domingo, 29 de novembro de 2015

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 1º DOMINGO DO ADVENTO - TRIBUNAL DA MISERICÓRDIA - 29.11.2015

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 1º DOMINGO DO ADVENTO – TRIBUNAL DA MISERICÓRDIA – 29.11.2015

Caros Leitores,

A rodada do calendário litúrgico nos coloca novamente no início de um novo ano. Antes do ano civil, o ano litúrgico se inicia na última semana de novembro ou primeira semana de dezembro do ano anterior, de acordo com a posição do dia de Natal no calendário, pois o ano litúrgico se inicia quatro semanas antes do Natal. A organização litúrgica da Igreja Católica distribui, no período de doze meses, toda a história da salvação, que historicamente demorou vários séculos, fazendo-nos reviver, a cada ano, todos os fatos marcantes da intervenção de Deus junto aos homens, que teve início com a aliança de Javeh com Abraão e se consumou com a morte e ressurreição de Cristo, prolongando-se com os eventos confirmadores da ascensão de Cristo e da vinda do Espírito Santo. Com a liturgia de hoje, 1º domingo do advento, tem início o ano litúrgico de 2016, seguindo o calendário eclesiástico. De acordo com as regras da instrução oficial do Secretariado da Liturgia, quando o número do ano civil é divisível por 3, ele é identificado com a letra C. Isso porque as leituras bíblicas são divididas em três grupos temáticos, repetindo-se a cada três anos.

Desse modo, todos os anos, nessas quatro semanas que antecedem o Natal, a liturgia nos leva a refletir sobre as coisas que hão de vir (adventura), bem como sobre o Menino que vai chegar (adveniens), convidando-nos a preparar o coração para recebê-lo com espírito renovado. Sem entrar numa infindável e estéril discussão histórica sobre a data do Natal (segundo alguns, o nascimento de Cristo teria sido em março ou abril), independentemente do contexto paganizado com que foi estabelecido o dia 25 de dezembro para a celebração do nascimento de Cristo, o fato é que esta comemoração deve ter a marca da nossa preparação espiritual, realimentando as nossas esperanças e reavivando a nossa fé num futuro melhor, sobretudo numa época de tantas incertezas e desencantos. A liturgia nos convoca a reunir nossas energias mentais positivas e nossa fé na verdade cristã, que tem o poder de transformar o mundo.

As leituras deste domingo fazem referência à segunda vinda de Cristo. Esse tema, conforme abordamos em comentários recentes, foi muito caro aos primeiros cristãos, que esperavam o fato como algo iminente, porém com a demora de sua concretização, ao longo dos tempos, passou por diversos quadros interpretativos. Passados tantos séculos e com a evolução do conhecimento humano, já não se deve pensar numa data determinada no calendário, nem mesmo num dia incerto e indefinido, como está escrito no evangelho (Lc 21, 35). Na minha modesta opinião, sou levado a crer que não cabe mais pensar num evento de dimensões cósmicas, como consta com detalhes na narração do evangelho lido neste domingo (Lc 21, 25), e sim numa circunstância que se realizará na dimensão atemporal, quando ultrapassarmos o umbral da materialidade. Quando adentrarmos a dimensão da eternidade, encontraremos o Filho do Homem sentado sobre as nuvens, com todo o seu poder e glória, julgando e premiando os seus seguidores de coração sincero.

Na primeira leitura, o profeta Jeremias diz que “naqueles dias, farei brotar a semente da justiça que fará valer a lei... e Jerusalém terá uma população confiante... e será designada como 'o Senhor é a nossa justiça'”. (Jr 33, 15). É a nova Jerusalém, aquela que um dia há de ser destruída e depois será restaurada com o nome de Justiça. Isso ocorrerá 'naqueles dias' que não se sabe quando serão, mas que, com certeza, será na Jerusalém celeste. Dizer que o seu nome será “o Senhor é nossa justiça” significa que devemos considerar que a justiça divina não tem comparação com a justiça dos homens. A justiça de Deus é, na verdade, a sua misericórdia, o seu infinito amor para conosco, porque se Ele fosse nos julgar do modo como nós costumamos julgar os nossos semelhantes, coitados de nós.

