domingo, 29 de dezembro de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - FESTA DA SAGRADA FAMÍLIA - 29.12.2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO – FESTA DA SAGRADA FAMÍLIA – 29.12.2013

Caros confrades,

Como de costume, no último domingo do ano, a liturgia celebra a festa da Sagrada Família de Nazaré, convidando-nos a refletir sobre a nossa própria família, a vocação primeira e mais antiga de todo ser humano. A família é a instituição social e religiosa mais antiga que existe, pois surgiu com o próprio ser humano, em data tão remota que é impossível fazer uma citação precisa. Uma coisa parece certa: desde que o ser humano (homem e mulher) tornaram-se tais já traziam consigo a tradição do grupo familiar, como sendo o ponto de referência básico e estrutural de cada um de nós. Grande parte dos males que afligem atualmente a sociedade, incluindo aí a excessiva violência e a absoluta ausência de valores referenciais do comportamento, encontram raiz justamente na desestruturação familiar, que vigora nos nossos dias.

O modelo familiar monogâmico, ao qual a nossa cultura se filia, vem dos tempos bíblicos mais remotos, cuja organização está retratada na legenda do “casal do paraíso”, história que remonta ao tempo dos antigos hebreus, para significar o modelo familiar criado por Deus. Prefiro não adentrar na polêmica acerca da existência (ou não) de Adão e Eva, porque essa discussão não cabe aqui nessas notas. Refiro-me apenas ao modelo familiar que era praticado entre os hebreus, desde Abraão, e que teve seu maior reforço na cultura romana, quando o cristianismo chegou a Roma, nos primeiros séculos da nossa era, pois os romanos eram tradicionalmente monogâmicos, muito antes de conhecerem a doutrina cristã. Sob esse aspecto, houve um “casamento” perfeito entre as culturas hebraica e romana, de onde nasceu o cristianismo ocidental. Embora a origem do cristianismo, geograficamente falando, seja a região da Galiléia, onde Jesus viveu, mais especificamente, Jerusalém, onde foi crucificado, do ponto de vista histórico, o cristianismo europeu surgiu em Roma, através das pregações de Paulo e depois com Pedro, que ali fixou residência. Aos poucos, os costumes e tradições judaicas foram perdendo espaço e terreno para os costumes gregos e romanos, que se incorporaram ao pensamento cristão espalhando-se assim pela Europa e, via de consequência, para os povos da América.

Porém, esse modelo familiar tradicional passa por severas mudanças, a partir do século XX, e está agora competindo com outros modelos familiares que não existiram anteriormente, quais sejam, as famílias monoparentais (pais com filhos/as sem mãe(s) ou mães com filhos/as sem pai(s)), famílias homoafetivas masculinas e femininas, muitas vezes com seus filhos adotados, cujo reconhecimento jurídico já existe, mas são vistas com restrições pelas diferentes religiões. A religião católica tem bravamente batalhado contra essas mudanças, como também sempre se pôs contrária ao aborto e ao controle da natalidade. Nessas circunstâncias, eu gostaria de fazer aqui uma reflexão acerca dessa rejeição da doutrina cristã sobre os modelos alternativos de família, sob a alegação de que são contrárias à natureza e também porque Cristo ensinou que o casamento só é legítimo entre homem e mulher. O fundamento da afirmação de ser “contrário à natureza” é porque nas uniões homoafetivas não é possível a geração de filhos e a finalidade essencial do matrimônio é a geração da prole. Assim está prescrito no Direito Canônico: “Cân. 1055 – §1. O pacto matrimonial, pelo qual o homem e a mulher constituem o consórcio de toda a vida, por sua índole natural ordenado ao bem dos cônjuges e à geração e educação da prole, entre batizados foi por Cristo elevado à dignidade de sacramento.” No entanto, parece-me que esse conceito de “natureza” está espelhado no modo de vida típico dos animais não humanos, aqueles que nós chamamos de irracionais. Nestes, sim, a finalidade da aproximação entre o macho e a fêmea é para a geração da prole. Contudo, devemos pensar que a natureza humana, dada a racionalidade que a informa, pode ser considerada em um nível diferente da natureza animal e assim pensando, a finalidade da união matrimonial não precisa, necessariamente, estar ordenada para a geração dos filhos, embora essa seja uma consequência biológica e psicologicamente esperada e até, sob certo aspecto, necessária para o amadurecimento de ambos como pessoas humanas. Mas, pode acontecer, que um casal decida não querer filhos e, nem por isso, o casamento deles estaria se desviando da finalidade, porque o consórcio familiar tem outros objetivos pessoais e sociais.

Portanto, afirmar simplesmente que a união matrimonial que não leva à geração dos filhos é contrária à natureza implica a equiparação entre a natureza humana e a natureza animal, o que não é uma legítima equiparação. Afinal, quando Deus deu ao homem a racionalidade, já o estava distinguindo dos demais seres vivos, ou seja, aquilo que deve ser considerado de acordo com a natureza humana não pode tomar como ponto de referência a natureza dos animais. Essa doutrina adentrou o pensamento cristão a partir do aproveitamento que Sto Tomás fez do pensamento de Aristóteles. Este grego é o autor do famoso conceito do homem como “animal racional”, isto é, enquanto animal, o homem é igual aos demais seres vivos, só enquanto racional ele se distingue. Atualmente, mesmo os filósofos cristãos não mais concordam com essa definição aristotélica, por entenderem que a animalidade humana tem um caráter próprio e essencialmente distinto dos demais viventes.

Em relação ao ensinamento de Cristo, também diversas vezes repetido por Paulo (“Por isso, o homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá à sua mulher; e os dois formarão uma só carne...” -Mateus 19, 5; Efésios 5, 31), sem nenhuma dúvida, ambos estão referendando e recomendando a tradição judaica mais antiga, bem como a tradição grega e romana. Esse era o modelo familiar conhecido então, não faria qualquer sentido, por exemplo, se Jesus tivesse dito algo assim: daqui a 2.000 anos, vocês verão aparecer outras formas de matrimônio diferentes... Jesus falava na linguagem compreensível para aquele povo e dava exemplos conhecidos pela cultura deles. Agora, vejamos outro conhecido trecho do evangelho de Mateus (12, 46-50): “Falava ainda Jesus à multidão quando sua mãe e seus irmãos chegaram do lado de fora, querendo falar com ele. Alguém lhe disse: "Tua mãe e teus irmãos estão lá fora e querem falar contigo". "Quem é minha mãe e quem são meus irmãos?", perguntou ele. E, estendendo a mão para os discípulos, disse: "Aqui estão minha mãe e meus irmãos! Pois quem faz a vontade de meu Pai que está nos céus, este é meu irmão, minha irmã e minha mãe".” Se nós lermos esse trecho de acordo com a mentalidade contemporânea acerca das uniões familiares, podemos ver aí uma alusão de Cristo a um outro modelo de família. Os exegetas interpretam esse trecho referindo-se à Igreja, isto é, a nós cristãos, como sendo a grande família de Cristo. Para mim, não há dúvida que essa interpretação é legítima. No entanto, encarando sob outra perspectiva, podemos também entender que Jesus não estaria se referindo apenas ao corpo místico, que é a Igreja, mas também a outras possíveis uniões familiares (pais, mães, irmãos, irmãs) que não fosse aquela típica fórmula familiar da sociedade do seu tempo. A expressão de Cristo revela, numa leitura descuidada, até uma atitude desrespeitosa para com Maria, ao perguntar: “quem é minha mãe?” embora nós tenhamos consciência de que Ele não agiu assim. Estou colocando aqui essa reflexão porque eu penso que, se Cristo tivesse vivido numa época histórica em que existissem outros modelos de uniões familiares, provavelmente ele não se oporia, porque mais importante do que a geração da prole, o matrimônio deve ser uma comunhão de vida e de amor. Por outras palavras, na minha opinião, as uniões familiares alternativas não são contrárias à natureza e nem são incompatíveis com a doutrina cristã. Basta que abramos um pouco a nossa mente para tentar compreender a palavra de Cristo de acordo com as nuances de cada época.

Falando agora um pouquinho sobre as leituras, o Livro do Eclesiástico traz aqueles conselhos aos filhos sobre o respeito aos pais, que precisam ser sempre lembrados e praticados. A obediência aos pais, o cuidado dos filhos com os pais idosos, mesmo quando já sem lucidez, que além de obrigação moral deles, torna-se também motivo de santificação, para perdão dos pecados, cuja recompensa será devolvida por Javé. Este texto tem aplicação sempre atual em qualquer sociedade, porque a relação saudável entre pais e filhos foi sempre um dos pontos fundamentais de sustentação da sociedade. E assim também o conselho de Paulo a Colossenses:“Esposas, sede solícitas para com vossos maridos, como convém, no Senhor. Maridos, amai vossas esposas e não sejais grosseiros com elas. Filhos, obedecei em tudo aos vossos pais, pois isso é bom e correto no Senhor. Pais, não intimideis os vossos filhos, para que eles não desanimem. ” (Cl 3, 18-21).

Que a Sagrada Família de Nazaré continue inspirando as nossas famílias e oriente também os modelos familiares alternativos, sempre no seguimento dos ensinamentos cristãos.

Cordial abraço a todos e votos de Feliz Ano Novo.


quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - NATAL DO SENHOR - 25.12.2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO – NATAL DO SENHOR – A PALAVRA DA COMUNICAÇÃO – 25.12.2013

Caros Confrades,

Eu gostaria de compartilhar com vocês algumas ideias que me vieram à cabeça na celebração da missa do Natal do Senhor, nesta quarta feira. As duas leituras (Carta aos Hebreus e Evangelho de João) contêm referências muito interessantes ao Verbo (Palavra) de Deus e eu compreendi que a vinda de Cristo antecipou em dois milênios a invenção da internet: Jesus foi a primeira mensagem transmitida através de um meio etéreo, de um modo análogo ao que temos hoje nas transmissões de mensagens pelos satélites de comunicação.

Comecemos pela Carta aos Hebreus. Anteriormente, atribuía-se a autoria desta epístola a Paulo, depois a crítica literária concluiu que não seria ele o autor. Todavia, não se sabe ao certo quem a escreveu, mas deve ter sido um judeu convertido, que procura demonstrar a continuidade da tradição hebraica em Jesus Cristo, com o objetivo de converter aqueles que ainda estavam em dúvida sobre a sua messianidade. O autor inicia com uma afirmação taxativa e convincente: Jesus é a nova palavra, pela qual o Pai se comunica com a humanidade. Diz o texto: Muitas vezes e de muitos modos falou Deus outrora aos nossos pais, pelos profetas; nestes dias, que são os últimos, ele nos falou por meio do Filho, a quem ele constituiu herdeiro de todas as coisas e pelo qual também ele criou o universo. (Hb 1, 1-2). Isto é, a palavra de Deus transmitida através dos Profetas era uma forma de comunicação indireta com a humanidade. Mas nesses dias (os últimos, segundo ele), a Palavra veio diretamente através do Filho. Agora o interlocutor não fala mais um discurso indireto: o Senhor disse..., ele agora fala na primeira pessoa: eu vos digo... A comunicação agora é direta e plena.

