domingo, 26 de abril de 2015

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 4º DOMINGO DA PÁSCOA - PASTORES PÓS-MODERNOS - 26.04.2015

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO DA PÁSCOA – PASTORES PÓS-MODERNOS – 26.04.2015

Caros Confrades,

Neste 4º domingo da Páscoa, a liturgia nos traz a conhecida imagem do Bom Pastor (Jo 10, 11). A figura romântica do pastor de outrora está muito distante do pastoreio dos dias atuais. Mesmo nos povoados mais distantes, no meio do sertão, já não se pastoreia mais como antigamente. Os nossos cuidadores de animais agora andam de motocicleta e os rebanhos são enxotados ao ronco dos motores, aquela figura tradicional do pastor, do vaqueiro, do boiadeiro já faz parte do folclore e certamente não haverá retrocesso nisso. Devemos, portanto, repensar nessa figura, que já foi tão simbólica no passado, mas que não faz mais qualquer sentido evocá-la no mundo moderno.

Na época de suas pregações, Jesus utilizava, na sua pedagogia catequética, as imagens conhecidas pelas pessoas da região, preferencialmente, a do pescador-peixe e do pastor-ovelha. Em diversas ocasiões, ele usou figuras e ações ligadas à profissão do pescador para associar com a missão do cristão; outras vezes, o tema foi a figura do pastor, como no caso da leitura deste domingo. A liturgia de hoje pede orações pelos nossos pastores, pelos vocacionados, religiosos e religiosas. Fico procurando na minha mente associar a imagem do pastor às autoridades eclesiásticas que temos e chego à conclusão de que muito poucas delas poderiam se enquadrar nesse estereótipo. Com raras exceções, não existem mais nos dias de hoje padres como o Cura d'Ars, como Frei Damião, Padre José de Anchieta, só para citar alguns mais conhecidos e que realmente faziam o autêntico pastoreio. Quero fazer aqui uma menção especial a Dom Aloísio Lorscheider, que representava, para mim, a figura típica do pastor dos tempos pós-modernos. O que vemos no comportamento de muitos ordenados dos dias atuais são simples profissionais, preocupados com um “salário” que a paróquia lhe possibilita, com um “emprego” paralelo em algum colégio ou faculdade, com um veículo para se locomoverem, com uma casa confortável de moradia, ou seja, um profissional liberal, como existem tantos outros na sociedade. O diferencial do pastoreio fica totalmente esquecido. Sinto-me triste em afirmar isso, mas lamentavelmente é assim a nossa realidade eclesiástica atual. Por isso, não farei comentários sobre essa figura romântica da catequese tradicional, atendo-me a outros temas postos nas leituras deste domingo.

Na primeira leitura, da carta de João (1Jo 3,2), o Apóstolo, com a sua linguagem carinhosa do pai idoso, diz que o grande presente que recebemos de Cristo foi o de sermos chamados filhos de Deus, “desde já somos filhos de Deus, mas nem sequer se manifestou o que seremos!”. Eu entendo que João quer afirmar que, por ora, mesmo sendo pecadores e frágeis, já temos esse dom de sermos chamados 'filhos de Deus', o que será realizado em plenitude quando Jesus se manifestar em nós, porque então seremos semelhantes a ele. Penso que aqui João está se referindo explicitamente à nossa ressurreição, quando morrermos em Cristo e formos com ele ressuscitados. É como se a situação atual fosse uma antecipação do que acontecerá no futuro, para que, através do nosso testemunho, outras pessoas possam também acreditar em Jesus, filho de Deus. Se o mundo não nos conhece, continua João, é porque não conheceu o Pai. Ora, somente através de Cristo, é possível chegar até o Pai. Nós, enquanto cristãos, temos essa missão de testemunhar Cristo perante o mundo, para que assim o mundo conheça o Pai.

Coerente com este mesmo tema é a primeira leitura, retirada do livro dos Atos dos Apóstolos (At 4,8), que relata um discurso de Pedro perante os membros do Sinédrio judaico, em mais um interrogatório pelo qual passavam, por estarem realizando milagres em nome de Jesus. Muito inspirado pelo Espírito Santo, Pedro diz que não existe, debaixo do céu, nenhum outro nome pelo qual possamos ser salvos. Essa afirmação de Pedro, que também está presente na carta de Paulo aos Filipenses (2, 10): ao nome de Jesus, todo joelho se dobre... e toda língua confesse que Jesus é o Senhor. Esse tema é muito preferido entre os pregadores não católicos, desde Lutero, quando a catequese tradicional afirmava que fora da Igreja não havia salvação. Eles dizem que o catolicismo distorce a palavra de Cristo, ao transferir para a Igreja uma prerrogativa que é do Senhor. Sob certo aspecto, não lhes tiro a razão, sobretudo no exagerado devocionismo que marca a religião tradicional. No entanto, a Igreja somente poderá ser local de salvação se estiver unida a Cristo, afinal Ele é a única porta, aliás a porta estreita (Mt 7, 13), porque larga e espaçosa é a porta que conduz à perdição.

