domingo, 24 de setembro de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 25º DOMINGO COMUM - MEUS PENSAMENTOS - 24.09.2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 25º DOMINGO COMUM – MEUS PENSAMENTOS – 24.09.2017

Caros Leitores:

Neste 25º domingo comum, a liturgia aborda um tema bem interessante, acerca da diferença entre os modos de pensar divino e humano, os pensamentos de Deus contrastam com os nossos pensamentos, é o que diz o profeta Isaías. A justiça divina não segue a lógica linear do pensamento humano, o que faz com que, muitas vezes, encontremos pessoas se queixando de que Deus não as ouve, não as atende, Deus seria injusto porque concede coisas pra quem não precisa delas e não distribui os bens de forma igualitária. Na verdade, o que nós precisamos mesmo é tentar compreender os fatos de acordo com a lógica divina, bem diferente da nossa.

Na primeira leitura, retirada do livro do Profeta Isaías (55, 6-9), lemos aquela conhecida advertência divina, através do profeta, no sentido de que “Meus pensamentos não são como os vossos pensamentos, e vossos caminhos não são como os meus caminhos.” Há um ditado popular que afirma que Deus escreve direto por linhas tortas, o que tem um sentido equivalente ao ensinamento de Isaías. E a única maneira de chegarmos a compreender essas linhas tortas é através da fé, porque devemos ter a certeza de que Deus nunca nos desampara e, mesmo quando as coisas parecem sair do trilho correto, surpreendendo o nosso modo de pensar, por ali passa a mão divina conduzindo os fatos e direcionando os acontecimentos. Sem a ajuda da fé, nós jamais alcançaremos as diretrizes divinas, como nos consola o Profeta no vers. 9: “Estão meus caminhos tão acima dos vossos caminhos e meus pensamentos acima dos vossos pensamentos, quanto está o céu acima da terra.” Para vencer uma barreira dessa dimensão, por certo que as nossas forças não são suficientes. A solução é, na maioria das vezes, crer e esperar.

Na segunda leitura, da carta de Paulo aos Filipenses, vemos o Apóstolo se debater entre essas duas dimensões da existência: viver segundo o corpo e viver segundo Cristo. Diz ele, nos vers. 23-24: “Sinto-me atraído para os dois lados: tenho o desejo de partir, para estar com Cristo - o que para mim seria de longe o melhor - mas para vós é mais necessário que eu continue minha vida neste mundo.” É nesse contexto que ele diz aquela famosa frase: para mim, viver é Cristo e morrer é lucro. Pensando sob uma ótica humana, tal afirmação é totalmente absurda. Nenhum ser humano encara com essa tranquilidade a da morte, sendo esta sempre um motivo de preocupação e de desespero. O cientista britânico Bertrand Russell escreveu, certa vez, um livro com o título “Porque não sou cristão” e uma das críticas que ele faz aos cristãos tem relação com esse discurso paulino. Os cristãos dizem que a vida no outro mundo é infinitamente superior à vida material, no entanto, no seu comportamento, demonstram um medo inexplicável de morrer, o que é incompreensível, já que a morte é condição necessária para alguém chegar ao outro mundo. Uma coisa está em contradição com a outra. Essa é a grande dificuldade que se coloca para nós, na vida corpórea, qual seja, a de pensar de acordo com os pensamentos divinos. Mas nos consola o fato de que isso não ocorre apenas conosco, simples seres humanos, pois Cristo também, na sua trajetória terrestre, revestido da natureza humana, expressou sentimento de apreensão e medo diante dos sofrimentos e da paixão que se avizinhava. Com efeito, nós somente teremos a possibilidade de compreender plenamente o modo de pensar divino quando estivermos completamente inseridos na esfera da imortalidade. Antes disso, o que nos sustenta é a fé e o que nos anima é a misericórdia divina.

No evangelho de Mateus (20, 1-16), lemos hoje mais uma das inúmeras parábolas que Jesus contou dirigindo-se aos fariseus, mas que também se aplicam àqueles que, por frequentarem a igreja e praticarem os mandamentos, se julgam superiores às outras pessoas, que não vivenciam as práticas exteriores da religião. Os fariseus se autodenominavam justos e menosprezavam os demais, conduta que, lamentavelmente, se observa também em alguns cristãos. A história da parábola tem como personagens um patrão e os trabalhadores contratados por ele. Examinemos primeiro a questão sob a ótica da justiça humana. O patrão acertou com os trabalhadores o pagamento de uma moeda de prata pela diária e eles iniciaram o trabalho logo no começo do expediente. No meio da manhã, ele contratou outros operários também nas mesmas condições. Outro grupo foi contratado ao meio dia, mais um grupo às três da tarde e outro grupo já ao anoitecer, todos com base na diária de uma moeda de prata. De início, vejamos aqui Jesus adotar a sequência das horas do calendário romano da época: hora prima (amanhecer), hora terça (cerca de 9 horas), hora sexta (meio dia), hora noa (3 da tarde), vésperas (entardecer). Essa era a sequência das horas canônicas em que se distribuíam as orações do breviário romano. Quem fez noviciado se lembra disso.