Nós vivemos na sociedade da comunicação. Em nenhuma época histórica anterior, as comunicações foram tão difundidas, tão utilizadas, tão diversificadas. Mas, por isso mesmo, existe hoje, mais do que no passado, a possibilidade de uma falha no processo comunicativo, as mensagens falsas estão espalhadas junto com as mensagens autênticas. Por isso, sempre nos cercamos de cuidados de segurança. No telefone, temos o identificador de chamadas. Nos e-mail temos as senhas e os protocolos. Nas transações pela internet, temos cartões magnéticos, chips e códigos criptografados, tudo com o objetivo de garantir a autenticidade da comunicação. Pois bem, no caso de Jesus, essa segurança da comunicação se fazia pelos milagres que ele realizou. Os chefes do povo hebreu, os sacerdotes puseram Jesus em prova por diversas vezes, tendo ele sempre conseguido encontrar uma saída estratégica. Apesar disso, muitos não creram nele. O autor da epístola aos Hebreus tenta, através de uma argumentação bem construída, mostrar que em Jesus se consumam as profecias e, na pessoa dele, temos o esplendor da glória do Pai e a expressão do seu ser (Hb 1, 3). A palavra de Deus, transmitida por Cristo, é assim a palavra autêntica, aliás, Cristo é a própria palavra e, como tal, sustenta o universo, perdoa os pecados, coloca-se acima dos anjos, pois a nenhum dos anjos Deus se referiu dizendo “eu hoje de gerei”, somente para Cristo essa declaração foi ouvida.

Essa teologia da palavra está descrita, em sua forma mais perfeita, no prólogo do evangelho de João. Essa síntese teológica é tão apropriada que, na liturgia antiga, antes do Concílio Vaticano II, esse trecho do evangelho de João era lido em todas as missas, no final da cerimônia, com o título de “último evangelho”. Após o Concílio, com a reforma litúrgica, essa leitura foi retirada. A título de informação, é importante lembrar que este evangelho foi escrito por volta do ano 100 d.C., ou seja, após todos os outros, que foram escritos entre os anos 60 e 70 d.C. João era o discípulo mais jovem e também o que viveu por mais tempo, tendo falecido de causas naturais, enquanto os demais foram martirizados. Além disso, João era o “discípulo amado” e provavelmente Cristo teria conversado com ele assuntos que não falara aos demais. Foi a ele que Jesus confiou Maria, sua mãe, quando estava pregado na cruz. João é o único evangelista que, com certeza, testemunhou os fatos e conviveu diretamente com Cristo. Marcos e Lucas não tiveram essa convivência e sobre Mateus, embora tenha sido um dos doze, existem dúvidas acerca da autoria do texto do evangelho que lhe é atribuído. Portanto, João é o único dos evangelistas que, com certeza, viveu ao lado de Cristo.

Segundo os historiadores, João já estava bastante idoso e tinha se estabelecido em Éfeso, onde era o líder da igreja local. Os seus seguidores fizeram-lhe diversos pedidos para que ele escrevesse o seu testemunho da vivência com Cristo, mas João havia se recusado a fazer isso antes. Porém, vendo se aproximar o fim dos seus dias, resolveu aceitar o desafio de escrever as suas memórias. Consta que não foi ele próprio o escriba, mas um secretário dele, a quem João teria ditado as palavras. Antes de iniciar o trabalho da escrita, João e o escriba teriam feito uma semana de orações e jejum, preparando-se para a tarefa e pedindo a iluminação divina para reunir na sua memória os fatos com precisão e inteireza. Também há de se levar em conta que João conhecia os demais evangelhos, os quais eram lidos nas catequeses das igrejas orientais. Por isso, o texto de João, além de ser mais elaborado, inclui diversas passagens de vida de Cristo, que não são relatadas nos demais textos. E também é de se considerar que, na época da escrita desse evangelho, a evolução doutrinária cristã estaria já bastante mesclada com a filosofia grega, tendo com isso um maior embasamento teórico e conceitual. Daí a característica marcante e diferenciada do evangelho joanino.

João inicia assim (Jo 1, 1): “No princípio era a Palavra, e a Palavra estava com Deus; e a Palavra era Deus.” Esta é a tradução atual da CNBB. No texto latino, temos: no princípio era o Verbo... no texto grego, temos: no princípio era o Lógos. Com o intuito de tornar o texto bíblico mais popular, sem perda do caráter teológico, a tradução oficial agora é a Palavra. Nesta pequena frase, João faz afirmações marcantes da doutrina teológica que já se desenvolvera naquela época. De trás para frente, temos: a Palavra (o Verbo) é Deus, isto é, não é apenas um profeta, é mais do que um profeta, é o próprio Deus. A Palavra (o Verbo) estava com Deus, isto é, antes de se humanizar, a Palavra estava unida a Deus, a Palavra se fundia com Deus. Isso aconteceu desde o princípio, pois no princípio de tudo, a Palavra (o Verbo) já existia, isto é, a Palavra (o Verbo) não começou a existir apenas agora que se humanizou, mas já existia desde sempre. E no versículo 14, logo adiante, está a tradicional e conhecidíssima verdade: E a Palavra (o Verbo) se fez carne e habitou entre nós. E no versículo 11: a Palavra (o Verbo) veio para o que era seu, mas os seus não a reconheceram. Aqui é que entra a ligação direta do evangelho de João com o texto da carta aos Hebreus: Jesus é a Palavra do Pai.

Todo esse hino sobre a Palavra tem seu ponto central na frase: o Verbo se fez carne. A Palavra de Deus veio habitar no mundo e se tornou um de nós. É interessante compreendermos a expressão grega, na qual o evangelho de João foi originalmente escrito. Diz assim: kai ó Lógos sarx egéneto. Só uma explicação rápida: Kai=preposição “e”; ó Lógos = o Verbo, a Palavra; Egéneto = forma passiva do verbo “gennaw” (gerar, produzir); Sarx é aqui o vocábulo chave. Traduz-se literalmente por “carne”, mas significa bem mais do que este vocábulo da língua portuguesa. Em geral, quando nos referimos a carne colocamos em oposição aos ossos, portanto, num sentido bem limitado. No grego, sarx significa o corpo inteiro feito de carne e osso, o corpo humano quando se refere às pessoas. Num sentido mais figurado, significa “natureza humana”. Portanto, dizer que o Verbo tornou-se “sarx” quer dizer que a Palavra tornou-se gente, transformou-se em ser humano, humanizou-se. No hebraico, assim como no grego, quando se fala a expressão “toda a carne” isso quer dizer todas as pessoas, não apenas os músculos, que constituem a parte carnal propriamente falando. Por isso, a expressão “o Verbo se fez carne” deve ser entendida como a Palavra transformou-se em um de nós, assumiu a natureza humana, virou gente. Atentem só para a profundidade dessa afirmação. Quando nós falamos, a nossa palavra é apenas um som, que se propaga no ar até certa distância, depois desaparece. Mas a Palavra de Deus é tão poderosa, tão enorme, que se transforma em alguém, se consolida em outro Ser igual a Ele (desde o princípio) e, nos últimos tempos, transformou-se também em pessoa humana, passou a ter uma existência histórica, desceu da sua grandeza imensa e veio mostrar-se em carne e osso. A Palavra: Jesus é a própria palavra do Pai vivendo entre nós, mesmo após ter deixado a sua forma humana e retornado apenas à forma divina. Essa comunicação perfeita do Pai conosco é, de fato, a primeira autêntica mensagem transmitida do infinito para a história, é o e-mail divino inaugurando a era das comunicações, através de uma mensagem perfeita.

Nesse espírito, quero renovar sinceros votos de Feliz Natal a todos.


domingo, 22 de dezembro de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 4º DOMINGO DO ADVENTO - O SONHO DE JOSÉ - 22.12.2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO DO ADVENTO – O SONHO DE JOSÉ – 22.12.2013

Caros Confrades,

Neste quarto domingo do Advento, a liturgia dá continuidade ao tema da anunciação do anjo a Maria, quando ela aceitou ser a Mãe de Deus, tema que foi abordado na festa da Imaculada Conceição. Agora, o foco da liturgia se volta para José, o esposo de Maria, que se viu embaraçado diante da notícia de Maria estar grávida sem ele ser o pai... foi necessário que o “anjo” do Senhor viesse acudi-lo e remediar a situação, através do sonho revelador.

Na primeira leitura, do profeta Isaias (Is 7, 10-14), lemos aquela famosa predição sobre a futura vinda do Messias: uma virgem conceberá e parirá um filho, que terá o nome de Emanuel (Is 7, 14). O profeta Isaias é aquele que melhor predisse a chegada do Messias, com extraordinária precisão de detalhes. Ao ler hoje esse trecho de Isaias, acerca da concepção virginal, lembrei-me de uma notícia lida na internet nesta semana, acerca de um fato curioso: nos Estados Unidos, cerca de 5% das jovens que engravidam são virgens, o que é um fenômeno atípico desde os tempos bíblicos. Faço menção disso aqui não para comparar com a concepção divina de Maria, mas para dizer que uma tal situação não algo assim tão incomum, embora sempre chame a atenção. Associado a este fato da concepção virginal, existe ainda outro comentário exegético acerca do termo “virgem”, que no contexto bíblico não significa exatamente a virgindade no sentido biológico, mas no sentido da juventude da mulher. Era como se “virgem” fosse sinônimo de “jovem mulher”. Na hora da tradução para o latim, São Jerônimo utilizou o vocábulo “virgem” neste sentido de mulher jovem, pelo fato de que as mulheres jovens, comumente, são virgens. Daí a hermenêutica bíblica tradicional passou a entender a palavra “virgem” no sentido da integridade corporal da mulher, desenvolvendo toda uma teologia acerca da virgindade e isso vai contra a tendência usual do povo hebreu, pois num contexto histórico de espera do Messias, a mulher que permanecia virgem, portanto, sem chance de ter filhos, era considerada uma indigna por Javeh, já que ela nunca poderia ser a mãe do Messias. Desse modo, a profecia de Isaías quando diz uma “virgem conceberá” deve ser entendida como uma “jovem conceberá”. Polêmica à parte, o fato é que a concepção divina de Maria foi um fenômeno que intrigou José, levando-o a cogitar mil alternativas, até ser tranquilizado pela “revelação angelical”.

Tentemos imaginar a situação. José era casado com Maria, mas ainda não coabitavam, de acordo com o costume daquela época. Maria ainda estava passando por um “treinamento” para assumir as funções próprias do matrimônio. Os textos bíblicos não esclarecem como foi que José tomou conhecimento: se foi Maria quem contou a ele ou se ele, José, percebeu a gravidez. De um modo ou de outro, José sabia que não era ele o pai, então, cabia-lhe denunciar a esposa por mau comportamento perante os sacerdotes, mas José sabia que isso implicaria o apedrejamento de Maria, de acordo com a Lei de Moisés. José era justo e não queria fazer mau juízo sobre Maria, porém não entendia como aquela gravidez tinha ocorrido. Então, resolveu simplesmente abandoná-la, viajar para outras terras e seguir sua vida por lá. Só que isso era muito trabalhoso, afinal, mudar de domicílio não é fácil nos dias de hoje, devia ser mais complexo ainda naquela época. José se encontrava nesse dilema sobre o que fazer. Foi quando ele teve o sonho com o anjo, fato que é narrado por Mateus no evangelho deste domingo (Mt 1, 18-24). É interessante observar que a Bíblia relata diversos episódios em que Javeh fala com as pessoas em sonho, seja diretamente, seja através de um mensageiro. A palavra “mensageiro”, em grego, diz-se “angelos”, derivada do verbo “angelô” (anunciar, proclamar), que se transformou no latim em “angelus” e, em português, passou para “anjo”, perdendo a relação com a raiz grega, devido à troca do G pelo J.