No domingo passado, fiz referência aqui ao discurso de Gamaliel no Sinédrio, quando Pedro e João eram interrogados por estarem pregando o cristianismo. Nas leituras litúrgicas do meio da semana, foram lidos diversos trechos do livro dos Atos, sempre referindo-se a ações miraculosas feitas pelos apóstolos, logo após a ressurreição de Cristo. Foi o caso de um homem chamado Enéias, que era paralítico e estava acamado fazia 8 anos e Pedro o curou, da mesma forma como Jesus curara outro paralítico, e este também saiu andando e carregando a cama na qual jazia pouco tempo antes. Outro milagre de Pedro foi a ressurreição de uma mulher caridosa, chamada Tabita. A morte dela causou grande comoção na comunidade, porque ela fazia muito bem aos pobres, que lamentaram o fato. Pedro estava na cidade e foi avisado e, dirigindo-se até lá, orou pedindo a Jesus que a ressuscitasse, e isso aconteceu. E diz o texto: todos ficaram maravilhados e muitos habitantes creram em Jesus.

Foi por isso que Pedro, cheio de coragem, encarou os anciãos e os chefes do povo no tribunal e disse sem meias palavras: nós estamos sendo perseguidos porque fazemos o bem, pois saibam que fazemos isso em nome daquele Jesus que vós matastes... Imaginemos a cena: Pedro um pescador, uma pessoa rude e sem instrução, falando diante dos mestres e doutores da lei, os donos da sabedoria de Israel. Cumpriu-se aí literalmente aquilo que Jesus predissera, que eles não se preocupassem com o que iriam dizer, porque o Espírito falaria através deles. E o curioso é que Pedro utiliza uma imagem que Jesus havia ensinado aos apóstolos, sobre a pedra angular rejeitada pelos construtores.

Jesus era verdadeiramente um grande pedagogo. O conceito da pedra angular não era propriamente da cultura judaica, mas da engenharia romana, que naquela época era dominante no território da Palestina. Todos conhecem as famosas arcadas de Roma, fruto da engenhosa arte dos construtores romanos que, antes da existência do concreto armado com ferro, conseguiam fazer vãos enormes que se auto sustentavam, pela colocação de uma pedra em formato triangular bem no centro do arco, equilibrando o peso dos semiarcos laterais. Em qualquer foto das construções da Roma antiga é possível ver a sua presença, e a sua importância decorre do fato de que, se ela fosse retirada, toda a construção iria abaixo. Jesus traz para a sua pedagogia uma imagem importada, que não era nativa da cultura judaica, mas que já se tornara bastante conhecida, por causa da prolongada presença dos romanos na região. E Pedro repete este conceito perante os mestres da lei e chefes do povo, reforçando o seu discurso. É pelo nome de Jesus de Nazaré que este homem está curado diante de vós, conclui Pedro.

Assim como a figura do Bom Pastor ficou esmaecida nos dias atuais e precisa ser repensada, do mesmo modo, o modelo tradicional devocionista da religião não pode mais ser utilizado na formação da nossa juventude. Deixemos isso com os idosos que aprenderam assim, pois eles não irão mais mudar o modo de pensar, mas à juventude deve ser ensinada a religião cristocêntrica. “Em nenhum outro nome há salvação”, continua repetindo Pedro nos nossos dias. Se nos espelharmos nEle, iremos refletir essa imagem para os que nos conhecem. Nesse processo, Cristo se manifestará em nós, como disse João, e seremos semelhantes a ele. Sem desmerecer a virtude e o exemplo dos santos cristãos que se destacaram na autenticidade da fé e na vivência da caridade, a pessoa de Jesus Cristo deve ser o centro da nossa atenção primordial.

