segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 3º DOMINGO COMUM - O TEMPO OPORTUNO - 21.01.2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO 3º DOMINGO COMUM – O TEMPO OPORTUNO – 21.01.2018

Caros Leitores,

Na liturgia deste 3º domingo comum, as leituras se concentram no tema do tempo. O tempo está chegando, diz o profeta Jonas. O tempo está abreviado, diz Paulo aos Coríntios. O tempo já se completou, diz Jesus aos galileus. Também para nós o tempo é constantemente objeto de preocupação. E por mais que nos pareça algo muito concreto, na verdade, o conceito de tempo é abstrato. Falamos sempre do tempo como se fosse algo corpóreo, contudo, o tempo é apenas uma produção da nossa atividade psicológica, ou seja, é uma forma de conceituarmos essa sensação que captamos diante da evolução dos fatos numa corrente sucessiva. Para melhor controle, as pessoas aprenderam a contar o tempo, a quantificá-lo ou a dividi-lo em fatias (como diz o soneto de Drummond). Na língua portuguesa, o vocábulo “tempo” é polissêmico, por isso o utilizamos nas mais diversas situações, mas sabemos distinguir mentalmente o seu significado. A título de exemplo, no idioma grego, há duas palavras diferentes para falar do tempo: uma sobre os dias-meses-anos (chrónos) e outra sobre o tempo simbólico (kairós), entendido aqui o tempo simbólico como a oportunidade, o momento, a hora certa de fazer algo, ou como dizem os teólogos, o tempo favorável. É neste último sentido que compreendo a alusão ao tempo na liturgia de hoje: o tempo favorável para a ação de Deus na história. Esse tempo não vem com hora marcada, nós é que temos de encontrá-lo ou, se for o caso, construi-lo.

Na primeira leitura, o texto traz a lembrança da missão do profeta Jonas, em Nínive (Jn 3, 1-5). Deus mandara que ele pregasse ao povo de Nínive assim: Se não mudardes o vosso modo de vida, dentro de 40 dias, a esta cidade será destruída. O povo se converteu e Deus suspendeu o castigo que iria mandar. Nínive era a capital da Assíria, uma megalópole daquele tempo, talvez maior do que é Fortaleza nos dias de hoje, porque o texto afirma que eram necessários três dias para atravessar a cidade. Era um local de muitas perversidades, como em toda grande cidade. O profeta Naum chamara Nínive de cidade sanguinária, cheia de mentiras e de roubo (Na 3,1), por isso Javeh iria transformá-la num deserto. Mas com a pregação do profeta Jonas, o rei e os cidadãos se converteram e fizeram penitência, assim o castigo foi evitado. Evidentemente, essa tarefa de Jonas não deve ter sido assim tão simples e de resultado imediato, conforme a descrição do texto, mas o que a liturgia quer destacar aqui é o tempo favorável, que os ninivitas reconheceram e souberam aproveitá-lo. A população da cidade dirigiu seus ouvidos à pregação do profeta e deu-lhe crédito. Devemos também considerar que havia ali um momento favorável, no sentido de que muitos dos habitantes da cidade ainda se recordavam da derrota do rei de Judá, Ezequias, para o rei de Nínive, Senaqueribe, e da humilhação sofrida pelo povo, por isso tiveram maior sensibilidade para ouvir o profeta.

Na segunda leitura, Paulo exorta os fiéis de Corinto para viverem o seu tempo favorável, cada um de acordo com o seu estado. (1Cor 7, 29-31) Contextualizando a leitura, nos versículos anteriores, Paulo fala sobre a vida dos casados, dos solteiros, das viúvas, dos escravos, dando conselhos a cada grupo para viverem na graça de Deus. A igreja de Corinto foi uma comunidade fundada por Paulo e os coríntios entenderam a sua pregação como se a volta de Cristo fosse acontecer logo naqueles dias. Alguns até não queriam mais nem trabalhar, deixaram tudo de lado só esperando a nova vinda de Cristo. Então, Paulo os adverte a viverem suas vidas, na perspectiva da eternidade. Cada um fique no estado em que foi chamado. Quem quiser ser como ele Paulo, que era celibatário, ele acha melhor, mas quem não conseguir viver assim, que procure um cônjuge, porque é melhor casar-se do que abrasar-se (7, 9). Sinceramente, eu não entendo por que a Igreja Católica não segue o conselho de Paulo e continua a exigir dos sacerdotes o celibato obrigatório. Além disso, a tradução oficial da CNBB não reproduz bem o sentido do texto paulino. Diz 'o tempo está abreviado', mas no texto latino, Paulo diz: 'tempus breve est', expressão que, ao meu ver, não tem o mesmo sentido. A tradução melhor seria “o tempo é breve”, isto é, passa muito rápido. Tempo abreviado dá um sentido de encurtado, diminuído e não me parece que seja este o sentido expresso no texto paulino. O tempo breve nos conduz à consciência de que é preciso viver com os pés no hoje, mas com os olhos no futuro, porque nós não somos desde mundo e a nossa estadia aqui é passageira.