Então, no advento, a cada ano, nós reiniciamos a nossa preparação para esse futuro encontro com o Filho do Homem em seu tribunal da misericórdia, através dos atos litúrgicos que nos rememoram a vida histórica de Cristo, para que estejamos sempre vigilantes, como Ele próprio ensinou. Na segunda leitura, carta de Paulo aos cristãos Tessalonicenses (1Ts 4,1), o apóstolo os exorta a viverem como foi ensinado a eles, para agradar a Deus, seguindo as instruções que lhes foram passadas em nome do Senhor Jesus. Paulo estava preocupado com os Tessalonicenses, porque em sua visita àquela cidade, houve uma ríspida discussão entre ele e os judeus, fato que levou Paulo a fugir da cidade. Depois, ele mandou para ali Timóteo, para sondar o ambiente e ficou muito feliz com a informação deste de que os tessalonicenses continuavam fiéis à mensagem cristã. Por isso, Paulo os exorta a continuarem com aquele mesmo fervor religioso, preparando-se para o retorno de Cristo que, segundo o entendimento da época, se daria dentro de pouco tempo.

O evangelho de Lucas (Lc 21, 25-36) traz a clássica narrativa daqueles fatos que são indicativos do “final dos tempos”: “Haverá sinais no sol, na lua e nas estrelas. Na terra, as nações ficarão angustiadas, com pavor do barulho do mar e das ondas.” Em relação à conduta das pessoas, o texto do evangelho é assustadoramente dramático: “Os homens vão desmaiar de medo, só em pensar no que vai acontecer ao mundo, porque as forças do céu serão abaladas.” Os cristãos de todas as épocas, mas sobretudo dos primeiros tempos, tremiam diante dessas leituras e alguns até deixaram de trabalhar, porque a volta do Senhor estava próxima. Ora, Jesus disse diversas vezes que somente o Pai sabe esse dia, nem Ele sabia, como é que uns pobres mortais poderão adivinhá-lo? Por isso, mais importante do que tremer com a expectativa daquele “dies irae, dies illae” (como dizia o antigo cântico gregoriano), o que nós devemos fazer é seguir o que Jesus recomendou: “Tomai cuidado para que vossos corações não fiquem insensíveis por causa da gula, da embriaguez e das preocupações da vida, e esse dia não caia de repente sobre vós; pois esse dia cairá como uma armadilha sobre todos os habitantes de toda a terra.” (Lc 21, 34-35). Esse dia é aquele em que iremos nos encontrar diante do tribunal da misericórdia e desse dia ninguém conseguirá fugir. Daí que a preocupação de Cristo conosco é para que não nos deixemos dispersar pelos prazeres materiais e pelas preocupações da vida, para que a nossa fé esteja sempre atenta. Mais do que impressionar-se com o abalo das forças celestes, a nossa preocupação deve estar voltada para a nossa própria conduta, para a nossa fidelidade com os compromissos do nosso batismo. Cristo sabe o quanto isso é difícil para cada um de nós, frente a tantas distrações e encantamentos que a realidade material lança sobre nós. Daí o conselho que ele nos dá: ficai atentos e orai a todo momento, para terdes força pra ficar de pé diante do Filho do Homem.

É curioso como, ao longo do tempo, as pessoas leram essa passagem do evangelho e se concentraram na descrição dos fenômenos cósmicos, que na verdade estão fora do nosso controle, e esqueceram dessa outra parte em que Jesus nos exorta a agir com moderação, sem nos deixarmos seduzir pelos apelos dos prazeres corporais, pois isso sim depende de nós. Então, o ensinamento de Cristo para que fiquemos vigilantes sempre não se refere a um tempo futuro e indefinido, mas ao nosso tempo existencial. A nossa fé n'Ele deve ser renovada a cada dia, para que nossa expectativa não se volte para um fim catastrófico do mundo, mas para um fim sereno dos nossos dias, porque estes têm um prazo até certo ponto previsível. E será nesse momento que precisaremos ter forças para ficar de pé diante do Filho do Homem. A nossa força será medida pela nossa perseverança. Desse modo, quando o advento nos convida a estar vigilantes porque não sabemos o dia nem a hora, a nossa atenção não deve se voltar para “o Filho do Homem, vindo numa nuvem com grande poder e glória”, mas para o dia em que cada um de nós deveremos ficar em pé diante d'Ele.

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domingo, 22 de novembro de 2015

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 34º DOMINGO COMUM - FESTA DE CRISTO REI - 22.11.2015

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 34º DOMINGO COMUM – FESTA DE CRISTO REI – 22.11.2015.

Caros Leitores,

Neste 34º domingo comum, encerra-se o ano litúrgico, com a festa de Cristo Rei do Universo. Esta celebração foi instituída em 1925, pelo Papa Pio XI, com um objetivo religioso-político, no período histórico que mediou entre as duas grandes guerras mundiais e num contexto de grande ascensão do ateísmo no mundo, com a vitória dos regimes comunistas na Ásia. O objetivo do Papa era, ao mesmo tempo, contrapor-se à teologia modernista, muito em voga no início do século XX, além de chamar a atenção da comunidade internacional para a figura de Cristo, o soberano acima de todos os dirigentes políticos.

