que falam em vendaval e línguas de fogo, conferindo uma dimensão bem mais dramática ao episódio. Na narração joanina, ao contrário, isso foi muito tranquilo. Cristo soprou e conferiu o Espírito aos apóstolos nesta sua primeira “visita”, ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana. Sem desmerecer as outras narrativas, mas devemos nos lembrar que João estava lá, enquanto os outros escritores não estavam. Além disso, João escreveu o seu texto depois dos outros narradores, o que nos possibilita deduzir que João conhecia o que os outros haviam escrito, mesmo assim, ele fez uma descrição diferente daquele importante evento. Na verdade, João está querendo destacar fatos importantes que ocorreram “no primeiro dia da semana”, enfatizando um costume que já se iniciara de mudar o dia do Senhor para o domingo, e não ser mais para o sábado, como era na tradição judaica.


Outro detalhe interessante: Tomé não se encontrava com os doze e disse que só acreditaria vendo. Oito dias depois, isto é, no domingo seguinte (outra ênfase para o domingo), Jesus apareceu-lhes novamente e mostrou as cicatrizes para o incrédulo Tomé. O destaque que João faz desse episódio tem uma razão especial: o intuito de catequizar as novas comunidades acerca da importância de ter fé em Cristo mesmo sem tê-lo visto, pois na época em que João escreveu, já fazia bastante tempo da morte de Cristo e os novos cristãos não haviam conhecido Jesus. Então, o exemplo de Tomé fazia uma pedagogia de reforço, para animar os novos cristãos, que não chegaram a conhecer pessoalmente a Cristo, quando este disse que: “bem-aventurados os que creram sem ter visto”. E como João sabia que este escrito ia ser distribuído para muitas comunidades na Ásia Menor, ele complementa dizendo que Jesus havia realizado muitas outras maravilhas, que não foram escritas naquele livro, as que estão escritas são apenas uma amostra de tudo o que Ele havia feito.


Ainda nesse evangelho de João do domingo de hoje temos um trecho que suscita grande polêmica, que está no vers. 23: “a quem perdoardes os pecados, eles lhes serão perdoados; a quem os retiverdes, serão retidos”. A teologia considera este versículo como o fundamento teológico do sacramento da penitência. Muitas vezes, se ouve as pessoas dizendo “sacramento da confissão”, mas não é bem assim, é o sacramento da penitência e da reconciliação, decorrente do arrependimento. Conforme se verifica no texto joanino, Cristo fala em perdoar os pecados (subentende-se dos pecadores arrependidos) e reter, isto é, não perdoar, dos que não se arrependem. Cristo não disse que o pecador devia ir até os apóstolos e “narrar seus pecados” (confessar os pecados) como condição para poder ser perdoado. A ordem de Cristo se concentra no perdão ligado ao arrependimento. Por que, então, a Igreja Católica coloca como obrigatória a “confissão” individual dos pecados? Essa prática não existia no tempo dos Apóstolos nem nas primeiras comunidades, mas foi um costume introduzido pelos monges, na Idade Média, e que acabou tornando-se regra canônica para os católicos.


Nos primeiros anos após o Concílio Vaticano II, foi autorizada uma experiência litúrgica chamada de “confissão comunitária”, que foi uma sugestão de alguns grupos de teólogos conciliares para o retorno da prática original da penitência, como fora nos primeiros tempos da era cristã. Todavia, as forças conservadoras da teologia, das quais o Papa Bento XVI foi um notável representante, após algum tempo retiraram essa prática como não recomendada, podendo ser realizada apenas em ocasiões especialíssimas e em caráter excepcional. No entanto, convém destacar que aquele rito inicial da missa, com o ato penitencial, o pedido de perdão, tinha exatamente essa finalidade de lembrar os fiéis sobre o arrependimento de suas faltas, para então receberem a absolvição. Esse ponto, o Concílio Vaticano II não teve força suficiente para reformar.


Caros amigos, nós somos herdeiros daquelas comunidades que não conheceram pessoalmente a Cristo, no entanto, creram nele. Nós somos os bem-aventurados, conforme Cristo proclamou, mais do que Tomé e dos outros Apóstolos, que precisaram ver para crer. A nossa fé se fundamenta na leitura e no testemunho, por isso, para os outros irmãos, nós devemos dar esse testemunho de uma fé amadurecida e atuante.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

domingo, 31 de março de 2024

COMENTÁRIO LITÚRGICO - DOMINGO DA PÁSCOA - 31.03.2024

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – DOMINGO DA PÁSCOA – 31.03.2024 - RESSURREXIT


Caros Confrades,

O calendário litúrgico nos conduz novamente ao domingo da Páscoa. Neste ensejo, completam-se treze anos que comecei a escrever esses comentários sobre a liturgia dominical, somando mais de quinhentos textos. Comecei no domingo da Páscoa de 2011. De lá até hoje, a cada domingo, surge para mim uma nova oportunidade de refletir em união com vocês os textos sagrados selecionados pela Igreja para compor um tema bíblico destinado à formação religiosa permanente das diversas comunidades dos fiéis. É também momento propício para rever estudos que realizei nos anos 70, quando cursei teologia no Seminário da Prainha. Ponho aqui uma referência especial e um agradecimento sincero ao Padre Luiz Uchoa, que foi o meu professor de Bíblia, através de quem aprendi muitas coisas das que publico aqui. Sou igualmente grato aos caros Confrades que me dão a honra de ler essas reflexões que escrevo, maxime quando declaram que o fazem com proveito pessoal, o que muito me honra. Peço a Deus que sempre me ilumine para proporcionar aos leitores o crescimento e amadurecimento da fé de cada um.

Neste domingo da Páscoa, a palavra chave, palavra de ordem, poderosíssima é uma só: Ressurrexit - Ressuscitou. Meus amigos, esta é uma palavra muito forte, a mais poderosa que qualquer um de nós pode pronunciar. Ressuscitar significa vencer a morte, esta força contra a qual nenhum poder humano resiste. E no entanto, Jesus ressuscitou e nos deu a promessa certa de que ressuscitaremos com Ele. E aqui, parafraseando o apóstolo Paulo, em 1 Cor 15, 14: se Cristo não ressuscitou, inútil é a nossa fé, somos as pessoas mais miseráveis deste mundo, por acreditarmos numa fantasia. Mas não, diz ele, Cristo realmente ressuscitou e é por isso que nós estamos aqui, e é por isso que nós cremos e mantemos a certeza de que nós também venceremos a morte, da mesma forma como Ele fez.

Na noite de ontem (sábado), tivemos a solene festa da Vigília Pascal, a cerimônia mais longa de toda a liturgia católica, porque evoca toda a história da nossa salvação. É sempre uma cerimônia longa, mas é com grande entusiasmo que dela participamos, porque nela estão resumidos os principais mistérios da fé cristã. Os atos litúrgicos são tão ricos e simbólicos, quando nos concentramos neles, de modo que nem percebemos a sua duração. O canto do Exultet (Proclamação da Páscoa), as leituras que vão desde a narração da criação até as profecias de Isaías e Baruc e depois o evangelho, que narra a chegada das mulheres e dos discípulos ao túmulo e encontram a pedra removida... eu fico imaginando a cara de espanto, preocupação e perplexidade de todos eles quando encontram a pedra afastada, as faixas de linho deixadas no chão e o lençol o que estivera sobre a sua cabeça estava enrolado na lateral. E o anjo que anunciou: Ele não está mais aqui, ressuscitou como havia dito. Então, como se diz no popular, 'caiu a ficha' deles, pois até então eles não tinham muita certeza de que isso aconteceria. E ficaram pensando: ah, foi por isso que ele falou tal coisa... foi isso que ele quis dizer... Eu li um comentário explicando que o verbo grego traduzido por 'deixados de lado', quando o texto fala que os panos estavam deixados, quer dizer que o tecido que recobria o corpo de Cristo estaria com a forma produzida pelo Seu corpo, mas sem nada por baixo, oco, conservando apenas o aspecto figurativo de um corpo deitado. Ou seja, na ressurreição, Cristo se levantou milagrosamente sem afastar o lençol, diferente de cada um de nós quando se levanta da cama, puxando o lençol para um lado. Ele simplesmente 'saiu' daquele ambiente sem desmanchar o envólucro. Seu corpo físico, podemos dizer, se desintegrou quimicamente sem alterar o estado do lençol que o recobria. Talvez seja essa a origem da imagem do Santo Sudário. Nessa 'desintegração' atômica, o corpo do Senhor deixou no lençol a marca indelével de sua figura, que ainda hoje é motivo de estudos e debates por crentes, não crentes, cientistas e curiosos.

Merece um destaque especial a participação de Maria Madalena neste episódio, conforme é narrado por João. Ela chegou ainda de madrugada, com escuro, e vinha preocupada pensando em como fazer para afastar aquela enorme pedra da entrada. De longe, ela olhou e viu que a pedra já tinha sido afastada e se assustou, nem continuou, mas voltou para dizer isso a Pedro e João, que ainda estavam no caminho. Então, João e Pedro saíram correndo pra conferir isso, e João por ser mais jovem correu mais e chegou primeiro, e viram que de fato a pedra não estava no lugar. Receberam o aviso do anjo e ficaram ali a matutar sobre o caso. Maria afastou-se do local e caiu no choro, parecia que não tinha acreditado no anjo. (Jo 20, 15). Enquanto chorava, Maria ouviu uma voz a lhe perguntar: "Mulher, por que choras? A quem procuras?” Ela, julgando que fosse o jardineiro, respondeu-lhe: “Senhor, se tu o levaste, dize-me onde o puseste, e eu o buscarei.” Disse-lhe Jesus: Maria! Ela, virando-se, disse-lhe em hebraico: “Raboni! - que quer dizer, Mestre.” Imaginemos a cara de Maria Madalena nessa hora, um misto de surpresa, medo e felicidade. E agora imaginemos a cara de 'ciúme' dos apóstolos quando ela chegou para eles e disse: "Vi o Senhor" (Jo 20, 18). Jesus apareceu a Maria Madalena antes deles... percebamos que grande privilégio o dela.