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domingo, 19 de abril de 2015

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 3º DOMINGO DA PÁSCOA - 19.04.2015

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 3º DOMINGO DA PÁSCOA – SE ALGUÉM PECAR – 19.04.2015

Caros Leitorees,

A liturgia deste terceiro domingo da Páscoa traz dois textos escritos por Lucas e um escrito por João. Nas três leituras de hoje, encontramos alguma referência ao tema “pecado”, especialmente na carta de João (2, 1-5), em que ele diz: se alguém pecar, temos diante do Pai um Defensor. E no evangelho, Lucas relata a primeira aparição de Cristo aos apóstolos, após a ressurreição, deixando-os assustados e medrosos, pensando estarem vendo um fantasma. No final, coloca também a referência à ressurreição de Cristo que perdoa os pecados de todo o mundo. Pareceu-me oportuna uma reflexão sobre o conceito do pecado.

Na primeira leitura, dos Atos dos Apóstolos (3, 13-19), o autor narra um discurso de Pedro dirigido ao povo, certamente aos judeus, dado o contexto da fala, porque se refere a eles dizendo diretamente: vós o entregastes a Pilatos, vós matastes o autor da vida... porém, se vos arrependerdes, os vossos pecados serão perdoados. Eu percebi no teor dessa leitura o ranço que, durante séculos, a liturgia conservou em relação aos judeus (pérfidos judeus, assim dizia a oração oficial da sexta feira santa), situação que só começou a se abrandar após o Concílio Vaticano II, com Paulo VI. Porém, nesse discurso de Pedro, ele mesmo diz que “agistes por ignorância”, mas desse modo, se cumpriu o que todos os profetas haviam anunciado. É curiosa essa contradição, a mesma que durante séculos também perseguiu Judas. Se a ação deles foi necessária para que se cumprissem as escrituras, então por que essa discriminação, esse repúdio? Talvez porque eles não manifestaram arrependimento público, assim como fez Myrian de Magdala (a Madalena), mas lembremo-nos de que Pedro dirige esse discurso aos judeus que o ouviam de bom grado, com certeza, em vias de conversão ao cristianismo. Realmente, essa conduta tradicional do cristianismo com relação aos judeus configura um pecado histórico, da mesma forma como foram discriminadas todas as demais religiões não católicas. Felizmente, estamos testemunhando um processo de restauração da verdade dos fatos, um esforço dos nossos Papas dos últimos 50 anos, no sentido de reaproximar os diversos credos, cujas divergências já provocaram tantas violências ao longo da história.

Eu achei interessante abordar esse tema do pecado, porque na catequese tradicional, havia uma “lista” de pecados com as devidas especificações: tal era um pecado leve, venial, outro tal era um pecado grave, mortal, que podia levar a pessoa ao inferno, ou seja, criou-se uma tabela moralista na qual se enquadravam as condutas exteriores das pessoas, deixando de lado o que verdadeiramente interessa, que é o interior de cada um. A religião de exterioridades ainda está implantada na cabeça de muitos católicos, desde bispos e padres até os fiéis leigos. Deixar de ir à missa no domingo é pecado grave; deixar de fazer a comunhão na Páscoa é pecado grave; caluniar alguém é pecado venial; mentir é pecado venial... ora, meus amigos, vamos esquecer isso. Pecado é o que nos afasta do amor de Deus, pecado é faltar com a caridade. Até algum tempo atrás, era proibido aos católicos trabalharem aos domingos, porque esse é o dia do preceito. Nos dias atuais, em que muitas atividades profissionais envolvem o trabalho dominical, o católico consciente fica em dificuldade para conciliar sua fé com a sua profissão. Além disso, observem a expressão “dia de preceito”, isso indica uma coisa que se deve fazer por obrigação. Imaginem só, ir à missa porque é obrigação não adianta de nada, não é isso que Deus quer. Fazer abstinência de carne na sexta feira santa porque é obrigação não adianta de nada, não é isso que faz de você um crente, um fiel a Cristo. Tudo aquilo que é realizado simplesmente porque é obrigação não tem valor. O agente deve agir porque considera que aquela ação é boa, é útil, é louvável, é para a glória de Deus, é para o seu bem espiritual e para o bem de toda a comunidade. Deixar de ajudar ao irmão necessitado, quando se tem a possibilidade de fazê-lo, mas não se faz por omissão ou por preguiça ou por desprezo é muito mais grave do que deixar de ir à missa dominical. E como tem gente que pensa que, ao ir à missa, está garantindo a sua salvação eterna. Vejam bem, não estou afirmando que ir à missa não é importante, estou comparando os dois comportamentos. Ir à missa e não praticar a caridade com os irmãos é uma atividade vazia de sentido e de resultados.

