domingo, 30 de setembro de 2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 26º DOMINGO COMUM - 30.09.2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 26º DOMINGO COMUM – TODOS PROFETAS – 30.09.2018

Caros Leitores,

A liturgia deste 26º domingo coloca em pauta um assunto que o Papa Francisco, por diversas vezes, já citou publicamente e causou controvérsias na Cúria Romana: Deus está não apenas na Igreja Católica, mas no meio de todos os que o procuram de coração sincero, independentemente da crença religiosa. Esse é o grande tema teológico que embasa o ecumenismo, sobretudo no esforço de aproximação das grandes religiões monoteístas, que tem sido um dos pontos recorrentes nos discursos do Papa: cristianismo, judaísmo e islamismo. Ninguém possui o monopólio da fé. Essa exclusividade era uma doutrina teológica do passado, dos tempos apologéticos, porém o próprio Cristo reprova isso, conforme vemos na leitura do evangelho de Marcos.

A primeira leitura, retirada do livro dos Números (11, 25-29), narra um episódio ocorrido durante a caminhada pelo deserto, quando os israelitas chegaram ao monte Sinai. Depois de vários meses comendo perdizes, maná e frutos do deserto, o povo estava descontente, com saudade da comida que tinham no Egito, onde comiam carne fresca e legumes e começaram a murmurar contra Moisés. Então, Javeh desceu da nuvem e mandou Moisés separar 70 homens dentre os mais idosos do povo para formarem uma espécie de 'conselho' de anciãos. Moisés fez isso e, diz o livro dos Números, que Javeh “Retirou um pouco do espírito que Moisés possuía e o deu aos setenta anciãos. Assim que repousou sobre eles o espírito, puseram-se a profetizar, mas não continuaram.” (11, 25). Porém, o trecho mais curioso vem logo a seguir: dois anciãos, que não participavam daquele grupo, também receberam o espírito e passaram a profetizar no acampamento (Eldad e Medad). Os invejosos foram logo enredar a Moisés, como se eles estivessem fazendo algo proibido, e Moisés deu-lhes um puxão de orelhas: que é isso? Estão com inveja porque também não profetizam? Josué chegou a pedir a Moisés que ordenasse que eles dois parassem de profetizar, ao que este respondeu: 'Tens ciúmes por mim? Quem dera que todo o povo do Senhor fosse profeta, e que o Senhor lhe concedesse o seu espírito!' (11,29). Josué era o “lugar tenente” de Moisés e talvez tenha se sentido diminuído porque ele próprio não recebera o dom de profetizar. Essa ciumeira do serviço divino, como se percebe, já existia nos tempos bíblicos remotos. Moisés, inspirado, rejeitou isso: quem dera que todo o povo do Senhor fosse profeta! Nós também podemos exercitar a profecia, bastando estarmos atentos às manifestações do Espírito.

Nesse mesmo sentido, segue a narrativa do evangelho de Marcos (9, 38-43), quando João veio dizer a Jesus: “'Mestre, vimos um homem expulsar demônios em teu nome. Mas nós o proibimos, porque ele não nos segue'. Jesus disse: 'Não o proíbais, pois ninguém faz milagres em meu nome para depois falar mal de mim. Quem não é contra nós é a nosso favor.” Os discípulos demonstraram aí um certo ciúme do Mestre e talvez achassem que somente a eles, do grupo de seguidores próximos de Jesus, era dado o poder de expulsar demônios. Mas Jesus fá-los ver que o Espírito sopra onde quer e ninguém pode inibir a ação do Espírito em sua liberdade total, ninguém manda no Espírito, ninguém tem o monopólio da profecia. É lamentável que alguns grupos radicais dentro da própria Igreja não consigam perceber esse ensinamento de Cristo. Um fato é notório: toda vez que o Papa recebe a imprensa para uma entrevista coletiva, a Cúria Romana fica em polvorosa, com receio do que “ele vai dizer”, ou seja, não acreditam no dom da profecia que ele tem, não acreditam na manifestação do Espírito através dele.

Ora, meus amigos, quando Jesus repreendeu os discípulos que haviam 'proibido' aquele homem que não era do grupo, para que não expulsasse demônios, era como se Jesus estivesse antevendo os diversos movimentos religiosos futuros, as distorções que iriam fazer da sua doutrina, os diversos 'missionários' que se apresentariam em nome dele, prometendo curas e arrebanhando grupos mais ou menos numerosos de seguidores. Em outras palavras, o que Jesus propunha era uma religião enquanto modo de vida, Ele não mandou que fosse fundada uma 'organização' estruturada com cargos e hierarquias, ou seja, Ele não mandou que se constituíssem 'igrejas'. Estas foram surgindo de forma espontânea, com a reunião de fiéis em torno de um líder. De início, esse líder era um dos apóstolos, depois passou a ser uma pessoa a quem eles delegavam este poder, através da 'imposição das mãos' (ordenação), e assim foram sendo criados os vários 'cargos' internos: diáconos, sacerdotes, bispos, estruturando-se aos poucos uma hierarquia. Obviamente, essa organização é necessária e, ao longo do tempo, a Igreja tem dado demonstração da eficiência do seu modelo administrativo, apesar das inevitáveis vicissitudes, que decorrem da própria historicidade e da limitação dos seres humanos. Observando somente sob o aspecto puramente estrutural e formalista, não se pode negar a importância dessa organização, que vem atravessando séculos. Porém, não é essa a finalidade da Igreja. Isso é o meio, o suporte material, sem dúvida necessário, mas o seu objetivo último é a pregação do evangelho. E não se deve confundir os meios com os fins.