Na leitura do evangelho de Marcos (1, 14-20), temos a narrativa do chamado dos primeiros apóstolos: Pedro, André, João e Tiago. De acordo com este evangelista, Jesus teria chamado os quatro na mesma ocasião, mas se observamos o evangelho de João, lido no domingo passado, acerca do chamado de Pedro, veremos que não foi bem assim. No texto de Marcos, Jesus estava passeando pela beira do mar da Galiléia e viu Simão e André, seu irmão, e os chamou. No texto de João (1, 42), ele diz que André era discípulo de João Batista e viu quando este falou sobre Cristo: eis o Cordeiro de Deus, então passou a segui-lo e depois apresentou a Ele seu irmão Simão. Não devemos, porém, concluir com isso que o texto de Marcos seja impreciso ou incorreto. Como sabemos, no tempo de Cristo não havia jornalistas documentando fatos nem havia escribas acompanhando seus passos e registrando suas atividades. Ora, o evangelho de Marcos, cronologicamente o primeiro a ser escrito, deve ter sido redigido pelo menos uns 40 anos antes do evangelho de João. Além disso, Marcos não foi testemunha ocular, mas utilizou-se da tradição oral e de textos esparsos que circulavam nas comunidades da região onde ele vivia, os quais por sua vez foram escritos a partir de tradições orais, histórias que passavam de boca em boca entre os primeiros cristãos. Por outro lado, João foi testemunha viva daqueles fatos e escreveu a sua própria experiência, não por ouvir dizer. Marcos e João escreveram em locais distantes entre si e servindo-se de fontes diferentes, de modo que o texto de João, até por ter sido escrito bastante tempo depois, é mais elaborado, mais pesquisado, mais coerente. Apesar das divergências, o que verdadeiramente importa não é se foi na beira do mar, como disse Marcos, ou num lugar qualquer da Galiléia, como disse João, mas o que interessa é que eles atenderam ao chamado, eles aceitaram a proposta de Cristo para mudarem de vida e em vez de ser pescadores de peixes, passaram a ser pescadores de gente. Cada um deles teve o seu tempo favorável de ouvir o chamado e aceitar a missão que lhes foi confiada.

O evangelho de Marcos lido neste domingo também faz referência ao início das atividades públicas de Jesus, o que ocorreu após a prisão de João Batista. Alguns domingos atrás, quando comemorou-se o batismo de Jesus, João Batista dizia ao povo que, após ele, viria alguém de quem ele não seria digno de desamarrar as sandálias. Então, a prisão de João Batista foi o tempo favorável para o início da missão profética que Jesus veio realizar. Jesus não iria fazer concorrência com João Batista, até porque este foi o agenciador da chegada d'Aquele, por isso não seria oportuno que ambos atuassem simultaneamente. Essa oportunidade chegou quando João Batista saiu de cena, abrindo-se o espaço para o anúncio da “boa nova”. E um detalhe significativo é que Jesus começou suas pregações na Galiléia, não foi em Jerusalém, a grande cidade da época. Por que na Galiléia? Porque aquela região era habitada por pessoas de diversas origens étnicas e de diversas nacionalidades. Isso teria ocorrido porque a população primitiva daquela região teria sido levada, em sua maior parte, cativa para a Babilônia e a terra ficou desabitada, passando a ser ocupada por pessoas nômades de outras tribos, durante o tempo em que os hebreus permaneceram no cativeiro. Com o retorno do povo hebreu libertado, os novos habitantes se relacionaram bem com aqueles e por esse motivo o local era um misto populacional de diversas origens, razão porque era chamada de Galiléia das Nações. Então, Jesus escolheu iniciar a pregação do reino de Deus exatamente num local em que a população, além de ser pobre, não era constituída exclusivamente de hebreus, demonstrando logo no início o destino universal dos seus ensinamentos. É essa igreja dos pobres que o Concílio Vaticano II destacou em seus documentos, diferentemente daquela igreja elitizada, como ela passou a ser a partir do seu envolvimento com os imperadores romanos e com os senhores feudais da Idade Média. Esse é o sentido da “opção preferencial pelos pobres”, que tanto o Concílio quanto os documentos oficiais posteriores pretendem resgatar, o que deu origem à doutrina muitas vezes mal entendida e não poucas vezes deturpada chamada “teologia da libertação”.