Aqueles teólogos e fiéis que afirmam que não pode haver sacerdotisas no catolicismo porque Cristo só escolheu homens como apóstolos é porque, com toda certeza, nunca refletiram sobre a importância e o privilégio de Maria Madalena. Sem falar nas outras mulheres que acompanharam Jesus de perto em toda a via sacra, exatamente no momento em que os discípulos (os homens) tinham fugido e se escondido. Mas elas estavam lá, até o fim. No cap. 20 de João, acima referido, ele fala apenas em Maria Madalena. Mas no cap. 16, 1 de Mateus, lêem-se os nomes de outras mulheres: “Quando passou o sábado, Maria Madalena e Maria, a mãe de Tiago, e Salomé, compraram perfumes para ungir o corpo de Jesus.” Podemos deduzir que havia no grupo um número bem maior de mulheres do que o rol de nomes que consta no texto bíblico. E as mulheres também estavam no Cenáculo, juntamente com Maria Mãe de Jesus, quando desceu o Espírito Santo. Portanto, meus amigos, a tradição católica tem uma grande dívida de reconhecimento dessas valorosas mulheres que acompanharam toda a trajetória de Jesus, sendo fiéis até os instantes finais e mesmo depois da Sua morte, e bem assim como todo o trabalho que elas desenvolveram nas primeiras comunidades cristãs. Segundo os evangelhos não incluídos no cânon bíblico, Maria Madalena era líder de uma fervorosa comunidade cristã primitiva e tinha uma liderança reconhecida por todos, o que era motivo de picuínhas e caras feias por alguns apóstolos, especialmente Pedro e Paulo. Mas isso é uma outra história.

Voltemos à palavra chave da festa pascal: Ele Ressuscitou ! Santo Atanásio, que foi bispo de Alexandria no séc. IV, dizia: a Páscoa não é celebrada apenas no domingo da ressurreição, mas repete-se em todos os 7 domingos do período pascal. Não se diz 2º domingo depois da páscoa, 3º domingo depois da páscoa, etc, mas 2º domingo da páscoa, 3º domingo da páscoa..., os sete domingos formam uma só e grande páscoa. De fato, a Páscoa é uma festividade de uma dimensão tal que teria sua importância diminuída se ficasse reduzida a apenas um domingo celebrativo. Se observarmos bem, a páscoa é a memória central que se celebra em todos os domingos do ano, sendo que neste período tem uma referência especial.

Todos os anos, nós celebramos a festa da Páscoa e este é sempre um momento forte de recarregar a nossa fé e a nossa esperança, sobretudo nesse tempo carregado de sombras e incertezas. No século XIX, os exegetas racionalistas protestantes tentaram fazer uma “interpretação” científica da Bíblia, retirando todas as referências sobrenaturais do texto acerca de milagres, procurando encontrar explicações científicas para estes. Jesus poderia ter sido um grande mágico, um grande prestidigitador, um grande parapsicólogo, um grande físico ou químico ou biólogo, etc... mas essa tentativa esbarrou num fato inexplicável: a ressurreição. Nunca, em tempo ou lugar algum, se ouviu qualquer notícia ou testemunho de algo semelhante, ou seja, de alguém que tivesse morrido verdadeiramente e depois, pelas suas próprias forças, tivesse voltado a viver. E ficaram num dilema: ou afirmariam que todas aquelas pessoas que testemunharam esses fatos eram loucas (o que seria absolutamente irrazoável e insensato) ou então acreditariam que eles falaram a verdade. E pararam o trabalho por aí.

Meus amigos, vale lembrar aqui o que Cristo disse a Tomé: tu acreditaste porque viste; bem-aventurados os que não viram e, no entanto, creram. Jesus está nos chamando de bem-aventurados. Poderia haver elogio maior? principalmente se considerarmos de quem esse elogio partiu? Ora, só temos motivos e mais motivos para nos alegrarmos com todas essas realidades que a fé cristã nos traz e que a pura razão ou a mais elevada ciência jamais conseguirá alcançar. Celebremos, portanto, de verdade a nossa páscoa com o nosso testemunho sincero nas labutas do dia a dia.

Renovados votos de Feliz Páscoa a todos.
Antonio Carlos


domingo, 24 de março de 2024

COMENTÁRIO LITÚRGICO - DOMINGO DE RAMOS DA PAIXÃO DO SENHOR - 24.03.2024

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – DOMINGO DE RAMOS DA PAIXÃO DO SENHOR – 24.03.2024


Caros Confrades,


O Domingo dos Ramos dá início à semana mais importante da liturgia católica, durante a qual se comemoram os acontecimentos marcantes do mistério da nossa Redenção. A liturgia deste domingo celebra a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, por ocasião dos preparativos para a páscoa judaica. Ele tentava entrar na cidade de maneira discreta, mas a sua fama já estava espalhada e muitas pessoas queriam conhecê-lo. Já sabemos, através de comentários anteriores, que não foi esta a primeira vez que Ele foi a Jerusalém nesse período, ao contrário, ele sempre subia até Jerusalém para celebrar a Páscoa, conforme a tradição judaica. Porém, nesta vez, como Ele sabia que estava na Sua hora, ele fez as coisas ocorrerem de forma diferente, com maior festejo. Ele sabia que os chefes dos sacerdotes estavam aguardando uma oportunidade para prendê-Lo, porém o povo não permitiu que Ele entrasse discretamente, mas tudo ocorreu de forma a chamar a atenção dos seus inimigos.


Quem assistiu àquele filme (que foi inicialmente uma peça teatral exibida em Nova York), intitulado “Jesus Cristo Superstar” deve lembrar de como o diretor do filme retrata esse momento peculiar. Os chefes dos sacerdotes estavam espreitando a procissão que vinha conduzindo Jesus e comentando entre eles: Ele é perigoso (he is dangerous). Mas eles não podiam simplesmente prendê-Lo diante da multidão, porque isso ocasionaria uma revolta popular, era preciso capturá-lo em um local reservado e, para isso, precisaram da ajuda de Judas, para indicar onde encontrá-lo longe do povo.


A principal leitura deste domingo é a da Paixão, texto bastante conhecido, no entanto, há a leitura opcional do evangelho de Marcos, onde este narra os detalhes da entrada de Jesus em Jerusalém. Foi o próprio Jesus quem pediu aos discípulos para irem buscar um jumentinho, indicando precisamente onde o encontrariam. Depois de três anos pregando pelos territórios da Judeia, Galileia, Samaria, Jesus tinha adquirido um número bastante grande de admiradores, embora nem todos fossem seguidores. E adquiriu também, óbvio, um outro número de inimigos, exatamente dentre aqueles para quem Ele veio confirmar a antiga aliança: os líderes do povo judeu. E o palco desse histórico encontro foi o momento dos preparativos da festa da Páscoa.


A festa da páscoa não era invenção dos judeus, ela era já celebrada entre os povos orientais desde tempos imemoriais, sempre coincidindo com o início do período das colheitas, que no hemisfério norte corresponde à chegada da primavera (final do mês de março). A saída dos hebreus do Egito, por volta de 1.800 anos antes de Cristo, já ocorrera numa dessas celebrações pascais, quando os umbrais das portas foram tingidas com o sangue do cordeiro. A escolha de Jesus para se apresentar aos seus inimigos, sabendo que eles iriam matá-Lo, foi também propositalmente direcionada para o período da páscoa judaica, porque Ele, sendo o novo cordeiro, seria imolado na mesma situação do primeiro cordeiro, que assinalou a libertação dos cativos do Egito. Geograficamente, esta data está referenciada com a primeira lua cheia após a passagem do equinócio da primavera (no hemisfério norte, pois para nós, é o equinócio do outono). O equinócio, evento geográfico que significa a mesma duração do dia e da noite, ocorre entre os dias 20 e 21 de março de cada ano. Se observarmos o calendário deste ano, veremos que a primeira lua cheia após o equinócio ocorrerá amanhã, 25 de março. Este então seria o dia da páscoa, pelo calendário judaico antigo. Mas como nós celebramos a páscoa no domingo após a primeira lua cheia, então, o dia para nós será 31 de março. A páscoa é a única data religiosa festiva atual que ainda se rege pelo calendário lunar, por isso, muda a cada ano.


No conjunto das leituras deste domingo, chama a atenção a precisão profética de Isaías, quanto aos sofrimentos do Servo Sofredor, o Messias. No cap 15, vers 6, o texto não podia ser mais claro: “Ofereci as costas para me baterem e as faces para me arrancarem a barba; não desviei o rosto de bofetões e cusparadas.” O mesmo se pode dizer em relação ao salmista, no Sl 21: “Cães numerosos me rodeiam furiosos, e por um bando de malvados fui cercado. Transpassaram minhas mãos e os meus pés e eu posso contar todos os meus ossos.” No período quaresmal, é constante a leitura de trechos de Isaías, porque este profeta foi o que expressou com mais clareza de detalhes os sofrimentos do cordeiro. E era também o Profeta que Jesus mais gostava de citar, quando fazia leituras na sinagoga.