Quando se faz a reflexão sobre a propagação da fé, a questão básica a ser enfrentada é esta: qualquer 'igreja' reproduz o ideal religioso proposto por Cristo? Ou somente uma delas, no caso a Igreja Católica Romana? E as outras religiões não cristãs, mas igualmente monoteístas, tais como o judaísmo e o islamismo, em que posição se enquadram? (Só uma observação necessária: falar em islamismo não deve ser confundido com o radicalismo do autodenominado Estado Islâmico, que pratica atrocidades em nome da religião, isso não representa todo o Islã). E as religiões orientais milenares, tais como o budismo, o bramanismo, taoísmo? O que dizer do espiritismo, do umbandismo, das vivências espiritualistas em geral, não ligadas a uma determinada religião? Pois é, Jesus disse claramente: quem não está contra nós, está a nosso favor. Há muito preconceito de parte a parte, reforçado ao longo dos séculos por lamentáveis acontecimentos, que dificultam as tentativas de reaproximação de todas essas formas de expressão religiosa, no entanto, a profecia de Cristo é que, um dia, haverá um só rebanho e um só pastor. Boa parte do sucesso desse empreendimento depende da forma como cada um de nós vive e pratica a sua fé.

Vemos na segunda leitura, retirada da carta do apóstolo Tiago (o irmão do Senhor) ensinamentos que parecem ser dirigidos para os donos do capital do mundo de hoje (Tg 5, 1-6): “o salário dos trabalhadores que ceifaram os vossos campos, que vós deixastes de pagar, está gritando, e o clamor dos trabalhadores chegou aos ouvidos do Senhor todo-poderoso.” Quantas pessoas ficam ricas e vivem luxuosamente como consequência de exploração do serviço dos irmãos, do aproveitamento inescrupuloso do poder social, da sonegação e dos desvios dos bens públicos em benefício próprio, a campanha política em andamento demonstra isso de modo bem claro. Contra esses, o Apóstolo é bastante ríspido: “E agora, ricos, chorai e gemei, por causa das desgraças que estão para cair sobre vós. Vossa riqueza está apodrecendo, e vossas roupas estão carcomidas pelas traças. Vosso ouro e vossa prata estão enferrujados, e a ferrugem deles vai servir de testemunho contra vós.” Nesse mesmo sentido, expressou-se o papa Paulo VI , na encíclica Populorum Progressio (1967), quando disse: a terra foi dada a todos, ricos e pobres, não apenas aos ricos. Ninguém tem direito de reservar para seu uso exclusivo o que é supérfluo, enquanto para outros falta até o necessário. O Papa critica tanto o liberalismo sem freio, que conduziu ao imperialismo internacional do dinheiro, isto é, o capitalismo, como também a coletivização integral e a planificação arbitrária, que priva os homens da liberdade e dos direitos fundamentais da pessoa humana, isto é, o comunismo. Ambos são paradoxalmente equivalentes.

Meus amigos, o desafio que a liturgia nos coloca é o de viver autenticamente a mensagem de Cristo, de forma honesta e objetiva, sem tentar adequá-la ao que é do nosso maior interesse. Se nos deixarmos levar pelos preconceitos, que ao longo do tempo fomos assimilando, corremos o risco de recair sobre nós aquela mesma repreensão que Cristo fez aos discípulos: não lhos proibais, porque quem não está contra nós, está conosco. Isso não quer dizer que agora cada um pode escolher a religião que lhe aprouver, como se todas são iguais, porque nós professamos uma fé e acreditamos nela. Significa, outrossim, que não podemos fazer discriminações de pessoas por motivos religiosos. Mais importante do que as denominações religiosas é a pureza do coração e a retidão da consciência, pois o monopólio da fé não foi dado a ninguém.

Que o Divino Mestre nos ajude a sermos autenticamente fiéis, para que a vivência da nossa religião não seja movida apenas pela tradição ou pelo costume.

****

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 25º DOMINGO COMUM - 23.09.2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 25º DOMINGO COMUM – A JUSTIÇA E A PAZ – 23.09.2018

Caros Leitores:

Na liturgia deste 25º domingo comum, as leituras abordam o tema da paz como fruto da justiça. A ideia está resumida na frase da epístola do apóstolo Tiago: “O fruto da justiça é semeado na paz para aqueles que promovem a paz.” (Tg 3, 18) Estamos, nesses dias, vivenciando o período de campanha eleitoral e os ânimos se acirram, cada qual defendendo seu ponto de vista como o melhor. Lamentavelmente, o mais comum é que as pessoas se atenham apenas ao seu círculo mais próximo e aos seus interesses mais imediatos, abstraindo da visão macro da sociedade, enveredando por discussões inócuas e improdutivas, cujo objetivo parece ser simplesmente vencer uma disputa. Esse tipo de conduta jamais se compatibiliza com o verdadeiro objetivo da política, que é a construção da paz através de ações governamentais justas.

Acerca do tema da política, vale lembrar que, de uma forma simbólica e muito oportuna, Platão colocou como subtítulo de sua conhecida obra “A República” a expressão “sobre a justiça”, pois desde os tempos mais remotos, os homens de bem sempre entenderam que o fruto da justiça é a paz. Na primeira leitura litúrgica, retirada do Livro da Sabedoria, temos uma exposição sobre o tema da justiça, através da análise da estratégia usualmente adotada pelos ímpios de armarem ciladas contra os justos. Outrora, assim como hoje, tal fato sempre ocorreu. O livro da Sabedoria representa a tradição dos sábios do povo de Israel, aqueles ensinamentos consolidados com a prática continuada, que os mais idosos transmitiam para os mais jovens. A presença do justo incomoda o ímpio, porque faz este ver a própria maldade. Mesmo sem pronunciar palavras, o próprio comportamento do justo causa desconforto às pessoas maldosas que, por isso, buscam tramar malefícios contra o justo, armando-lhe ciladas: “Vamos pô-lo à prova com ofensas e torturas, para ver a sua serenidade e provar a sua paciência.” O justo incomoda o ímpio porque, para este, a paz não interessa, e sim a realização dos seus propósitos escusos. Fazendo um paralelo com a campanha eleitoral, parece que essas atitudes estão sempre presentes, toda vez que entra em cena o jogo de poder da sociedade. Os postulantes dos cargos públicos, assim como seus simpatizantes, via de regra, precupam-se muito mais em denegrir a imagem do oponente, do que em apresentar seus projetos e programas. Enxurradas de acusações mútuas, ajudadas tecnologicamente com a criação dos boatos eletrônicos, cuja origem nunca se sabe, mas muitas pessoas, por irresponsabilidade ou esperteza, se prestam a ser agentes distribuidores de falsas informações, contanto que aquele fato (não importa se verdadeiro) venha a esmaecer a imagem pública do opositor. É o grande circo da disputa pelo poder, que ocorre na sociedade, desde que a história passou a registrar os fatos. O livro da Sabedoria, muitos séculos atrás, já advertia: só a justiça conduz à paz.