Esta mensagem acerca do tempo favorável, do momento e da oportunidade nos convida a estar sempre atentos aos “sinais dos tempos”, sempre reavaliando nosso modo de ser, pois Deus está se manifestando a nós de diversos modos nos acontecimentos e às vezes nós não percebemos e deixamos passar aquela oportunidade de praticar o bem.

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domingo, 14 de janeiro de 2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 2º DOMINGO COMUM - A VOCAÇÃO - 14.01.2018


COMENTARIO LITURGICO – 2º DOMINGO COMUM – A VOCAÇÃO – 14.01.2018



Caros Leitores,

Passado o tempo do natal, a liturgia retoma o tempo comum e neste 2º domingo comum deste ano dedicado ao laicato, o tema litúrgico é o chamado ou a vocação de cada um. Vocação está associada à nossa missão, ao nosso objetivo de vida. Cada pessoa possui certas habilidades e tendências inatas, próprias do seu caráter e da sua personalidade, de modo que realizar a própria vocação corresponderá a descobrir esses talentos que Deus nos dá em maior abundância e fazer uso deles para o maior bem de nós mesmos, dos irmãos, da sociedade, do reino de Deus, para cujo desenvolvimento nós somos convocados a colaborar. A vocação requer escuta e compromisso. Escuta para que cada pessoa possa identificar o que Deus espera dela. Compromisso para que cada um assuma a sua missão com honestidade e com vontade, na certeza de que a graça divina não deixará de lhe favorecer.


Na primeira leitura, retirada do livro de Samuel (3, 10-19), lemos a vocação deste sacerdote e profeta, quando recebeu o primeiro chamado de Javeh. Ele era ainda um jovem e neófito, nunca havia tido contato com o Senhor e por isso não identificou, de início, quem o estava chamando e apresentou-se ao sacerdote Eli, na suposição de seria ele o autor do chamado. Somente depois de ouvir algumas vezes a voz de Deus, instruído por Eli, Samuel conseguiu identificar a origem do chamamento. Isso também pode acontecer conosco, embora, muitas vezes, já não sejamos jovens de idade como o Samuel da leitura, mas nem sempre conseguimos ouvir ou identificar o chamado que nos chega da parte de Deus. Este chamado em geral não é assim tão claro e insistente, como sugere a leitura litúrgica, às vezes, ele é sutil e delicado, como é o caso de quando vem através da voz do irmão necessitado, do próximo que pede a nossa ajuda, por exemplo. Tempos atrás, nós fomos conduzidos até o Seminário, por termos ouvido um “chamado divino” através dos nossos pais, parentes, sacerdotes ou através de situações marcantes, que nos impulsionaram até lá. O fato de termos saído do seminário não significa que nós renunciamos a seguir o chamado, mas apenas que Deus nos mostrou outras alternativas e nos deu outras oportunidades para servi-Lo, que não através da vida religiosa consagrada. Cada um prossegue no atendimento ao chamado, contribuindo para a maior glória de Deus nas tarefas do dia a dia como cidadãos, dando aos irmãos exemplos de vida pessoal e profissional, na fidelidade do seguimento do evangelho de Cristo.


É interessante observarmos que Javeh chamou Samuel enquanto ele dormia. No antigo testamento, não havia ainda a figura do “profeta”, ou melhor dizendo, essa palavra não existia nem o sentido que ela expressa. “Profeta” é uma palavra grega e a sua correspondente em hebraico, a língua original do antigo testamento, é “navi” e era comum essas pessoas receberem as mensagens divinas através de sonhos. Há vários exemplos na escritura sagrada sobre os sonhos dos “navis”, eram uma espécie de revelação que eles recebiam, assim como aconteceu com Samuel. A palavra “profeta” surgiu na tradução da escritura para a língua grega, quando “navi” foi traduzido por “prophaités”, palavra esta derivada do verbo grego “phainow” (falar), então o profeta é aquele que fala em nome de alguém. No antigo testamento, o “navi” trazia um recado de Javeh, o qual ele havia recebido geralmente através de um sonho, daí porque foi traduzida por “pro-phaités”. Visto que, no mais das vezes, os fatos abordados se referiam a eventos futuros, gerou-se uma tradição de que profeta é aquele que é capaz de prever acontecimentos, como se fosse um adivinho, sendo esse o significado semântico mais usual. Na verdade, “profetas” somos todos nós quando, através das nossas atitudes, nossas palavras e nosso testemunho demonstramos para os irmãos a nossa característica de cristãos e, mesmo sem proferir discursos ou pregações, somos eloquentes no agir e no fazer.