Todos os anos, a liturgia do Domingo de Ramos repete estas cenas e leituras, nós que somos habituais em frequentar a missa talvez até já saibamos de cor esses trechos. Qual o significado, então, dessa repetição, o que a liturgia da Igreja nos transmite com essas cerimônias da Semana Santa, em especial, do Tríduo Pascal a cada ano? Ora, nós sabemos que cada missa celebrada é uma realização da vontade de Cristo, que disse: todas as vezes, que fizerdes isso, fazei-o em minha memória. Portanto, não apenas na Semana Santa se celebra a morte e ressurreição de Cristo, mas em cada missa se faz isso. É o que nós rezamos após a consagração: anunciamos a Tua morte e proclamamos a Tua ressurreição... ou seja, em cada missa, temos uma síntese do Tríduo Pascal.


Concluímos, então, que a celebração destacada dos fatos históricos centrais relacionados com o mistério da salvação, que acontece na Semana Santa, tem o sentido pedagógico de nos lembrar de que, em cada missa que é celebrada, em qualquer lugar do mundo, a nossa salvação está se renovando. A liturgia da Semana Santa vem nos proporcionar um tempo mais específico e demorado para meditarmos nesse mistério, cuja memória ocorre em todos os lugares e muitas vezes por dia. Mas certamente pela constante repetição, podemos nos inclinar a não levar na devida consideração o conjunto desses fatos.


A tradição popular que caracteriza a sexta feira santa é por demais emotiva e deprimente. É comum verem-se pessoas chorando durante a Via Sacra. Mas não é esse o objetivo da comemoração litúrgica. De fato, Jesus não morre mais, isso aconteceu uma vez para sempre. A memória da sexta feira santa deve ser celebrada na perspectiva do conjunto dos atos litúrgicos que evoluem para a vigília pascal e depois para o domingo da Páscoa. A morte de Cristo celebrada na sexta feira santa é, como o catecismo ensina, de forma incruenta, isto é, sem derramamento de sangue. Ora, assim é também em todas as missas, sejam elas na semana santa ou durante o restante do ano. Não devemos, pois, encarar com exageros sentimentalistas o tríduo pascal, mas com os olhos da fé esclarecida, que não separa a paixão e morte de Cristo da sua ressurreição.


A propósito da sexta feira santa, o Papa Bento XVI, em 2012, numa visita a Cuba, aproveitou para solicitar ao governo que decretasse feriado esta data, para que os fiéis católicos pudessem praticar a sua devoção. Num gesto diplomático, o governo cubano aquiesceu, e então depois de mais de 50 anos (desde 1960), a sexta feira santa passou a ser novamente feriado em Cuba. Sinal dos tempos. Cuba continua sendo um país de grande maioria católica e isso vem reacendendo o fervor dos cubanos, retomando as tradições religiosas interrompidas com o governo comunista.


Então, meus amigos, devemos aproveitar os feriados da semana santa não como ocasião para viagens e diversões (feriadão), mas para reflexão sobre o mistério da nossa redenção, vivenciado historicamente na paixão/ressurreição de Cristo e revivenciado liturgicamente em cada missa que se celebra, com especial acento nesta semana que estamos iniciando.


Eu ainda hoje me lembro de uma oração que aprendi no Noviciado, a qual rezo sempre que entro no templo: Nós Te adoramos, santíssimo Senhor Jesus Cristo, aqui e em todas as igrejas que estão em todo o mundo e Te bendizemos porque pela tua santa cruz redimiste o mundo. Em latim, para ficar mais emblemático: Adoramus Te, Christe, et benedicimus tibi quia per sanctam crucem tuam redemisti mundum.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 16 de março de 2024

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 5o DOMINGO DA QUARESMA - 17.03.2024

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 5º DOMINGO DA QUARESMA – A CONFIRMAÇÃO – 17.03.2024


Caros Confrades,


Na liturgia deste 5º domingo da quaresma, as leituras apresentam como tema comum a renovação da promessa de Javeh ao povo de Israel, iniciando com a profecia de Jeremias, passando pela carta aos Hebreus e completando com o evangelho de João. É curioso observar como as palavras de Jeremias, proferidas mais de 600 anos antes de Cristo, têm uma aplicação plena na perspectiva messiânica da missão do Salvador. Ele se refere ao povo, que foi infiel à aliança do Sinai, e anuncia que Javeh fará uma nova aliança e esta será definitiva. E João declara que, mais uma vez, o Pai confirmou a divindade do Filho e a autenticidade de sua missão, mediante um sinal sonoro ouvido publicamente em Jerusalém, tendo sido confundido por alguns como um trovão ou com a voz de um anjo. João foi testemunha disso. Ele não soube apenas por ouvir falar.


A primeira leitura, do profeta Jeremias (31, 31-34), reflete uma situação sócio religiosa complicada no meio do povo hebreu, seduzido pela idolatria dos vizinhos e esquecido da promessa dos seus primeiros pais. A época histórica é pouco antes da derrocada de Jerusalém e da escravidão dos hebreus na Babilônia. O profeta anuncia que Javeh está desencantado com aquele povo e por isso irá renovar a sua promessa, mas essa não será igual à anterior mercê da qual os hebreus foram retirados do Egito e conduzidos pela mão divina através do deserto e que os antepassados violaram, ou seja, não foram fiéis. A aliança anterior era escrita em tábuas de pedra, mas a nova aliança será diferente, como diz o profeta: “Esta será a aliança que concluirei com a casa de Israel, depois desses dias, diz o Senhor: imprimirei minha lei em suas entranhas, e hei de inscrevê-la em seu coração.” (Jr 31, 33) A aliança anterior, escrita na pedra, podia ser facilmente violada, mas a nova aliança escrita nas entranhas e no coração, esta jamais poderá ser esquecida. Jeremias está assim antecipando claramente o que Cristo iria afirmar tempos depois, quando veio realizar esta nova aliança. É interessante notar, nesse trecho, a locução temporal “depois desses dias”, que eram os dias do cativeiro que estava por chegar. Passados os 70 anos do cativeiro na Babilônia, os que voltaram depois para Jerusalém não eram mais os que foram para lá deportados, e sim os filhos e netos deles. Daí o profeta afirmar que a nova aliança acontecerá “depois desses dias”, porque Javeh estava ciente de que, com aquela geração, não havia mais outro recurso, senão o castigo.


Sob o aspecto cronológico, a palavra de Jeremias se referia ao cativeiro babilônico e ao retorno do povo posteriormente, para a reconstrução de Jerusalém. Contudo, sob o aspecto transistórico, a profecia se aplica à nova aliança proposta pelo Messias, cinco séculos e meio mais tarde. Essa nova promessa se concretizou com a vinda de Jesus, que veio atualizar e cumprir de forma perfeita a lei de Moisés. Então, a nova lei anunciada por Cristo já não seria escrita em lápides, como a lei mosaica, mas no coração e nas entranhas dos crentes. Só que os judeus não quiseram ouvi-lo e nem aceitaram a inscrição dela nas suas entranhas, por isso a nova aliança foi levada aos gentios, a todos os povos da terra, chegando até nós. A nova lei não faz mais distinção de raças nem de idiomas, mas congrega todos os homens de boa vontade. E para que venha a ser reconhecida e praticada por todos, ela não está escrita em um determinado idioma, mas no idioma universal do amor. Pelo batismo, a nova lei é impressa no nosso coração e assim, continua o profeta no vers. 34, não será mais necessário ensinar ao próximo, ao irmão: aqui está Deus, porque “todos me reconhecerão, do menor ao maior deles, diz o Senhor.” Essa foi a finalidade primordial da missão salvadora de Cristo: inscrever o novo mandamento no coração dos que crerem nele, renovando a promessa divina da salvação universal.


Na segunda leitura, extraída da Carta aos Hebreus, lemos: “Cristo, nos dias de sua vida terrestre, dirigiu preces e súplicas, com forte clamor e lágrimas, àquele que era capaz de salvá-lo da morte.” (Heb 5, 7) Esta mesma mensagem está contida no evangelho de João (12, 27), quando Cristo comenta com os discípulos: “Agora sinto-me angustiado. E que direi? `Pai, livra-me desta hora!'? Mas foi precisamente para esta hora que eu vim.” E nós todos conhecemos a célebre oração de Cristo no Getsêmani: 'Pai afasta de mim este cálice, porém, não se faça a minha vontade, e sim a Tua.' E complementando este pensamento, retornamos ao texto da Carta aos Hebreus (5, 8): “Mesmo sendo Filho, aprendeu o que significa a obediência a Deus por aquilo que ele sofreu.” Nesses trechos, percebemos a integração do pensamento do autor da carta aos Hebreus (não é o apóstolo Paulo, como tempos atrás se pensava) com o testemunho de João, acerca dos sofrimentos de Cristo no período que antecedeu a sua paixão. Essas leituras, selecionadas para o último domingo da quaresma, quando se aproximam as comemorações da paixão, morte e ressurreição de Cristo, servem também como reforço teológico para que não caiamos nos mal entendidos das antigas heresias, como por exemplo, os gnósticos que afirmavam que Cristo, sendo Deus, não poderia sofrer e assim a crucificação de Cristo teria sido uma espécie de encenação teatral, pois Ele não estaria sofrendo realmente. Ora, meus amigos, o evangelista João faz questão de expor um longo diálogo de Cristo explicando aos seus discípulos o que iria ocorrer com Ele e ainda que tipo de morte Ele teria de padecer (Jo 12, 23-27), exatamente para que ninguém viesse a ter dúvidas de que o padecimento de Cristo, além de ter sido real, foi ainda mais agravado porque Ele, sendo Deus, sabia antecipadamente de tudo pelo que ia passar.