Na segunda leitura, o apóstolo Tiago, nessa mesma linha de pensamento, demonstra claramente que a origem da injustiça, dos males sociais, das guerras, da insegurança, da violência que domina a sociedade de hoje, em todos os países, é a equivocada busca pelo poder político e financeiro. Diz o apóstolo: qual a origem das desavenças que há entre vós? É porque buscais primeiros os vossos interesses. Vós matais, invejais, maltratais e mesmo assim não conseguis o que quereis. O vosso problema é porque não pedis. Ou melhor, pedis mal, porque quereis somente aquilo que atende aos vossos interesses. Meus amigos, vemos nessa admoestação do apóstolo Tiago que esses equívocos que sufocam a humanidade atual são, na verdade, uma problemática muito antiga. Quando Platão escreveu uma teoria do Estado, colocando como subtítulo “a justiça”, queria ele dizer que a finalidade do poder político é promover a justiça, pois não era isso o que ele via na Grécia do seu tempo, governada por tiranos, mas entendia que esse deveria ser o objetivo a ser alcançado pelo verdadeiro Estado. Cronologicamente, Platão é bem mais antigo do que o apóstolo Tiago, além do que ambos viveram em localidades muito distantes uma da outra. No entanto, ambos tiveram a mesma intuição em relação à necessidade de se praticar a justiça, a fim de que vivamos numa sociedade pacificada. Apesar do decurso temporal de mais de dois milênios, desde que essas lições foram ensinadas, as pessoas que governam os povos ainda não as aprenderam ou delas desdenham.


No evangelho de Marcos, o evangelista continua a narração do episódio do domingo anterior, quando Jesus ia viajando a pé para Cafarnaum, já a caminho de Jerusalém, onde a sua missão iria se consumar, e ensinava aos discípulos as últimas lições da sua catequese. Depois daquele puxão de orelhas em Pedro, que foi sugerir a Jesus que não falasse assim, porque os discípulos ficavam embaraçados, Jesus prossegue e repete: é necessário ele eu vá a Jerusalém, onde serei torturado e morto, mas depois de três dias, ressuscitarei. Aí, diz o evangelista, eles não entendiam, mas ficavam com vergonha de perguntar e especulavam sobre a situação deles, como ficaria o grupo sem a presença de Jesus, como seria a hierarquia entre eles. Chegando em Cafarnaum, depois de acomodados em casa (o evangelista não diz de quem era a casa), Jesus puxou o assunto: sobre o que vocês conversavam, enquanto estávamos caminhando? Eles ficaram calados e não quiseram responder, com medo do carão, que com certeza viria, pois Jesus sabia muito bem do que eles tinham conversado. Foi quando ele reuniu os doze e repassou a lição: aquele dentre vós que quiser ser o maior, seja o menor; o que quiser ser o primeiro, seja o último. Convenhamos, isso embaralhava ainda mais o entendimento deles. Como é que alguém poderia ser o primeiro, chegando por último? Como poderia ser maior se desvalorizando? Percebendo a confusão na mente deles, Jesus tomou uma criança e colocou no meio deles, para servir de exemplo. Sede como esta criança... Por que Jesus fez comparação com a criança? Ora, naquele tempo, as mulheres e as crianças não tinham vez na sociedade, acentuadamente machista e patriarcalista. Somente os homens adultos tinham direitos, tinham reconhecimento. Ao colocar a criança como exemplo, Jesus estava usando um recurso pedagógico para dizer: o pensamento de vocês está ao contrário. De acordo com a mentalidade dos judeus, uma criança não tinha direito a acolhimento, ela era subjugada ao pai (nem a mãe podia ter qualquer atitude). De acordo com a doutrina romana, que prevalecia na Galiléia naquele tempo, o pai tinha direito de vida e de morte sobre os filhos, sobre a esposa, sobre os servos, sobre os bois e cabritos, todos estavam no mesmo pé de igualdade.

Então, Jesus diz: quem não se tornar igual a uma criança, não terá lugar no Reino do Céu... aquele que acolhe uma criança, acolhe a mim, e quem acolhe a mim, acolhe o Pai que me enviou. Se algum de vós quer ser o primeiro, pois que seja o servo de todos. Ou seja, Jesus estava ensinando que a verdadeira justiça não faz distinção entre grandes e pequenos, ele próprio estava ali se colocando como o menor de todos. Foi o exemplo que ele deu na última ceia, quando passou o avental na cintura e foi lavar os pés de todos. Quando Jesus disse aos discípulos que seria preso, torturado e morto, para depois ressuscitar, ele estava indiretamente ensinando que por mais cruéis que sejam as maldades humanas, elas nunca superarão a justiça, a sua ressurreição seria (e foi) uma prova disso. Fez-me lembrar agora de uma composição de Roberto Carlos, de 1971, na qual ele dizia: “Tanta gente se esqueceu que o amor só traz o bem, que a covardia é surda e só ouve o que convém”, logo em seguida, ele faz um apelo para que Jesus venha ensinar tudo de novo, porque a humanidade ainda não aprendeu. Olhando para o que acontece ao nosso derredor, constata-se que, de fato, tudo que Jesus ensinou ou está sendo esquecido, ou está sendo deturpado a serviço de interesses de grupos de indivíduos sem escrúpulo. Cada vez mais é necessário repetir que a paz é fruto da justiça.