Na segunda leitura, da carta de Paulo aos Coríntios (1Cor 6, 13-20), o Apóstolo aborda a vocação matrimonial, advertindo os cristãos de Corinto para não se envolverem em atividades sexuais ilícitas, mantendo a fidelidade com os respectivos cônjuges, pois o homem que se une a uma prostituta faz do seu corpo um só com o corpo dela (6, 16) e isso contradiz a união espiritual que o cristão tem com o Senhor. Por isso, diz Paulo: fugi da fornicação. “Ou ignorais que o vosso corpo é santuário do Espírito Santo, que mora em vós e que vos é dado por Deus? E, portanto, ignorais também que vós não pertenceis a vós mesmos? De fato, fostes comprados, e por preço muito alto, ” (6, 19-20) ou seja, com a paixão e morte de Jesus. Portanto, continua, usem o seu corpo para a glória de Deus. É mais adiante, nessa mesma carta (cap. 13), que Paulo escreveu o seu belíssimo poema sobre o amor cristão, que é muito conhecido e repetido, e que começa com essa bela comparação: “Eu poderia falar todas as línguas que são faladas na terra e até no céu, mas, se não tivesse amor, as minhas palavras seriam como o som de um gongo ou como o barulho de um sino.” A vocação matrimonial é, talvez, o maior desafio que se coloca para o ser humano (homem e mulher), quando firmam um compromisso de vida em comum por toda a existência, o que só pode ser conseguido com a assistência permanente da graça divina.



Na leitura do evangelho de João (1, 42), vemos a narração do chamado especial de Cristo dirigido a Pedro. Pelo que se deduz da narrativa joanina, André era discípulo de João Batista e passou a seguir a Cristo, depois que João O identificou como “Cordeiro de Deus”. Após passar um dia na companhia de Jesus, André foi convidar seu irmão Simão para tornar-se também um seguidor. Logo que Simão foi apresentado por André a Jesus, este foi logo dizendo: teu nome é Simão, mas serás chamado Kéfas. Este trecho do evangelho é marcado por digressões explicativas, pelo que se deduz que João escrevia para pessoas que não entendiam as palavras em hebraico. Ele explica que Rabi significa mestre, que Messias significa Cristo e que Kéfas significa pedra.


Observemos alguns aspectos interessantes da análise do vocábulo KÉFAS. No próprio texto do evangelho (1,42), o evangelista João se preocupa logo em traduzir “kéfas”. Lembremo-nos que o evangelho de João foi escrito por volta do ano 100 d.C. e nessa época a figura de Pedro já estava consolidada como chefe da Igreja. No texto latino, diz assim: quod interpretatur Petrus - Petrus está escrito com letra maiúscula (tradução literal: que se interpreta como Pedro). A palavra Kéfas não é grega, mas aramaica, uma variação do hebraico falada por Cristo. Segundo a internet, kéfas em aramaico significaria 'rochedo esburacado'. Por isso, João disse que Kéfas se interpreta como Petros, ele não disse que era sinônimo de pedra. E João fez isso cerca de 30 anos após a morte de Pedro, certamente lembrando a passagem de Mateus (13, 18). Apenas para recordar, o evangelho de Mateus foi escrito originalmente em aramaico e só depois traduzido para o grego. Portanto, deduz-se que foi através desta passagem de Mateus (13,18 - tu es Petros e sobre esta Petra edificarei a minha igreja)  que a palavra kéfas foi introduzida no idioma grego e deste, transferida para o latim.


Um outro aspecto tb interessante da palavra kéfas é que, por não ser grega nem latina, ela foi simplesmente transliterada nos dois idiomas - quero dizer: tanto em grego como em latim, foi copiada a sua pronúncia do aramaico. Mas por uma feliz coincidência, kéfas contém a primeira parte da palavra grega kefalé, que significa 'cabeça', então o chamado de Pedro foi especial porque Jesus o colocou, ao mesmo tempo, como fundamento e como cabeça do grupo. Esse é um polêmico ponto de divergência entre a Igreja Católica ocidental e a oriental, questão que vem se arrastando por vários séculos e que o Papa Francisco está cuidadosamente tentando superar, já tendo realizado diversas visitas e conversas com as Igrejas Orientais, em busca da unidade eclesial. A diferença no tratamento do problema está em que os Papas anteriores se apresentavam como “chefes” a quem todos deveriam manifestar obediência. No caso do Papa Francisco, ele se apresenta como um irmão que tenta reatar os laços de fraternidade com outros irmãos. E isso mesmo ele faz também em relação às outras religiões não cristãs, como o judaísmo e o islamismo, cumprindo a previsão de Cristo de que todos formariam um só rebanho e teriam um só pastor. Esta é a vocação especial que Cristo reservou para ele.