A motivação teológica desta festa litúrgica se concentra na 'segunda vinda' de Cristo, quando ele virá concretizar as profecias que falam de sua eterna glória e do seu grande poder, como a que lemos na primeira leitura de hoje, retirada do profeta Daniel. O profeta teve uma visão terrível de quatro grandes animais que desciam do céu e foi dado a cada um grande poder de destruição. Depois, veio um ancião sentado num trono de fogo, e logo depois veio o filho do homem: “eis que, entre as nuvens do céu, vinha um como filho de homem, aproximando-se do Ancião de muitos dias, e foi conduzido à sua presença. Foram-lhe dados poder, glória e realeza, e todos os povos, naçðes e línguas o serviam: seu poder é um poder eterno que não lhe será tirado, e seu reino, um reino que não se dissolverá.” (Dn 7, 13-14). Na sequência da leitura, que não está na liturgia, o próprio Daniel ficou espantado com a visão e pediu que lhe fosse explicado aquilo, então ele soube que os animais eram reis de grande poder que surgiriam ali, mas seriam submetidos pelo poder daquele que virá por último. Tal figura protagoniza a vinda de Cristo, corroborada assim no Apocalipse: “Jesus Cristo, a testemunha fiel, o primeiro a ressuscitar dentre os mortos, o soberano dos reis da terra.” (Ap 1, 5). E ainda no evangelho de Marcos: “Então vereis o Filho do Homem vindo nas nuvens com grande poder e glória. Ele enviará os anjos aos quatro cantos da terra e reunirá os eleitos de Deus, de uma extremidade à outra da terra.” (Mc 13, 26-27). Embora a liturgia de hoje não tenha escolhido este trecho do evangelho de Marcos, ele se encaixa totalmente no contexto das duas leituras anteriores.

Conforme eu já tive oportunidade de expressar aqui neste espaço virtual, na minha opinião pessoal (que não é doutrina oficial da Igreja Católica, mas um comentário reservado meu), eu não concordo com essa exaltação dada pela liturgia à figura de Cristo Rei do Universo. Em toda a sua pregação, Ele nunca quis ser exaltado como chefe, ele sempre repreendeu os discípulos e pessoas da comunidade, quando queriam enaltecê-lo, assim como repreendia os discípulos, quando entre si disputavam quem seria o maior, dizendo que o maior de todos deve ser o que serve a todos. Ele deu muitos exemplos disso. Então, fica me parecendo essa homenagem a Cristo Rei como um contrassenso a tudo o que ele pregou. Fico com a impressão de que Ele rejeitaria tal homenagem, se tivessem lhe perguntado antes. Além do mais, essa imagem do rei é algo que recorda os tempos antigos e medievais, nos quais a figura real era algo que fazia parte do dia a dia das pessoas, porque a autoridade maior em toda parte era a de um rei. Mas no nosso tempo, a figura do rei perdeu muito a sua importância, politicamente existem poucos e o arquétipo real tornou-se algo bastante folclórico, presente nos folguedos populares, de modo que a imagem do rei já não transmite um significado de algo verdadeiro, mas faz parte do mundo da fantasia.

Eu ainda vejo nisso outro agravante. A celebração de Cristo Rei do Universo nos leva a questionar o alcance desse reinado. Até onde nos é dado saber, Cristo veio trazer a salvação aos seres humanos, isto é, habitantes da terra. As leituras bíblicas, escritas numa época em que a compreensão de universo se restringia ao limite geomórfico, fazem referência aos 'reinos da terra'. Mas, em 1925, quando a festa foi estabelecida, já se tinha o conceito de universo bem mais estendido, e por isso o título da festa é Cristo Rei do Universo, já devia ser vista não apenas como do planeta terra. Num domingo próximo passado, eu externei aqui uma opinião sobre o que eu suponho que se deva entender por “fim do mundo”, desmistificando aquela narração funcionalista do fim dos tempos, com as estrelas caindo e os mortos saindo dos túmulos, imagens que foram bastante exploradas pelos artistas medievais. Ora, sabe-se hoje que o universo tem uma dimensão inefável, ilimitada, incomensurável, a cada dia a ciência faz afirmações de descobertas sobre a existência de outros planetas em condições idênticas às da terra, com grande probabilidade de que haja vida inteligente por lá. Pois bem. Se houver esses mundos, então a mensagem de Cristo também teria chegado lá? Cristo teria se encarnado lá também e teria pregado seu evangelho ali? Até hoje, toda a teologia foi elaborada com base no pressuposto de que somente na terra existe vida inteligente. Como ficará a doutrina religiosa quando forem (e isso acontecerá, embora não se saiba quando) finalmente encontrados outros seres inteligentes, com a mesma estrutura mental dos habitantes da terra? Ora, a referência a Cristo Rei do Universo (e não apenas da terra) supõe que a Sua pessoa e a sua mensagem estariam presentes em todos os confins do cosmos. Não há resposta cabal para este questionamento. Porém, por pura dedução de lógica, partindo da afirmação teológica de que Deus criou tudo o que existe e que no Filho, nascido do Pai antes de todos séculos, todas as coisas foram feitas, podemos concluir que, se existirem outros mundos semelhantes ao nosso, ali também será encontrada a mensagem cristã.