Pois bem. Na hora do pagamento, começaram a receber a sua moeda os últimos contratados: uma moeda de prata para cada um. Aqueles que haviam trabalhado desde o início do dia, ao verem aquilo, ficaram animados esperando que o pagamento deles fosse maior, pois enquanto eles trabalharam o dia inteiro, os últimos trabalharam apenas uma hora. Isso não aconteceu, então resmungaram e reclamaram do patrão, cuja atitude acharam injusta. Se trabalharam mais, mereciam receber mais. Dentro de um parâmetro de justiça humana, um tal patrão teria sido totalmente injusto, porém o exemplo dado por Cristo não se enquadra no conceito da justiça humana. O patrão é o Pai do Céu e o pagamento pelo trabalho na vinha é a salvação. Não existe uma salvação maior do que outra, para todos os redimidos, o prêmio da redenção é um só: o reino do céu. Essa conquista tanto é alcançada por aqueles que praticam os mandamentos desde a infância, quando foram admitidos na Igreja de Cristo pelo batismo, quanto se aplica também a quem foi iniciado na vida cristã já na juventude ou na maturidade. Alguns de nós chegamos na “vinha” ainda na madrugada, quando fomos introduzidos na casa de Deus por nossos pais. Outros foram catequizados na adolescência, ainda outros na idade adulta. Mas aqueles que “chegaram primeiro” não podem arvorar-se de mais merecedores, porque seguem a lei de Deus há mais tempo. E aqueles que se convertem na hora da morte também terão o mesmo “prêmio” como os que se dedicaram ao trabalho do reino durante toda a vida. Assim é a justiça divina. Recordemos o profeta Isaías: os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, diz o Senhor.

A parábola de Jesus se dirigia, na época, aos fariseus, que se julgavam “justos”, porque cumpriam rigorosamente a lei, e desprezavam os publicanos e pecadores, porque não cumpriam a lei e, portanto, não teriam os mesmos “direitos” que os primeiros. Quando viam Jesus se dedicando aos pecadores e outros “excluídos”, logo diziam: Ele não pode ser mandado por Deus, porque se fosse, se dirigiria a nós, os escolhidos. Os fariseus, assim como os judeus em geral, que se originaram do “povo da aliança” feita por Javeh com os Patriarcas, estavam na “vinha” desde a madrugada, trabalharam durante muito tempo, achavam que a eles estava destinado o Reino de Deus, não àqueles que desprezavam a lei e estavam sendo conquistados por Jesus. Ao invés de se alegrarem com a ampliação do número de crentes, eles tinham “ciúmes” destes, como que se recusassem a “repartir o tesouro” com esses preguiçosos, que chegaram só “no final do dia”. Aqui entra a resposta do patrão, de acordo com o texto da parábola: eu não fui injusto contigo, paguei-te o que tínhamos combinado. (20, 13). A promessa que fora feita aos antigos patriarcas, milênios antes de Cristo, era a mesma que Cristo, como enviado direto do Pai, veio trazer também aos gentios e a todos os povos pagãos, não apenas àqueles que caminharam pelo deserto. Isso os fariseus nunca entenderam.

Por isso, meus amigos, essa advertência de Cristo aos fariseus deve nos motivar a não fazermos críticas nem tratarmos com indiferença as pessoas que “não fazem como nós”. É bastante comum os cristãos serem criticados assim: “fulano é de dentro da igreja, no entanto, ...”. Um fato concreto aconteceu aqui na Paróquia, quando duas senhoras, que haviam acabado de sair da missa, estavam a discutir no estacionamento, na hora de retirarem os veículos, uma não queria ceder espaço para a outra passar. Casualmente, o Pároco ia passando pelo local e, ao ver aquilo, disse assim: de que adianta vir à igreja, participar da missa e comungar? Logo, as duas caíram em si e se comportaram como gente civilizada. Precisamos estar atentos para que uma tal incoerência não nos surpreenda.