Nesse contexto, cada um de nós é convidado a refletir de que modo, nas nossas vidas na familia, no trabalho, no lazer, no estudo, na educação dos filhos, na vida social em geral nós prosseguimos com sinceridade sendo fiéis ao chamado que nos foi dirigido por Deus.


Com um cordial abraço a todos.
Antonio Carlos
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domingo, 7 de janeiro de 2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO - EPIFANIA DO SENHOR - 07.01.2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO – EPIFANIA DO SENHOR – 07.01.2018

Caros Confrades:

Celebramos, na liturgia deste domingo, a festa da Epifania do Senhor, cuja data original é 6 de janeiro. A tradição popular sempre se refere a três Reis Magos, porém não há evidências de que eles eram reis e nem de que eram três. O evangelho de Mateus fala apenas que “alguns magos” vieram do oriente. Talvez pela alusão aos três presentes ofertados, deduziu-se que eram três, no entanto, os presentes fazem parte do simbolismo que o evangelista quis atribuir à pessoa do Messias, a luz das nações. E ainda a expressão “magos” não se vincula à magia, no sentido que hoje se atribui a essa palavra, mas ao fato de que eles seriam estudiosos dos fenômenos cósmicos, algo que no passado se chamava de astrologia, isto é, o conhecimento adquirido através do estudo dos astros. E foi assim que eles observaram um incomum alinhamento dos planetas e compreenderam que aquilo era o sinal de um grande evento, combinando esse fato com alguns oráculos antigos. A epifania do Senhor designa a universalidade da salvação trazida por Cristo, a sua manifestação aos pagãos, ou seja, aos povos não pertencentes ao grupo da promessa.

No passado, Javeh estabelecera uma aliança com o líder de um povo determinado e fizera-lhe promessas de se disseminarem por toda a terra. No modo de pensar daquele tempo, eles entenderam isso pela ótica da materialidade e da genealogia, contudo, com a chegada do Messias, a promessa se cumpriu e não foi pela trilha da genética e da hereditariedade cromossômica, mas seguiu a rota da vocação à santidade, oferecida a todos os povos, através do evangelho. A presença dos magos vindos do oriente é o primeiro sinal da universalidade da salvação trazida por Cristo, mesmo antes que os fatos concretos da redenção tivessem ocorrido. O texto bíblico não informa de que cidade eles vieram, mas apenas que vieram de terras distantes no oriente, guiados pela estrela. O evangelho fala somente que os 'magos' seguiram a estrela, a qual lhes teria indicado o local onde encontrariam Aquele de quem as profecias antigas faziam menção. Sim, eles eram pessoas de fé e de ciência, numa época em que essas duas realidades se confundiam numa só. Muito provavelmente, eles eram sacerdotes de uma religião diferente, talvez do zoroastrismo, religião fundada por Zaratustra, cerca de 1.500 anos antes de Cristo e praticada na região da Babilônia, que hoje corresponde ao Irã. Para os propósitos do evangelista Mateus, não interessa efetivamente quem eram nem mesmo se eram aquilo, pois o objetivo é mostrar que o Messias, em primeiro lugar, é aquele a quem os profetas mais antigos se referiram e, em segundo lugar, que a sua vinda não se restringia a um determinado povo ou a pessoas de uma determinada região geográfica, mas alcançaria também gentios e pagãos, realizando a promessa divina de um modo novo e inesperado.

Na primeira leitura, do livro de Isaías (deutero-Isaías, cap 60, 1-6), aparece claramente o sentido da universalidade do Messias, quando o Profeta se refere a Jerusalém como um local onde se congregam povos de diversas origens: “Os povos caminham à tua luz e os reis ao clarão de tua aurora. Levanta os olhos ao redor e vê: todos se reuniram e vieram a ti.” Jerusalém já não é mais a capital apenas do povo hebreu, mas de todas as nações. “Com eles virão as riquezas de além-mar e mostrarão o poderio de suas nações”, desse modo, o Profeta vaticina a transformação de Jerusalém numa cidade onde haverá a confraternização de todos os povos, pois eles se dirigem a ela não com o objetivo de domínio ou de fazer negócios, mas para proclamar a glória do Senhor. Na figura alegórica do Profeta, vislumbra-se a Jerusalém de Judá como a antecipação da Jerusalém celeste, ou seja, a Igreja de Cristo, que se estenderá a todos os povos e a todos os lugares. E se existirem povos em outros planetas e em outras galáxias, também para eles se destina a missão dada por Cristo: “ide e ensinai a todos os povos”. Da mesma forma que, até a Idade Média, quando não se conheciam as terras do continente americano, pensava-se apenas no mundo europeu, mas logo que se descobriram outras paragens, os missionários trouxeram a mensagem cristã para a nossa região, assim também, quando novas comunidades de seres inteligentes forem encontradas, competirá a nós a tarefa de missionar as novas regiões, cumprindo o mandamento de Cristo.