Na leitura do evangelho de João, há referência a alguns gregos, que queriam conhecer Jesus. Com certeza, eles eram pessoas de boa fé, que tinham ouvido falar nos feitos miraculosos de Jesus e demonstravam interesse por sua doutrina. É o que lemos em Jo 12, 20-21: “Havia alguns gregos entre os que tinham subido a Jerusalém, para adorar durante a festa. Aproximaram-se de Filipe, que era de Betsaida da Galiléia, e disseram: 'Senhor, gostaríamos de ver Jesus.'” Tendo subido a Jerusalém naquele ano, para a festa da Páscoa, que seria a sua última, Jesus já era bastante conhecido pelas histórias que circulavam a respeito dele e muitas pessoas tinham interesse em conhecê-lo, o que causava grande incômodo e desespero para os chefes dos fariseus, que não podiam impedir isso. É possível imaginar o rumor que circulou na cidade quando, após a prece de Jesus ao Pai, este respondeu sob a forma de uma “voz de trovão”. E Jesus ainda completou: a voz que ouvistes é o julgamento deste mundo! Sem dúvida, a fama que Jesus alcançara colocava em risco o poder e a autoridade dos fariseus, como mestres e líderes religiosos, levando-os a convocarem às pressas uma reunião com o objetivo de deliberarem o que fazer diante disso.


Causa um certo espanto a expressão contida no texto de João (12, 31), onde lemos uma frase bem enigmática, que está assim traduzida: “agora o chefe deste mundo vai ser expulso”. O 'chefe' deste mundo? Quem seria este? Se observarmos o texto grego original de João, lá consta o seguinte: 'ó arkhon tou kosmos', onde arkhon significava, para os gregos, o arconte, ou seja, um magistrado, um tirano, um déspota. Provavelmente, João queria se referir aos chefes religiosos do povo, que tramavam a morte de Jesus na ocasião. Jesus sabia das maquinações que eram tramadas contra ele exatamente por aqueles a quem competia mostrar ao povo o caminho da verdadeira fé no Deus da promessa, no entanto, utilizavam esse poder em seu próprio proveito. E prossegue no vers. 32: “e Eu, quando for elevado da terra, atrairei todos a Mim.” João conclui: ele estava se referindo ao modo como deveria morrer. E eu penso que podemos concluir mais além: literalmente, ele estava profetizando que a Sua cruz passaria a ser o símbolo maior da nova lei, que seria impressa nos corações dos fiéis, e que a Sua cruz estaria presente em todos os cantos do mundo.


Prezados amigos, no próximo domingo, iniciaremos a Semana Santa e as comemorações da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus. As leituras deste domingo nos colocam no limiar dessas singulares comemorações que, embora celebradas todos os anos, nunca são repetidas. Ou pelo menos, nós não podemos nunca pensar que se trata de mera repetição. A mensagem de Cristo renova, a cada vez, a promessa divina feita no passado aos patriarcas realizada plenamente por Ele e a cada vez nos desafia, como Seus verdadeiros seguidores, a imitá-Lo na fidelidade e na obediência ao plano de Deus para cada um de nós. Na celebração das festas pascais, que se avizinham, aproveitemos para reavivar nos nossos corações a promessa que Cristo veio escrever no mundo com a sua Cruz e que foi impressa em cada um de nós através do nosso batismo.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 9 de março de 2024

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 4o DOMINGO DA QUARESMA - 10.03.2024

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO DA QUARESMA – A FIGURA DO MESSIAS – 10.03.2024


Caros Confrades,


A liturgia do 4º domingo da quaresma possui um tema comum que aparece nas três leituras, que é a figura do ungido. Em cada uma das leituras, o vocábulo é diferente, mas o significado comum dentre eles é o mesmo. Na primeira leitura, aparece o personagem Ciro, rei dos Persas, a quem Isaías (44, 29) chama de ungido; na carta de Paulo aos Efésios, por diversas vezes, é citado o nome de Cristo, que significa ungido; no evangelho de João, no seu diálogo com Nicodemos, Jesus relembra a figura salvadora da serpente elevada na vara, como preconização do Messias que salva pela Sua cruz. É curioso observarmos que o vocábulo Messias (em hebraico mashiach) foi traduzido na língua grega por KRISTÓS, ambos com o significado de consagrado, ungido. Ciro, o libertador do povo hebreu cativo na Babilônia, foi ungido por Javeh para derrotar o inimigo escravizador; Cristo, o ungido pelo Pai, nos salva do pecado em um ritual semelhante ao que Moisés usou no deserto para salvar o povo da serpente venenosa. O Antigo e o Novo Testamento se entrelaçam através desses episódios e sinais.


Na primeira leitura retirada do livro de Paralipômenos ou Crônicas, o escritor sagrado destaca a infidelidade do povo a Javeh, substituindo-O pelos ídolos das nações pagãs e profanando o sagrado templo, por isso, obteve como consequência a morte e a escravidão, assim como a destruição de Jerusalém. Foi o tempo do cativeiro da Babilônia. Nesse contexto, Javeh enviou o profeta Isaías, para catequizar os hebreus e fazê-los compreender que o castigo era resultado da sua infidelidade, mas que a misericórdia do Senhor estava sempre pronta a perdoar, esquecer tudo e devolver a liberdade deles. Por fim, Isaias mostrou ao povo que Javeh se utilizou da força do exército de Ciro, rei dos Persas, para vencer o dominador babilônico e restituir-lhes a liberdade. É o que se contém em Isaías 44, 29: “ASSIM diz o SENHOR ao seu ungido, a Ciro, a quem tomo pela mão direita, para abater as nações diante de sua face, e descingir os lombos dos reis, para abrir diante dele as portas ”. E na leitura deste domingo, nas Crônicas, lemos que o rei Ciro baixou um Edito que ele mandou publicar de viva voz e afixar em todo o reino, confirmando a promessa de Javeh: 'Assim fala Ciro, rei da Pérsia: O Senhor, Deus do céu, deu-me todos os reinos da terra, e encarregou-me de lhe construir um templo em Jerusalém, que está no país de Judá. Quem dentre vós todos, pertence ao seu povo? Que o Senhor, seu Deus, esteja com ele, e que se ponha a caminho'. (II Cro 36, 23) Foi a concretização da tão sonhada liberdade do povo hebreu. O próprio Ciro não precisou fazer nenhum esforço para a reconstrução de Jerusalém, porque disso os hebreus se encarregaram e puderam retornar ao seu país, após setenta anos de escravidão. Na verdade, se fizermos as contas, os que retornaram não foram os mesmos que partiram, mas a segunda ou a terceira geração deles, se considerarmos o espaço de vinte anos entre uma geração e outra. Aqueles que violaram o templo e praticaram infidelidades e foram por isso submetidos ao cativeiro já não mais existiam no momento da libertação.


Na segunda leitura, de Paulo aos Efésios, ele destaca a figura central de Cristo (o ungido do Pai) para nos libertar de outra escravidão, não aquela do tipo político, como os hebreus do passado, mas a escravidão do espírito, através do pecado, quando afirma: “Por causa do grande amor com que nos amou, quando estávamos mortos por causa das nossas faltas, ele nos deu a vida com Cristo. É por graça que vós sois salvos! ” (Ef 2, 4) Neste outro momento da história do povo de Deus, a libertação chegou novamente e de forma plena na pessoa de Cristo, em cuja ressurreição, o Pai nos ressuscitou a todos e nos garantiu um assento no céu. Nesta leitura, temos também uma afirmação paulina, que é motivo de divergência entre os teólogos, em relação àquilo que é necessário para a salvação. Lutero divergiu da doutrina eclesiástica ao afirmar que a salvação advém pela fé, só ela basta. Mas a teologia ensina que somente a fé não é suficiente, mas é necessário que a fé se manifeste através de obras de caridade. No cap 2, vers 8, Paulo diz que “é pela graça que sois salvos, mediante a fé. E isso não vem de vós; é dom de Deus! Não vem das obras, para que ninguém se orgulhe. ” Até aqui, tem-se a impressão de que Lutero estava com a razão. Porém, no versículo seguinte, Paulo continua e completa: “nós fomos criados em Jesus Cristo para as obras boas, que Deus preparou de antemão para que nós as praticássemos.” Ora, meus amigos, o que Paulo está dizendo? Que a fé é uma graça que Deus nos dá e, com ela, faremos boas obras e assim teremos acesso à salvação, ou seja, tudo se inicia com a fé, porém essa fé precisa ser operante. De acordo com Paulo, sem a graça que Deus nos dá, não teríamos a fé e sem a fé não teríamos a salvação. Eu entendo que, quando ele falou antes que a salvação não vem das obras, para que ninguém se orgulhe, referia-se às obras puramente humanas, que não são motivadas pela fé. Essas não valem, mas as obras humanas banhadas pela graça que Deus nos dá, essas frutificam. Então, podemos concluir que são igualmente inúteis para a salvação tanto as obras puramente humanas, aquelas que não são inspiradas pela graça, quanto a fé inoperante, aquela que fica retida no interior do crente e não se concretiza em boas obras. Portanto, é pela graça de Deus que temos a salvação, mas esse prêmio somente nos é dado se, pela fé, realizarmos boas obras, aquelas que Deus preparou de antemão para que nós as praticássemos.


Na leitura do evangelho de João, lemos aquele conhecido diálogo de Cristo com Nicodemos. Este e José de Arimatéia eram fariseus que reconheciam em Jesus o Messias, mas não assumiam isso em público, com medo da represália dos membros do seu grupo. Tanto que Nicodemos só se encontrava com Cristo em ambiente reservado, para conversar a sós. No início desse diálogo, que não aparece na leitura de hoje, Jesus havia dito a Nicodemos que, para conhecer o reino de Deus, é necessário nascer de novo (Jo 3, 3), e Nicodemos ficou todo embaraçado com essa afirmação, pois ele interpretou isso literalmente e sabia ser impossível a alguém retornar para o ventre da mãe depois de adulto. Então Jesus Cristo foi pacientemente explicar a ele a diferença entre nascer pela carne e nascer pelo Espírito. Foi quando Jesus lembrou a ele, que era um mestre da lei, o episódio da serpente elevada numa vara por Moisés, no deserto, que curava aqueles que olhavam para ela com fé. “Do mesmo modo como Moisés levantou a serpente no deserto, assim é necessário que o Filho do Homem seja levantado, para que todos os que nele crerem tenham a vida eterna.