Na segunda leitura, o apóstolo João, com a sua linguagem carinhosa de um pai idoso, admoesta: meus filhinhos, eu digo isso para que não pequeis; mas se alguém pecar, fique calmo, você não está perdido, nós temos um defensor junto do Pai, Jesus Cristo, o Justo. E depois, dá uma alfinetada forte: se alguém diz que conhece a Deus, mas não guarda seus mandamentos, esse é um mentiroso. É mais ou menos o que eu escrevi acima, com outras palavras. E que mandamentos são esses? São aqueles que todos nós já sabemos de cor: amar a Deus e amar ao próximo, nesses dois, estão resumidos toda a lei e os profetas. Então, não basta dizer: Senhor, Senhor... todo mundo se lembra disso. Não adianta se confessar toda semana, comungar todos os dias, rezar três terços por dia, etc, se não praticar a caridade. Paulo disse isso naquele conhecido texto aos Coríntios (1Cor, 13): praticar a religião sem amor é igual a um sino que tine, só faz barulho, não tem nada no seu interior. Com outras palavras, diz João: conhecer a Deus sem cumprir os mandamentos é uma mentira. Não podemos ter assim um comportamento religioso de mentira, de fachada, de barulho. Então, é importante o ensinamento de João, porque ele sabe que todos nós somos imperfeitos, sujeitos a falhas na nossa conduta. Por isso, ele diz: eu digo isso para que não pequeis; mas, se alguém pecar, tem um jeito: Jesus é o nosso defensor, é a nossa fé nEle que possibilita a nossa remissão. Naquele que guarda a sua palavra, o amor de Deus se realiza plenamente.

Na leitura do evangelho de Lucas (24, 35-48), temos a sequência do episódio conhecido, ocorrido no próprio domingo da ressurreição, quando Jesus ressuscitado dialogou com os discípulos que iam para Emaús e os fez voltarem a Jerusalém. Ainda estavam contando o fato para os outros, quando Jesus apareceu no meio deles. Aqui estou eu, ressuscitei conforme prometi. E então, foi relembrar aos apóstolos o que havia lhes ensinado. Se não fosse essa 'segunda chamada' da pedagogia de Jesus, os ensinamentos de antes teriam ficado esquecidos, pois os apóstolos eram homens rudes, não acostumados a leituras e estudos. E no final da lição, profetizou: no meu nome, serão anunciados a conversão e o perdão dos pecados a todas as nações, começando por Jerusalém e vós sereis testemunhas de tudo isso. Jesus passou quarenta dias fazendo a reciclagem, dando aulões de reforço àqueles ex-pescadores, demonstrações fantásticas de seu poder, para que assim eles se firmassem na fé. Nenhum dos evangelistas relata que Jesus tenha perguntado a Pedro porque o negara diante dos palacianos, pois Jesus sabia que o conhecimento deles ainda era muito superficial, era necessário um aprofundamento, uma revisão geral. Quando, por fim, receberam o Espírito, então estavam preparados pro que desse e viesse, foi o que aconteceu. Então, se explica aquele discurso de Pedro aos judeus, relatado por Lucas na primeira leitura deste domingo.

Nas leituras da liturgia diária da semana, são lidos vários trechos dos Atos dos Apóstolos, relatando as primeiras pregações dos apóstolos, as prisões que eles sofreram, as chicotadas e a perseguição dos fariseus e saduceus, proibindo-os de falar em nome de Jesus. Quanto mais eles eram proibidos de falar, mais falavam. Dentre essas, uma que merece destaque é a leitura de Atos (5, 34), onde temos o ponderado discurso de Gamaliel, que era mestre da lei e membro do Sinédrio, dizendo: 'deixai esses homens irem embora, porque se o projeto deles for obra humana, daqui a pouco se acaba, mas se for obra divina, vós não conseguireis detê-los.' E o seu conselho foi seguido pelo Sinédrio. Através desse conselho de 'deixar os apóstolos irem embora', Gamaliel estava, com sábia argumentação lógica e jurídica, ao mesmo tempo, querendo livrar os apóstolos daquela incômoda situação e ainda insinuando que a obra deles era de origem divina e que as perseguições não iriam detê-los. Como de fato, a história comprovou que a profecia de Cristo sobre o anúncio do Seu nome para o perdão dos pecados de todas as nações foi testemunhado tanto pelos apóstolos, como é ainda testemunhado por nós nos nossos dias. Porém, para sermos autênticos discípulos de Cristo e testemunhas da sua palavra, será necessário desmistificar o conceito burocrático de pecado, que a pedagogia catequética nos ensinou, para assumirmos aquele compromisso definido por João: conhecer a Deus é guardar os mandamentos.