Vemos, na carta de Paulo aos Efésios (3, 2-6), um testemunho interessante do Apóstolo acerca do “mistério” que lhe foi comunicado por revelação, qual seja, “os pagãos são admitidos à mesma herança, são membros do corpo, são associados à mesma promessa em Jesus Cristo, por meio do Evangelho.” Ora, o próprio Paulo não conheceu a Jesus Cristo, não ouviu Seus ensinamentos, não participou do processo pedagógico do grupo de galileus, aos quais Jesus tentou ensinar, durante três anos, a sua mensagem, a sua “nova lei”. Ele próprio, Paulo, era um pagão, um gentio, e a revelação que ele recebeu de Cristo diz respeito exatamente ao fato de que a salvação não está restrita ao povo da antiga aliança, isto é, os pagãos também são chamados para fazerem parte do povo de Deus. Foi isso que os fariseus nunca entenderam na pregação de Jesus, foi por isso que não o reconheceram como o Messias, porque pensavam a salvação em termos nacionalistas e étnicos, porque liam as escrituras de uma forma meramente literal e fechada e isso os impedia de ver, no texto sagrado, um novo sentido mais amplo e mais flexível. Paulo recebeu esses ensinamentos por revelação e tratou de transmiti-los através da sua pregação, do seu exemplo, dos seus escritos, da sua própria vida, devotada ao evangelho. A só presença de Paulo e a sua atividade missionária comprovam essa nova dimensão da antiga aliança, ensinada por Cristo. O evangelho de Mateus fala dos magos vindos do oriente; as cartas de Paulo se destinam aos gentios do ocidente; a junção das duas perspectivas nos dá a dimensão maior da envergadura que comporta a mensagem cristã.

Sobre a leitura do evangelho (Mt 2, 1-12), é curioso observar que nem Lucas nem Marcos se referem ao episódio da visita dos “magos”, sobretudo Lucas, que foi o evangelista portador dos maiores detalhes particulares da infância de Cristo. É de se imaginar que a visita de “magos” vindos do estrangeiro nos primeiros dias após o nascimento de Jesus devia ter sido um fato importante, no entanto, Lucas não obteve essa informação. Ademais, se fizermos as contas, a provável chegada desses magos teria encontrado o Menino Jesus já com alguns meses de idade, considerando que a visão da “estrela” teria ocorrido no nascimento e considerando a distância de onde eles se encontravam, uma viagem no lombo de camelos deveria demorar pelo menos uns três meses até Belém. Provavelmente, os magos tiveram de ir até Nazaré para ver o menino. Como se vê, existem muitas incongruências envolvendo essa narrativa da vinda dos magos, de modo que nunca se saberá com certeza o que há de realidade nesses fatos e por isso, mais uma vez, fica evidenciado que não se deve ler e interpretar a Bíblia de forma literal. Mas visto que os evangelhos não são propriamente registros históricos e sim proclamações de fé das comunidades primitivas, o que mais importa nessa narrativa é a doutrina da universalidade da salvação.

O evangelista Mateus tem um propósito deliberado de demonstrar que Jesus é o Messias prometido, aquele de quem falam as profecias. Ele faz todo um esforço para compor a narrativa, unindo os fatos com os textos proféticos, harmonizando-os e integrando-os. Daí que ele vai buscar um texto antigo do profeta Miquéias (Mq 5, 2) e o insere no contexto do diálogo de Herodes com os “magos”, quando os sacerdotes e doutores da lei revelaram a cidade de Belém como a terra natalícia do Messias. Diz o Profeta: “E tu, Belém Efrata, posto que pequena entre os milhares de Judá, de ti me sairá o que governará em Israel.” O codinome “efrata” associado a Belém, de acordo com os estudiosos, é uma referência aos descendentes de Efraim (os efratas), que teriam sido os fundadores da cidade. Efrata era também o nome da esposa de Caleb, um dos líderes do povo de Israel, juntamente com Josué, após a morte de Moisés. De acordo com a tradição judaica, Efrata seria um nome correspondente a Míriam, que é o nome original de Maria, a mãe de Jesus. Gramaticalmente, “efrata” é também um substantivo que significa “terra frutífera”, terra boa de plantar. Por sua vez, a palavra Belém (em hebraico, bait +lehem=casa do pão) indica um local de grande fartura, onde existe alimento em abundância. Verifica-se, desse modo, um grande acúmulo de significados, cada qual o mais interessante, associado à cidade de Belém, os quais a qualificam como um local privilegiado. Daí porque o Profeta diz que, embora pequena cidade, ela não é menos importante do que as maiores, porque dela sairá aquele que irá governar Israel. Vê-se, com isso, que o evangelista Mateus era também um profundo conhecedor das antigas escrituras.