Aqui estava exemplificado o significado de nascer de novo, nascer pelo Espírito, isto é, crer que Jesus é Messias enviado do Pai: “Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho unigênito, para que não morra todo o que nele crer, mas tenha a vida eterna. ” Os hebreus do tempo de Moisés, que eram picados pela serpente, livravam-se da morte corporal olhando para a serpente-símbolo da salvação. Pois bem, o Messias será elevado do solo assim como a serpente, como novo símbolo da salvação, a fé nessa mensagem é o renascer. O evangelista não esclarece o que Nicodemos fez depois que ouviu isso. Mas o fato é que Cristo estava, com isso, mandando um recado aos fariseus através de Nicodemos. Vejam, eu vou ser elevado do solo assim como Moisés fez com a serpente no deserto, para salvação do povo. (Jo 3, 16) Aquele que crê, será salvo, “mas quem não crê, já está condenado, porque não acreditou no nome do Filho unigênito.” (Jo 3, 18) E a condenação se dá porque preferiram acreditar nas trevas do que enxergar a luz. Nós não temos condição de saber o que ocorreu com Nicodemos, se finalmente ele conseguiu renascer pelo Espírito. Eu acredito que ele tenha compreendido isso, sobretudo depois dos eventos que sucederam à morte e ressurreição de Cristo, fatos que ele deve ter testemunhado. Mas nós, nos dias de hoje, não podemos ter essa dúvida que passou pela cabeça de Nicodemos, porque para nós os fatos já estão bastante esclarecidos, e não podemos continuar compreendendo a mensagem de Cristo literalmente, de modo fundamentalista, depois de tantos ensinamentos que a teologia, em todos esses anos, vem desenvolvendo. Em Nicodemos, essa atitude ambígua até podia ser justificada, mas quanto a nós, não tem desculpa.


Que Deus nos ilumine, nesse tempo quaresmal, para termos a mente aberta à orientação da Sua divina graça.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 24 de fevereiro de 2024

COMENTARIO LITURGICO - 2º DOMINGO DA QUARESMA - 25.02.2024

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 2º DOMINGO DA QUARESMA – A OBEDIÊNCIA DE ABRAÃO – 25.02.2024


Caros Confrades,

As leituras deste 2º domingo da quaresma trazem para a nossa reflexão o tema da obediência de Abraão associada com a fé que dela provém, tida como modelo para todos os seus descendentes. Javeh pediu a Abraão que sacrificasse seu próprio filho, fato que não se concretizou. Porém, tempos depois, o Pai entregou o seu próprio Filho para ser sacrificado, em razão da sua fidelidade para com a promessa, sendo a figura de Isaac uma preconização do sacrifício de Cristo. Evidentemente, Deus não devia fidelidade a Abraão, mas o cumprimento de sua promessa era um compromisso que Deus fizera consigo próprio, o qual em nenhuma hipótese poderia deixar de ser cumprido.


Na primeira leitura (Gn 22), temos o clássico exemplo de Abraão, que foi solicitado por Javeh a imolar seu único filho, a maior prova de fé contida no Antigo Testamento, mercê da qual Javeh selou com ele a sagrada aliança e prometeu-lhe uma incontável descendência. Trata-se de um episódio marcante no contexto bíblico, para ressaltar a obediência que provém da fé. A confiança de Abraão em Javeh era tão imensa, que ele não hesitou em seguir a ordem de imolação do filho único. Posteriormente, Jesus vai dizer, no episódio do centurião romano que disse “senhor, eu não sou digno de ires à minha casa, basta dizeres uma palavra para curar o meu servo”, que nunca tinha visto um exemplo de tanta fé, desde Abraão.


De acordo com leituras que tenho feito alhures, há uma linha de comentários exegéticos que interpreta o clássico texto do Gênesis de um modo não convencional. Afirmam que esse ritual de imolação do filho primogênito era uma praxe entre os antigos povos pagãos, como forma de agradar os seus deuses, oferecendo sacrifícios humanos. Então, no episódio de Javeh que, inicialmente teria solicitado a imolação de Isaac e depois voltou atrás, o escritor sagrado estaria chamando a atenção dos judeus para o fato de que Javeh é diferente dos deuses dos povos pagãos. Ademais, esses estudiosos levantam a hipótese de que não fora necessário que Javeh solicitasse o sacrifício do filho a Abraão, pois este já iria fazer isso mesmo, seguindo o ritual que era costumeiro entre os povos do seu tempo. Então, Javeh interferiu, para demonstrar que Ele não era igual aos deuses pagãos e ainda para ensinar ao povo hebreu que Ele não queria nem aceitava sacrifícios humanos. Daí eu fiquei imaginando que esse episódio pode ser uma espécie de “legenda” bíblica, um gênero literário que tem por objetivo dar um ensinamento através de uma história envolvente e emotiva. Semelhante ao caso de Jó, um personagem cuja existência é duvidosa. Assim como o episódio do assassinato de Abel por Caim. Assim como a jornada de Jonas no ventre do grande peixe. A palavra “legenda” é um termo latino que significa “um texto que deve ser lido” por conter um ensinamento importante, mas não necessariamente que o episódio narrado tenha de fato ocorrido.


Fazendo uma análise psicológica dessa narrativa, à luz dos conceitos modernos, vemos em Javeh a imagem daquele pai terrível, autoritário, austero e até sádico, tendo pedido a Abraão que lhe sacrificasse o filho único, sabendo de antemão que não iria permitir a concretização do sacrifício. Esse tipo de comportamento paterno era bastante comum no modelo familiar tradicional, em que o pai tinha uma autoridade soberana e inalcançável, a quem tanto a mãe da família como os filhos e filhas deviam obediência cega e indiscutível, resquício tardio dessas antigas tradições dos povos orientais. Nos filmes e novelas de época, vemos exemplos de pais despóticos, que eram muito mais temidos do que amados. Talvez, nunca amados. Felizmente, no moderno conceito de família, essa figura paterna distante e autoritária vem sendo substituída pela figura do pai afável, companheiro, que prefere dialogar e não impor sua vontade, tornando-se parceiro e cúmplice dos filhos e filhas, atuando em conjunto com a esposa, tornando-se um ponto de apoio e de referência para a prole. Percebemos, então, que essa figura do Javeh impondo a Abraão uma dolorosa e angustiante decisão e mantendo-o naquela expectativa por longo tempo corresponde a um estereótipo de pai que era padrão nas sociedades arcaicas, quando ainda não eram conhecidas as teorias psicológicas e pedagógicas desenvolvidas nos tempos modernos. Cristo veio ensinar que a verdadeira imagem do Pai é a que ele mostrou, não a que a tradição judaica apresentava.


Neste pequeno episódio, então, temos várias lições que nos são transmitidas por essa narrativa pedagógica: 1. a fé inquebrantável de Abraão e a sua obediência confiante; 2. o fato de que Javeh não quer sacrifícios humanos; 3. a fidelidade de Javeh ao cumprimento de sua promessa; 4. a imagem de Abraão como um antepassado digno de ser admirado e imitado por seus descendentes em todos os tempos. Desse modo, tenha ocorrido ou não o impactante episódio, as lições a ele associadas serão igualmente válidas e servem de permanente exemplo.


Na segunda leitura, Paulo lembra aos Romanos (Rm 8, 31) que Javeh poupou Isaac, porém o Pai não poupou seu Filho, mas o entregou para ser sacrificado por todos nós. Por contraditório que possa parecer, as duas atitudes opostas têm o mesmo objetivo. Explico. Ao recusar o sacrifício de Isaac, Javeh estava dando cumprimento à promessa feita a Abraão; ao entregar seu próprio Filho para ser sacrificado, o Pai estava também fazendo o cumprimento final da mesma promessa, porém em escalas diferentes. O sacrifício de Isaac era desnecessário e não traria uma imagem de Javeh diferente dos deuses pagãos, pois O assemelharia a estes. O sacrifício de Cristo, além de necessário, trouxe o testemunho da fidelidade a toda prova e do amor desmedido do Pai para com o povo da promessa, através de um ato extremado e de incomparável significação. A morte de Isaac seria o fim, mas a morte de Cristo foi apenas um trânsito para a sua ressurreição, a abertura do portão da glória para todos os descendentes de Abraão.


Nesse contexto, a liturgia nos traz, na leitura do evangelho de Marcos (9, 2), a narração da transfiguração de Jesus diante de Pedro, Tiago e João. Neste eloquente episódio, Jesus deu uma das mais contundentes demonstrações de sua divindade, ainda que somente a três discípulos privilegiados. Podemos vislumbrar nesta cena paradisíaca um reforço pedagógico de Jesus, para que os discípulos, principalmente Pedro, não perdessem a esperança quando Ele fosse visto submetendo-se ao sacrifício extremo. Na hora em que ele fosse preso e humilhado e parecesse que tudo estaria desmoronando, a lembrança da transfiguração gloriosa deveria fazer o contraponto necessário para manter viva a certeza da ressurreição, que viria depois. E no final do espetáculo miraculoso, veio a confirmação dessa mensagem, quando “da nuvem saiu uma voz: Este é o meu Filho amado. Escutai o que ele diz!'” Jesus proibiu aos três de falarem aquilo para alguém, até que ele ressuscitasse dos mortos. E os discípulos ficaram matutando “o que significa ressuscitar dos mortos”, porque naquele momento, eles não tinham a menor ideia do que iria acontecer e somente muito tempo depois compreenderam.