Os personagens bíblicos que foram visitados por esses mensageiros (angelos) não descrevem como é a aparência deles, porém, os artistas medievais se encarregaram de compor a sua figura como um ser masculino, de grande beleza, tendo as omoplatas desenvolvidas em forma de asas como os pássaros, por causa da sua grande agilidade de deslocamento. E assim ficou criada a figura estereotipada do anjo que todos conhecemos. No entanto, não podemos nos esquecer que Lúcifer era também um anjo da corte celeste, apesar disso, a figura deste é retratada pelos mesmos artistas de uma forma totalmente diversa. Digo isso para que retiremos da nossa cabeça as imagens medievais, quando nos referimos aos mensageiros divinos. Por que razão não existem figuras femininas como anjos (ou anjas), apenas figuras masculinas? Evidentemente, entra aí toda a carga cultural do machismo, típico da cultura grego-romana. Apesar da sua feição marcadamente andrógina, no entanto, eles são apresentados sempre como seres masculinos, em coerência com a mesma cultura que afirma que somente os homens podem exercer os ministérios eclesiais. E o mais curioso é que a grande maioria dos cristãos, em vez de lembrar dessa matriz cultural para explicar o machismo presente nos textos bíblicos, faz o oposto, ou seja, utiliza os próprios textos bíblicos para justificar o machismo eclesiástico.

Pois bem, mas voltando à história sobre o sonho de José, vemos uma diferença curiosa na forma como o mensageiro (anjo) apareceu a José e a Maria. No caso de Maria, ela estava desperta e dialogou com ele. No caso de José, ele estava dormindo e não participou da conversa, apenas recebeu uma informação. É o caso de indagarmos se, efetivamente, um mensageiro lhe apareceu ou se ele apenas sonhou, foi apenas um sonho simples, da mesma forma como nós, muitas vezes, estamos com uma dúvida nos atormentando e, num sonho, vislumbramos uma solução. Aliás, se formos observar bem, nas diversas vezes em que um texto bíblico se refere a um mensageiro (anjo), em geral, a presença de um ser angelical não é de fato necessária, mas a situação se esclarece com uma explicação psicológica. O caso do sonho de José é um desses exemplos. Outro caso também relacionado com José é aquele episódio em que ele recebeu uma “ordem” de fugir com Maria e o menino para o Egito, até passar a perseguição de Herodes, através de outro sonho. A referência ao mensageiro fica mais por conta da tradição hebraica, ainda muito presente no cristianismo primitivo. E também devido ao estado de desenvolvimento científico da época, em que esses fenômenos psicológicos eram sempre considerados como manifestações divinas ou demoníacas. Disso podemos concluir, com alguma segurança, que a doutrina tradicional acerca dos anjos precisa ser repensada e redimensionada, dando-lhe uma compreensão mais realista e menos fantasiosa.

O caso da anunciação a Maria já foge a essa regra, por causa do diálogo que ela travou com o anjo até ser convencida e dar o seu aceite. Há uma intervenção divina na história, trata-se de algo realmente miraculoso na sua essência, algo que apenas uma explicação da psicologia não seria suficiente. Isso é que torna diferente a atuação do “mensageiro” divino em certas situações em que há uma justificativa para a sua presença, enquanto em outros casos a referência ao “mensageiro” é apenas intuída ou suposta. E em geral isso ocorre quando o fato está relacionado a um sonho. Deus Pai instruiu José através de um sonho, assim como muitas vezes nos instrui em situações de dúvida, apontando-nos uma solução viável, seja quando estamos sonhando ou quando simplesmente temos um “estalo” na mente, aquilo que os psicólogos chamam de “insight”, uma descoberta inesperada e instantânea que a nossa mente produz, em situações emergenciais.

E para não deixar passar, faço uma breve referência à segunda leitura, da carta de Paulo aos Romanos (Rm 1, 1-7), na qual Paulo destaca a descendência de Jesus da raça de David (em grego: ek spérmatos David) segundo a natureza humana, e predestinado como Filho de Deus em poder, segundo o Espírito. Curiosamente, o texto da CNBB traduz a palavra latina “praedestinatus” (literalmente, predestinado) como “autenticado”. Deliberadamente, penso eu, a tradução evita usar a palavra “predestinado” por causa da doutrina da predestinação, que não é acolhida pela teologia católica, substituindo-a por uma palavra mais da cultura contemporânea: autenticado. No entanto, eu considero essa palavra perigosa no seu entendimento, porque traz subjacente a ideia do que não é original, mas uma cópia carimbada... sinceramente, tem certas traduções que aparecem nos textos oficiais da CNBB que complicam aquilo que deveriam explicar. Dizer que Jesus é autenticado como Filho de Deus com o poder do Espírito, ao meu ver, deturpa o significado do texto paulino e dá a impressão de uma coisa subalterna, uma segunda via que se autentica para ter validade oficial. Com certeza, Jesus não precisa de autenticação.

Ao ensejo, envio a todos sinceros votos de Feliz Natal.


domingo, 15 de dezembro de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 3º DOMINGO DO ADVENTO - MAIS QUE UM PROFETA - 15.12.2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 3º DOMINGO DO ADVENTO – MAIS QUE UM PROFETA – 15.12.2013

Caros Confrades,

Sempre no 3º domingo, a liturgia sóbria do advento abre espaço para a alegria da próxima chegada do Senhor. O refrão latino antigo dizia: gaudete in Domino, iterum dico, gaudete. Alegrai-vos no Senhor, outra vez eu digo, alegrai-vos. Este é o tema dominante desta liturgia, que traz na leitura do evangelho o elogio que Jesus faz a João Batista: muito mais do que um profeta, dentre os nascidos, ninguém é maior do que ele. E, de carona, faz outro rasgado elogio a todos nós, seus seguidores.

A primeira leitura, do profeta Isaias (35, 1-10), expressa a alegria dos cativos ao serem libertados da Babilônia e retornarem a Jerusalém: “Dizei às pessoas deprimidas: 'Criai ânimo, não tenhais medo! Vede, é vosso Deus, é a vingança que vem, é a recompensa de Deus; é ele que vem para vos salvar'. Então se abrirão os olhos dos cegos e se descerrarão os ouvidos dos surdos. O coxo saltará como um cervo e se desatará a língua dos mudos. Os que o Senhor salvou, voltarão para casa.” (Is 1, 4-10) Esta alegria do retorno para casa é comparada com a alegria da Igreja pela chegada do Senhor, que se avizinha. A liturgia relembra a festa dos hebreus celebrando a sua libertação do cativeiro babilônico, fazendo alusão com o júbilo que deve tomar conta de todo o mundo cristão, com a chegada da libertação trazida por Cristo. Se aquela libertação terrena foi motivo de tanto regozijo para os hebreus, então para nós, que recebemos de Cristo a salvação eterna, a alegria deve ser muito maior. A parte final do versículo 10 é bem sugestiva: “Eles virão a Sião cantando louvores, com infinita alegria brilhando em seus rostos: cheios de gozo e contentamento, não mais conhecerão a dor e o pranto.” Sião, a Jerusalém terrestre, é a Igreja de Cristo, da qual nós fazemos parte. A ela, nós nos dirigimos cantando louvores e com intensa alegria brilhando nos nossos rostos, tal como os hebreus libertados. O livro de Isaías, ao mesmo tempo em que descreve a tristeza do povo cativo, do meio para o fim, passa a retratar o grande contentamento daqueles que puderam voltar à sua terra. É uma leitura recorrente no tempo do advento, era também uma leitura preferida por Cristo, quando comparecia aos cultos na sinagoga e lhe era dada a palavra.

Na segunda leitura, retirada da carta de Tiago (Tg 5, 7-10), ele exorta os cristãos sobre a vinda do Senhor, que está próxima. Sabemos que, naquele tempo, tanto os apóstolos quanto as comunidades primitivas, esperavam para “os próximos dias” o retorno de Jesus, como ele havia prometido, na sua ascensão, que retornaria em breve daquele mesmo modo. A interpretação que os primeiros cristãos davam a essa passagem bíblica era totalmente literal. Então, a exortação de Tiago tinha outro sentido daquela referida pelo profeta Isaías, pois no tempo deste Profeta, o Messias ainda não havia chegado, portanto, ele se refere à sua chegada original. Mas na carta de Tiago, a espera é pelo seu retorno, para julgar o mundo. Daí percebermos uma certa ingenuidade nas palavras de Tiago, no versículo 9: “Irmãos, não vos queixeis uns dos outros, para que não sejais julgados. Eis que o juiz está às portas.” Essa queixa é também referida por Paulo na segunda carta aos Tessalonicenses, lida num domingo recente, em que ele repreendia os cristãos que já não queriam trabalhar só esperando o dia do Senhor voltar. Esse mesmo contexto é repetido por Tiago. Esta carta não é dirigida a uma comunidade particular, mas a todos os judeus da diáspora. Esta diáspora, ou dispersão dos judeus, ocorreu logo após a destruição de Jerusalém pelos romanos, levando-os a se espalharem por diferentes territórios da Ásia, África e sul da Europa. Em alguns destes locais, já existiam diversas igrejas cristãs, sobretudo aquelas fundadas por Paulo, tendo sido até motivo de atritos. Na verdade, os judeus ficaram sem um território próprio e isso perdurou por vários séculos, pois eles somente voltaram a ter um local geográfico com a criação do Estado de Israel, após a segunda guerra mundial. E, diga-se de passagem, a situação permanece insegura, com as constantes intrigas e guerras intentadas por seus vizinhos árabes, que nunca aceitaram essa decisão política, fruto da mediação, mais do que isso, da imposição dos norte americanos. Pois bem, a carta de Tiago reflete assim aquela ideia que era comum entre os primeiros cristãos, acerca da iminente volta de Cristo, para julgar os vivos e os mortos.

No evangelho de Mateus (Mt 11, 2-11), lemos o episódio em que João Batista, encontrando-se preso a mandado de Herodes, ouviu falar de Cristo e enviou a ele alguns dos seus discípulos, a fim de colher informações: és Tu o que esperamos ou devemos esperar por outro? Lembremos que João Batista já havia batizado Jesus no rio Jordão, portanto, já o conhecia, inclusive foi naquela ocasião em que o Espírito Santo apareceu, portanto, João Batista tinha conhecimento da existência de Jesus, que era também seu parente. Mas, mesmo assim, visto que estava preso e não podia fazer isso pessoalmente, enviou seus discípulos para se certificarem do fato. Não deixa de ser curiosa essa referência do evangelho à atitude de dúvida de João Batista sobre o Messias. Será que ele não tinha certeza de que Jesus era o Messias? Creio que sim, no entanto, João Batista precisava que os seus discípulos tivessem essa certeza também . Sabemos que João Batista tinha seguidores, alguns deles depois se tornaram discípulos de Jesus. Então, eu entendo esse fato de João Batista enviar mensageiros para irem ter com Jesus como uma forma de dizer a eles algo assim: pronto, a minha carreira terminou, de agora em diante, vocês devem ficar com Ele. De fato, daquela prisão onde se encontrava, João Batista não mais saiu, vindo a ser decapitado a pedido da concubina de Herodes, como forma de vingar-se dele, que havia censurado a sua vida marital com Herodes, por ser uma união ilegítima. A vingança da imperatriz não demorou a acontecer.