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domingo, 17 de setembro de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 24º DOMINGO COMUM - PERDÃO SEM RANCOR - 17.09.2017

COMENTÁRIO LITURGICO – 24º DOMINGO COMUM – PERDÃO SEM RANCOR - 17.09.2017

Caros Leitores,

Preliminarmente, quero fazer um registro histórico significativo para todos nós. Nesta data, comemora-se a festa litúrgica da “impressão das chagas” em São Francisco, isto é, o dia em que ele recebeu as chagas de Cristo no seu corpo. De acordo com a tradição, São Francisco rezava com muito fervor em alta madrugada diante da cruz e, de repente, um serafim desceu do céu, retirou uma brasa do fogo que ardia no altar e com ela cravou na carne dele os mesmos sinais da crucificação de Jesus, o que lhe causou grande dor física, da qual ele padeceria até o final da vida. Hoje também foi comemorado o aniversário jubilar (50 anos) de ordenação dos Freis Dom Geraldo, Gilberto e Nazário.

Passando ao tema das leituras litúrgicas do domingo, a mensagem central aborda o problema da raiva e do rancor, associados com a misericórdia e com a reconciliação. A primeira leitura, retirada do Eclesiástico (ou Ben Sirac, na tradição hebraica – Eclo 28, 1-9) é de extrema e coerente sabedoria: O rancor e a raiva são coisas detestáveis, até o pecador procura dominá-las. Perdoa a injustiça cometida por teu próximo, assim, quando orares, teus pecados serão perdoados. Ora, se alguém não tem compaixão do seu semelhante, como poderá pedir perdão dos seus pecados?  Se ele, que é um mortal, guarda rancor, quem é que vai alcançar perdão para os seus pecados? (Eclo 28,4-5). Vemos aqui, meus amigos, que a liturgia está prosseguindo na mesma temática do domingo anterior, quando trouxe a mensagem sobre a correção fraterna. Tal como aquela, esta do perdão é também uma das coisas mais difíceis de se fazer na prática, mas esse é o mandamento. Como diz Paulo, apóstolo, neste mesmo sentido (embora não seja uma das leituras de hoje): amar os amigos é muito fácil, mas devemos amar os inimigos. Existem algumas atitudes dos nossos semelhantes que doem muito profundamente em nós, sobretudo a maledicência, a injúria, a ingratidão, doem mais do que uma alfinetada. A vontade que se tem é de nunca mais olhar na cara da pessoa que faz isso. Mas exorta o Eclesiástico (38, 8-9): Pensa nos mandamentos, persevera nos mandamentos e não guardes rancor ao teu próximo. Pensa na aliança do Altíssimo, e não leves em conta a falta alheia!

Certa vez, eu li no nosso livro de exercicios latinos (G. Zenoni) um fato pitoresco da vida de Sócrates, que me vem agora à mente. A esposa de Sócrates chamava-se Xantipa, era uma mulher inconveniente, muito grosseira, faladeira, tratava mal o marido, os amigos se admiravam da paciência com que Sócrates suportava tudo isso. Aos que perguntavam a ele por que não a deixava, Sócrates respondia: com ela, eu exercito todos os dias a tolerância e aprendo a ser tolerante com os outros. Na minha interpretação, o exercício da tolerância, no caso de Sócrates, é o exercício do perdão. É aquilo que nós rezamos todos os dias no Pai Nosso - perdoai as nossas ofensas assim como nós perdoamos os que nos ofenderam – fácil de dizer, mas nada fácil de praticar.

Tem também a esse propósito a história de um homem que comprava jornais todos os dias de um jornaleiro que o atendia rispidamente, mas ele sempre sorria e o cumprimentava com cortesia. Um amigo perguntou porque ele não retribuía a grosseria do jornaleiro na mesma medida, então ele respondeu: porque não quero que ele decida como eu devo me comportar, quem decide o meu comportamento sou eu. Se eu retribuir a grosseria dele, estarei deixando que ele decida por mim; sendo gentil, eu estou no comando da minha decisão. Isso é algo fácil de fazer? Por certo que não. Mas é isso que a sabedoria hebraica nos ensina e o que Cristo referenda na leitura do evangelho, que comentarei a seguir. Se há pessoas que praticam a tolerância por motivos humanitários, muito mais nós cristãos temos, além do humanitarismo, a motivação do mandamento que manda perdoar.

Na perspectiva científica contemporânea, os psicólogos recomendam uma espécie de terapia do perdão. Antes de ser uma virtude religiosa ou moral, perdoar é um ato terapêutico, faz bem à alma e alegra a vida de quem perdoa, aliviando as tensões e dissolvendo a ansiedade. Perdoar não é amnésia, simplesmente esquecer, aliás, o esquecimento de certas ofensas é, pode-se dizer, impossível. O legítimo perdão se alcança quando você consegue se lembrar da ofensa, sem que aquilo lhe oprima o espírito. O exercício do perdão é uma necessidade da alma, para que não venhamos a adoecer física e psicologicamente. E, muito diferente do que se pensa, perdoar não é atitude de pessoas fracas, ao contrário, exige extrema fortaleza de espírito, sendo necessário ter muita maturidade e autocontrole para exercê-lo. Ora, se essa atitude de perdoar é recomendada até mesmo fora do ambiente religioso, fundada no objetivo de viver melhor, tanto mais quando o ato do perdão se associa com a fé religiosa. O cristão que não consegue superar a ânsia da vingança e busca, de todos os modos, se vingar do ofensor não está sendo fiel ao ensinamento de Cristo.