Reflitamos agora sobre os outros dois personagens com os quais Jesus dialogava: Moisés e Elias. Moisés representa a confirmação da aliança, no Sinai, através da outorga da Lei. Ele foi também o primeiro profeta, no sentido literal do vocábulo: aquele que fala em nome de Javeh. Elias representa os profetas posteriores, que foram muitos. Eu ficava pensando: por que Elias? Por que não Isaías, que Jesus cita muito mais vezes. Até que eu me lembrei de um fato singular. Elias foi o protagonista da ressurreição do filho único da viúva, que o hospedava em Sarepta. Com uma ardente prece de fé a Javeh, Elias deitou-se sobre a criança morta e esta voltou a viver. Com a transfiguração, Jesus estava também demonstrando a forma que ele passaria a ter após a ressurreição. Daí que a figura de Elias evocava um episódio de ressurreição, grandiosa resposta que ele recebera de Javeh, após uma também extraordinária demonstração de fé.


A figura do Cristo transfigurado, mostrando a ligação entre ele e a mais antiga tradição da lei e dos profetas, vem confirmar a unidade da Escritura, integrando o Antigo e o Novo Testamentos, uma união da antiga com a nova aliança. Naquela ocasião, Jesus se transfigurou apenas para três testemunhas. Mas agora, Ele se mostra a todos nós cristãos, iluminando a nossa quaresma e nos ensinando que tempo de penitência não é tempo de tristeza, mas de muita esperança.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 17 de fevereiro de 2024

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 1o DOMINGO DA QUARESMA - 18.02.2024

 

COMENTÁRIO LITURGICO – 1º DOMINGO DA QUARESMA – O NÚMERO 40 – 18.02.2024


Caros Confrades,


A liturgia deste 1º domingo da quaresma destaca, no evangelho de Marcos, a simbologia do número 40, que ocorre algumas vezes nas Escrituras, associando o tempo em que Jesus jejuou no deserto, preparando-se para a sua missão evangelizadora, ao tempo quaresmal. Na carta de Pedro, há outra menção ao simbólico quarenta com a analogia que ele faz entre a arca de Noé/dilúvio e o batismo, enquanto instrumentos pelos quais Deus realiza a nossa salvação. Os escritores sagrados do Antigo e do Novo Testamento gostam de fazer alusões numerológicas, o que denota ser esta uma característica da cultura hebraica. Nos casos citados acima, a simbologia do número 40 põe em tela os dias que Jesus passou no deserto a jejuar, enquanto se preparava para a sua missão, e a duração do dilúvio que, segundo a narrativa bíblica, também foi de 40 dias e 40 noites, alusões ao tempo quaresmal.


Etimologicamente, a palavra 'quaresma' é proveniente do termo latino 'quadragesima', que significa o mesmo que a palavra portuguesa quadragésimo(a), numeral ordinal correspondente a 40. Portanto, a quaresma está também incluída na simbologia dos 40. Dentro do cenário bíblico, o número 40 aparece sempre antes da ocorrência de algo grandioso. O povo de Deus perambulou 40 anos no deserto até chegar à terra prometida. Moisés passou 40 dias/noites no monte Sinal até receber de Deus as tábuas da lei. No dilúvio, choveu sem parar durante 40 dias e noites, até chegar a bonança. Jonas concedeu aos ninivitas o tempo de 40 dias para se arrependerem e fazerem penitência. Jesus jejuou durante 40 dias no deserto. Após a ressurreição, Jesus ainda passou 40 dias aparecendo aos apóstolos, preparando a vinda do Espírito Santo, até ir definitivamente para o Pai. São várias as 'quaresmas' na Bíblia, no entanto, é mais comum a gente lembrar somente do tempo em que passamos preparando a Páscoa do Senhor a cada ano.


É neste contexto da simbologia do número 40 que devemos compreender o tempo de jejum de Jesus no deserto. Nem sempre os 40 dias indicados nas leituras bíblicas indicam exatamente 40 dias contados do calendário, porque aqui tratamos de uma mensagem simbólica, significando que o número 40 sempre indica que um grande acontecimento está sendo preparado. O tempo quaresmal nos prepara para a grande solenidade da Páscoa, a maior festa da fé cristã.


Na primeira leitura (Gn 9, 8), lemos o testemunho do povo hebreu acerca da aliança de Deus com a nova humanidade, representada por Noé e por aqueles que com ele foram salvos do dilúvio, destacando a promessa de que essa catástrofe nunca mais ocorreria. Esta mesma ideia foi repetida por Pedro na sua primeira carta (1Pd 3, 18), dirigida aos judeus da diáspora, na qual o Apóstolo lembra aos seus compatriotas o episódio do dilúvio e a figura de Noé, associando a imagem da arca salvadora com o sacramento do batismo da salvação. “Nesta arca, umas poucas pessoas - oito -foram salvas por meio da água. A arca corresponde ao batismo, que hoje é a vossa salvação.” Há uma nítida diferença de estilística no modo de escrever de Pedro, uma linguagem mais simplória, pois Pedro era pessoa de poucas letras. Diz Pedro que Jesus foi pregar até para os “espíritos na prisão”, referindo-se àqueles que blasfemaram na época de Noé e não acreditaram, e por isso não entraram para a arca, perecendo no dilúvio. A prisão, neste caso, seria o mundo das profundezas, a região dos mortos, aonde Jesus teria ido após a sua ressurreição. De acordo com a tradição, nas profundezas (de acordo com a tradução clássica, nos infernos, isto é, regiões inferiores) estariam as almas dos fiéis, aguardando a vinda do Salvador. Pois bem, mesmo sendo pessoas que haviam zombado de Noé e blasfemado contra Deus, ainda assim o batismo da salvação trazido por Cristo se destina também a estes.


A leitura do evangelho de Marcos (1, 12-15), num texto muito sucinto, relata que, após ter sido batizado por João Batista, o Espírito conduziu Jesus ao deserto, onde ele jejuou durante 40 dias e ali foi tentado por Satanás. Essas tentações de Jesus nós devemos entender num sentido também alegórico, sem a presença daquela terrível imagem de Satanás, construída pelos artistas medievais. As tentações pelas quais Cristo passou diziam respeito ao embate que se passava no seu íntimo em relação às suas duas naturezas divina e humana. Com efeito, enquanto Filho de Deus, ele era “tentado” a resolver as dificuldades que iria enfrentar de uma forma miraculosa, mas ele deveria evitar isso, ele deveria se comportar como uma pessoa humana comum, ou seja, devia prevalecer a natureza humana. Portanto, essas “tentações” seriam a metáfora desse conflito interior que ele sentia, na relação entre as naturezas divina e humana, fato que ele devia ter sempre em mente, para não se deixar desviar de sua missão.


Então, quais foram mesmo as grandes 'tentações' de Jesus? 1. Transforma essas pedras em pão... tentação do poder; 2. Eu te darei todos os reinos... tentação da riqueza/ganância; 3. Joga-te daqui para baixo... tentação do orgulho/vaidade. Meus amigos, Jesus Cristo tinha consciência da sua natureza divina e também tinha conhecimento de tudo o que ele iria enfrentar na sua missão de pregar a boa nova. Então, durante o jejum, ele fez uma preparação psicológica para viver como homem comum, pensar como homem comum, agir como homem comum, deixando em segundo plano a sua condição divina. Ele sabia que iria passar fome algumas vezes. Então, seria muito mais cômodo para ele fazer um 'milagrezinho' e transformar um pedaço de pedra ou de pau numa iguaria deliciosa. Mas para ser um homem comum, ele não podia jamais agir assim. Ou seja, ele só poderia utilizar o poder que a sua condição divina lhe dava quando fosse necessário, para a glória do Pai, de acordo com o desígnio do Pai, para corroborar a sua pregação. Esse foi o grande desafio para Jesus em todos as situações, até aquele momento crucial em que ele pede para “deixar passar aquele cálice” sem que ele bebesse, no entanto, que prevalecesse a vontade do Pai.


Este mesmo raciocínio vale para as outras ocasiões tentadoras. Estando diante daquela multidão ávida por presenciar um feito extraordinário, Jesus não poderia 'cair na tentação' de demonstrar sua condição divina apenas para ser aplaudido por aquela gente, por vaidade ou orgulho próprio. Ao contrário, quando ele fazia algum milagre, usava uma forma bastante discreta e sempre destacando a fé do beneficiado, além de pedir para que não fosse divulgado. Os fariseus estavam o tempo todo a provocá-lo para ele provar que era filho de Deus. Jesus nunca fazia milagres nessas ocasiões, muito menos para provar nada perante os fariseus, porque estes deviam acreditar na sua mensagem pelo conteúdo dela, não por uma demonstração de poder.


Portanto, Jesus passou 40 dias a jejuar e meditar no deserto, antes de começar suas pregações, para se conscientizar sempre mais da necessidade que ele tinha de ser um homem igual aos outros, no jeito de morar, de vestir, de andar, de se alimentar, de sofrer, de se alegrar, de falar, de demonstrar seus sentimentos, etc, tudo como um ser humano comum. Ele sabia desde o princípio e mais do que qualquer pessoa o final que o aguardava, os padecimentos atrozes que teria de suportar, para cumprir a promessa do Pai, para a nossa salvação. No seu jejum no deserto, tudo isso deve ter passado pela mente de Jesus e para tudo isso ele estava se preparando, porque iria iniciar a sua atividade primordial, aquela para qual Ele tinha vindo ao mundo.