Meus amigos, no meio de tantas informações, nem sempre coerentes, o que nos interessa é destacar o símbolo da universalidade da mensagem cristã, quando os tempos se completaram e o Verbo se encarnou.

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segunda-feira, 1 de janeiro de 2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO - FESTA DA SAGRADA FAMÍLIA - 31.12.2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO – FESTA DA SAGRADA FAMÍLIA – 31.12.2017

Caros amigos,

No domingo do que medeia entre o Natal e o Ano Novo, a liturgia celebra a festa da Sagrada Família de Nazaré. A festa litúrgica traz para as famílias cristãs o exemplo da família sagrada, encerrando o ano civil com um incentivo à reflexão sobre a situação das nossas famílias, local onde a humanidade se perpetua, não apenas no aspecto biológico, mas e principalmente, no aspecto cultural, social, valorativo, religioso, ético, atingindo a personalidade inteira das pessoas. Não é por outro motivo que vivemos em num mundo repleto de desajustes em todos os sentidos, ou seja, a falta de estrutura e segurança no ambiente familiar produz adultos insatisfeitos, imaturos, violentos, egoístas e despreparados para a vida.

Neste início do século XXI, a organização familiar passa por um período de turbulência nunca antes verificado. Com efeito, o modelo familiar tradicional, constituído por um homem, uma mulher e seus filhos, está agora competindo com outras modalidades familiares que não existiam no passado, quais sejam, as famílias resultantes de uniões homoafetivas, com filhos adotados, e ainda as famílias monoparentais: pai e filhos de diferentes mães, mãe e filhos de diferentes pais. A religião católica tem bravamente resistido a essas mudanças, que são consequências diretas da maior assimilação dos comportamentos sexuais alternativos na nossa sociedade, os quais se tornam cada vez mais frequentes e gozam de reconhecimento jurídico pelo Estado. Não pretendo fazer aqui um juízo de valor, deixo isso para a consideração de cada um. A análise que faço é apenas para destacar que a instituição social mais antiga que se conhece, que é a família tradicional, vem passando por uma reforma substancial, sendo motivo também de discussão legislativa no Congresso Nacional desde 2013 (Estatuto da Família).

Voltando ao tema inicial, a liturgia deste domingo coloca a família de Nazaré como o modelo da família perfeita, até mesmo com as eventuais vicissitudes que ocorrem em todos os grupos familiares: por exemplo, o 'pito' que Maria deu no menino Jesus, depois da estressante procura por Ele, na ocasião do retorno de Jerusalém, depois da Páscoa. Um puxão de orelhas educativo (agora proibido pela lei dos castigos corporais) nunca fez mal a ninguém, desde os tempos bíblicos.

Na primeira leitura, temos um trecho do livro do Eclesiástico (Eclo, 3, 3-17), também conhecido como Ben Sirac ou Sirácide, em alusão ao seu escritor. Este era um judeu chamado Jesus Ben Sirac, que escreveu uma meditação sobre a felicidade, partindo da sabedoria tradicional do povo hebreu, numa época em que a cultura grega se espalhava entre os judeus. O autor quis reforçar os valores hebraicos tradicionais, que não devem ser substituídos pela cultura alienígena, detalhando-os para ensinamento dos mais jovens. Este livro não fazia parte da antiga bíblia judaica, sendo por isso considerado deuterocanônico. Ele foi incluído no cânon da Bíblia Católica após muitas discussões sobre a pertinência disso, porque nem todos os Padres da Igreja antiga assim o consideravam. Foi um dos motivos do protesto de Lutero, que não concordava com a sua inclusão na Bíblia.

Dentro do tema geral do livro, que trata da felicidade, a leitura escolhida pela liturgia traz conselhos aos filhos sobre o respeito aos pais, que tem a aprovação e a bênção de Javé. O cuidado dos filhos com os pais idosos, mesmo quando já estão sem lucidez, além de ser uma obrigação moral deles, torna-se também motivo de santificação, para perdão dos pecados, cuja recompensa será devolvida por Javé. O conteúdo do texto se aplica perfeitamente na nossa sociedade, como aliás se aplicou em todas as épocas, porque a relação pais e filhos foi sempre um dos pontos fundamentais de sustentação da sociedade e as admoestações da sabedoria antiga são, podemos dizer, perenes e supraculturais.

A segunda leitura, de Paulo a Colossenses (Cl 3, 12-21) exorta os membros daquela comunidade ao exercício da caridade, da tolerância e do amor fraterno, como regra básica para a harmonia que deve marcar a vivência dos cristãos. Paulo escreveu esta carta quando estava na prisão em Roma e soube de algumas desavenças que ocorriam entre os cristãos de Colossos. Conclama as esposas a serem solícitas com os maridos e estes a amarem as esposas e não ser grosseiros com elas. Depois, admoesta os filhos para obedecerem aos pais, até parece que Paulo procura complementar ou atualizar a leitura do Sirácide, texto que ele devia muito bem conhecer.

No evangelho de Lucas (Lc 2, 41-52), temos mais um daqueles detalhes da vida de Jesus que somente este evangelista veio a saber, por conta da sua convivência cotidiana com Maria. Inicia Lucas dando amostras da fidelidade da família de Nazaré ao cumprimento da Lei de Moisés, afirmando que os pais de Jesus iam todos os anos a Jerusalém, para a festa da Páscoa. Pela Lei mosaica, os jovens só tinham obrigação de acompanhar os pais para a celebração da Páscoa a partir dos 13 anos de idade, mas José e Maria levaram Jesus um pouco mais cedo, aos 12 anos, deduzindo-se que aquela teria sido a sua primeira participação. No retorno, ele se desgarrou do grupo de caminhantes e isso não foi logo percebido pelos seus pais, pois essas viagens a pé eram feitas em caravanas compostas de parentes e pessoas residentes em Nazaré e em cidades próximas. Nesse grande grupo, por certo as crianças maiores tinham liberdade para circular entre os parentes e conhecidos, de modo que a ausência de Jesus não foi notada de imediato. Provavelmente foi na primeira dormida, por não ter ele voltado para o grupo dos pais, que deram conta de sua falta. Por isso, diz Lucas que eles haviam caminhado já um dia inteiro quando perceberam a ausência do menino e voltaram a Jerusalém para procurá-lo.

Cada um de nós, pela experiência de pais e mães, pode imaginar a aflição de José e Maria por terem 'perdido' o menino numa cidade grande, cheia de estrangeiros, no meio destes também gente de maus costumes (porque isso há em todo lugar), pode supor o que se passava na cabeça e no coração deles. E ainda demorou um tempo enorme: três dias de buscas, que devem ter parecido uma eternidade. Jerusalém, em tempos de festa da Páscoa, devia ficar assim como ficam as nossas cidades romeiras de Canindé e Juazeiro do Norte, na época dos festejos. Quem já esteve lá nesses períodos, pode fazer melhor uma ideia do ambiente, são milhares de visitantes oriundos de todas as paragens. Vê-se que, apesar de toda a fé, que certamente nunca lhes faltou, a situação psicológica de José e Maria era de grande estresse e angústia, tanto que, ao encontrarem o menino na sinagoga, ao invés de se sentirem aliviados, deram-lhe um 'puxão de orelhas': porque você fez isso conosco, disse Maria?

Eu fico aqui imaginando a cena de Maria contando essas histórias para Lucas. Com certeza, um grande exercício de paciência deste, porque penso que somente a muito custo Maria concordava em revelar certos detalhes. E para ela falar no 'pito' que deu no menino após a angustiante procura, deve ter sido permeado de reticências, as quais Lucas ia completando com o conhecimento que ele tinha da personalidade de Maria. E a resposta de Jesus até parece indelicada, pois o mais esperado seria um pedido de desculpas. No entanto, Ele chegou a ser até arrogante ao dizer: eu estava cuidando das coisas do meu Pai... e Maria se acalmou e conservou mais este mistério em seu coração.

Com este episódio, o evangelista Lucas conclui a parte em que trata da infância de Jesus. Certamente, Maria deve ter contado a ele outros detalhes que, no entanto, não foram incluídos neste escrito. Depois deste fato, Jesus já vai aparecer adulto, com cerca de 30 anos. As especulações dos estudiosos indicam que, nesse meio tempo, ele frequentou uma escola rabínica, provavelmente a escola dos Essênios, uma comunidade de eremitas que existiu nas margens do Mar Morto e que foi destruída por ocasião da dominação romana. Embora sendo Deus, Jesus não 'nasceu sabendo' as escrituras, ele precisou estudar e assim, quando iniciou sua missão no deserto, após o batismo por João, Ele já tinha conhecimento suficiente da Lei de Moisés (Torah) e dos Profetas (Nevi’im), como os doutores do seu tempo. O que o evangelista fez questão de ressaltar foi que, superado esse episódio, o menino foi obediente em tudo aos seus pais. Esse exemplo de harmonia familiar é o grande legado que devemos aprender da Sagrada Família de Nazaré, o qual deve ser assimilado também pelos modelos familiares alternativos, para que sempre se orientem no sentido dos verdadeiros ensinamentos cristãos.

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