Jesus não respondeu aos discípulos de João de forma direta, mas apenas indiretamente, ao afirmar: “Ide contar a João o que estais ouvindo e vendo: os cegos recuperam a vista, os paralíticos andam, os leprosos são curados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e os pobres são evangelizados.” (Mt 11, 4-5) Se observarmos bem, Jesus estava mandando o recado para João Batista mais ou menos nesses termos: vejam só, estão acontecendo aquelas coisas que o profeta Isaías dissera que iria acontecer com a chegada do Messias. Isto é, para um bom entendedor (e João conhecia as escrituras), ali estava uma resposta claríssima. João deve ter, então, se despedido dos seus discípulos, porque a sua missão tinha sido encerrado. E ele havia dito, em outra ocasião (João 1, 27), que ele era apenas o precursor e que, quando o Messias chegasse, ele (João) não seria digno nem de desatar as correias das suas sandálias. Deve ter sido algo parecido que João, por fim, esclareceu aos seus discípulos e os encaminhou para o seguimento de Jesus.

Mas o evangelista Mateus prossegue (11, 9) a história, contando o que Jesus falou aos seus ouvintes, após a saída dos discípulos de João: eu vos afirmo que ele é mais do que um profeta. Aqueles que ouviam Jesus conheciam os Profetas da Israel e os reverenciava, assim Jesus quis dar a eles uma noção da importância de João Batista. E citando o seu profeta preferido, Isaías, completou: “É dele que está escrito: 'Eis que envio o meu mensageiro à tua frente; ele vai preparar o teu caminho diante de ti'.” (Mt 11, 10) O “está escrito” quer dizer: Isaías escreveu isso. Em outra ocasião, Jesus havia utilizado outra passagem de Isaías para se identificar na sinagoga, perante os rabinos e os chefes do povo, quando foi convidado para fazer a leitura e escolheu um trecho de Isaias, conforme está relatado no evangelho de Lucas (4, 16). Após a leitura na qual Isaías falava sobre as qualidades do futuro Messias, Jesus disse: hoje se cumpriu essa escritura. Foi como se dissesse: Isaías estava falando a meu respeito. E complementando o elogio que fazia a João Batista, assim terminou o seu discurso: “de todos os homens que já nasceram, nenhum é maior do que João Batista.” (Mt 11,11) Vejam que Jesus exclui a si próprio dessa referência, fazendo assim uma alusão velada à sua divindade. Ele nunca falava de si mesmo diretamente, mas sempre de forma indireta. Porém, logo depois, Jesus faz um surpreendente elogio a todos nós, cristãos: “No entanto, o menor no Reino dos Céus é maior do que ele.” Ou seja, meus amigos, Jesus coloca os seus seguidores (João foi seu precursor), quer dizer, nos coloca acima de João Batista, porque ele não chegou a ver a revelação e a salvação, que nós conhecemos através dos seus ensinamentos.

Que nós realmente façamos por onde sermos dignos desse tremendo elogio que Jesus nos fez.


domingo, 8 de dezembro de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 2º DOMINGO DO ADVENTO - FESTIVIDADE DA IMACULADA CONCEIÇÃO - 08.12.2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 2º DOMINGO DO ADVENTO – FESTIVIDADE DA IMACULADA CONCEIÇÃO – 08.12.2013

Caros Confrades,

Neste segundo domingo do advento, a liturgia dominical cede lugar para a celebração da festividade da Imaculada Conceição de Maria. Trata-se de um dos dogmas católicos acerca de Maria, proclamado em 1854, pelo Papa Pio IX. Contudo, a tradição já acreditava nessa verdade desde os primeiros tempos do cristianismo. Quando em 431, no Concílio de Éfeso, foi proclamado o dogma de Maria Mãe de Deus (Teotokos), a crença na sua imaculada conceição já existia.

Hoje, vou iniciar este comentário de uma forma diferente. Vou reproduzir aqui trechos de um livro pouco conhecido: O Evangelho Secreto da Virgem Maria. Trata-se de um manuscrito descoberto na Itália, em 1864, que teria sido encontrado por uma monja espanhola no século IV, durante uma viagem que ela teria feito à Terra Santa. Trata-se de um evangelho apócrifo. Porém, apócrifo não significa falso, apenas que não foi oficialmente colocado na lista da Bíblia. A narração é toda na primeira pessoa e tem um aspecto intimista, diferente dos evangelhos canônicos. Seguem alguns trechos:
“Eu tinha 15 anos, fazia alguns meses que me tornara mulher. Aquele dia era um sábado, meu pai tinha ido à sinagoga para ouvir, como sempre, a leitura de um trecho da Torah e a explicação que dava o rabino. Joaquim disse a mim e à minha mãe que, naquela manhã, Asaf (o rabino) estava preocupado. As notícias que chegavam das cidades que abrigavam destacamentos romanos não eram boas. Comentava-se que na longínqua Jerusalém havia muita inquietação e que alguns rabinos haviam dito que a chegada do Messias poderia estar próxima.”
“Meu pai e José, meu querido primo e quase meu marido, voltaram juntos, subindo a encosta até a nossa casa, onde José deixou meu pai, não sem antes pedir-lhe que me saudasse em seu nome, o que sempre me fazia corar. Estamos em tempos sublimes, tempos de Deus, assim disse meu pai, dando por terminado o relato e indicando-nos em seguida o horário tardio, próprio para se deitar. Logo me encaminhei para o meu quarto mas não podia dormir. Assim, comecei a rezar. Sentia fortemente que, naquela noite, o Senhor esperava algo de mim. Minha resposta foi positiva. Disse-lhe que, por mim, as coisas se fariam segundo a sua vontade e não segundo os meus cálculos e previsões. Foi quando tudo ocorreu. Meu pequeno quarto se encheu de luz. Estava ajoelhada, com minha modesta roupa presa acima do joelho para não gastá-la, quando ele apareceu. Confesso que não me assustei. Nunca me ocorreu que fosse um enviado do maligno, pois a paz que dele emanava era representativa apenas de Deus. Porém, quando começou a falar, assustei-me um pouco, não porque sua voz fosse feia, mas o que me disse me deixou perplexa: Alegra-te, cheia de graça, o Senhor está contigo.” O que significava “cheia de graça”, pensei? Ele se deu conta e em seguida tentou tranquilizar-me: Não temas, Maria, porque encontraste graça diante de Deus.”

Interrompo aqui. Quem quiser ler o livro, procure na Editora Paulus. Agora, reporto-me à liturgia de hoje. A primeira leitura (Gn 3, 9-20) narra o diálogo de Deus com Adão e Eva, logo após terem comido do fruto proibido, no qual consta o trecho onde diz que a mulher irá esmagar a cabeça da serpente e essa é uma das imagens bíblicas relacionadas com o culto a Maria. Na segunda leitura, da carta de Paulo aos Efésios (Ef 1, 3-6), temos a pregação do Apóstolo ensinando que nós somos filhos adotivos de Deus, por intermédio da encarnação de Jesus, que se deu através de Maria. Paulo não menciona essa última parte, ela fica apenas subentendida. E o evangelho de Lucas (1, 26-38) narra o mesmo episódio que transcrevi acima, retirado do evangelho secreto de Maria, ou seja, a visita do anjo.

Pois bem. Já foi objeto de discussão em diversas ocasiões, entre pessoas do grupo, acerca de um certo exagerado devocionismo, que ocorre nos meios católicos, em torno da figura de Maria, o que leva a desviar a atenção dos fiéis para mistérios centrais da religião. Para muitos fiéis, a devoção a Maria e aos Santos está acima da fé em Jesus Cristo e do conhecimento dos textos bíblicos. Recentemente, eu li a respeito de um grupo católico que promove uma campanha para que a Igreja Católica declare que Maria é co-redentora, conferindo a ela mérito similar à função redentora de Cristo. Proliferam no mundo todo relatos miraculosos sobre aparições de Maria a diversas pessoas, sendo as mais conhecidas Fátima e Lourdes, mas há também Guadalupe (comemorada nesta semana), Aparecida, Medjugorje, Loreto, além dos inúmeros títulos com os quais Maria é reverenciada. Nesse contexto, a religião católica torna-se mais mariológica do que cristológica, indicando uma real inversão dos valores do cristianismo, onde a figura de Cristo deve ocupar sempre o lugar de destaque.

Sem desmerecer a figura de Maria e a sua importância dentro da economia da salvação, devemos reconhecer que, de fato, existe uma exacerbação devocional da sua pessoa. E não apenas por parte dos fiéis leigos, mas também dentro da hierarquia. Embora os textos evangélicos sejam centrados na pessoa de Cristo e a menção ao nome de Maria se faça em poucas ocasiões, a tradição religiosa se encarregou de desenvolver-lhe todo um culto paralelo desde os inícios do cristianismo. Os dogmas relacionados à figura de Maria demonstram a força dessa tradição, que é invocada para fundamentar as verdades da fé: Maria Mãe de Deus, a Virgindade de Maria, a Imaculada Conceição de Maria, a Assunção de Maria. O primeiro foi proclamado no contexto da negação de alguns padres medievais sobre a maternidade divina de Maria, pois afirmavam que Maria era mãe de Jesus enquanto homem apenas. Os outros fundamentam-se exclusivamente na tradição.

A concepção imaculada de Maria é deduzida da sua condição de Mãe de Deus, por uma dedução lógica de que, para ser a Mãe de Deus, ela não devia ter pecado nenhum. A este se liga diretamente o dogma da Virgindade. E associado aos dois, o dogma cristológico de ser Jesus o Filho Unigênito, ou seja, Maria não teve outros filhos. E indiretamente associada a tudo isso está a doutrina teológica católica que, desde os primeiros tempos, encara com pessimismo tudo que se relaciona ao sexo, a ponto de Sto Agostinho ter sugerido que o pecado de Adão e Eva teria sido um pecado sexual. A moral católica considera, ainda hoje, que o sexo se destina exclusivamente à procriação, sendo permitido apenas com essa finalidade. E na sequência disso, repudia qualquer outra finalidade da sexualidade, bem como rejeita qualquer método ou medicamento que, de alguma forma, impeça, vede ou obstacule a concepção. A supervalorização da virgindade de Maria, o título de Sempre Virgem Maria, exerce uma pressão subliminar dentro do catolicismo acerca da exclusão da sexualidade, sobretudo em relação às mulheres. Estas sempre foram mais tolhidas no seu comportamento, ao longo da história, diferentemente dos homens que, mesmo estando submetidos aos mesmos paradigmas sexuais, contudo sempre obtiveram maior tolerância neste aspecto. Chegou ao ponto de Freud, no século XIX, colocar como motivação principal para uma série de doenças que afligia as mulheres daquele tempo, como relacionadas à repressão sexual, criando o termo “histeria” para designar um certo tipo de comportamento psicótico típico das mulheres. Vale lembrar que “hystera”, em grego, significa “útero”, donde se supunha que tinha origem essa doença ligada à sexualidade.