Para nós, cristãos, a leitura desses textos litúrgicos vem lembrar que, ao vivermos a nossa fé através da realização de boas obras, buscando em primeiro lugar o Reino de Deus, estaremos contribuindo para neutralizar a ganância do ter em demasia, do poder a qualquer custo. E não basta apenas discursar ou conclamar os outros a fazerem, a ação deve começar na vida concreta de cada um. Fazer é muito mais do que falar. Na véspera de iniciar-se a novena do nosso Patriarca São Francisco, a sua imagem e o seu exemplo continuam firmes e eloquentes, ele que foi o gande protagonista da paz. Que ele nos ilumine e nos inspire a fazer como ele fez com o lobo de Gubbio, pacificando a cidade e trazendo tranquilidade aos nossos irmãos.

****

domingo, 16 de setembro de 2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 24º DOMINGO COMUM - 16.09.2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 24º DOMINGO COMUM – CRISTO SOFREDOR – 16.09.2018

Caros Leitores,

Na liturgia deste 24º domingo comum, o evangelista Marcos destaca uma ríspida resposta de Cristo a Pedro, que foi falar-lhe coisas inconvenientes: vade retro, satanas (afasta-te, vai-te embora, satanás), uma das poucas demonstrações de atitudes de Cristo em que se vislumbra o quanto o seu lado humano, por vezes, conflitava com a fidelidade à missão que ele viera realizar. Outra vez, foi no Jardim das Oliveiras, quando ele suou sangue. Esses episódios representam de forma bem eloquente a presença em Cristo das naturezas divina e humana e mostram que, enquanto humano, ele sofria mesmo, não apenas fingia sofrimento, como afirmaram os seguidores do docetismo, nos primeiros tempos do cristianismo. Vale também uma explicação sobre o termo “satanás”, palavra hebraica transliterada para o grego, que significa literalmente “adversário”, “opositor”.

A primeira leitura, extraída do profeta (deutero)Isaías (50, 5-9), apresenta os versos clássicos do servo sofredor, fazendo eco com a narrativa do evangelista Marcos (8, 27-35), quando Jesus falava para os discípulos dos sofrimentos pelos quais deveria passar, como parte integrante da sua tarefa messiânica, antecipando os acontecimentos que estavam por vir. Essa parte do livro de Isaías, chamada de deutero-Isaías, foi escrita durante o cativeiro da Babilônia, depois da morte do profeta, daí as referências ao sofrimento do povo, junto com as exortações de penitência e de confiança em Javeh, que na hora certa virá libertá-los. O servo sofredor do exílio babilônico é a prefiguração do futuro Messias, que irá personificar de forma plena esta figura, através da sua paixão e morte, para nossa redenção. A profecia de Isaías impressiona pela riqueza de detalhes com que seu autor descreve o futuro sofrimento do Messias, através de citações verdadeiramente inspiradas, que se confirmaram com elevada precisão.

Acerca desse tema do sofrimento de Cristo, é valioso recordar uma temática que foi objeto de múltiplas polêmicas, nos primeiros séculos do cristianismo, acerca da natureza humana e também divina de Cristo. Enquanto Ario (fundador do arianismo) afirmava que Cristo não era igual a Deus, pois era filho e, portanto, subordinado a ele e hierarquicamente inferior, de outro lado havia os cristãos gnósticos, que afirmavam que Jesus tinha apenas uma aparência humana, quando na verdade, ele era Deus e o seu corpo humano era só uma ilusão de ótica. Essa doutrina era chamada de docetismo e afirmava que Cristo de fato não sofreu nada, a paixão foi toda uma grande encenação de sofrimento, pois sendo Deus, ele não poderia sofrer. Desnecessário dizer que ambas as doutrinas foram rejeitadas como heresias, pois a doutrina que se consolidou nas discussões acerca da pessoa de Jesus foi a de que ele possuía duas naturezas (divina e humana) sendo assim, verdadeiramente, Deus e homem, ou seja, ele sofreu de verdade como qualquer ser humano sofreria todas aquelas torturas, feridas, dores, enfim, tudo o que é tipicamente humano.

Pois bem, esse prólogo tem como finalidade esclarecer o diálogo de Pedro com Jesus, conforme está narrado no evangelho de Marcos (8, 27-35), sobre os episódios da vida de Cristo que antecedem sua ida a Jerusalém, onde viria a ser sacrificado. Após três anos de catequese diária com os discípulos, Jesus vendo aproximarem-se os seus dias finais, foi fazer uma espécie de pré-teste, como se diz no vocabulário moderno, um exame simulado, para saber como estava o entendimento do seu grupo acerca da sua pessoa. Ele começa perguntando por longe: quem as pessoas dizem que eu sou? Jesus não queria saber o que o povo pensava dele, mas o que os discípulos pensavam, porém pedagogicamente começou com uma pergunta bem genérica. Eles responderam: uns dizem que é João Batista, outros que é Elias ou algum dos profetas que ressuscitou. Então, Jesus vai direto ao ponto: e vocês, o que dizem? Antes que alguém respondesse, Pedro saiu na frente: Tu és o Messias. Eu não gosto dessa tradução da CNBB, porque na tradução de São Jerônimo, o texto está coerente com o termo original do grego: tu és o Cristo, então acho que assim devia ser mantida essa tradução. Embora se trate de conceitos sinônimos, penso que é mais correto conservar o original, por uma questão de fidelidade ao texto, já que não dificulta a compreensão.