Meus amigos, se até Jesus que era divino e humano passou por “tentações”, quanto mais nós, que somos pessoas limitadas e imperfeitas. Com base nessas narrativas, a tradição ensinava que Satanas nos tenta, induzindo-nos ao pecado. Contudo, podemos perceber que a fonte das nossas tentações são as nossas fraquezas, a nossa imperfeição natural, o nosso orgulho, a nossa vaidade e, principalmente, a nossa sede de poder, de ter sempre mais, de querer sempre mais. Jesus venceu as tentações através do jejum e da oração e isso é uma indicação também para nós. Os conceitos fundamentais da nossa quaresma foram explanados na liturgia da quarta feira de cinzas: a oração, o jejum e a esmola. A oração e o jejum dizem respeito a atitudes interiores nossas; a esmola diz respeito à nossa ação concreta em benefício dos irmãos carentes. A salvação não é alcançada apenas com atitudes internas de conversão, de orações e meditações, mas esta deve ser acompanhada de gestos concretos de solidariedade e de serviço. Tal é o objetivo da Campanha da Fraternidade, que todos os anos é realizada neste tempo.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 3 de fevereiro de 2024

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 5ª DOMINGO COMUM - 04.02.2024

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 5º DOMINGO COMUM – PEDAGOGIA DO SOFRIMENTO – 04.02.2024


Caros Confrades,


A liturgia deste 5º domingo comum nos convida a refletir sobre as enfermidades, tanto às doenças do corpo quanto às doenças do espírito. Nos dias de hoje, como no passado, é firme a convicção de que a máxima latina “mens sana in corpore sano” permanece em pleno vigor, na medida em que cada vez mais se descobre o quanto as preocupações e achaques mentais terminam por transformarem-se em enfermidades no corpo (somatização), causando aquelas doenças graves, de causas genéricas e de cura desconhecida, ou seja, se a mente não está sã, o corpo também não estará são. Hoje, muito mais do que no passado, os profissionais da área da saúde com frequência atestam que a fonte e a causa de grande parte dos males que acometem o corpo decorrem de perturbações de ordem mental e espiritual. Com o evento da pandemia recente e suas sequelas, o agravamento das doenças provocadas pelo estresse tem sido uma frequente causa de distúrbios nas famílias e de ausência do trabalho. É nesse ponto que a fé e a religião podem ter uma função importante no processo de cura.


Quado se fala em sofrimento, a figura emblemática que logo nos chega à lembrança é a de Jó, pois toda a tradição hebraico-cristã tem nesse personagem o protótipo do justo sofredor. Vários estudiosos da Bíblia colocam em dúvida a existência real e histórica desse personagem, que mais se assemelha a um protagonista de um romance de natureza didático-religiosa, em cuja figura o seu autor (ou seus autores, porque isso também é controverso) pretende desmistificar uma certa noção que havia naquela época acerca da doença e do sofrimento como castigo divino. O livro de Jó é classificado na Bíblia dentre os livros sapienciais e esses são os livros que colecionam os ditos e ensinamentos dos antigos sábios hebreus. A finalidade do livro de Jó é demonstrar que o sofrimento não é consequência do pecado, ou seja, não se deve correlacionar a ideia de que os pecadores sofrem por seus pecados e os justos não devem sofrer. Assim era a antiga crença hebraica. Então, a figura de Jó, o justo que sofre, perde tudo que possui e depois readquire tudo novamente, é o símbolo da pedagogia do sofrimento, isto é, da visão do sofrimento como um período de reflexão para nos levar a um estado de vida mais purificado e mais santificado.


Diz assim a primeira leitura: (Jo 7,2) “tive por ganho meses de decepção, e couberam-me noites de sofrimento. Se me deito, penso: Quando poderei levantar-me? E, ao amanhecer, espero novamente a tarde e me encho de sofrimentos até ao anoitecer.” Este trecho caracteriza muito bem a situação em que se encontra uma pessoa acometida de grave enfermidade crônica: a pessoa vê os dias se passando um após o outro e a sua situação não melhora. Parece que Deus se esqueceu dela. E a pessoa então se desmancha em queixumes e desesperanças, a vida torna-se um pesado fardo, algumas pessoas chegam a pedir a chegada da morte por não aguentarem tanto sofrimento. O livro de Jó ensinava os hebreus e continua a nos ensinar hoje a não cair no desespero diante das mazelas da vida, mas fortalecer a nossa fé através da oração confiante, porque Deus vela pelos que sofrem. A liturgia deste domingo procura exatamente chamar a atenção para esse fato de que o sofrimento é algo que faz parte da nossa existência humana e ainda conclama os cristãos a terem solidariedade para com os enfermos, visitando-os e orando com eles. E também sem esquecer de valorizar aqueles profissionais que trabalham na área da saúde e que estão em permanente contato com pessoas enfermas, para que não enxerguem o ser humano doente como se fosse uma máquina com defeito, mas estejam sempre conscientes e dispostos a praticarem uma medicina humanizada. Com tantos recursos tecnológicos utilizados atualmente no campo da medicina, muitas vezes os cientistas da área são levados a confundir os seres humanos com as máquinas que lhes auxiliam no seu trabalho, esquecendo que o corpo é templo de Deus e morada do Espírito Santo. Esse é o sentido que deve ter o cristão acerca da enfermidade e do sofrimento.


Na segunda leitura, da primeira carta de Paulo aos cristãos de Corinto (1 Cor 9,16), ele comenta sobre as agruras suportadas por causa de sua missão de pregar o Evangelho: sem descanso, sem salário, sem reconhecimento, com perseguições, e mesmo assim, fazendo isso como uma necessidade interna que ele sentia. Por causa do Evangelho, ele se tornou um escravo de todos. O sofrimento a que Paulo se refere já não é tanto aquele decorrente de uma enfermidade corporal, mas decorre da sua própria missão e das preocupações associadas a ela. Diz ele (9, 18): “Em que consiste então o meu salário? Em pregar o evangelho, oferecendo-o de graça, sem usar os direitos que o evangelho me dá. ” Fico pensando em quais seriam esses “direitos” que o evangelho dá a ele e dos quais ele não usufrui. Suponho que seria a tranquilidade de estabelecer-se num certo local e dedicar-se aos fiéis daquela comunidade, assim como muitos líderes religiosos daquela época e de hoje fazem. Ao contrário, Paulo era aquele apóstolo itinerante, que não tinha um pouso nem uma morada. Cuidava de todas as igrejas, no entanto, não estava vinculado a nenhuma delas. Essa foi a sua opção para atender com fidelidade à missão de pregar o evangelho. Por isso, ele conclui no vers. 19: “Assim, livre em relação a todos, eu me tornei escravo de todos.” A preocupação com a pregação do evangelho era o sofrimento dele de cada dia.


No evangelho de Marcos (Mc 1, 29), vemos mais uma vez a intenção desse evangelista de mostrar o poder de Jesus, especialmente através da cura dos doentes e da expulsão dos demônios. Procurando entender essas expressões numa linguagem atual, poderíamos ler aí como se estivesse escrito a cura das doenças do corpo e do espírito. Conforme já foi mencionado em outros comentários, o entendimento daquela época acerca das doenças psicológicas era de que se tratava de possessão pelo demônio. O evangelista Marcos procura destacar o poder que Jesus tem sobre os males do corpo e do espírito devolvendo a saúde aos paralíticos e leprosos, mas também expulsando os maus espíritos e proibindo os demônios de falarem ao povo quem é Ele. Jesus está fazendo milagres em Cafarnaum, no início de sua missão. Começou curando a sogra de Pedro, que estava com febre e apenas com o toque da sua mão, a curou. A notícia se espalhou e logo a frente da casa de Pedro estava tomada por uma multidão de enfermos e pessoas “possessas”, pedindo para serem curados, e Jesus curou a todos.


Estes relatos do evangelista Marcos nos mostram a missão de Jesus como aquele que veio para retirar os sofrimentos das pessoas, corroborando aquele ensinamento já tratado no livro de Jó, acerca do sofrimento não como um castigo de Deus. Jesus veio mostrar o Pai como alguém que está ao lado dos que sofrem, para minimizar-lhes os sofrimentos, não para castigá-los ainda mais. Depois de curar os enfermos em Cafarnaum, Jesus quis ir com os discípulos para as cidades e aldeia da Galileia, a fim de ali também pregar sua palavra, pois para isso foi que ele veio. Essa imagem literária da ida às cidades e aldeias vizinhas significa o universalismo da doutrina cristã. Jesus demonstrou que Ele não deveria ficar só em um determinado lugar e as pessoas virem a ele, mas que Ele mesmo deveria ir aonde as pessoas estivessem passando por necessidades. A escolha da região da Galileia tem esse significado de universalismo, porque ali moravam pessoas oriundas das mais diversas regiões e nacionalidades. Foi esse exemplo de Jesus que o apóstolo Paulo seguiu, percorrendo o mundo de cidade em cidade e pregando o evangelho.