Quero deixar claro que as ideias apresentadas acima não significam que, da minha parte, haja qualquer restrição às verdades de fé proclamadas acerca de Maria. Eu não me coloco do lado dos não-católicos, que consideram Maria uma mulher como as outras, eu creio que ela foi especial, não tenho dúvidas disso. No entanto, sou honesto em admitir que o exagero devocional que a tradição cultural criou acerca da personalidade de Maria se põe como obstáculo a uma mais adequada vivência do cristianismo. Que Maria nos ensine a compreender essas verdades, dentro da mais autêntica dimensão da nossa fé.


domingo, 1 de dezembro de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 1º DOMINGO DO ADVENTO - VIGILÂNCIA E PRONTIDÃO - 01.12.2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 1º DOMINGO DO ADVENTO – VIGILÂNCIA E PRONTIDÃO – 01.12.2013

Caros Confrades,

Como ocorre em todos os anos, a liturgia do 1º domingo do advento dá início ao ano litúrgico seguinte ao ano civil, de acordo com o calendário eclesiástico. As últimas quatro semanas do ano civil já são, na verdade, as primeiras semanas do novo ano litúrgico, assim como acontece com os calendários religiosos dos povos mais antigos, que fica desencontrado do ano civil padrão.

Lamentavelmente, a celebração do Natal vem se transformando, a cada ano, em um evento comercial, tempo de grande estímulo para consumir o que nem se necessita. Muito embora a tradição de montar os presépios continue, a sua utilização visa muito mais aos fins comerciais do que às verdadeiras finalidades religiosas. Sem falar em que alguns, mais céticos, criticam a escolha da data, porque a festa pagã que foi substituída pela comemoração do Natal era uma festa romana, dedicada ao deus saturno (saturnália), que se prolongava por uma semana, indo do dia 17 ao dia 24 de dezembro, período em que ocorre o solstício de inverno no hemisfério norte. Era uma espécie de festa carnavalesca, como a nossa cultura celebra no período que antecede a quaresma, com muitas bebedeiras e licenciosidades. Somente a partir do século IV d.C., após a conversão do imperador Constantino e a liberdade religiosa instituída por ele, a festividade foi transformada em homenagem ao Natal do Senhor. Portanto, a festa do Natal e a sua celebração no dia 25 de dezembro não se refere à data do nascimento de Cristo, mas apenas é uma festa comemorativa. A rigor, não se sabe a data em que Cristo nasceu e a data referencial do ano Zero também é contestada por recentes pesquisas.

Digo isso porque existem muitas crenças e tradições não apoiadas em documentos e que sempre foram ensinadas como verdadeiras, tendo-se incorporado à nossa cultura há tempos. A existência de Jesus é fato documentado por historiadores da época, que nem eram ligados ao cristianismo. Porém as datas referentes aos eventos principais da sua vida estão envoltas em discussões e incertezas. O ano litúrgico, portanto, se constitui com datas e períodos que só simbolizam os fatos comemorados, não devendo ser tomadas essas datas como corretas do ponto de vista histórico. Isso, porém, em nada compromete a grandeza e a importância das festas que comemoramos nessa época do ano. Como autênticos cristãos, devemos nos esforçar para romper o esquema comercial que se incorporou ao Natal e celebrar o tempo do advento com o espírito de verdadeira conversão, pensando na vinda do Senhor.

As leituras litúrgicas deste primeiro domingo recomendam a vigilância e a prontidão, porque ninguém sabe o dia em que o Senhor virá. A primeira leitura, de Isaías (Is 2, 1-5) narra uma visão tida pelo Profeta sobre Jerusalém: de lá, vem a palavra do Senhor. Para lá, acorrerão as nações e os povos todos. A visão do Profeta se aplica, nos dias de hoje, à Igreja de Cristo, firmemente estabelecida no monte da casa do Senhor, referindo-se ainda, numa visão de futuro, à Jerusalém celeste, onde se encontra Cristo ressuscitado. O Cristo que nasce menino na festividade do Natal é o mesmo que se encontra glorioso na Jerusalém celeste. O simbolismo do seu (re)nascimento a cada ano nos convida a também internamente reavivar em nós mesmos o cristão que se formou em nosso íntimo pelo batismo e que se consolidou na nossa formação religiosa, pela qual somos chamados a dar testemunho dos ensinamentos que recebemos. No advento, a cada ano, Cristo quer renascer em cada um de nós, para isso, Ele requer nossa disponibilidade e nossa participação. O verdadeiro natal é o que deve ocorrer no coração de cada crente, onde devemos montar o verdadeiro presépio para acolher o que vai nascer. A Belém dos nossos dias deve ser encontrada no coração de cada cristão, que se prepara para celebrar a festa do Natal. Daí o tema deste domingo ser a vigilância.

A segunda leitura é da Carta aos Romanos (Rm 13, 11-14), na qual Paulo exorta os cristãos de Roma para que se dispam das ações das trevas e se revistam das armas da luz. E, com certeza fazendo referência às festas da saturnália, recomenda: “Procedamos honestamente, como em pleno dia: nada de glutonerias e bebedeiras, nem de orgias sexuais e imoralidades, nem de brigas e rivalidades.” (Rm 13, 13) Tudo isso era o que realmente as pessoas faziam naquelas festas pagãs. Porém, os cristãos não devem proceder iguais a eles, mas devem dar o exemplo de filhos da luz. Recordemo-nos que Paulo pregava em Roma nos tempos de Nero, quando o cristianismo era uma religião proscrita e os cristãos eram tidos como inimigos do Estado Romano, precisando reunir-se às escondidas, para a celebração dos seus cultos religiosos. Paulo pregava nas catacumbas e apenas secretamente visitava as residências dos cristãos romanos, correndo o risco de ser denunciado e preso, como de fato o foi por diversas vezes. Mas o risco valia a pena, porque divulgar o cristianismo em Roma, a capital do mundo de então, significava muito para a propagação de sua doutrina. A prova está em que, quando Constantino decretou a liberdade religiosa, grande parte da comunidade romana já era adepta do cristianismo, embora às escondidas.

A leitura do evangelho é retirada de Mateus. Estamos iniciando um novo ano e a cada ano, um dos evangelhos recebe o destaque para as leituras. No ano litúrgico de 2014, o escolhido é Mateus. Então, lemos hoje o texto do cap. 24, 37 a 44, no qual Jesus fala aos discípulos sobre a sua vinda nos últimos tempos. Assim como nos tempos de Noé, quando ocorreu o dilúvio sem ninguém esperar, assim também será a vinda gloriosa de Cristo. Por isso, todos devem estar vigilantes sempre, porque na hora em que menos a gente pensa, o Filho do Homem virá. Sorrateiro como um ladrão, o Filho do Homem irá surpreender muita gente. Ninguém sabe quando será este dia, ou melhor, ninguém sabe quando será o seu dia. Nos dias atuais, a reflexão teológica prefere interpretar esses discursos escatológicos de Jesus de forma diferente do que tradicionalmente se entendia, isto é, não como um fenômeno coletivo, de proporções globais, mas como um evento privado que acontece na vida de cada pessoa. De fato, o Senhor já se encontra na sua glória e, em vez de ser Ele que venha ao nosso encontro, nós, ao contrário, é que nos dirigiremos a ele. Vejamos o texto do evangelho: “Dois homens estarão trabalhando no campo: um será levado e o outro será deixado. Duas mulheres estarão moendo no moinho: uma será levada e a outra será deixada.(Mt. 24, 40-41) Se o evento final fosse de ordem generalizada, todos seriam arrebatados simultaneamente, não faria sentido um ser levado e outro deixado. Se o final dos tempos fosse ocorrer como um grande cataclismo de proporções gigantescas, como entenderam os artistas da Renascença e assim pintaram nos seus quadros clássicos, não ocorreria de alguém ser poupado, mas a destruição alcançaria a todos. Será mais lógico concluir que essa arrebatação para prestar contas das suas ações ocorrerá em nível histórico e individual. Por isso é que cada um deve estar sempre vigilante, pois ninguém sabe o dia nem a hora em que isso ocorrerá.

Portanto, o ensinamento de Cristo para que estejamos sempre vigilantes não se refere a um tempo abstrato e indefinido, mas ao nosso tempo existencial. A nossa fé n'Ele deve ser renovada a cada dia, para que não sejamos surpreendidos, não pelo fim do mundo, porque deste nós não sabemos nada, mas pelo fim dos nossos dias, porque estes têm um prazo até certo ponto previsível. A contagem dos nossos dias em meses e anos nos dão a medida para cada um avaliar a chegada ao final da carreira, quando deveremos estar com a fé robustecida e a esperança sempre renovada. O tempo do natal é o período que a Igreja nos coloca para fazermos esta reflexão realista, não como forma de intimidação ou aterrorização, mas como exercício de viver conscientes e centrados nos nossos compromissos de cristãos.

Aproveitemos o tempo do advento para renovar a cada dia a nossa fé na sua divina promessa.

domingo, 24 de novembro de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 34º DOMINGO COMUM - FESTA DE CRISTO REI - 24.11.2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 34º DOMINGO COMUM – FESTA DE CRISTO REI – 24.11.2013.

Caros Confrades,

Como é praxe, neste 34º domingo comum, que encerra o ano litúrgico, a Igreja celebra a festa de Cristo Rei do Universo. Recordando um pouco a história, esta celebração foi instituída em 1925, pelo Papa Pio XI, no período histórico que mediou entre as duas grandes guerras mundiais e num momento de grande descrença nas religiões e a consequente ascensão do ateísmo no mundo, situação muito parecida com a que nos encontramos hoje. Conforme já tive oportunidade de manifestar em ocasião anterior, a mim parece que esse destaque à figura de Jesus como rei não condiz com a vivência histórica que ele teve, bem como também não combina com o momento político mundial, no qual os reinos são praticamente inexistentes. Trata-se de uma figura apelativa para o romantismo de uma época em que a figura do rei representava o grande pai de todos, imagem que de modo algum é comparável aos nossos governantes modernos. Estou até curioso para ler os sermões do Seráfico Papa referentes ao domingo de hoje, a fim de ver se ele se mantém ligado à tradição triunfalista da Igreja, o que não é bem o estilo dele.

Passando à nossa reflexão acerca das leituras litúrgicas de hoje, vemos na primeira leitura, um trecho do segundo livro de Samuel (2Sm 5, 1-3), no qual é narrada a unção de Davi como rei de Israel. O rei Davi é uma das figuras mais emblemáticas do Antigo Testamento, juntamente com o filho dele, Salomão, outro grande governante, os dois fizeram histórias e lendas junto ao povo de Israel. Tão simbólica foi a missão do rei Davi que os profetas anunciaram que o Messias tão esperado de Israel nasceria de uma família da sua estirpe. Com efeito, tanto José, esposo de Maria, quanto ela própria eram da “casa de Davi”. As profecias antigas diziam que o Messias nasceria de uma mulher descendente de Abraão, da tribo de Judá e da família de Davi. Portanto, essa leitura do segundo livro de Samuel relaciona a realeza de Davi com a realeza de Cristo. Cristo é rei por ser descendente do mais importante rei de Israel. Essa é a ligação feita pelos teólogos desde a Idade Média, o que se justificava bem naquela época, em que a realeza era a forma de governo dominante, praticamente a única existente. E dentro da regra da hereditariedade, para alguém ter direito ao trono real, era necessário demonstrar que o herdeiro era descendente de um rei. No entanto, logo nos primórdios do cristianismo, o evangelista Mateus já buscava demonstrar, através das citações genealógicas, o vínculo familiar que unia Cristo ao rei Davi, afirmando assim o cumprimento das profecias. Mateus faz isso de uma forma bastante cuidadosa, quando no seu texto (Mt 1, 1-17) detalha a listagem genealógica de Jesus, elencando três períodos de 14 gerações, a partir de Abraão até chegar a Ele. De Abraão a Davi são 14 gerações, de Davi até o cativeiro da Babilônia, outros 14, e do final do cativeiro até o Messias são mais 14. De acordo com os biblistas, isso tem uma explicação matemática, porque a correspondência das letras hebraicas do nome de Davi com os números, somando-as, dá 14 como resultado. A soma é assim: em hebraico, escreve-se Dawid, com w. Na numerologia hebraica, o D=4 e o W=6, já as vogais não existiam no hebraico, por isso não entram na soma. Então, o total será D+W+D=4+6+4=14. Como os Confrades podem perceber, numerologia também faz parte da Bíblia e Mateus devia ser um especialista na matéria.

Temos na segunda leitura um trecho da carta aos Colossenses (Cl 1, 12-20), na qual Paulo faz um grande discurso apologético acerca da divindade de Cristo. “Ele é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação, pois por causa dele foram criadas todas as coisas no céu e na terra, as visíveis e as invisíveis, tronos e dominações, soberanias e poderes. Tudo foi criado por meio dele e para ele.” (2Cl 1, 15-16) Observa-se que Paulo não economiza nos qualificativos, ao contrário, faz uma suprema exaltação da figura de Cristo, embora não use o título de rei. Jesus é o princípio de todas as coisas e o primogênito dentre os mortos e alcançar a glória da ressurreição. O texto de Paulo é um autêntico hino à realeza de Cristo, sem citá-la. Com certeza, Paulo escreveu isso sem conhecer o texto do evangelho de Mateus (as cartas de Paulo são mais antigas), pois talvez se o tivesse conhecido, teria mencionado também a ascendência real de Cristo na sua origem terrena. O discurso de Paulo se direciona para a ascendência de Cristo no plano divino, mostrando a estreita relação d'Ele com o Pai: “porque Deus quis habitar nele com toda a sua plenitude e por ele reconciliar consigo todos os seres.” (2Cl 1, 19-20) Portanto, embora não mencione a palavra rei”, Paulo deixa isso subentendido nos vários conceitos utilizados para realçar a Sua personalidade divina. Nesse contexto, Paulo também relaciona a figura de Cristo como Cabeça da Igreja, cujo corpo somos nós, criando assim a doutrina do corpo místico de Cristo, largamente aplicada na teologia e na catequese.

No evangelho de Lucas (Lc 23, 35-43), lemos um trecho da narrativa dos eventos relativos à paixão de Cristo, quando Ele dialoga com os ladrões, que foram crucificados ao Seu lado. O mau ladrão debocha dele, desafiando-O a salvar-se e a salvar também os outros dois condenados. Por outro lado, o bom ladrão repreende o comparsa e confessa seu arrependimento, pedindo que Jesus o acolha no Seu reino. Esse diálogo é bem conhecido, porque é sempre repassado na liturgia da Semana Santa e foi sempre muito reproduzido também na catequese tradicional. Mas a leitura desse trecho sempre me faz recordar dois pensamentos. O primeiro diz respeito a uma discussão que eu ouvi, certa vez, na redação do jornalzinho do Seminário, quando dois colegas discutiam o significado da expressão latina que reproduzia o dito de Pilatos, quando foi perguntado pelos fariseus por que escrevera aquele letreiro aposto na cruz (INRI-Iesus Nazarenus Rex Iudeorum), ao que Pilatos teria respondido “quod scripsi, scripsi” (o que escrevi, escrevi – literalmente). O segundo pensamento diz respeito a quem teria escutado e transmitido esse diálogo entre Jesus e os ladrões. Sabemos que os apóstolos haviam debandado, junto à cruz estavam apenas João, Maria e algumas mulheres, que olhavam à distância. Pois bem, João não relata esse diálogo no seu texto. Os outros dois evangelistas, Marcos e Mateus, apenas se referem aos malfeitores crucificados com ele, sem mencionarem o diálogo, que só aparece no texto de Lucas. Ora, sabemos que Lucas, sendo médico, cuidou de Maria e por certo ouviu dela relatos intimistas referentes à vida de Jesus, que os outros escritores não tomaram conhecimento. Por essa linha de raciocínio, podemos concluir como provável que tal diálogo tenha sido escutado e memorizado por Maria, mãe de Jesus, que posteriormente o segredou a Lucas. Não me parece crível que algum dos soldados que participaram da execução tenha se preocupado com isso. E se João tivesse prestado atenção nesses detalhes, certamente também os teria relatado. Mas o olhar e o ouvido da Mãe captaram coisas que passaram despercebidas a todas as outras pessoas. É impressionante essa capacidade que as mães têm para perceber mensagens até subliminares no comportamento dos filhos.

Meus amigos, apesar de discordar desse aparato que a liturgia atribui à figura de Cristo como rei, entendo que Ele é verdadeiramente o soberano da verdade, da justiça, da paz, da igualdade e da fraternidade e que, para isso, ele não precisa de um manto real nem de um cetro nem de um trono, porque o seu manto é a verdade, o seu trono é a justiça e o seu cetro é a paz que Ele vem nos trazer todos os dias, ensinando-nos a viver em fraternidade e harmonia. É disso que a sociedade precisa e compete a nós, cristãos, dar exemplo público dessa fraternidade e harmonia de Cristo nas nossas vivências cotidianas.


domingo, 17 de novembro de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 33º DOMINGO COMUM - VIGILÂNCIA E PRONTIDÃO - 17.11.2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 33º DOMINGO COMUM – VIGILÂNCIA E PRONTIDÃO – 17.11.2013

Caros Confrades,

A liturgia deste 33º domingo comum, o penúltimo do ano eclesiástico, nos convida a refletir sobre aquelas coisas que ocorrerão no final dos tempos, o que nós aprendemos no catecismo com o nome de “novíssimos”, a segunda vinda de Cristo. No próximo domingo, com a festa de Cristo Rei do universo, encerrar-se-á o ano litúrgico de 2013. Então, teremos o tempo do advento e o início do ano novo eclesiástico.

As leituras deste domingo trazem como tema a vigilância e a prudência, que devem marcar a vida do cristão, crente na promessa de Cristo de que retornará no final dos tempos e, como não se sabe quando será tal apoteose, deve-se estar sempre preparado. A conhecida descrição evangélica dos últimos tempos já foi objeto de interpretações variadas ao longo da história, em diversas ocasiões, as pessoas perceberam, nos fatos do seu tempo, a identificação com as predições de Cristo. Ainda hoje, isso ocorre. Sempre que alguma notícia sobre fatos absurdos ou abomináveis é divulgada, os “profetas” tentam identificar neles as catástrofes previstas por Cristo. Porém, o próprio Cristo disse que somente o Pai sabe quando será isso e nem ao Filho Ele o revelou. Naturalmente, ele assim se referia ao “filho do Homem”, isto é, à sua natureza humana.

É interessante observar que, desde o Antigo Testamento, já havia presságios dos Profetas acerca de agouros maus que estariam por acontecer. Na leitura de Malaquias (Ml 3, 19-20), este Profeta se refere ao “dia, abrasador como fornalha, em que todos os soberbos e ímpios serão como palha; e esse dia vindouro haverá de queimá-los, diz o Senhor dos exércitos, tal que não lhes deixará raiz nem ramo.” (Ml 3, 19). Desde que os Patriarcas antigos narraram que houve outrora uma grande inundação (dilúvio) e o mundo todo sucumbiu debaixo da água, as pessoas criaram a ideia de que, da próxima vez, o mundo seria destruído pelo fogo. Isso é uma crença muito antiga, mas ainda hoje é recorrente na nossa cultura religiosa popular. No ano de 1910, quando estava se aproximando da terra o cometa Halley, pelos poucos conhecimentos daquela época sobre esse fenômeno cósmico, as pessoas viam aquela imensa “bola de fogo” se tornando cada vez maior e ficaram esperando apenas o momento final da destruição da terra. De repente, aquela luz se desfez, porque a terra atravessou a cauda gasosa do cometa. Mas a notícia do fogo destruidor permanece viva.

Na segunda leitura, de Paulo aos Tessalonicenses (2Ts 3, 7-12), o Apóstolo bate cabeça com aquela comunidade, onde se havia espalhado a informação de que Jesus “estava para chegar”, na sua segunda vinda, e assim as pessoas já não faziam mais nada, abandonaram os trabalhos e viviam à toa, apenas aguardando o momento. Paulo manda-lhes um recado desaforado: eu (Paulo), que até poderia me prevalecer da função de pregador para obter o sustento pela comunidade, me dedico ao trabalho dia e noite, a fim de obter o meu sustento, então, quem não quer trabalhar, também não deve comer. Diz ele: “Bem sabeis como deveis seguir o nosso exemplo, pois não temos vivido entre vós na ociosidade. De ninguém recebemos de graça o pão que comemos. Pelo contrário, trabalhamos com esforço e cansaço.” (2Ts 3, 7-8). Uma interpretação falsa da promessa de Cristo estava atrapalhando a vida daquela comunidade, o que Paulo tentava esclarecer na sua correspondência. Conforme vimos no domingo passado, essa comunidade deu muito trabalho a Paulo. Circulou por lá uma carta anônima, que era atribuída a Paulo e muito o preocupou porque continha ensinamentos equivocados. Foi de lá que Paulo teve de sair fugido, porque os judeus a quem ele desagradara o procuravam para matá-lo. Enfim, uma comunidade trabalhosa, onde as pessoas tinham dificuldade em compreender a sua doutrina, mesmo tendo recebido instrução. Situações parecidas ocorrem ainda hoje, quando vemos pessoas que leem a Bíblia mas, em vez de buscar retirar da leitura o seu sentido mais coerente e produtivo, apegam-se a detalhes insignificantes, que deturpam a mensagem.


Na leitura de hoje do evangelho de Lucas (Lc 21, 5-19), Jesus faz aquela famosa previsão da destruição do templo de Jerusalém, que era entendida pelos judeus como a maior desgraça que lhes poderia acontecer. “Dias virão em que não ficará pedra sobre pedra. Tudo será destruído.'” (Lc 21, 6) Esse fato histórico se deu no ano 70, quando o exército romano invadiu Jerusalém e destruiu o templo. No entanto, perguntando os ouvintes a Jesus quando aquilo iria ocorrer, ele respondeu evasivamente: “cuidado para não serdes enganados...” (Lc 21, 8), porque muitas pessoas irão dizer que o tempo está próximo, mas não acreditem nessa gente. Muitas coisas irão acontecer: guerras, revoluções, tsunamis, terremotos, desastres ambientais, mas as piores são aquelas coisas perpetradas pela maldade dos homens: “'Um povo se levantará contra outro povo, um país atacará outro país. Haverá grandes terremotos, fomes e pestes em muitos lugares; acontecerão coisas pavorosas e grandes sinais serão vistos no céu.” (Lc 21, 10-11). Até parece com as notícias veiculadas diariamente na imprensa. Nas últimas semanas, circulou em Fortaleza a notícia de uma grande onda do mar, que chegaria no dia 24 de novembro (próximo domingo) em todo o nordeste brasileiro, inundando e destruindo tudo. Muitas pessoas apavoradas, principalmente aquelas que moram próximas da praia, já estão em polvorosa, algumas colocando suas casas à venda e planejando a mudança para o interior do Estado. Fico imaginando essas pessoas ouvindo as leituras litúrgicas deste domingo, irão concluir que até a Igreja está confirmando a notícia. Tudo isso é fruto do sensacionalismo midiático (eu diria terrorismo midiático), associado àquela vetusta catequese tradicional, que apelava sempre para a ameaça aos castigos, como forma de convencer as pessoas a praticarem o bem.
Precisamos compreender esse trecho do evangelho em concordância com os versículos que vêm a seguir, pelos quais Jesus diz que, antes que isso aconteça, a nossa fé passará por provações. “Antes, porém, que estas coisas aconteçam, sereis presos e perseguidos; sereis entregues às sinagogas e postos na prisão; sereis levados diante de reis e governadores por causa do meu nome. Esta será a ocasião em que testemunhareis a vossa fé.” (Lc 21, 12-13) Meus amigos, no sentido histórico, Jesus se referia aí às perseguições pelas quais passariam os Apóstolos e os primeiros cristãos, como de fato a história documentou. Mas no sentido trans-histórico, o texto se refere a nós, hoje. A nossa fé está a enfrentar contínuas provações, perseguições, ameaças dentro e fora do ambiente religioso. Hoje, eu li um texto terrível, escrito por uma pessoa que se diz católica e que nós podemos classificar como extremista e intolerante. Falando acerca da Teologia da Libertação, disse esse intelectual: ou expulsamos os traidores de dentro da Igreja, ou será impossível salvar o Brasil. Não estou aqui a defender a Teologia da Libertação, mas me refiro à atitude totalmente antirreligiosa de uma pessoa que se diz católica. Ou seja, as ameaças contra a fé não se originam apenas dos inimigos da religião, mas de dentro da própria comunidade eclesial. No extremo oposto, está o Papa Francisco que, quando indagado sobre a opinião dele acerca do homossexualismo, declarou: “quem sou eu para julgar essas pessoas?” Fico aqui imaginando o volume de ameaças que o Seráfico Papa recebe, de forma direta, dos seus próprios pares no Vaticano, e de forma indireta, de alguns grupos de fiéis, espalhados por todo o mundo.

Então, voltando ao tema que propusemos no início, a vigilância e a prontidão que devemos guardar não se refere apenas às ameaças externas, mas o inimigo pode estar no meio de nós. Qual é a conduta a seguir para nos mantermos vigilantes e preparados para enfrentar todas essas provações? Em primeiro lugar, a retidão de consciência e a boa vontade de progredir sempre mais como pessoa. Em segundo lugar, o estudo e a reflexão sobre a autêntica religião de Cristo. Não basta ler a Bíblia, é preciso conhecê-la e aprofundá-la pelo estudo sério e bem fundamentado, evitando-se extremismos e simplismos de toda ordem. A fé não se sustenta apenas com a oração. Esta é necessária, mas o estudo da doutrina e de suas fontes é igualmente indispensável.


domingo, 10 de novembro de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 32º DOMINGO COMUM - A CRENÇA NA VIDA ETERNA - 10.11.2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 32º DOMINGO COMUM – A CRENÇA NA VIDA ETERNA – 10.11.2013

Caros Confrades,

Neste 32º domingo comum, a liturgia ainda repercute a celebração dos fiéis defuntos, trazendo como tema a crença na vida eterna. Esse assunto sempre foi motivo de polêmica desde os povos mais antigos, encontrando defensores e opositores. Na Grécia antiga, os pitagóricos e os órficos acreditavam na vida após a morte e afirmavam a possibilidade da comunicação com os mortos, no que eram vigorosamente combatidos pela política oficial. Na cultura romana, a crença na vida após a morte estava presente nas tradições familiares, com os deuses “lares” e “penates”. Na tradição cristã, observam-se divergências não propriamente na crença na vida eterna, mas na forma de prestar culto aos mortos. O catolicismo tem como sua principal fonte doutrinária sobre esses rituais os dois livros de Macabeus, porém os protestantes consideram esses livros como apócrifos e discordam da doutrina católica. A primeira leitura da liturgia de hoje traz um trecho do segundo livro de Macabeus (7, 1-14);

Antes, uma breve explicação. O nome Macabeu era o apelido dado a Judas, filho de Matatias, que foi sucessor daquele no comando do exército rebelde de Israel, no tempo em que o povo hebreu estava dominado pelos selêucidas. Não eram escravos, mas eram submissos politicamente ao rei Antíoco. O grande problema trazido por essa dependência dizia respeito à não observância da lei de Moisés, por imposição dos dominadores. Matatias organizou um exército formado por pessoas que não concordavam com essa dominação e permaneciam fiéis à lei mosaica, e enfrentou o exército do opressor com tática de guerrilhas, vencendo sucessivamente até retomar Jerusalém e fazer a rededicação do Templo, que havia sido profanado. Com a morte de Matatias, assumiu o comando das tropas o filho dele de nome Judas, que por suas atitudes sempre firmes e exitosas foi apelidado de “macabeu”, que significa “martelo”. Ele era o martelo que detonava sobre as cabeças dos inimigos. Os dois livros de Macabeus não estão na Bíblia hebraica, mas seu conteúdo é considerado de grande valor histórico, por relatar um período importante da história de Israel. A Igreja Católica o colocou no seu cânon, tendo sido esse um dos motivos do “protesto” de Lutero.

O trecho lido na liturgia de hoje, narra o episódio em que uma mulher e seus sete filhos, que eram fiéis seguidores do judaísmo, e foram levados à presença do rei, que os obrigara a comer carne de porco, o que era proibido pela lei de Moisés. Todos se recusaram e foram assassinados um após o outro, inclusive a mãe deles. Mas, à parte essas cenas sangrentas, o objetivo da leitura é demonstrar a fé que essa família tinha na vida eterna. Todos deram testemunho perante o rei selêucida e seus comparsas sobre a fidelidade à lei de Moisés, preferindo a morte a transgredir a lei. Diz a leitura que o rei e seus acompanhantes ficaram admirados com a coragem de um dos filhos da viúva, um adolescente, que ao ser torturado, fez uma emocionante profissão de fé: “E disse, cheio de confiança: 'Do Céu recebi estes membros; por causa de suas leis os desprezo, pois do Céu espero recebê-los de novo'. ” (2Mc 1, 11) Não faz parte do trecho lido, mas o redator destaca que a mãe deles os incentivou a cada um para que se mantivessem firmes na fé, confiantes na promessa da vida eterna. A tradição não guardou os nomes desses heróis do judaísmo, mas o seu exemplo continua edificante. Comer a carne de porco podia parecer algo insignificante, se comparado ao resultado que os esperava, mas a sua firmeza na fé era tamanha que suportaram todos os suplícios, para não violarem a lei. Por falar nisso, ainda hoje, entre os protestantes, a carne de porco é um alimento proibido, em obediência à lei de Moisés. A hermenêutica teológica católica não recomenda essa interpretação restrita e literal dos textos sagrados, devendo o fiel dar preferência à mensagem neles contida.

A segunda leitura é retirada da carta de Paulo aos Tessalonicenses (2Ts 2,16-3,5). Conforme os biblistas, a primeira carta aos fiéis de Tessalônica teria sido uma das primeiras escritas por Paulo. Naquela cidade, Paulo teve um entrevero com os judeus, o que o obrigou a fugir de lá para não sofrer violência deles. Daí por que, na segunda carta, Paulo escreveu assim: “Rezai também para que sejamos livres dos homens maus e perversos pois nem todos têm a fé! Mas o Senhor é fiel; ele vos confirmará e vos guardará do mal.” (2Ts 3, 2-3) Essa polêmica com os judeus de Tessalônica fez com que circulassem por lá boatos sobre uma carta falsa de Paulo, que teria chegado depois. Por esse motivo, a segunda carta aos Tessalonicenses tem sua autoria posta em dúvida por alguns estudiosos protestantes, porém entre os teólogos católicos, tais dúvidas não são relevantes. A grande questão se situa no fato de que, na primeira carta, Paulo falava que Cristo estava para voltar, o que fez os tessalonicenses interpretarem como se isso fosse ocorrer naqueles dias. Alguns até ficaram sem trabalhar e sem fazer mais nada, só esperando o retorno de Cristo. Na segunda carta, Paulo os tranquiliza dizendo que a vinda de Cristo não seria assim de surpresa, porém antecedida por muitos sinais. Os dissidentes encontram nessas duas passagens motivos para duvidar da sua autenticidade, como se Paulo estivesse ensinando doutrinas diferentes. Ao meu ver, essa polêmica é resultado da interpretação puramente literal dos textos, sem a necessária contextualização histórica. A relação com o tema litúrgico está justamente na exortação de Paulo para que todos perseverem firmes na fé, esperando a nova vinda de Cristo.

Na leitura do evangelista Lucas (20, 27-38), vemos Jesus explicar aos saduceus a doutrina da ressurreição, sobre a qual eles duvidavam e colocavam questões. Os saduceus eram os judeus da aristocracia, aqueles que ocupavam os cargos políticos mais elevados, inclusive como membros do Sinédrio. Apoiavam os romanos e preocupavam-se mais com a política do que com a religião. Diferentemente dos fariseus, que sempre tentavam colocar Jesus em dificuldades, os saduceus foram interrogá-lo sobre a doutrina da ressurreição, porque compreendiam a vida eterna da mesma forma como a vida atual. Jesus vai, então, explicar que após a morte “os que forem julgados dignos da ressurreição dos mortos e de participar da vida futura, nem eles se casam nem elas se dão em casamento (27, 35)“, isto é, a vida futura não pode ser comparada com as relações da vida terrena. E faz lembrar a eles, que assim como os fariseus, também cumpriam à risca a lei de Moisés, que a doutrina da ressurreição já está presente na Torah, basta eles entenderem: “Que os mortos ressuscitam, Moisés também o indicou na passagem da sarça, quando chama o Senhor de 'o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó'. ” (Lc 27, 37) Ou seja, o Deus de Israel não é Deus dos mortos, mas dos vivos. Abraão, Isaac e Jacó estão vivos em Javeh porque ressuscitaram. Embora não tenha utilizado essa palavra, no entanto, Moisés já ensinara sobre a ressurreição. Portanto, o que Jesus estava dizendo não era uma coisa nova, inventada por ele, mas algo que já estava contido na lei mosaica, bastando uma leitura mais atenta e com a mente mais aberta.