É isso que ele reforça na leitura do evangelho de hoje (Mt 18, 21-35). Em certa ocasião, Pedro, que devia encontrar-se atormentado com ofensas de alguém, pergunta a Jesus Cristo: Mestre, quantas vezes devo perdoar o meu irmão que peca contra mim, sete vezes? Pedro já devia achar que estava sendo bastante tolerante ao perdoar sete vezes. Ocorre que Jesus Cristo respondeu de forma inesperada para ele: não apenas sete, mas 70 x 7. Mostrando o seu conhecimento da Torah, Cristo repetiu a regra que consta em Gênesis 4, 24, quando Lamech, filho de Caim, tendo matado um homem que o ofendera, comentara com suas mulheres Ada e Zilá: Caim será castigado sete vezes, mas Lamech, setenta vezes sete. Os exegetas interpretam esse número (70 x 7) como sendo o símbolo do infinito. O número 7, interpretado dentro da numerologia bíblica, tem uma relação com a plenitude, sendo considerado o número perfeito. A criação do mundo em 7 dias indica que este é um número da preferência de Javeh. No cristianismo primitivo, a associação da Trindade (Pai, Filho, Espírito Santo) com os pontos cardeais (norte, sul, leste, oeste) indica o sete como a soma do 3 da Trindade com o 4 dos pontos cardeais, conferindo-lhe o status de número prefeito. Daí que, quando Pedro indaga sobre “perdoar sete vezes” estaria talvez referindo-se a uma quantidade que simbolizaria o máximo. Mas quando Cristo responde que o perdão deve ser conferido setenta vezes sete vezes, está querendo potencializar fortemente esse número 7, que já era em si muito grande, isto é, deve-se perdoar infinitas vezes.

E, em seguida, Jesus Cristo complementa a lição com a história do devedor que teve uma grande dívida perdoada pelo patrão, mas daí a pouco, quando ele encontrou alguém que lhe devia poucas moedas, agiu de modo intolerante e não foi capaz de passar adiante o perdão que havia recebido. O patrão mandou chamá-lo e retirou o perdão que havia dado, exigindo o pagamento de toda a dívida. Vale lembrar que, na época de Jesus, o devedor que não tivesse como quitar sua dívida se tornava escravo do credor, que podia até vendê-lo no mercado para resgatar o seu crédito. E se a dívida fosse tão grande que apenas a venda do devedor não fosse suficiente, o credor podia vender também a esposa, os filhos, os bens do devedor, o que fosse bastante para cobrir a dívida. Daí porque, no texto antigo do Pai Nosso (ainda é assim no texto latino) a expressão era: perdoai as nossas dívidas assim como nós perdoamos os nossos devedores. Ser devedor insolvente era condição que levava alguém à escravidão. E Jesus arremata o discurso de um modo fulminante: é assim que o vosso Pai agirá convosco, se não perdoardes de coração o vosso irmão. Vejam bem, não basta perdoar simplesmente, tem de ser perdão de coração.

Meus amigos, como isso é difícil, mas este é o mandamento. No sermão da missa paroquial, o celebrante disse algo muito interessante: devemos ser misericordiosos com o próximo não porque o próximo mereça isso, mas porque Deus é misericordioso conosco. Se nós recebemos misericórdia sem merecer, devemos praticar também a misericórdia com quem não a merece. Este é o desafio que Cristo coloca para nós neste domingo. É a mesma mensagem que o São Francisco ensinava com outras palavras: ninguém deve esperar ser perdoado para, só então, dar o perdão, pois é perdoando que se é perdoado. Sigamos o seu exemplo.