Há uma referência nesse evangelho de Marcos, que eu gostaria de destacar: a cura que Jesus faz da sogra de Simão, estando hospedado na casa deste (Mc 1, 30-31): “A sogra de Simão estava de cama, com febre, e eles logo contaram a Jesus. E ele se aproximou, segurou sua mão e ajudou-a a levantar-se. Então, a febre desapareceu.” Simão era casado e morava em Cafarnaum. O evangelho não refere que ele tinha filhos, o que não significa que não os tivesse. O evangelista faz referência à sogra de Simão assim de passagem, porque o interesse dele é mostrar o poder de Jesus para curar os enfermos, talvez por isso não entre em detalhes sobre os demais familiares. Assim como Simão, certamente outros discípulos também eram casados. Sabemos que Jesus não tinha uma moradia própria, mas hospedava-se nas casas dos amigos. Um local bastante conhecido para isso era a casa de Betânia, onde moravam os irmãos Marta, Maria e Lázaro, mas é bem possível que ele também se hospedasse em casa de algum outro discípulo. Ressalto isso para defender que não há incompatibilidade entre o discipulado e o matrimônio, que o celibato não foi uma imposição que Jesus fez aos seus discípulos.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 20 de janeiro de 2024

COMENTARIO LITURGICO - 3ª DOMINGO COMUM - 21.01.2024

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO 3º DOMINGO COMUM – O TEMPO OPORTUNO – 21.01.2024


Caros Confrades,


Na liturgia deste 3º domingo comum, as leituras se nos convidam a refletir sobre o tema do kairós ou do tempo oportuno. O tempo está chegando, diz o profeta Jonas. O tempo está abreviado, diz Paulo aos Coríntios. O tempo já se completou, diz Jesus aos galileus. Também para nós o tempo é constantemente objeto de preocupação. E por mais que nos pareça algo muito concreto, na verdade, o conceito de tempo é abstrato, está afeito à nossa sensibilidade. Falamos sempre do tempo como se fosse algo corpóreo, contudo, o tempo é apenas uma produção da nossa atividade psicológica, ou seja, é uma forma de conceituarmos essa sensação que captamos diante da evolução dos acontecimentos, numa corrente sucessiva. Para melhor controle, as pessoas aprenderam a medir o tempo, a quantificá-lo ou a dividi-lo em fatias (como diz o soneto de Drummond). Na língua portuguesa, o vocábulo “tempo” é polissêmico, por isso o utilizamos nas mais diversas situações, mas sabemos distinguir mentalmente o seu significado. A título de exemplo, no idioma grego, há duas palavras diferentes para falar do tempo: uma quando a referência é sobre os dias-meses-anos (chrónos) e outra quando a referência é algo indeterminado, um tempo simbólico (kairós), entendido aqui o tempo simbólico como a oportunidade, o momento apropriado, a hora certa de fazer algo, ou como dizem os teólogos, o tempo favorável. É neste último sentido que se deve compreender a alusão ao tempo na liturgia de hoje: o tempo favorável para a ação de Deus na história. Esse tempo não vem com data marcada, nós é que temos de encontrá-lo ou, se for o caso, construi-lo.


Na primeira leitura, o texto traz a lembrança da missão do profeta Jonas, em Nínive (Jn 3, 1-5). Deus mandara que ele pregasse ao povo de Nínive assim: Se não mudardes o vosso modo de vida, dentro de 40 dias, a esta cidade será destruída. O povo se converteu e Deus suspendeu o castigo que iria mandar. Nínive era a capital da Assíria, uma megalópole daquele tempo, talvez maior do que é Fortaleza nos dias de hoje, porque o texto afirma que eram necessários três dias para atravessar a cidade. Era um local de muitas perversidades, como em toda grande cidade. O profeta Naum chamara Nínive de cidade sanguinária, cheia de mentiras e de roubo (Na 3,1), por isso Javeh iria transformá-la num deserto. Mas com a pregação do profeta Jonas, o rei e os cidadãos ninivitas se converteram e fizeram penitência, assim o castigo foi evitado. Evidentemente, essa tarefa de Jonas não deve ter sido assim tão simples e de resultado imediato, conforme a descrição do texto, mas o que a liturgia quer destacar aqui é o tempo favorável, que os ninivitas reconheceram e souberam aproveitá-lo. A população da cidade dirigiu seus ouvidos à pregação do profeta e deu-lhe crédito. Devemos também considerar que havia ali um momento favorável, no sentido de que muitos dos habitantes da cidade ainda se recordavam da derrota do rei de Judá, Ezequias, para o rei de Nínive, Senaqueribe, e da humilhação sofrida pelo povo, por isso tiveram maior sensibilidade para ouvir o profeta.


Na segunda leitura, Paulo exorta os fiéis de Corinto para viverem o seu tempo favorável, cada um de acordo com o seu estado. (1Cor 7, 29-31) Contextualizando a leitura, nos versículos anteriores, Paulo fala sobre a vida dos casados, dos solteiros, das viúvas, dos escravos, dando conselhos a cada grupo para viverem na graça de Deus. A igreja de Corinto era uma comunidade fundada por Paulo e os coríntios entenderam a sua pregação como se a volta de Cristo fosse acontecer logo nos próximos dias. Alguns até não queriam mais nem trabalhar, deixaram tudo de lado só esperando a nova vinda de Cristo. Então, Paulo os adverte a viverem suas vidas cotidianas, na perspectiva da eternidade. Cada um fique no estado em que foi chamado. Quem quiser ser como ele Paulo, que era celibatário, ele acha melhor, mas quem não conseguir viver assim, que procure um cônjuge, porque é melhor casar-se do que abrasar-se (7, 9). Sinceramente, eu não entendo por que a Igreja Católica não segue o conselho de Paulo e continua a exigir dos sacerdotes o celibato obrigatório. Além disso, a tradução oficial da CNBB não reproduz bem o sentido do texto paulino. Diz 'o tempo está abreviado', mas no texto latino, Paulo diz: 'tempus breve est', expressão que, a meu ver, não tem o mesmo sentido. A tradução melhor seria “o tempo é breve”, isto é, passa muito rápido. Tempo abreviado dá um sentido de encurtado, diminuído e não me parece que seja este o sentido expresso no texto paulino. O tempo breve nos conduz à consciência de que é preciso viver com os pés no hoje, mas com os olhos no futuro, porque nós não somos deste mundo e a nossa estadia aqui é passageira.


Na leitura do evangelho de Marcos (1, 14-20), temos a narrativa do chamado dos primeiros apóstolos: Pedro, André, João e Tiago. De acordo com este evangelista, Jesus teria chamado os quatro na mesma ocasião, mas se observamos o evangelho de João, lido no domingo passado, acerca do chamado de Pedro, veremos que não foi bem assim. No texto de Marcos, Jesus estava passeando pela beira do mar da Galileia e viu Simão e André, seu irmão, e os chamou. No texto de João (1, 42), ele diz que André era discípulo de João Batista e viu quando este falou sobre Cristo: eis o Cordeiro de Deus, então André passou a segui-lo e depois apresentou a Ele seu irmão Simão. Não devemos, porém, concluir com isso que o texto de Marcos seja impreciso ou incorreto. Como sabemos, no tempo de Cristo não havia jornalistas documentando fatos nem havia escribas acompanhando seus passos e registrando suas atividades. Ora, o evangelho de Marcos, cronologicamente o primeiro a ser escrito, deve ter sido redigido pelo menos uns 40 anos antes do evangelho de João. Além disso, Marcos não foi testemunha ocular, mas utilizou-se da tradição oral e de textos esparsos que circulavam nas comunidades da região onde ele vivia, os quais por sua vez foram escritos a partir de tradições orais, histórias que passavam de boca em boca entre os primeiros cristãos. Por outro lado, João foi testemunha viva daqueles fatos e escreveu a sua própria experiência, não por ouvir dizer. Marcos e João escreveram em locais distantes entre si e servindo-se de fontes diferentes, de modo que o texto de João, até por ter sido escrito bastante tempo depois, é mais elaborado, mais pesquisado, mais coerente. Apesar das divergências, o que verdadeiramente importa não é se foi na beira do mar, como disse Marcos, ou num lugar qualquer da Galiléia, como disse João, mas o que interessa é que eles atenderam ao chamado, eles aceitaram a proposta de Cristo para mudarem de vida e em vez de ser pescadores de peixes, passaram a ser pescadores de gente. Cada um deles teve o seu tempo favorável de ouvir o chamado e aceitar a missão que lhes foi confiada.


O evangelho de Marcos lido neste domingo também faz referência ao início das atividades públicas de Jesus, o que ocorreu após a prisão de João Batista. Alguns domingos atrás, quando comemorou-se o batismo de Jesus, João Batista dizia ao povo que, após ele, viria alguém de quem ele não seria digno de desamarrar as sandálias. Então, a prisão de João Batista foi o tempo favorável para o início da missão profética que Jesus veio realizar. Jesus não iria fazer concorrência com João Batista, até porque este foi o agenciador da chegada d'Aquele, por isso não seria oportuno que ambos atuassem simultaneamente. Essa oportunidade chegou quando João Batista saiu de cena, abrindo-se o espaço para o anúncio da “boa nova”. E um detalhe significativo é que Jesus começou suas pregações na Galiléia, não foi em Jerusalém, a grande cidade da época. Por que na Galiléia? Porque aquela região era habitada por pessoas de diversas origens étnicas e de diversas nacionalidades. Isso teria ocorrido porque a população primitiva daquela região teria sido levada, em sua maior parte, cativa para a Babilônia e a terra ficou desabitada, passando a ser ocupada por pessoas nômades de outras tribos, durante o tempo em que os hebreus permaneceram no cativeiro. Com o retorno do povo hebreu libertado, os novos habitantes se relacionaram bem com aqueles e por esse motivo o local era um misto populacional de diversas origens, razão porque era chamada de Galiléia das Nações. Então, Jesus escolheu iniciar a pregação do reino de Deus exatamente num local em que a população, além de ser pobre, não era constituída exclusivamente de hebreus, demonstrando logo no início o destino universal dos seus ensinamentos. É essa igreja dos pobres que o Concílio Vaticano II destacou em seus documentos, diferentemente daquela igreja elitizada, como ela passou a ser a partir do seu envolvimento com os imperadores romanos e com os senhores feudais da Idade Média. Esse é o sentido da “opção preferencial pelos pobres”, que tanto o Concílio quanto os documentos oficiais posteriores pretendem resgatar, o que deu origem à doutrina muitas vezes mal entendida e não poucas vezes deturpada chamada “teologia da libertação”.


Esta mensagem acerca do tempo favorável, do momento e da oportunidade nos convida a estar sempre atentos aos “sinais dos tempos”, sempre reavaliando nosso modo de ser, pois Deus está se manifestando a nós de diversos modos nos acontecimentos e às vezes nós não percebemos e deixamos passar aquela oportunidade de praticar o bem.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos