sábado, 25 de agosto de 2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 21º DOMINGO COMUM - PALAVRA DA VIDA

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 21º DOMINGO COMUM – PALAVRA DA VIDA – 26.08.2018

Caros Leitores,

As leituras litúrgicas deste 21º domingo comum nos convidam a refletir sobre a nossa vivência de fidelidade ao evangelho. Josué, ainda no deserto, reuniu o povo, que teimava em adorar as divindades pagãs, e lhes dá um ultimato: escolham a qual Deus ireis servir, pois somente os adoradores de Javeh terão acesso à terra da promessa. E Jesus, tempos depois, coloca também para os discípulos o mesmo desafio, quando eles reclamam que a palavra dele é muito dura: o que foi? isso vos escandaliza? Pois procurem outro rumo, só quero comigo, quem tiver coragem de ser assim. E foi então que Pedro respondeu pelos demais: calma, Mestre, só tu tens palavra da vida.

Na primeira leitura, do livro de Josué (cap. 24), ele, como sucessor de Moisés na condução do povo hebreu à terra prometida, verificando a contínua presença da idolatria entre os israelitas, convoca todos para uma grande assembléia e lhes põe a questão: a qual Deus ou deuses vocês irão adorar? “Se vos parece mal servir ao Senhor, escolhei hoje a quem quereis servir: se aos deuses a quem vossos pais serviram na Mesopotâmia, ou aos deuses dos amorreus, em cuja terra habitais.” Os amorreus eram o povo que habitava a terra de Canaã, quando o povo de Israel ali chegou, depois da marcha de quarenta anos pelo deserto. Essas tribos eram descendentes de Caim e, portanto, tinham parentesco de sangue, embora longínquo, com o povo de Israel, mas já não tinham fidelidade a Javeh e adoravam seus próprios ídolos. Por isso, Josué fez a pergunta e completou: “Quanto a mim e à minha família, nós serviremos ao Senhor”. Em resposta, o povo jurou mais uma vez fidelidade a Javeh: “nós também serviremos ao Senhor, porque ele é o nosso Deus.” A convocação de Josué tinha então o caráter de opção definitiva, isto é, estavam chegando ao destino final de sua peregrinação, ali iriam se estabelecer e assim quem permanecesse fiel à promessa receberia a recompensa, quem desistisse, arcaria com as consequências da sua opção pelos ídolos. O povo então renovou a promessa a Javeh.

Uma situação análoga é vivenciada por Cristo diante dos seus discípulos, logo após o milagre da multiplicação dos pães, nas proximidades de Cafarnaum. Para melhor compreensão do discurso de Cristo na leitura de hoje, precisamos ler as frases anteriores, no evangelho de João. No dia anterior, Jesus havia feito aquele extraordinário milagre da multiplicação dos pães. No dia seguinte, uma multidão se apresentou para ouvir Jesus. Notando aquele invulgar incremento dos seus ouvintes, Jesus ficou curioso e perguntou: “viestes à minha procura para me ouvir ou para comer novamente aquele pãozinho? Porque eu sou o verdadeiro pão do céu.” Então, eles pediram a Jesus um sinal, para que acreditassem n'Ele, assim como Moisés havia dado aos seus ancestrais o maná do deserto. Foi quando Jesus explicou: não foi Moisés quem deu a eles aquele pão, mas o meu Pai. E agora, ele me mandou, eu sou o pão vivo que ele mandou para vós. Os vossos pais comeram o maná no deserto e morreram, mas quem comer deste Pão não morrerá. O pão que Eu vos darei é a minha carne para a vida do mundo. O povo não entendeu, pois muitos achavam que Jesus estava ali para liderar uma revolta, para expulsar os romanos da Palestina, e ficaram balançando a cabeça, murmurando que Jesus devia estar louco. Como é que alguém pode dar a sua carne para outros comerem? Sabendo o que eles pensavam, Jesus completou: Em verdade vos digo, quem não comer a minha carne e beber o meu sangue não terá a vida. Isso agora foi demais. Muitos dos que o ouviram isso ficaram decepcionados, balançaram a cabeça, deram meia volta e começaram a se retirar.

Nesta situação embaraçosa, os discípulos ficaram preocupados se Jesus estava mesmo certo do que falava e disseram: este teu discurso é muito “duro”, quem será capaz de ouvi-lo? A palavra grega que foi traduzida por “duro” é “sklirós”, que tem o sentido de algo áspero, rígido, inflexível. É como se dissessem: a tua palavra causa um choque na gente, como é que alguém pode dar seu corpo para os outros comerem? Isso é impossível. Ao que Jesus respondeu: ah, isso vos escandaliza? Pois outras coisas mais duras haverão de acontecer. E vendo que alguns dos ouvintes começaram a dispersar-se, Jesus intimidou os seus doze escolhidos: vocês também querem ir embora? Eu sei que alguns dentre vocês não acreditam nisso. Foi quando Pedro, inspirado, acalmou a situação: calma, Senhor, não é isso, a quem iremos? Só tu tens palavra da vida eterna. Nesse diálogo, João evangelista deixa transparecer duas situações ocultas. Primeiro, Jesus sabia que muitos o procuravam com a esperança de que ele fosse um Messias político, guerreiro, e Ele quis deixar claro que sua missão era outra, o seu reino era de outra natureza. Segundo, ele sabia que mesmo entre os doze havia alguns inseguros e até reticentes.

Observamos uma clara analogia nesse diálogo de Jesus e seus discípulos com a situação vivenciada por Josué e o povo hebreu: resolvam agora, pegar ou largar. Jesus colocou para os discípulos a mesma opção que Josué colocou para o povo de Israel. E tal como no caso dos israelitas, que optaram por Javeh, também os doze renovaram sua opção pela missão de Cristo, cumpridor da vontade do Pai. Inclusive Judas, que resolveu ficar até a última hora, para ver o rumo que as coisas tomariam posteriormente. João diz textualmente no versículo 71 deste capítulo 6, que Jesus fez essa pergunta assim bem direta referindo-se a Judas. Mas não apenas ele. Além de Judas, Jesus sabia que havia outros discípulos fracos na fé, Ele sabia os que criam de fato e os que tinham dúvidas. Foi por isso que, após a ressurreição, Jesus passou ainda 'quarenta dias' na sua catequese final com os discípulos, preparando a vinda do Paráclito. Mesmo depois de ter concluído sua missão encarnada e ter-se imolado na cruz, Jesus continuou a preparar os discípulos para a sua missão futura, pois Ele sabia o material humano de que dispunha e sabia que, sem essa catequese residual, havia grande risco de dispersão, tal como acontecera com aqueles que, no relato de João, debandaram diante do seu duro discurso.

Na segunda leitura, da carta de Paulo aos Efésios (5, 21-32), o Apóstolo aconselha os casais cristãos a se comportarem com dignidade, respeitando-se mutuamente, amando-se reciprocamente, assim como Cristo ama a sua Igreja. Daqui Paulo evolui para a sua doutrina do corpo místico de Cristo. A linguagem paulina não é mais aplicável aos tempos atuais, na relação entre maridos e esposas, porque reflete a situação social da época em que ele viveu, por isso não pode ser interpretada em sentido literal. Paulo diz que as mulheres devem “ser submissas” aos maridos, porque o marido é a cabeça da mulher. Assim era a compreensão da união conjugal na cultura grego-romana, que se transferiu para o direito civil e perdurou até as últimas décadas. Porém, pelo menos dos anos oitenta para cá, no Brasil, deixou de ser aceita tanto no campo social quanto no campo jurídico essa ideia da submissão. Esse ponto de vista ainda se observa residualmente na cultura machista que marca a nossa tradição e é defendida pelos tradicionalistas. Por essa razão é que muitas pessoas não cristãs dizem que a Bíblia está cheia de erros e, por não terem interesse de compreender o verdadeiro significado do livro sagrado, preferem desdenhar dele. Mas é também por isso que nós, crentes em Cristo, não podemos ler e aplicar os textos bíblicos de modo fundamentalista, literal, mas precisamos dar a interpretação adequada à mensagem ali contida. No caso, a mensagem é a do amor conjugal, como se encontra sintetizada na conclusão de Paulo: “Por isso o homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá à sua mulher, e os dois serão uma só carne. Este mistério é grande, e eu o interpreto em relação a Cristo e à Igreja. ” (Ef 5, 31-32) Na época em que Paulo viveu, o amor entre os cônjuges era entendido como a submissão da esposa ao marido, porque as mulheres daquele tempo não estudavam, viviam apenas para o lar, não tinham conhecimentos outros do mundo social e profissional, eram como crianças grandes. Por isso, elas precisavam ser tuteladas pelos maridos. Assim era na Grécia e em Roma, as mulheres nunca alcançavam a plena maioridade, elas deviam estar sempre sob a tutela de um homem, mesmo que elas fossem mais idosas do que este (por exemplo, um filho, um sobrinho, até um neto). As mulheres não tinham condições de governar-se, de administrar a própria vida de modo independente. Então, na mensagem de Paulo que deve ser trazida para os tempos atuais, em que as mulheres se encontram em posição de igualdade com os homens, deve prevalecer a idéia do amor mútuo, do respeito recíproco, da solicitude, da tolerância, da ajuda, da caridade plena, que se encontra simbolizada no conceito do amor-ágape, o amor-comunhão. Ao ler o texto paulino, devemos mentalmente fazer a transposição adequada dos conceitos, para que possamos compreender o recado que ele quer nos transmitir.

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COMENTÁRIO LITÚRGICO - 20º DOMINGO COMUM - ASSUNÇÃO DE MARIA

COMENTÁRIO LITÚRGICO 20º DOMINGO COMUM – FESTA DA ASSUNÇÃO DE MARIA – 19.08.2018

Caros Leitores,

Neste 20º domingo comum, a memória litúrgica celebra, no Brasil, a festa da Assunção de Maria, uma verdade de fé proclamada pelo Papa Pio XII, em 1950, a última proclamação dogmática feita por um Papa. De lá para cá, observa-se uma grande cautela dos Pontífices em relação a tais proclamações de caráter universal e perpétuo, muito ao gosto da cultura medieval, quando prevalecia aquela visão triunfalista da Igreja. O Papa Pio XII, segundo ouvi de um sacerdote que estudava em Roma naquela época, ficou muito relutante se devia ou não fazer essa declaração dogmática da Assunção de Maria, porque não tem base na Bíblia, mas apenas na tradição.

É uma tradição muito forte. Não apenas na Igreja Católica Romana, mas também no catolicismo ortodoxo das Igrejas Orientais, a assunção de Maria é celebrada, embora no oriente não tenha sido definida como dogma de fé. Foi nessas Igrejas que se iniciou, por volta dos séculos III e IV, a celebração da “dormição” de Maria, baseada em escritos antigos que circulavam naquelas comunidades, nos quais se afirmava que Maria não havia morrido, mas apenas adormecera e então foi levada ao céu pelos anjos. Narra a tradição da igreja siríaca que o apóstolo Tomé viu o momento em que Maria ascendia com os anjos e pediu a ela uma relíquia, para guardar como lembrança e, ao mesmo tempo, comprovar aquele fato. E, então, Maria deixou cair o seu cinto, que atualmente repousa em uma catedral dedicada a ele. A Igreja Católica romana não guardou essa tradição, porém interpreta a narração apocalíptica do capítulo 12, que descreve o aparecimento de um grande sinal no céu, com uma mulher vestida do sol, pisando sobre a lua e coroada com doze estrelas como sendo a figura de Maria. Há também escritos muito antigos, como o “Liber Requei Mariae” (livro do descanso de Maria), do século III, que afirma que Maria não morreu, apenas descansou. E um outro escrito, este do século V, intitulado “De transitu Mariae” (sobre o trânsito de Maria), que reforça a mesma afirmação. Estes dois são escritos anônimos, ou pelo menos sua autoria não tem comprovação. Mas no século VI, o teólogo São João Damasceno defendeu essa doutrina, numa demonstração da força desse pensamento teológico. Foi com base nesses textos que o Papa Pio XII decidiu fazer a proclamação. A teologia ensina que a morte é consequência do pecado. Se Maria foi concebida sem pecado, então a morte não sobreveio a ela.

A proclamação papal acerca do dogma da assunção não fez afirmação taxativa sobre a morte ou não morte de Maria, isto é, proclamou a assunção de Maria em corpo e alma ao céu, sem se pronunciar sobre o detalhe se ela havia morrido ou apenas dormido ou descansado, conforme consta nos escritos anônimos dos primeiros séculos. Essa omissão proposital é uma atitude de prudência, para que os eventuais adversários da proclamação não viessem a contraditá-la por haver-se baseado em escritos apócritos. Por isso, além da referência ao capítulo 12 do Apocalipse, a doutrina também referencia a carta de Paulo aos Coríntios (1Cor 15, 22-23): “Como em Adão todos morrem, assim também em Cristo todos reviverão. Porém, cada qual segundo uma ordem determinada: Em primeiro lugar, Cristo, como primícias; depois, os que pertencem a Cristo, por ocasião da sua vinda.” A Igreja entende que, logo depois da entrada gloriosa no céu de Cristo ressuscitado, foi a vez de Maria, pela sua condição de imaculada mãe de Deus. Na verdade, a definição dogmática da assunção de Maria é uma consequência lógica de outra definição dogmática conciliar, publicada no Concílio de Éfeso, em 431, que proclamou Maria como Mãe de Deus, desfazendo uma antiga heresia, segundo a qual Maria era mãe apenas de Jesus homem, mas não de Cristo Deus, porque Deus não pode ter mãe.

Sobre as leituras litúrgicas da festa de hoje, já nos referimos acima à primeira, retirada do Apocalipse (12, 1), que fala do grande sinal (signum magnum) visto por João no céu. Era uma mulher grávida e, ao seu lado, um enorme dragão esperando que ela despachasse a criança, a fim de devorá-la. Essa imagem é emblemática nos arquétipos teológicos de todos os tempos, como uma referência clara e explícita aos embustes demoníacos contra a Igreja. Mesmo sem termos em mente qualquer anjo do mal, como criatura espiritual, podemos enxergar esses “agentes demoníacos” no interior de alguns setores burocráticos da própria Igreja. Quem não se recorda dos asquerosos “corvos do Vaticano”, que tanto atormentaram o Papa Bento XVI, forçando a sua renúncia, em 2003. Foram eles mesmos que dominaram o Papa João Paulo II, nos últimos anos de sua vida, período em que ele esteve muito debilitado e senil em consequência da doença de Alzheimer, produzindo documentos em nome do Papa e com a sua autoridade, com fortes evidências de que o Papa não sabia mesmo do que estava acontecendo. Dizem que, quando Napoleão Bonaparte assumiu o trono da França, logo depois da Revolução Francesa, teria colocado como um dos objetivos do seu governo a destruição da Igreja Católica. Sabendo disso, o arcebispo de Paris esteve conversando com o Imperador francês e teria revidado assim: desista do seu projeto de destruição da Igreja, porque os próprios padres já tentaram e não conseguiram. E olhando para os tempos atuais, observando o enorme carisma do Papa Francisco, admirado e exaltado até pelos ateus e fiéis de outras religiões, podemos concluir que as “portas do inferno” realmente não prevalecerão contra ela.

A segunda leitura litúrgica é a carta de Paulo aos Coríntios, à qual já me referi acima, cuja lição sobre a derrota da morte pela ressurreição de Cristo é o fundamento teológico mais forte para a afirmação da assunção de Maria, sobretudo levando-se em consideração que, sobre Maria, a serpente do pecado foi imobilizada, conforme se vê nas imagens dos artistas que retratam a figura da Imaculada Conceição. Aliás, esse título de “imaculada”, de acordo com a revelação particular a Bernardete Soubirous, aceita e admitida pela Igreja, foi Maria mesma quem afirmou: “je suis l'immaculée conception”, assim está estampado na gruta de Lourdes, na França. Não é afirmação bíblica, mas a tradição é fortíssima e antiquíssima, devendo ser prestigiada a sua credibilidade.

A leitura do evangelho relata a visita de Maria a sua prima Isabel, que engravidou já com a idade avançada, e cuja notícia lhe foi dada pelo anjo, quando trouxe a ela, Maria, a notícia de que tinha sido escolhida para ser a mãe do Redentor. Nesse contexto, Isabel pronunciou a parte inicial da oração da Ave Maria, prece antiga e tradicional do catolicismo. E nessa mesma ocasião, Maria pronunciou o seu belo cântico de louvor ao Altíssimo, o conhecido Magnificat, que não é tão divulgado no meio popular como a Ave Maria, mas é teologicamente mais importante. Maria estava no início da gravidez, enquanto Isabel estava na etapa final, então Maria ficou com ela durante três meses, ajudando nos preparativos e na chegada do bebê João, como é praxe ainda hoje as mulheres se ajudarem mutuamente nessas ocasiões. Esses relatos nós viemos a saber por intermédio de Lucas, o grande repórter da vida particular de Maria.

Uma curiosidade, porém, que Lucas não revela é onde Maria terminou seus dias. As crenças tradicionais são divergentes acerca do fato. Segundo algumas tradições, ela teria permanecido em Jerusalém, até o seu “passamento” - digamos assim, para não afirmarmos nem que ela morreu nem que descansou. Segundo outras tradições, ela teria terminado seus dias em Éfeso, onde existe uma casa, que é visitada pelos peregrinos e venerada como sendo a “casa de Maria” e de onde ela teria sido trasladada para o céu. Sabemos que João, o evangelista, era bispo de Éfeso e foi a ele que Jesus confiou os cuidados com Maria, ainda no Calvário. Talvez por isso a tradição se incline a aceitar que Maria teria terminado a vida em Éfeso. Mas pode ser também que João tenha se mudado para Éfeso somente depois da “passagem” de Maria, pois também não se sabe em que ano isso aconteceu. João teria se transferido para Éfeso, conforme a tradição, por volta do ano 50. Supondo que Maria teria engravidado com cerca de 15 anos, como era o padrão da sua época, no ano 55 ela teria cerca de 70 anos de idade. Por isso, tanto uma tradição quanto outra (Jerusalém ou Éfeso) são compatíveis com os fatos e assim não tem como solucionar a controvérsia.

Meus amigos, penso que é crença incontroversa o fato de que Maria ocupa um lugar central e incomparável em toda a economia da salvação (para usar um termo clássico da teologia). Não é por acaso que ela é reverenciada com tantos títulos. Que ela sempre nos vigie a todos com a sua ternura maternal.

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COMENTÁRIO LITÚRGICO - 19º DOMINGO COMUM - O MILAGRE DO PÃO

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 19º DOMINGO COMUM – O MILAGRE DO PÃO – 12.08.2018

Caros Leitores,

Pelo terceiro domingo seguido, a liturgia coloca em perspectiva o tema do pão, seja como alimento do corpo, seja como alimento do espírito: o pão de cada dia, o pão vivo, o pão que dá vida, o pão da palavra, o pão da eucaristia, aquele que é penhor da vida eterna. Desta vez, Jesus vai responder aos comentários maldosos dos judeus, que se admiraram ao ouvirem-no falar que ele é o pão descido do céu. Eles conheciam o pai, a mãe, os familiares de Jesus e sabiam a sua origem, como podia ter ele vindo do céu? Difícil de entender, sob a ótica linear e fundamentalista traçada pelos judeus daquele tempo e, com todo respeito, também os judeus de hoje, para os quais Jesus não passa de judeu famoso, nada mais do que isso.

Na primeira leitura litúrgica, retirada do primeiro Livro dos Reis (1Rs 19, 4), temos o episódio em que o profeta Elias foi alimentado com um pão especial, trazido pelo anjo de Deus, quando estava exausto e com fome no deserto. A ingestão daquele pão milagroso lhe deu sustança para caminhar durante quarenta dias e quarenta noites. Embora fosse de um tipo especial e prefigurasse, com muita antecedência, a eucaristia, este pão do deserto saciava a fome corporal apenas, mas não tinha o condão de preservar para a vida eterna quem o comesse. E, como é bastante comum ocorrer nos textos do Antigo Testamento, faz-se aqui mais uma referência à mística do número 40, que deve ser entendida no sentido alegórico, não no sentido literal da contagem matemática, mas dentro de sua simbologia, que indica que algo extraordinário e grandioso está por acontecer. O pão trazido a Elias pelo anjo deu-lhe alento para caminhar durante quarenta dias e quarenta noites, sem sentir fome, até chegar ao monte Horeb (Sinai), para onde ele se dirigia, obedecendo a ordem de Javeh. Esse é o sinal do poder daquele pão miraculoso.

É importante salientar que o nome Elias significa “Javeh é meu Deus” e este profeta teve um papel importantíssimo na defesa do monoteísmo hebraico, na época em que o povo hebreu passava por um período de vacilação na sua fé religiosa. A missão do Profeta era trabalhar junto às comunidades da região do Sinai, para que abandonassem os deuses pagãos e retornassem ao seu único Deus, Javeh. Ocorre que Elias não conseguia sensibilizar aquele povo para ouvir suas palavras e retornar ao seguimento da aliança e estava assim por demais desgastado com a dureza dos seus corações. Passando de aldeia em aldeia, anunciando a ordem de Javeh, ele não recebia a esperada adesão por parte dos seus coirmãos de fé. Elias então entrou numa verdadeira crise existencial. Parecia que Javeh tinha dado a ele uma missão impossível. Além da incredulidade do povo, sobressaía o cansaço físico e a dificuldade de se alimentar, porque ele não era bem recebido por onde andava.

Naquele dia, em meio a essa crise, atravessando uma região desértica, padecendo em consequência da fome e da descrença dos hebreus, Elias surtou. Deitou-se no chão, na sombra do junípero e disse a Javeh: agora basta, Senhor, podeis tirar a minha vida, eu não tenho forças para cumprir a missão que me destes. E adormeceu. Foi despertado por um anjo, que lhe trouxe para refeição um pão assado sob as cinzas, que ele comeu e dormiu novamente. Daí a pouco, o anjo o acordou de novo e deu-lhe outra porção do pão, que ele comeu outra vez e pronto. Com este alimento, Elias não teve mais fome nem cansaço e pôde terminar sua tarefa, percorrendo toda a região do deserto, até chegar ao Sinai.

A região atravessada por Elias é aquela grande península do Sinai, pertencente hoje ao Estado de Israel, que ao longo da história tem sido objeto de intermináveis contendas e a paz ainda não se fixou por ali, desde os tempos bíblicos. Vejamos que Elias, que viveu no século IX antes de Cristo, já não conseguia atravessar aquela região em paz, do mesmo modo que os seus atuais habitantes.

Na leitura do evangelho de João (6, 41-51), Jesus falara ao povo de sua cidade natal que Ele é o pão descido dos céus. Pra que ele disse isso! ... Os conhecidos ficaram logo a cochichar entre si: nós o conhecemos, não é Ele o filho de José e Maria? Por que ele diz que desceu do céu? Foi por isso que Jesus, depois, se lamentou: É isso mesmo, ninguém consegue ser profeta na sua própria terra. (Lucas, 4, 24). Era difícil explicar aos conterrâneos que ele é o pão vivo descido do céu e quem comer deste pão não morrerá eternamente. Teve de justificar que somente aqueles a quem o Pai atraiu poderá reconhecê-lo como pão do céu. “Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou não o atrai.” (Jo 6, 44) Ou seja, numa perspectiva puramente humanística, não havia condição de alguém reconhecer em Jesus o Filho de Deus, era necessário que os seus conterrâneos primeiramente aceitassem o Pai, através dos ensinamentos de Jesus, para que então pudessem entender a que tipo de pão Ele estava se referindo.

E Jesus aproveitou para dizer que os antepassados deles haviam comido outro pão descido do céu, o maná solicitado por Moisés, quando estavam no deserto, todavia não era aquele tipo de pão o que Jesus trazia, porque o pão do deserto não livrava da morte eterna. Já o pão vivo, que era ele próprio, traz a recompensa da vida eterna a quem com ele se alimenta. Lembrando-nos dos domingos anteriores, em que comentei aqui outras passagens evangélicas com essa mesma temática do pão, fiz referência a que o pão vivo, que é Cristo, não alimenta apenas o corpo material, mas também a alma espiritual, daí porque Ele produz como resultado a vida eterna. Aquela multidão que buscou Jesus após o milagre da multiplicação dos pães buscava tão somente, outra vez, o pão material e Jesus fê-los ver que o pão que alimenta o corpo não pode estar separado do pão que alimenta o espírito.

Desse modo, o pão vivo, que é Cristo, não é apenas a sua carne por ele entregue para a vida do mundo. É necessário que o pão = carne seja consumido juntamente com o pão = palavra, com a mensagem de sua doutrina. A catequese que se desenvolveu no Brasil ao longo do tempo não foi capaz de demonstrar ao nosso povo a necessidade de unir essas duas dimensões do pão do céu (corpo de Cristo): a palavra e a eucaristia. Sempre foi mais enfatizada a obrigação de comungar, porque com a comunhão, nós nos unimos ao próprio Cristo, Ele ingressa no nosso ser. Sem dúvida, isso é verdade. No entanto, aqui temos apenas a metade do seu ensinamento. Para que este pão eucarístico produza o efeito que Cristo prometeu (“quem come deste pão viverá eternamente”) é necessário unir a comunhão eucarística com o cumprimento dos mandamentos de Cristo (“amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo”), ou seja, com a ingestão do pão da palavra e do pão eucarístico, pelos quais tanto o corpo quanto o espírito se alimentam e fortalecem.

A participação no sacramento da eucaristia, quando não é acompanhada da prática dos ensinamentos de Cristo, equivale àquela advertência de Paulo de que não se deve comer e beber indignamente o Corpo e o Sangue de Cristo (1Cor 11,27). Tradicionalmente, sempre se ensinou que isso ocorre com quem vai comungar sem ter-se confessado antes. Ao meu ver, come e bebe indignamente o Corpo e o Sangue de Cristo quem dissocia o pão da eucaristia do pão da palavra, porque o pão vivo, que é Cristo, só está completo com essas duas funções. Foi isso que Ele ensinou, nas diversas passagens que lemos nos últimos domingos, em que a temática do pão vem sendo repetida e reforçada. Jesus somente deu o pão da sua carne aos Apóstolos na última ceia, depois de passar três anos instruindo-os com o pão da palavra. Ele afirmou, por várias vezes, que quem comesse da sua carne teria a vida eterna, todavia, ele só demonstrou como seria isso após todo o período de catequese dos Apóstolos, quando eles já haviam absorvido suficiente quantidade dos seus ensinamentos.

Só uma breve palavra sobre do conceito de “carne”, que aparece diversas vezes nesse discurso acerca do pão. A palavra grega em referência é 'sarx', que se traduz por carne, porém, o seu significado vai além da carne = músculo, como costumamos entender em português. De fato, sarx significa qualidade de ser humano, ser vivo e pensante, é como se Jesus tivesse dito “quem come a minha humanidade”, isso é bem mais amplo e profundo do que a carne meramente muscular. Lembremo-nos, a propósito, de outra passagem do evangelho, onde diz que “o Verbo se fez carne”, o que significa: o Verbo tornou-se gente, transformou-se em ser humano. Tenhamos em mente esses conceitos, ao participar da eucaristia.

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sábado, 4 de agosto de 2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 18º DOMINGO COMUM - 05.08.2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 18º DOMINGO COMUM – O PÃO DA VIDA ETERNA – 05.08.2018

Caros Confrades,

A liturgia deste 18º domingo do tempo comum dá prosseguimento à reflexão sobre o tema do pão, convidando-nos a refletir sobre o pão do céu, o pão da vida eterna. Do Antigo Testamento, na leitura de Exodo (16, 2), traz a lembrança do maná, que caía do céu e o povo recolhia no deserto todos os dias, precedendo simbolicamente o verdadeiro Pão da vida, deixado a nós por Jesus. O pão nosso de cada dia é importante e necessário, porém se aplica apenas ao corpo material, por isso, é necessário que se busque também o alimento do espírito. E o pão do espírito é fazer a vontade de Deus. Vivemos num mundo onde predominam pessoas famintas do verdadeiro pão, daí a assustadora onda de violência que nos ameaça constantemente. Só o pão do céu traz consigo a benquerença, a tranquilidade e a paz.

Conforme lê-se em Ex 16, um comportamento característico do povo de Deus em marcha pelo deserto era a infidelidade a Javeh, demonstrada na simpatia para com os ídolos dos pagãos. Por causa disso, Javeh os castigava deixando-os com fome. Quando eles foram se queixar a Moisés, dizendo que era melhor que tivessem ficado como escravos no Egito tendo o que comer, do que passar fome no deserto. Tiraste-nos do Egito para nos matar de fome no deserto, diziam. Ouvindo as queixas do povo, Javeh respondeu, através de Moisés, que eles iriam comer carne ao anoitecer e pão ao amanhecer. Diz o texto bíblico que, ao entardecer, um banco de codornas chegou ao acampamento, de modo que eles puderam capturá-las com facilidade e comer carne em abundância; e ao amanhecer, um denso orvalho foi aos poucos se transformando em grãos sólidos, os quais foram usados para fazer pão. Javeh cumprira sua promessa.

Sabemos que, alguns dias depois, o povo foi novamente se queixar a Moisés, porque estavam enjoados de comer aquilo todos os dias, ou seja, o povo estava sempre insatisfeito, sempre a provocar a ira de Javeh, sempre buscando uma desculpa para justificar as suas infidelidades e o seu descumprimento da lei. Se observarmos bem, nos dias de hoje, essa mesma situação ainda se repete, muitos cristãos têm esse mesmo comportamento inconstante e interesseiro, só se lembrando dos seus compromissos religiosos quando enfrentam alguma dificuldade. E a misericórdia divina continua a agir sempre perdoando, como foi no passado. Muitas pessoas confundem a vivência religiosa como uma espécie de “comércio” com Deus: oferecem a Deus esmolas e jejuns objetivando receber em troca aquilo a que almejam. Esse modelo religioso baseado na barganha foi o que Jesus reprovou no comportamento daqueles que o seguiam somente porque Ele lhes dava o que comer. (Jo 6, 26)

Na leitura do evangelho de hoje (João 6, 24), temos a sequência do milagre da multiplicação dos pães. Após haverem sido saciados com o alimento miraculoso, os seguidores de Jesus saíram em massa a procurar por ele até encontrá-lo do outro lado do mar da Galileia. Ao ver aquela multidão se aproximando, Jesus demonstrou insatisfação: “estais me procurando não porque vistes sinais, mas porque comestes pão e ficastes satisfeitos” (Jo, 6, 26). Parecia que o povo estava mais interessado na comida do que nos ensinamentos dele. Então, ele fez referência ao fenômeno miraculoso do maná no deserto, cuja descrição era de todos conhecida: “não foi Moisés quem vos deu o pão que veio do céu. É meu Pai que vos dá o verdadeiro pão do céu.” (Jo, 6, 32) Jesus faz aí um jogo de palavras, porque o maná também vinha do céu, para depois concluir que Ele é o verdadeiro Pão vindo do céu, antecipando o que iria fazer na última ceia.

Naturalmente, os ouvintes de Jesus não atinaram para o alcance do que Ele estava a anunciar, nem os próprios apóstolos entenderam naquele momento, vindo a compreender somente quando Jesus celebrou a ceia com eles. Os judeus pediram: “Senhor, dá-nos sempre deste pão”, mas o que eles imaginavam mesmo era um pão material, daqueles que se come mastigando e enche o estômago, Porém, Jesus falava-lhes metaforicamente do 'pão da palavra', que Ele estava a distribuir através do seu ensinamento, e do Pão do céu, que era Ele próprio. No entanto, para termos acesso ao verdadeiro Pão do céu, é necessário antes aceitar o pão da palavra e pô-la em prática na nossa vida. É neste sentido que Paulo exorta a comunidade de Éfeso: (Ef 4, 22) Renunciando à vossa existência passada, despojai-vos do homem velho, que se corrompe sob o efeito das paixões enganadoras, e renovai o vosso espírito e a vossa mentalidade. O homem velho é aquele que se lembra apenas do pão material, semelhante ao maná caído no deserto, que alimenta o corpo; o homem renovado é o que busca o pão da palavra e, através deste, o Pão do céu, que é Jesus Cristo, alimento para a alma. Buscar o Pão do céu sem ter-se alimentado antes com o pão da palavra equivale a uma aproximação indigna daquele. E alimentar-se com o pão da palavra não requer simplesmente ler a Bíblia, porque uma simples leitura não surte efeito. Para compreender e poder retirar da leitura bíblica o seu conteúdo próprio é necessário estudá-la teologicamente, seja um estudo individual, seja um estudo acadêmico num curso próprio. Ler a Bíblia como quem lê um livro literário qualquer, visando apenas conhecer as narrações e os personagens, por certo não resultará em alimento do espírito, além de ensejar entendimentos desvirtuados e absurdos.

Ao comentar isso, eu não estou querendo dizer que não se deve ler a Bíblia, mas que uma leitura sem a devida preparação terá um resultado inócuo ou duvidoso. O pão da palavra deve preparar o espírito para ser alimentado com o pão do céu. É por isso que a liturgia da missa é dividida em duas partes: liturgia da palavra e liturgia eucarística. É lamentável observar que alguns católicos escolhem o comparecimento à missa pelo celebrante ou pela “animação” dos cânticos. Evitam as celebrações cujo padre faz um sermão demorado e preferem aquelas celebrações com profusão de instrumentos musicais, porque são mais animadas. Com isso, o verdadeiro objetivo da missa, que é o alimento do espírito com o pão da palavra e o pão do céu, fica totalmente esquecido, fazendo-se a frequência por uma questão de obrigação. E é mais lamentável ainda que os nossos Pastores não se dediquem a instruir os fiéis acerca dessas verdades doutrinárias, contentando-se com uma liturgia burocrática e repetitiva.

Refletindo na mesma linha de raciocínio abordada no domingo passado, acerca da simbologia do pão, lembremo-nos da insatisfação de Cristo com aqueles que o seguiam muito mais por causa dos milagres que ele fazia, do que por causa dos ensinamentos que ele transmitia; mais por causa da merenda que ele dava, do que por adesão à sua mensagem. Por isso, o evangelista João faz questão de colocar, logo após a narração da multiplicação dos pães, o ensinamento de Cristo sobre o pão do céu. Alimentar o corpo é importante e necessário, mas não é bastante. É nesse ponto que muitas pessoas confundem o modelo teológico da opção preferencial pelos pobres com o engajamento político partidário. No passado, viveu-se o tempo em que havia uma supervalorização da religião espiritualista, devocionista, afirmando que tudo o que é corporal deve ser evitado e/ou eliminado, para dar vida ao espírito. Então, passou-se ao outro extremo, isto é, à supervalorização da religião política, inclusive com a inscrição em partidos e defesa pública destes. Não vou citar nomes, porque esses são bem conhecidos. No entanto, o que Jesus Cristo ensinou, ao multiplicar os pães e distribuir aos seus ouvintes, foi que o alimento material é indispensável, mas nós devemos nos esforçar sempre pelo alimento que permanece até a vida eterna. E quando aquelas pessoas pediram: dá-nos desse alimento, ele declarou: Eu sou o pão da vida. Quem vem a mim não terá mais fome e quem crê em mim nunca mais terá sede”. E este pão da vida tem dois ingredientes básicos: palavra e eucaristia. A comunhão eucarística só servirá como verdadeiro alimento do espírito se for acompanhada da degustação também espiritual da sua mensagem.

Que o divino Mestre nos ensine e nos ajude a buscar o verdadeiro Pão trazido diretamente por Ele, a mando do Pai, e nos faça sempre mais integrar esses ensinamentos na nossa vida cotidiana.

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