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segunda-feira, 11 de setembro de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 23º DOMINGO COMUM - CORREÇÃO FRATERNA - 10.09.2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 23º DOMINGO COMUM – CORREÇÃO FRATERNA – 10.09.2017

Caros Leitores,

Neste 23º domingo comum, as leituras litúrgicas nos lembram o dever do cristão de chamar a atenção daqueles irmãos que, de algum modo, caíram em falta com a caridade ou se desviaram da fidelidade aos mandamentos divinos. No nosso tempo do Noviciado, exercitávamos diariamente a prática da correção fraterna e o “corrigido” ainda tinha que dizer “seja pelo amor de Deus a sua santa caridade.” Esse dever decorre da responsabilidade que cada um de nós tem de reconduzir de volta ao caminho a ovelha desgarrada. Os nossos co-irmãos não católicos assumem isso como uma obrigação rotineira. Se um membro de uma congregação evangélica não comparece ao culto, no dia seguinte, alguém vai à casa do faltante a indagar-lhe os motivos da sua ausência. Entre os católicos, essa tradição não se manteve, mas Jesus Cristo recomenda isso expressamente no evangelho deste domingo.

Na primeira leitura, retirada do livro do profeta Ezequiel (33, 7-9), o Senhor adverte o fiel sobre a sua obrigação de mostrar ao ímpio a sua impiedade e de chamá-lo ao caminho da retidão, sob pena de que, não o repreendendo e vindo ele a morrer em pecado, o fiel se torna responsável pela perdição daquele pecador. Ao contrário, se o pecador for advertido pelo fiel e não quiser se converter, este não será responsabilizado pela perdição daquele. Esta responsabilidade que o cristão tem perante os irmãos da religião e mesmo perante os não crentes está expressa na frase de Javeh dita através do Profeta: “Eu te estabeleci como vigia da casa de Israel.” Cada cristão é responsável, ao mesmo tempo, pela fidelidade na própria fé e ainda pela perseverança na fé dos irmãos. Vemos aqui as duas dimensões da fé (horizontal e vertical), isto é, a religião direcionada, ao mesmo tempo, para Deus e para a comunidade, dimensão esta que foi durante muito tempo menosprezada, quando a catequese católica se concentrava no lema individualista “salva a tua alma”, como se o fiel fosse responsável apenas por si e os pastores devessem se preocupar com a qualidade da fé dos crentes em geral. A palavra de Javeh através do Profeta Ezequiel não está dirigida aos Sacerdotes do seu tempo, mas a cada um dos integrantes do povo de Deus. Cada fiel é estabelecido como vigia na casa de Israel, cada um de nós tem o dever não apenas de dar o exemplo, mas também de manter-se alerta com o procedimento dos membros da comunidade, a fim de que nenhum deles se desvie da fidelidade aos mandamentos. Cada cristão é responsável diretamente pela própria fé e indiretamente também pela fé dos irmãos. A fé assume, nesse contexto, uma característica proativa, no sentido de que o verdadeiro cristão não está preocupado apenas consigo próprio, apenas em salvar a própria alma, como se dizia na linguagem tradicional, mas deve preocupar-se também com a salvação dos irmãos. A salvação é comunitária, a fé é comunitária, a religião é comunitária. A religião vivida apenas para si, internamente, é estéril e vazia.

Na segunda leitura, da carta de Paulo aos Romanos (13, 8-10), o Apóstolo ensina essa mesma lição com outras palavras, quando diz: “Os mandamentos: “Não cometerás adultério”, “não matarás”, “não roubarás”, “não cobiçarás”, e qualquer outro mandamento, se resumem neste: “Amarás ao teu próximo como a ti mesmo”.” Isso quer dizer que as ordens divinas contidas nos mandamentos da lei não devem consistir em normas negativas (não faça isso, não faça aquilo) nem preceitos de abstenção, mas no sentido da assunção de uma atitude positiva de amor generoso. Ou melhor dizendo: aquelas ordens de cunho negativo (não isso, não aquilo) que constavam na lei antiga, pelo novo mandamento de Cristo se transformaram em ações positivas e concretas de amar os irmãos. “O amor é o cumprimento perfeito da lei”, completa o apóstolo Paulo. E Paulo não está inventando isso, porque o próprio Cristo dissera, certa vez, ao criticar os fariseus, que haviam formulado centenas de prescrições restritivas interpretando a lei de Moisés, uma frase similar, quando um doutor da lei o interrogou: “Mestre, qual é o grande mandamento na lei? E Jesus disse-lhe: Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu pensamento. Este é o primeiro e grande mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos dependem toda a lei e os profetas. (Mateus 22:36-40).” Os doutores da lei eram exatamente aqueles fariseus mestres, que haviam transformado a lei de Moisés em um conjunto de regras minuciosas e burocráticas, que tornavam insuportável a vida dos judeus. A grande catequese de Jesus contra esse tipo de religião farisaica, que infelizmente ainda hoje se mantém na cabeça de alguns cristãos (clérigos e leigos), foi a de mostrar que a lei de Deus é a lei do amor, não a do castigo e da repreensão. Infelizmente, apesar do ensinamento tão claro da parte de Jesus, desenvolveu-se uma vertente doutrinária do cristianismo nesses mesmos moldes de fanatismo. Isso decorre, sobretudo, do fato de que alguns cristãos colocam o Direito Canônico acima do Evangelho. O Direito Canônico deve ser compreendido como norma de organização e de manutenção da unidade eclesial, não como doutrina que se sobrepõe sobre a Palavra de Cristo transmitida pelos escritores sagrados. Por exemplo: o católico que vai à missa dominical apenas porque o Direito Canônico afirma cometer um pecado quem não for, esse cristão não está praticando a religião verdadeira de Cristo, que é a religião do amor. Lembro demais de ter ouvido na catequese tradicional que todos devem cumprir o “preceito dominical”. Ora, cumprir o preceito não é o mesmo que praticar o mandamento de Cristo. Cumprir o preceito é um ato burocrático exterior estéril, se não estiver acompanhado da motivação interior que decorre do amor a Cristo e aos irmãos. A falta desse componente interno essencial transforma a ida ao templo uma simples obrigação e assim estamos adotando aquele mesmo comportamento que Jesus Cristo, por diversas vezes, criticou nos fariseus, que praticavam uma religião de exterioridades. Vista desse modo, a missa passa a ser um ritual enfadonho, o sermão do celebrante vira um discurso interminável e o fiel fica escolhendo aquele padre que celebra a missa mais depressa, a fim de “se livrar” logo da obrigação. Com toda certeza, não é isso que Cristo quer de nós.