Meus amigos, essa doutrina da vida eterna, da ressurreição, é um dos pontos chaves do cristianismo. Paulo foi muito enfático em 1Cor 15, 14, quando afirmou que se Cristo não ressuscitou, vã é a nossa fé. A ressurreição de Cristo é a chave para a nossa crença na vida eterna. No Antigo Testamento, a vida futura era apenas presumida, por conta da aliança e da promessa de Javeh, motivo pelo qual os hebreus acreditavam que os seus Patriarcas permaneciam vivos e Moisés ensinou isso na sua pregação. Mas no Novo Testamento, com a ressurreição de Cristo, essa crença é confirmada por inúmeros fatos e testemunhos do seu aparecimento e da catequese que ele continuou a ministrar aos apóstolos, até o dia de Pentecostes. A partir da ressurreição de Cristo, a crença na vida eterna não é apenas uma presunção, mas uma verdade que inclui uma certeza de que aqueles que forem fiéis ao Evangelho também ressuscitarão. Daí porque os livros de Macabeus são postos no rol dos livros canônicos, por uma questão de coerência doutrinária. Na liturgia deste domingo, essas leituras são colocadas em conjunto para mostrar a compatibilidade entre elas acerca desse polêmico tema. Porém, devemos estar atentos à exortação de Jesus aos saduceus: na vida eterna, as relações pessoas serão de outra ordem, para isso, não servem de parâmetros as regras sociais de convivência entre as pessoas. Lá, todos serão iguais a anjos (Lc 27, 36), por esse motivo a doutrina do espiritismo não se coaduna com a doutrina católica sobre a vida eterna, por fazer uma simples transferência dos modos relacionais na vida terrena e na vida espiritual.


domingo, 3 de novembro de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - IMENSA MULTIDÃO - 03.11.2013 - FESTA DE TODOS OS SANTOS

COMENTÁRIO LITÚRGICO – IMENSA MULTIDÃO (TODOS OS SANTOS) – 03.11.2013

Caros Confrades,

A liturgia deste domingo traz a comemoração da festa de Todos os Santos, transferida do dia 1 para hoje, conforme acordo entre a CNBB e o Governo. Tomei como tema a referência feita na leitura do Apocalipse sobre a visão joanina de “uma grande multidão de gente de todas as nações, tribos, povos e línguas, que ninguém podia contar.” Essa multidão, que se sucedeu à visão daqueles assinalados, os membros das doze tribos de Israel, somos nós, os cristãos espalhados pelos quadrantes do universo conhecido, e que poderão ser ainda mais, se pensarmos na possibilidade de outros mundos habitados.

Nesta semana, eu estava lendo no jornal sobre a romaria de finados, em Juazeiro, com um número estimado de 600 mil pessoas, dos diversos Estados do nordeste. Foi do que me recordei, ao fazer a leitura de hoje do texto apocalíptico de João. Alguns daqueles romeiros diziam: eu venho aqui há vinte anos seguidos... trinta anos seguidos... Uma senhorinha revelou: eu comecei vindo aqui trazendo o meu filho menino, hoje é ele quem me traz. Meus amigos, com o que podemos relacionar essa multidão de fiéis, senão com a imensa multidão descrita no texto de João, tanta que ninguém podia contar? Alguém poderá contradizer: ah, mas isso não é fé cristã, é cultura, é fanatismo religioso. Seja qual for o nome que queiramos dar, para as pessoas que experimentam isso, é a mais autêntica fé que eles sabem expressar. Vê-se isso nos seus semblantes, nas suas atitudes. Falando hoje com o Frei Barbosa, Pároco do Santuário de Juazeiro, ele dizia que alguns caminhões de romeiros foram interceptados pelas patrulhas rodoviárias, por falta de segurança. Mas o romeiro explica de um jeito tipicamente seu: romaria tem que ser em pau-de-arara. E pau-de-arara é sinônimo de desconforto e de insegurança, quem segura tudo é a fé dos romeiros.

Logo a seguir, na leitura litúrgica de hoje do Apocalipse (Ap 7, 13), João dialoga com um ancião, que lhe perguntou: quem são essas pessoas? João não soube responder e o próprio ancião completou: São os que vieram da grande tribulação, lavaram e alvejaram as suas roupas no sangue do Cordeiro. Ora, só podiam ser nordestinos, que saíram da grande tribulação da seca e foram fortalecer a sua fé batismal nos lugares sagrados ciceronianos. Hoje, no sermão da missa, o Monsenhor Manfredo Ramos comentou que, nos primeiros dez séculos do cristianismo, quem proclamara os santos era o povo, não havia a proclamação oficial pelo Papa, a conhecida canonização. Somente a partir do primeiro milênio, o Papa atraiu para si essa tarefa. Todos sabemos que o nosso povo já proclamou santo o Padre Cicero, independentemente de qualquer pronunciamento oficial eclesiástico. Se olharmos o fato pela antiga tradição da proclamação dos santos, o povo nordestino está seguindo a regra primitiva, mesmo que a hierarquia oficial não tome conhecimento disso.

Meus amigos, essa é a autêntica comunhão dos santos, a Igreja peregrina se unindo com a Igreja celestial através da fé. Quem nunca esteve presente numa romaria não consegue avaliar o grau de seriedade com que o romeiro se comporta. Uma coisa é a reportagem que se vê pela televisão, outra coisa é o fenômeno que se observa e a energia que se sente emanar dessas pessoas. No Apocalipse, João fala no número dos que foram marcados na fronte (Ap 7, 4) para serem salvos, cujo quantitativo era de cento e quarenta e quatro mil. Ora, somente em Juazeiro, nesta semana, este número estava mais do que quadruplicado. A previsão de João deve ser, portanto, calculada com a correção do fator multiplicador do tempo decorrido, sendo mais coerente a passagem do versículo 9, onde ele diz que ninguém podia contar a multidão. Nós não somos descendentes genéticos das doze tribos de Israel, mas todos nós lavamos e alvejamos nossas roupas no sangue do Cordeiro, portanto, também fomos assinalados para a salvação. Se nós computarmos as diversas comunidades de igrejas cristãs, então esse número se torna deveras incontável. Dentro de uma perspectiva ecumênica, todos os que foram validamente batizados, foram assinalados na testa com o sinal da salvação.

A segunda leitura, que também é da autoria de João, complementa o tema acima, quando afirma que desde já somos filhos de Deus, embora ainda não tenha se manifestado em nós o que seremos. Essa manifestação somente ocorrerá no futuro, “quando Jesus se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque o veremos tal como Ele é.” (1Jo 3, 2). Ou seja, pelo batismo, somos assinalados e já podemos ser chamados filhos de Deus, embora essa condição só se resolva de modo pleno na futura morada de todos nós. Este foi o grande presente que Deus nos deu, diz João, o de sermos chamados Seus filhos desde já. E isso é possível por causa da redenção trazida por Cristo, que apagou todos os nossos pecados e nos abriu as portas da morada divina. Essa situação é descrita na teologia como a tensão do “já e ainda não”, isto é, já somos filhos de Deus, porém, ainda não o somos plenamente. O teólogo Francis Scraeffer, no seu livro “A verdadeira espiritualidade” (p. 89), assim explica essa doutrina: “A salvação, no sentido em que essa palavra é usada na Bíblia, é mais ampla do que a justificação. Na salvação, há passado, futuro e, com o mesmo grau de realidade, há presente. A obra infinita realizada por Cristo na cruz traz mais do que justificação ao cristão. No futuro, haverá a glorificação. Quando Cristo retornar, haverá a ressurreição do corpo e a eternidade; mas há também um aspecto em que a salvação é presente. A santificação constitui nosso atual modo de relacionamento com o Senhor, é a nossa conjugação verbal presente na vida de comunhão com Deus”. Achei interessante esse texto e o reproduzi aqui porque, em outras igrejas cristãs, prega-se a justificação do fiel em Cristo, mas o teólogo explica que o conceito de salvação está muito acima da simples justificação, porque inclui desde a forma da vida atual, no mundo corporal, e se prolonga até a vida definitiva, sendo coerente com a passagem da carta de João citada logo acima (3, 2), “quando Jesus se manifestar”. Essa doutrina do “já e ainda não” foi um dos temas que achei mais interessantes no decorrer do curso de teologia. Esse conjunto de palavras expressa de uma forma dinâmica o estado da nossa vida de fé que, por ora nos deixa ver as coisas como encobertas por um véu, como diz Paulo na carta a Coríntios:” …porque agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido” [1Coríntios 13].

A riqueza litúrgica da festa da comunhão dos santos se completa com o famoso sermão da montanha, no qual Cristo chama a todos de bem aventurados. Dizer que somos bem aventurados é o mesmo que dizer que somos santos. Em latim, bem aventurados = 'beati' (plural de beatus), que é a mesma palavra que em português se traduz por 'felizes', tanto assim que algumas traduções do evangelho usam esta palavra nos textos. Curiosamente, Cristo chama de bem aventurados todos aqueles que, pelo status social, seriam pessoas desventuradas. Esse assunto se encaixa com o tema do evangelho do domingo comum, que cedeu o lugar para a festa de Todos os Santos, e que narra o episódio em que Jesus foi hospedar-se na casa de Zaqueu. Este era um cobrador de impostos, portanto, um publicano, um pecador público, um excluído do mundo religioso pela hipocrisia dos fariseus. No entanto, pela sua fé, ele ganhou a condição de “beatus”, quando Jesus mandou que ele descesse da árvore, pois Ele queria hospedar-se na sua casa. Ora, pensavam os fariseus ao verem aquilo, com tantas pessoas honradas e dignas nesta cidade, porque Jesus vai escolher a casa de um publicano para visitar? Pois é, dentro da lógica humana (e do próprio Zaqueu, que não imaginava que isso fosse acontecer), ele estaria fora dos “beati” referidos no sermão da montanha. Mas dentro da lógica de Cristo, a ele foi ofertada a salvação e ele muito que aceitou.

O Papa Francisco, no sermão que fez neste domingo para os fiéis que estavam na Praça de São Pedro, lembrou que o nome Zaqueu, em hebraico, significa “Deus recorda”, e fez o seguinte comentário: Não existe profissão ou condição social, não há pecado ou crime de qualquer gênero que possa cancelar da memória e do coração de Deus um filho sequer. “Deus recorda”, sempre, não esquece nenhum daqueles que criou; Ele é Pai, sempre à espera vigilante e amorosa de ver renascer no coração do filho o desejo de retornar à casa. E quando reconhece este desejo, mesmo que simplesmente manifestado, e tantas vezes quase inconsciente, imediatamente põe-se a seu lado, e com o seu perdão lhe torna mais leve o caminho da conversão e do retorno.O convite que Jesus fez a Zaqueu, ignorando que ele era um pecador público, assim como o sermão da montanha, no qual Ele exalta as virtudes contrárias ao que o mundo aceita, enche de esperança a todos nós, que ainda estamos na “grande tribulação” e, portanto, sujeitos às maiores adversidades no cumprimento fiel à nossa vocação cristã. A celebração de Todos os Santos nos coloca nessa corrente de fé em que, vivendo o “já”, preparamos aquilo que “ainda não” alcançamos.

Permaneçamos fiéis ao ensinamento de Cristo e para que possamos ser dignos de participar das suas promessas de santidade.