Ao ouvir a confissão de Pedro, diz o evangelista Marcos que “Jesus proibiu-lhes severamente de falar a alguém a respeito.” Em seguida, passou a dizer-lhes que “devia sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e doutores da Lei; devia ser morto, e ressuscitar depois de três dias.” Pedro, que era sempre muito falastrão, se meteu de novo na conversa, chamou Jesus um pouco ao lado e foi pedir-lhe para não falar essas coisas, porque nada disso iria lhe acontecer. Parece que Pedro tinha receio que as pessoas, ouvindo aquilo, começassem a se desiludir de segui-lo, porque muitos dos que o ouviam tinham a esperança de que Jesus fosse liderar uma rebelião contra os romanos, para expulsá-los do território da Judeia. Inclusive dentro do grupo dos apóstolos, a missão de Cristo não era bem entendida, aliás foi percebendo isso mesmo que Jesus começou esse diálogo incômodo e desgastante, mas necessário. Imaginemos que, para Jesus, era também muito constrangedor ficar falando nessas coisas, porque ele sabia da extensão dos acontecimentos, sabia das agruras pelas quais ia passar e a sua natureza humana entrava em conflito com a sua vontade divina, não devia ser nada confortável para Jesus ficar tocando nesse assunto tão delicado. Daí porque ele não gostou nada quando Pedro foi insinuar que ele não devia falar aquilo. Ora, ele já falava com grande esforço e superando enormes dificuldades, e ainda tendo de escutar alguém tentando desvanecê-lo daquela ideia, aquilo passou dos limites. A reação de Jesus foi bastante ríspida, até mesmo com certa violência verbal: ýpage opíso mou, satana, diz o texto grego, que São Jerônimo traduziu por vade retro me, satanas. Essa expressão equivale a uma daquelas que nós dizemos quando estamos com raiva de alguém: vai pro raio que o parta... ou algo assemelhado. E Jesus ainda chamou Pedro de 'satanás', por isso convém explicar também isso. Essa palavra satanás, no nosso idioma, adquiriu o sentido de demônio, porém, o seu sentido original é bem mais brando. Na verdade, trata-se de uma palavra original do hebraico (satan), transliterada em grego, isto é, não é uma palavra da língua grega, e o seu significado próprio é adversário, inimigo, opositor. Então, é como se Jesus estivesse chamando Pedro de inimigo dele, porque estava dificultando o cumprimento da sua missão, não chamou de demônio. A irritação de Jesus também pode ser entendida se imaginarmos que ele sabia que um dos componentes do grupo estava ali com outros objetivos, então aquele puxão de orelhas que Pedro levou tinha também o objetivo de atingir, mesmo que indiretamente, Judas Iscariotes. Ademais disso, conforme já referi antes, essa atitude encolerizada de Jesus ressalta o seu lado humano, o lado emotivo, o sangue que esquenta diante de uma situação desagradável, enfim, a natureza humana de Jesus.

Podemos fazer aqui um link com a segunda leitura, do apóstolo Tiago (2, 14-18), onde ele fala que a fé autêntica não é válida sozinha, mas deve estar sempre acompanhada pelas obras: “a fé, se não se traduz em obras, por si só está morta.” Encontramos atitude similar nos ensinamentos e nos exemplos que Jesus deixou. Nas várias parábolas que utilizou, ele sempre ressaltou a importância da ação, como fato exterior que acompanha o ato interior do cumprimento dos mandamentos. É isso que confirma o apóstolo João na sua carta: Se alguém diz: Eu amo a Deus, e odeia a seu irmão, é mentiroso. Pois quem não ama a seu irmão, ao qual viu, não pode amar a Deus, a quem não viu.” (1Jo 4, 20) Em relação aos sofrimentos associados à sua missão redentora, ele poderia muito bem ter operado um grande milagre, não se submeter a tantos padecimentos. Se observarmos bem, esse era o tema das “tentações” que Jesus sofreu quando se preparava para começar a sua vida de pregador e foi fazer um retiro no deserto. “Pra que isso?”, dizia-lhe o tentador? Por que não chamas teus anjos para te levarem nos braços... por que não ordenas a essas pedras que se transformem em pão para saciar a tua fome... por que... era o conflito interno que se passava na mente dele. Era muito mais simples e rápido obrar um milagre, como um passe de mágica, e tudo estaria resolvido. Mas assim ele não estaria sendo fiel ao mandato do Pai. Aquilo tudo era doloroso ao extremo, mas precisava ser enfrentado. Por isso, aquela insinuação de Pedro ecoou tão forte e perfurou tão fundo, como um grande espinho de mandacaru. “Sai pra lá”, foi mais uma tentação que ele precisou superar, para o correto exercício da sua messianidade.

Meus amigos, às vezes, precisamos dizer também “vade retro” para diversas pessoas e situações, a fim de nos mantermos fiéis à nossa missão Que o divino Mestre nos ilumine nas nossas tarefas de cada dia, para sabermos sempre discernir e seguir fielmente a missão que Deus nos deu.

****

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 23º DOMINGO COMUM - 09.09.2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 23º DOMINGO COMUM – AOS DESANIMADOS – 09.09.2018

Caros Leitores,

Neste 23º domingo comum, a mensagem do profeta Isaías se dirige aos desanimados: criai ânimo, não tenhais medo. Esta exortação do Profeta aos judeus exilados, que aguardavam a sua libertação do cativeiro da Babilônia, bem se aplica aos nossos conturbados tempos. O panorama geopolítico, tanto no nível nacional quanto no internacional, causa-nos grande apreensão e medo. Quem será o portador da recompensa, que vem de Deus, prometida pelo Profeta? As ondas migratórias, na Europa e na América Latina, deixam-nos em dúvida quanto à eficiência dos modelos políticos e administrativos aplicados nos países subdesenvolvidos, desafiam a nossa crença na recuperação da humanidade. O período político eleitoral gera conturbação na mente dos cidadãos sem esperança e sem confiança nos candidatos que se apresentam. Nós nos encontramos hoje tao desanimados quanto os judeus na Babilônia.

O profeta Isaías, na primeira leitura (35, 4-7), procura animar os desiludidos judeus, vencidos pelo cansaço de um cativeiro que já demorava vários anos, e se entregavam às lamentações e aos impropérios contra Javeh, que os tinha abandonado: até quando teremos de suportar tal castigo? por onde anda o Messias prometido? E o Profeta os consolava: “Vede, é vosso Deus, é a vingança que vem, é a recompensa de Deus; é ele que vem para vos salvar”. De fato, pouco tempo depois, o messias político esperado para libertá-los chegou: foi o rei Ciro, da Pérsia, que derrotou o rei da Babilônia, Nabucodonosor, e libertou os judeus, que assim puderam retornar à sua terra. E diz mais o profeta Isaías:“Então se abrirão os olhos dos cegos e se descerrarão os ouvidos dos surdos …  brotarão águas no deserto e jorrarão torrentes no ermo.” Assim aconteceu, quando eles retornaram para a terra de Israel. Só que este messias-Ciro apenas de muito longe lembrava a figura do futuro Messias, que iria libertar não só o povo judeu, mas todo o gênero humano da escravidão do pecado e da morte. Por isso, naquela ocasião, dizia o Profeta: 'criai ânimo' porque logo logo virá a recompensa de Deus, que nos vem salvar. A Bíblia tem sempre um sentido histórico e outro transistórico, e assim, no primeiro momento, a profecia se referia ao messias-Ciro da Pérsia, mas no sentido do futuro, ao Messias-Cristo. Ciro não tinha o poder de devolver a visão aos cegos nem a deambulação aos coxos nem de soltar a língua dos mudos, mas o Profeta previu que isso aconteceria quando viesse o Messias verdadeiro. E sucedeu realmente como ele previra.

Na leitura do evangelho de Marcos (7, 31), temos a concretização da profecia de Isaías na ação histórica do verdadeiro Messias, através da narração do episódio da cura de uma pessoa surda e gaga. Ele colocou os dedos nos ouvidos moucos dele e com Sua saliva, molhou a língua trôpega do felizardo, e depois pronunciou a palavra forte “ephatá”, a qual o próprio evangelista explica que significa 'abre-te'. E logo aquele que era surdo e gago transformou-se num incontrolável falante-ouvinte. E quanto mais Cristo pedia para que ele se calasse, mais ele falava e proclamava as maravilhas realizadas nele. Esta palavra foi escrita por São Jerônimo, no texto latino, como 'ephphetha', enquanto no texto grego está escrito “effathá”, certamente por isso a tradução da CNBB utiliza o termo 'efatá' e eu estou usando com o símbolo antigo do F=PH, para distinguir com um sentido especial.

Meus amigos, este ephatá pode ser entendido de múltiplos modos. No sentido próprio utilizado por Jesus na ocasião do milagre, significou para o surdo-gago o abrir-se fisiológico dos seus ouvidos e da sua glote, para que ele pudesse articular sons e ouvi-los. Mas no sentido figurado, que se refere a nós, o ephatá se dirige à nossa mente, ao nosso coração, à nossa vontade, ao nosso intelecto. Cristo está nos dizendo 'abre-te' para que possamos compreender melhor a nossa missão e assim podermos melhor testemunhar a nossa fé. Esse seria o significado intelectual do ephatá. Saber interpretar com maior clareza a palavra de Cristo dentro dos desafios que a vida social nos coloca a cada dia, em meio a tantas e tão variadas dissensões, alternativas, exigências, falsas promessas e diversas quimeras que nos rodeiam. Abrir a nossa mente para compreendermos de que modo o nosso viver pode dar testemunho de que somos a Igreja de Cristo no meio do mundo, com a maior naturalidade e sem afetação. Nesse contexto, vale aqui uma referência ao grande problema mundial das migrações, causando pânico tanto na Europa quanto na América Latina. Pessoas que deixam tudo por motivos de guerra ou por motivos políticos e econômicos e partem em busca de novos horizontes. Uma parte deles tem sorte e consegue chegar ao seu destino; outros terminam suas vidas nessa rota de travessia, ao enfrentarem os mais variados desafios. O Papa Francisco, numa demonstração de profetismo contemporâneo e de inigualável solidariedade cristã, tem manifestado irrestrito apoio a esses irmãos sem rumo e tem incentivado as famílias e as autoridades para darem atenção aos que sofrem com esse infortúnio. No Brasil, especificamente, tem ocorrido a entrada de inúmeros cidadãos venezuelanos, nas últimas semanas, através dos Estados da região norte. O ephatá do evangelho de Marcos vem nos alertar para, ao menos no plano espiritual, abrirmos o nosso entendimento e o nosso coração em prol desses irmãos desafortunados.

Um outro sentido que podemos descobrir no comando ephatá, associado ao anterior, é o volitivo, quando a mensagem cristã nos convida a ser solidários com os que nos estão mais próximos. E aqui eu trago à colação a segunda leitura, retirada da carta de São Tiago (2, 1), que vai direto ao assunto, sem rodeios, dando um exemplo que até parece estar se referindo aos dias de hoje: “ imaginai que na vossa reunião entra uma pessoa com anel de ouro no dedo e bem vestida, e também um pobre, com sua roupa surrada, e vós dedicais atenção ao que está bem vestido, dizendo-lhe: 'Vem sentar-te aqui, à vontade', enquanto dizeis ao pobre: 'Fica aí, de pé', ou então: 'Senta-te aqui no chão, aos meus pés'.” Mais direto, impossível. Quantas vezes, isso pode ter acontecido conosco, por não estarmos com a mente aberta para perceber além das aparências, além das etiquetas sociais. Um pobre que bate à nossa porta pedindo um pouco de alimento tem a mesma dignidade como pessoa do q ue um profissional liberal que nós recebemos na nossa casa de portas abertas. Não estou dizendo que se deva deixar entrar em sua casa qualquer pessoa desconhecida, pois a cautela também faz parte da vida do cristão. Refiro-me à atitude de falta de respeito humano com que, muitas vezes, vemos as pessoas mais humildes serem tratadas por outros e até por nós mesmos. Infelizmente, há cristãos que se orgulham de ser católicos de carteirinha (até mesmo sacerdotes) e tratam mal as pessoas de vestes maltrapilhas ou surradas, usando a expressão do apóstolo Tiago. Daí a exortação dele: “a fé que tendes em nosso Senhor Jesus Cristo glorificado não deve admitir acepção de pessoas”, isto é, não deve permitir que sejamos injustos com pessoas menos favorecidas, exatamente aquelas mais precisadas.

Num terceiro sentido, que eu chamaria de afetivo, o conceito de ephatá nos leva a refletir sobre a nossa abertura interior para compreender a nossa missão, o que Deus quer de nós. Estar aberto à graça divina é condição indispensável para que esta graça opere em nós. Deus não nos obriga, não nos impõe, não vem a nós em qualquer condição, mas apenas quando encontra a porta da nossa alma aberta para recebê-lo. Os teólogos, desde S. Tomás de Aquino, sempre foram acordes em reconhecer que Deus dá a sua graça a todas as pessoas, no entanto, para que esta graça seja eficaz, é necessário que estejamos abertos, disponíveis, atentos, desejosos de recebê-la. Deus nos dá a graça da salvação, porém, sem a nossa colaboração, sem a nossa disponibilidade, sem que façamos a nossa parte, esta graça não operará seus efeitos em nós. Estar aberto à graça divina é condição indispensável para que ela penetre em nós e nos faça verdadeiros filhos d'Ele.

No sábado passado, dia 8 de setembro, a liturgia comemora a Natividade de Nossa Senhora e esse título está associado ao de Nossa Senhora do Brasil, festividade comemorada no Seminário Seráfico onde ela é padroeira. Era também a data onomástica do nosso querido confrade Mariano. Que a Nossa Mãe do Brasil fortaleça na fé todos os que por lá passaram e nos ajude a manter sempre a nossa mente e o nosso espírito disponíveis à graça divina, assim como Ela fez e que tornou possível a nossa redenção.

****

domingo, 2 de setembro de 2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 22º DOMINGO COMUM - 02.09.2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 22º DOMINGO COMUM – RELIGIÃO DE FACHADA – 02.09.2018

Caros Leitores,

Neste 22º domingo comum, o cântico da comunhão sintetiza a mensagem do evangelho: o mal que sai de nós e vem do coração impuros, sim, nos faz. A liturgia nos convida a refletir sobre a qualidade da nossa prática religiosa. Temos atitudes coerentes com o que afirmamos ou praticamos uma religião de fachada? A nossa fé está integrada na nossa vida ou praticamos a vida dupla: na igreja somos orantes, fora dela somos maledicentes? O espírito farisaico, criticado por Jesus naquele tempo, ronda sempre os templos e as vidas dos crentes, hoje como no passado.

A primeira leitura litúrgica é retirada do livro do Deuteronômio (4, 1). Só uma breve informação histórica sobre esse livro do Deuteronômio. Literalmente, significa “segunda lei”, mas não é outra lei diferente daquela de Moisés, apenas uma nova “versão”, a lei com outras palavras. Por isso, o nome hebraico deste livro é Devarim e significa “palavras”. O papiro com esse manuscrito foi encontrado casualmente por pedreiros que faziam uma reforma no altar do templo de Jerusalém. Era um rolo muito antigo, que estava enterrado sob a pedra do altar. Ao lê-lo, os escribas verificaram que se tratava de uma espécie de “repetição” ou adaptação dos discursos de Moisés, contendo muitas orientações práticas sobre a vida do povo, tendo sido escrito, provavelmente, quando os israelitas já estavam bem próximo de adentrarem a terra prometida, ou seja, no final da vida de Moisés. Assim se entende porque carrega esses dois nomes: deuteronômio (segunda lei, repetição da lei) e devarim (palavras, costumes da sociedade hebraica). Sempre devemos ter em mente que, naquela época em que não havia separação entre estado e religião e que as autoridades religiosas e estatais eram as mesmas, era perfeitamente comum que as normas sociais e estatais se confundem com preceitos religiosos. Isto era assim não apenas entre os hebreus, mas entre todas as sociedades primitivas. Quem tiver interesse em ler mais aprofundadamente sobre esse assunto, sugiro o livro “A Cidade Antiga”, da autoria de Fustel de Coulanges.

Pois bem, passando ao texto, Moisés fala ao povo sobre as leis e decretos dados por Javeh aos seus ancestrais, lembrando a eles a exigência da fidelidade a essas normas, como uma maneira de demonstrar sabedoria diante dos povos vizinhos, porque nenhum dos deuses dos outros povos tinha este mesmo cuidado com os seus devotos do que o Deus de Abraão. Diz o vers. 6: “Vós os guardareis, pois, e os poreis em prática, porque neles está vossa sabedoria e inteligência perante os povos, para que, ouvindo todas estas leis, digam: 'Na verdade, é sábia e inteligente esta grande nação! ” Os fariseus gostavam muito do Deuteronômio, porque havia nele uma grande diversidade de preceitos, dos quais eles faziam uma espécie de tabela e com elas ensinavam o povo. Além disso, servia também para fiscalizar se os demais hebreus os estavam observando.

Segundo os estudiosos, os fariseus fizeram um resumo de cerca de 600 preceitos, em geral, proibitivos, fazendo uma exposição didática dessas leis antigas. Eram esses preceitos que determinavam assuntos básicos de saúde pública, como, por exemplo, lavar as mãos antes das refeições, tomar banho quando chegavam da praça pública, jejuar nos dias estabelecidos, dar esmolas, etc. Para facilitar a memorização, havia uma espécie de tabela com especificações bem detalhadas. Pois bem, A questão que Jesus lançou contra eles, desafiando-os, era porque dentro do excessivo formalismo deles, quem cumprisse aquilo rigorosamente era um bom crente, quem não os cumpria estava desobedecendo a lei. Desse modo, se a norma mandava que, no dia de jejum, o máximo que alguém podia ingerir era, por exemplo, 300g de alimento, então era preciso pesar na balança as refeições para não passar dessa cota, sob pena de descumprir o preceito. Ou seja, a sua preocupação era exageradamente formal em relação aos detalhes exteriores, no entanto, intimamente eles podiam ser desonestos, maledicentes, exploradores, caluniadores, injustos, porque essas atitudes interiores não contavam, mas somente o que eles faziam externamente. Na verdade, a concepçao religiosa deles era uma religião de fachada, de exterioridades.

Esta leitura do Deuteronômio tem, pois, conexão direta com o evangelho de Marcos, que narra mais uma das altercações entre Jesus e os fariseus, estes sempre tentando apanhá-lo em algum deslize. Viram que os discípulos de Jesus não lavaram as mãos antes de iniciarem a refeição e então eles foram interpelar Jesus perguntando 'por que os discípulos dele não cumpriam a lei de Moisés' ? Jesus lançou-lhes em rosto o texto de Isaías: “Bem que Isaías falou a respeito de vocês: este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim. De nada adianta o culto que me prestam, pois as doutrinas que ensinam são preceitos humanos'. Vós abandonais o mandamento de Deus para seguir a tradição dos homens' ” (Mc 7, 6). Os fariseus argumentavam que aquela era uma tradição dos antigos, fazendo referência não exatamente à lei de Moisés, mas aos costumes dos ancestrais, por isso Jesus os censurou porque deixaram de lado a verdadeira Lei divina e ampararam-se nas tradições humanas. Daí que Jesus disse: vocês não entenderam nada, não é nada disso, porque se importam muito com o exterior, mas no seu íntimo os seus pensamentos não são coerentes com as suas atitudes. Trazendo para os dias atuais, meus amigos, essa atitude hipócrita dos fariseus ainda pode ser encontrada nos cristãos que se benzem quando passam diante do templo, mas viram o rosto para não oferecerem ajuda a um irmão necessitado, que está sentado na porta. De que adianta apresentar exteriormente um comportamento quando o interior é vazio? De que adianta andar com o terço na mão, o escapulário pendurado no pescoço, a Bíblia embaixo do braço e ter a mente ocupada com frivolidades, o coração cheio de más intenções? Daí o veredito de Cristo, invocando a lamentação de Isaías: esse povo me honra só com os lábios, mas o coração deles tem outro dono. E completou: o que torna impura a pessoa não é o que entra nela vindo de fora, mas o que sai dela vindo do seu interior. O alimento ingerido sem lavar as mãos pode até, eventualmente, causar algum dano à saúde, mas pior do que isso é a maldade que sai distilada em palavras e atitudes, que causam danos mais desastrosos à felicidade das outras pessoas. E isso é o que realmente importa.

Portanto, Cristo está nos ensinando que a verdadeira religião é a que se pratica ao nível do coração, do entendimento, da intencionalidade e que se expressa em atos de caridade. Ter um comportamento contrito e piedoso quando está dentro do templo não é suficiente, se ao sair de lá essa contrição e essa piedade não se revelarem no relacionamento com os irmãos. Não se quer dizer que a oração, a piedade não são boas coisas, de modo nenhum, são ótimas atitudes. O erro está no descompasso, na incoerência entre o interior e o exterior. O nosso agir deve ser uma expressão concreta do nosso pensar, bem como a recíproca atitude. Por diversas vezes, Jesus brandiu contra os fariseus por causa disso. Por exemplo: quando jejuardes, não precisa por cinzas na cabeça e andar com roupa esfarrapada para que os outros vejam, porque o Pai do céu sabe do que se passa no vosso coração; quando derdes esmolas, fazei-o de forma reservada e não alardeando publicamente, de modo que não saiba a tua mão direita o que faz a tua esquerda. A verdadeira religião, a verdadeira fé é a que começa no pensamento, no coração e se traduz em atitudes relacionadas.

E agora uma breve mensagem sobre a segunda leitura, retirada da carta de São Tiago (1, 17), que reforça essa mensagem com seu conselho aos judeus da diáspora: “sede praticantes da Palavra e não meros ouvintes, enganando-vos a vós mesmos. Com efeito, a religião pura e sem mancha diante de Deus Pai, é esta: assistir os órfãos e as viúvas em suas tribulações. ” Quem não pratica a religião que ensina aos outros está se enganando a si próprio, como se diz na linguagem de hoje, é uma 'empresa fantasma', tem só a aparência, armadilha com o intuito de ludibriar os incautos. A verdadeira religião é a que se revela nas obras de caridade, como fruto do amor ao próximo. A referência aos órfãos e viúvas reflete uma realidade daquele tempo e hoje deve ser entendida como “os irmãos necessitados”, começando com aqueles que estão mais próximos de nós. De forma direta ou indireta, através de entidades e associações que prestam esse tipo de serviço, a sociedade de hoje, talvez mais do que no tempo do apóstolo Tiago, necessita desse nosso exemplo de solidariedade. Foi com esse espírito também que o grupo do Ensese apoiou o compromisso de ajudar financeiramente o Colégio Seráfico, onde todos nós recebemos a nossa formação, sendo isso entendido como uma forma de sermos praticantes da palavra de Deus, e não apenas ouvintes.

****