Qual seria, então, a motivação para ir à missa aos domingos, se não for o do cumprimento do preceito? A resposta está na leitura do evangelho, retirada de Mateus (18, 15-20), ou seja, “onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estou aí, no meio deles.” A verdadeira motivação da participação na celebração litúrgica está no encontro com os irmãos, porque é na comunidade que Cristo está presente, de acordo com a promessa dele. É porque a nossa religião é comunitária e deve ser exercida na comunidade. Por mais que eu reze individualmente (e aqui eu não estou negando o valor dessa oração individual), isso não é suficiente, a fé não está completa. É no encontro da comunidade orante que o cristão tem a certeza de que está na presença de Cristo.

É nesse contexto que devemos compreender a exortação de Cristo, no sentido de que “se dois de vós estiverem de acordo na terra sobre qualquer coisa que quiserem pedir, isso lhes será concedido por meu Pai que está nos céus.” Na comunidade, a nossa oração é muito mais forte, aliás, ela tem todo o poder, assegurado pelo próprio Cristo. Daí que o ato de corrigir o irmão não deve ser com aquele tom ameaçador de censura, de mostrar seus pecados, de advertir sobre os castigos, etc., mas de reconduzi-lo ao amor de Deus. Por exemplo, se o irmão não vai à missa e você vai conversar com ele sobre isso, o tom da conversa não deve dar ênfase no aspecto do “pecado” ou do “descumprimento do preceito”, mas deve destacar a dimensão comunitária da religião, da superioridade da oração coletiva sobre a prece particular, da promessa de Cristo de estar presente quando os irmãos se reunem para rezar, não quando alguém reza individualmente. Daí porque a missa transmitida pela televisão ou pela internet só é legitimada em casos específicos e não substitui, sem reservas, a celebração eucarística comunitária.

É interessante também destacar a metodologia da abordagem ensinada por Jesus. Primeiro, o irmão deve ser procurado em particular, para não expô-lo na comunidade. Se essa conversa não tiver resultado, vem o segundo passo: repete a conversa na presença de outros dois irmãos, atribuindo assim uma força persuasiva maior. Se também isso não funcionar, então será a vez de apelar para que toda a comunidade se empenhe nessa tentativa. Essa sequência de ações deverá ser suficiente para chamar o irmão faltoso à reconciliação. Se nem assim der certo, então vai incidir aquilo que lemos na primeira leitura, do profeta Ezequiel: o ímpio morrerá na sua impiedade, mas tu não serás responsabilizado pela perdição dele. Aqui se entrelaça a primeira leitura com o texto do evangelho, mostrando a harmonia e a coerência da palavra de Deus no antigo e no novo testamentos.

Meus amigos, obviamente não é tarefa fácil chamar a atenção de um irmão sobre o seu comportamento, ao contrário, é extremamente delicada e deve ser tratada com o máximo tato e sensibilidade. Mas Jesus nos ensina que, apesar disso, a nossa fé nos traz essa responsabilidade e não devemos ignorá-la.

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segunda-feira, 4 de setembro de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 22º DOMINGO COMUM - A LÓGICA DE DEUS - 03.09.2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 22º DOMINGO COMUM – A LÓGICA DE DEUS – 03.09.2017

Caros Leitores,

Neste 22º domingo comum, a liturgia nos põe diante do desafio de abandonar o modo de pensar de acordo com o mundo (lógica mundana) e aprender a pensar de acordo com o que é divino (lógica de Deus). A repreensão que Jesus faz a Pedro, que não compreendeu sua descrição da futura paixão pela qual teria de passar, nos adverte a buscar compreender os pensamentos de Deus, conforme ensinou o profeta Isaías (55, 8): “os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos são os meus caminhos.”

Na primeira leitura, do livro do profeta Jeremias (Jr 20, 7-9), vemo-lo se debatendo entre o dilema de profetizar e ser alvo de zombarias ou de abandonar a proferia e se livrar. Javeh fá-lo compreender que, mesmo sofrendo chacotas e pilhérias, ele deve continuar a sua missão de profetizar. Para associar com o contexto histórico, Jeremias profetizou no período que antecedeu a destruição de Jerusalém pelos babilônios, um período histórico bastante conturbado do povo de Israel, cujo rei Ezequias e cujos sacerdotes praticavam a ganância e a idolatria e desrespeitavam Javeh. O profeta Jeremias, por diversas vezes, chamou a atenção das autoridades para esses desmandos, ameaçando que Javeh seria muito rigoroso para com eles, no entanto, eles riam do Profeta e levavam-no na brincadeira. Foi quando Jeremias escreveu: “Todas as vezes que falo, levanto a voz, clamando contra a maldade e invocando calamidades; a palavra do Senhor tornou-se para mim fonte de vergonha e de chacota o dia inteiro. Disse comigo: ‘Não quero mais lembrar-me disso nem falar mais em nome dele”. Senti, então, dentro de mim um fogo ardente a penetrar-me o corpo todo; desfaleci, sem forças para suportar.” (Jr 20, 8-9) Percebemos nesse depoimento do Profeta que, quando ele quis optar pelo modo de pensar mundano, esquecendo a profecia, Javeh lhe mostrou que ele devia continuar seguindo a lógica de Deus, profetizando. Assim foi até que vieram os inimigos, destruíram a cidade de Jerusalém e levaram os habitantes como cativos. Ele, Jeremias, foi poupado do cativeiro e, para não sofrer represálias dos judeus que ficaram na cidade, fugiu para o Egito, junto com parentes e amigos. O apóstolo Paulo também, em certa ocasião, se expressou aos cristãos de Corinto numa linguagem similar: “Porque, se anuncio o evangelho, não tenho de que me gloriar, pois me é imposta essa obrigação; e ai de mim, se não anunciar o evangelho! (1 Cor 9:16)” O desabafo de Paulo tem o mesmo sentido do texto de Jeremias.

Na segunda leitura, extraída da carta aos Romanos (12, 1-2), o Apóstolo os adverte os cristãos romanos a pensar de acordo com a lógica divina, quando diz: “Não vos conformeis com o mundo, mas transformai-vos, renovando vossa maneira de pensar e de julgar, para que possais distinguir o que é da vontade de Deus.” Para distinguir o que é da vontade de Deus, é necessário ultrapassar o modo de pensar de acordo com o mundo, renovar-se espiritualmente, oferecendo-se como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, seguindo as palavras de Paulo. O Papa Francisco, na alocução que fez neste domingo aos peregrinos, na Praça de São Pedro, por ocasião do Angelus do meio dia, com seu estilo bem informal e com a linguagem coloquial que lhe é peculiar, assim resumiu esse tema da liturgia de hoje: “Somos chamados a não nos deixarmos absorver pela visão deste mundo, mas a estar cada vez mais conscientes da necessidade e do empenho dos cristãos de avançarem contracorrente e à margem. Neste paradoxo está contida a regra de ouro que Deus inscreveu na natureza humana criada em Cristo : a regra de que só o amor dá sentido e felicidade à vida. Gastar os seus talentos, energias e o seu tempo só para se salvar, se proteger e se realizar a si mesmo, conduz, na verdade, a perder-se, quer dizer, a uma existência triste e estéril. Se, pelo contrário, vivemos para o Senhor e fundamentamos a nossa vida sobre o amor, como fez Jesus, podemos saborear a autêntica alegria e a nossa vida não será estéril, pelo contrário, ela será fecunda. ”. (apud Zenit, revista eletrônica desta data – www.zenit.org). Achei interessante o Papa fazer esse paradoxo entre a lógica mundana e a lógica divina, porque viver no mundo, mas, ao mesmo tempo, pensar com os pensamentos de Deus, esse é o desafio que se coloca, a cada dia, para os cristãos.

No evangelho deste domingo (Mateus 16, 21-17), encontramos uma repreensão dura de Cristo a Pedro, chamando-o de “satanás”. Acerca desse vocábulo, é interessante notar que é uma palavra transliterada diretamente do hebraico para o grego, passando daí para o latim e para o português. Na língua hebraica, “satan” (סתן) significa o acusador, relacionada etimologicamente com a raiz verbal do verbo hostilizar, acusar, denunciar. É interessante ainda observar que, na tradução grega, o vocábulo “satanás” é utilizado para designar adversários entre seres humanos, pois quando o adversário é um ser sobrenatural (por ex: anjo mau), a palavra usada é “diábolos”. No latim, as duas palavras ficaram sinônimas (satanás e diábolos), passando assim para o português. Essa explicação é necessária para compreendermos que, quando Jesus chamou Pedro de “satanás”, nada tem a ver com o demônio, o capeta, aquele ser horripilante que os artistas medievais pintaram com chifres e com rabo, segurando o tridente. Esse é o arquétipo comum na nossa cultura, por isso, é a primeira imagem que nos acode à mente diante dessa palavra. No entanto, essa explicação também não retira a dureza da repreensão de Cristo a Pedro: sai pra lá, inimigo meu, és um escândalo para mim... é mais ou menos nesse sentido que deve ser entendido o “carão” de Jesus.

Convém destacar também nesse contexto o sentido da palavra “escândalo”, que não tem semelhança com o significado comum em português. Em grego, a palavra original é “skandalou”, que significa cilada, obstáculo, traição. No sentido dos evangelhos, escândalo significa algo que faz fraquejar a fé, como se fosse um mau exemplo dado por alguém. Na tradução oficial da CNBB, essa palavra foi traduzida como “pedra de tropeço”, isto é, algo que impede de atingir um objetivo. Foi exatamente isso que Jesus sentiu quando Pedro disse: “Deus te livre, Mestre, isso nunca vai te acontecer”. Ora, nós sabemos que Jesus, enquanto homem, sofreu muito diante da expectativa da paixão, porque enquanto Deus ele sabia de tudo o que iria acontecer, mas sendo homem, ele teria que sofrer de verdade tudo aquilo, e isso o deixava angustiado. Foi por isso que ele chegou a dizer “Pai, afasta de mim esse cálice”, foi por isso que ele suou sangue no Horto das Oliveiras. Então, aquela intervenção de Pedro, com a melhor intenção de proteger o Mestre, funcionou para ele como um desestímulo sob o aspecto humano, de modo que a repreensão forte sobre Pedro foi também uma forma de demonstrar para os demais que não deveriam “se meter” naquele assunto. Jesus estava comunicando antecipadamente ao seu grupo de discípulos o que iria acontecer, mesmo que eles não entendessem aquilo, para que eles soubessem e não fossem apanhados de surpresa quando tudo acontecesse. Então, Jesus completou: tu (Pedro), dizes isso porque não pensas as coisas de Deus (lógica divina), mas pensas as coisas dos homens (lógica mundana).

Vemos assim, meus amigos, claramente nessa fala de Jesus, a diferença entre ser escândalo e ser discípulo, entre ser satanás e ser fiel, entre ter pensamentos mundanos e ter pensamentos divinos. Ser satanás é ser escândalo, isto é, ser motivo de fraquejamento na fé das pessoas que nos conhecem. É quando as pessoas dizem assim: fulano(a) vive na Igreja, carrega um terço no pescoço, não perde uma missa e, no entanto, está ali tirando proveito ilícito de uma situação, está faltando com a caridade, está desfazendo com suas ações o discurso que faz com a boca. Precisamos sempre vigiar para que tais situações não aconteçam conosco, porque o mau exemplo praticado por uma pessoa que se declara, e todos conhecem, como “de dentro da Igreja” é muito mais prejudicial do que quando o mesmo comportamento é feito por uma pessoa que assim não se qualifica. É quando alguém se torna em escândalo para o próximo, ou pedra de tropeço para o irmão.

Na sequência desse ensinamento, Jesus pronuncia outra frase que nos foi dita muitas vezes, no nosso período de formação: “quem quiser salvar a sua vida vai perdê-la; e quem perder a sua vida por causa de mim, vai encontrá-la”. Nessa frase, está descrito, com outras palavras, o mesmo tema da nossa reflexão. Pensar de acordo com o mundo é querer salvar a vida pelas aparências, isso vai acarretar a sua perda. Pensar diferente do mundo é, aparentemente, perder a vida, mas só assim o verdadeiro discípulo de Cristo vai encontrá-la. E a promessa de Cristo é bastante alentadora: “o Filho do Homem virá na glória do seu Pai, com os seus anjos, e então retribuirá a cada um de acordo com a sua conduta”. (Mt 16, 27).

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