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domingo, 12 de abril de 2015

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 2º DOMINGO DA PÁSCOA - CRER SEM TER VISTO - 12-04-2015

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 2º DOMINGO DA PÁSCOA – CRER SEM TER VISTO – 12.04.2015

Caros leitores,

Neste segundo domingo da Páscoa, a liturgia nos oferece apenas leituras do Novo Testamento – Atos dos Apóstolos e escritos de João (epístola e evangelho). A leitura dos Atos sinaliza o tempo inicial das comunidades cristãs, enquanto os escritos de João representam o pensamento teológico mais evoluído dos tempos posteriores. Observemos que o evangelho e as cartas de João são, no aspecto cronológico, os últimos escritos do NT, pois foram elaborados por volta do ano 100 d. C., muito após João ter saído do seu exílio na ilha de Patmos, onde escreveu o Apocalipse. Na tradição medieval, este domingo era conhecido como Pascoela, que era a oitava da Páscoa. As festas mais importantes, naquela época, duravam oito dias.

Na leitura dos Atos dos Apóstolos (4, 32-35), o cronista relata a vida das primeiras comunidades cristãs, onde os convertidos colocavam todos os seus bens à disposição dos Apóstolos, para divisão entre os irmãos mais necessitados, de modo que ninguém se sentia dono de alguma coisa, mas tudo era literalmente de todos. Esse sentimento de comunidade autêntica, historicamente, só se verificou nesses primeiros tempos, os chamados tempos apostólicos, pois logo que o cristianismo foi-se divulgando entre os povos das culturas diversas, e sobretudo após a morte dos Apóstolos, novas práticas foram-se infiltrando nas comunidades. Tal sentimento de pertença foi revivido nas nossas congregações religiosas, também nos tempos românticos até os anos de 1970. Depois que se iniciou o processo de globalização e com a abertura pós-conciliar, nem mesmo nas comunidades religiosas houve mais espaço para esse tipo de conduta solidária. Pensando em termos da mentalidade contemporânea, apresenta-se como uma vivência utópica e inexequível, no entanto foi esse o modelo proposto, por exemplo, por São Francisco, quando disse que os frades não deveriam receber pecúnia, mas apenas o necessário para o seu sustento. Bem diferente é a situação nos dias atuais.

Passando agora para a Carta de João, selecionada pela liturgia deste domingo (5, 1-6) temos duas lições a destacar: a primeira está no vers. 3: “pois isso é amar a Deus: observar os seus mandamentos, e os mandamentos de Deus não são pesados.” Ou seja, trata-se do mandamento do amor, aquele que Cristo resumiu no lavapés, quando disse: eu vos dou um novo mandamento – que vos ameis uns aos outros, este é o sinal pelo qual os cristãos devem ser reconhecidos. Por isso, João diz que os mandamentos não são pesados, porque não existe algo mais digno e prazeroso do que amar. E quem ama aquele que gerou amará também o que d'Ele nasceu. Portanto, ficam em segundo plano aqueles mandamentos da lei de Moisés, da antiga aliança. Agora, com o novo mandamento, os antigos 10 são resumidos em apenas 2: amar a Deus e ao próximo.

A outra lição está no vers. 6: “Este é o que veio pela água e pelo sangue: Jesus Cristo. Nâo veio somente com água, mas com a água e o sangue.” João refere-se claramente ao batismo e ao calvário, isto é, o batismo apenas não salva, não basta ser batizado, mas é preciso participar também da morte e ressurreição de Cristo, no sacrifício eucarístico. Para sermos merecedores da salvação, que conquistamos com o batismo, devemos participar com Ele da sua cruz através da memória da redenção, que se renova a cada dia na celebração eucarística. João reforça o trabalho de Paulo, com o objetivo de evitar certas deturpações da doutrina cristã por parte dos judeus convertidos, no tempo das primeiras comunidades cristãs, colocando em choque os ditames do antigo testamento com o novo testamento. O batismo representa o final da antiga aliança e a morte- ressurreição de Cristo representam o início da nova aliança.

Noutro trecho do evangelho de hoje (Jo 20, 19-31), está relatado o episódio da incredulidade de Tomé, que se transformou em conhecida história popular – o teste de São Tomé. No vers 22, João diz que Jesus “soprou sobre eles e disse: recebei o Espírito Santo...” Vemos aqui o Pentecostes descrito por João, bem diferente das narrações dos outros evangelistas, que falam em vendaval e línguas de fogo, conferindo uma dimensão bem mais dramática ao episódio. Na narração joanina, ao contrário, foi muito tranquilo. Cristo soprou e conferiu o Espírito aos apóstolos nesta sua primeira 'visita', ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana. Sem desmerecer as outras narrativas, mas devemos nos lembrar que João estava lá, enquanto os outros evangelistas não estavam. Além disso, João escreveu o seu texto depois dos outros três narradores, o que nos possibilita deduzir que João conhecia o que os outros haviam escrito, no entanto, ele fez uma descrição diferente daquele importante evento. Na verdade, João está querendo destacar fatos importantes que ocorreram “no primeiro dia da semana”, enfatizando um costume que já se iniciara de mudar o dia do Senhor para este dia, e não ser mais para o sábado, como era na tradição judaica.

Outro detalhe interessante: Tomé não se encontrava com os doze e disse que só acreditaria vendo. Oito dias depois, isto é, no domingo seguinte, outra ênfase para o domingo, Jesus apareceu-lhes novamente e mostrou as cicatrizes para o incrédulo Tomé. João destaca bem esse episódio, talvez com o intuito de catequizar as novas comunidades acerca da fé em Cristo sem tê-Lo visto, pois na época em que João escreveu, já fazia bastante tempo da morte de Cristo. Então, o exemplo de Tomé fazia uma pedagogia de reforço, para animar os novos cristãos, que não chegaram a conhecer pessoalmente a Cristo, quando Este disse que: “bem aventurados os que creram sem ter visto.” E como João sabia que este escrito ia ser distribuído para muitas comunidades na Ásia Menor, ele complementa dizendo que Jesus havia realizado muitas outras maravilhas, que não foram escritas naquele livro, as que estão escritas são apenas uma amostra de tudo o que Ele havia feito.

Ainda nesse evangelho de João do domingo de hoje temos um trecho que suscita grande polêmica, que está no vers. 23: “a quem perdoardes os pecados, eles lhes serão perdoados; a quem os retiverdes, serão retidos”. A teologia considera este versículo como o fundamento teológico do sacramento da penitência. Muitas vezes, se ouve as pessoas dizendo 'sacramento da confissão', mas não é bem assim, é o sacramento da penitência e da reconciliação, decorrente do arrependimento. Conforme se verifica no texto joanino, Cristo fala em perdoar os pecados (subentende-se dos arrependidos) e reter, isto é, não perdoar, dos que não se arrependem. Cristo não disse que o pecador devia ir até os apóstolos e 'narrar seus pecados' (confessar) para poder ser perdoado, a ordem de Cristo se concentra no perdão ligado ao arrependimento. Por que, então, a Igreja Católica coloca como obrigatória a 'confissão' dos pecados? Essa prática não existia nas primeiras comunidades, mas foi um costume introduzido pelos monges, na Idade Média, e que acabou tornando-se regra obrigatória para os católicos.

Nos primeiros anos após o Concílio Vaticano II, foi autorizada uma experiência litúrgica chamada de 'confissão comunitária', que foi uma sugestão de alguns grupos de teólogos conciliares para o retorno da prática original da penitência, como era nos primeiros tempos da era cristã. Todavia, as forças conservadoras da teologia, das quais o Papa Bento XVI foi um notável representante, após algum tempo retiraram essa prática como não recomendada, podendo ser realizada apenas em ocasiões especialíssimas e em caráter excepcional. No entanto, sabe-se que aquele ritual no início da missa, com o ato penitencial, tinha exatamente essa finalidade de possibilitar o arrependimento dos fiéis, que então recebiam a benção do perdão. Esse ponto, o Concílio Vaticano II não teve força suficiente para reformar.

Caros amigos, nós somos herdeiros daquelas comunidades que não conheceram pessoalmente a Cristo, no entanto, creram nEle. Nós somos os bem aventurados, conforme Cristo proclamou, mais do que Tomé e dos outros Apóstolos, que precisaram ver para crer. A nossa fé se fundamenta na leitura e no testemunho, por isso, para os outros irmãos, nós devemos dar esse testemunho de uma fé amadurecida e atuante.

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