Lembremo-nos da profecia de Daniel (primeira leitura), na sua visão dos animais ferozes, que representavam os reis que surgiriam ali naquela parte da terra. A sua abrangência era limitada, porque não podia ser diferente do conhecimento que havia naquela época. Ao longo da história, diversos estudiosos tentaram associar essas figuras metafóricas das profecias bíblicas com alguns personagens reais. E fora do contexto bíblico, são muito famosas as centúrias de Nostradamus, as quais são recorrentemente interpretadas em confronto com os fatos históricos. Então, partindo disso, considerando a compreensão que se tem hoje do universo, precisamos repaginar a nossa crença nessas verdades escatológicas, que os textos bíblicos lançam apenas na perspectiva geoestacionária. A festa de Cristo Rei está relacionada com a “segunda vinda” de Cristo e essas narrativas também estão na perspectiva da profecia danielina e precisam ser reinterpretadas. E para isso precisamos ultrapassar também o conceito de “rei” como conhecemos concretamente e historicamente. O “reinado” de Cristo (isso ele mesmo disse) não é deste mundo, então não podemos pensar sobre ele numa dimensão material, cosmológica, ainda que nas gigantescas proporções do universo apresentado pela ciência. O universo onde Cristo efetivamente “reina” repousa no coração, na intuição, no discernimento, na adesão dos seus fiéis e não deve ser imaginado como um local onde se estabeleceria esse trono fictício. O “reino” de Cristo ultrapassa os limites da temporalidade e somente será possível compreendê-lo se nos dispusermos a ir além da imaginação e da limitação da nossa racionalidade.

Meus amigos, neste comentário, não me limitei à costumeira abordagem das leituras litúrgicas do domingo e peço desculpas se não concordarem com essa forma de pensar e teologia da esperança. A segunda vinda de Cristo, creio eu, somente será perceptível para nós quando ultrapassarmos os umbrais do tempo e do espaço. Mas, apesar de discordar desse aparato suntuoso que a liturgia sugere com a festa de Cristo Rei, eu creio também que Jesus é verdadeiramente o soberano da verdade, da justiça, da paz, da igualdade e da fraternidade e que, para isso, ele não precisa de um manto real nem de um cetro nem de um trono, porque o seu manto é a verdade, o seu trono é a justiça e o seu cetro é a paz que ele vem trazer todos os dias a todos nós.

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domingo, 15 de novembro de 2015

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 33º DOMINGO COMUM - AS COISAS FUTURAS - 15.11.2015

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 33º DOMINGO COMUM – AS COISAS FUTURAS – 15.11.2015

Caros Leitores,

No 33º domingo comum, aproximando-se o final do ano litúrgico, a liturgia nos convida a refletir sobre o final dos tempos, a segunda vinda de Cristo, quando virá para julgar os vivos e os mortos. Esses tema foi muito explorado pelos artistas medievais, que deixaram registrada, em magníficas pinturas, cada um ao seu modo, a interpretação que fizeram das palavras do evangelho de Marcos, acerca do dia do juízo: o sol escurecerá, a lua não mais dará sua luz, as estrelas cairão... Com os conhecimentos científicos de atualidade, constata-se que se trata de uma visão alegórica do final dos tempos, todavia, ainda paira na mentalidade de grande parte da nossa população a imagem dessa gigantesca hecatombe, de modo que cada desastre ocorrido facilmente a evoca. Precisamos, pois, repaginar o nosso entendimento sobre essas coisas futuras.

Na leitura da profecia de Daniel (Dn 12, 1-3), aparece a figura imponente de Miguel, o defensor que virá resgatar todos aqueles cujos nomes se acharem inscritos no livro, os quais brilharão como estrelas por toda a eternidade, os justos, aqueles que foram sábios e ensinaram aos outros o caminho da virtude. Os que não tiverem procedido corretamente em vida, serão lançados no opróbrio eterno. São as mesmas expressões que Jesus utilizará, na sua catequese em forma de parábolas, para explicar aos seus ouvintes acerca do juízo final. Sempre foi uma grande curiosidade dos seres humanos, em todas as épocas, saber o que acontecerá no fim dos tempos. Em verdade, será o caso de perguntarmos se os tempos terminarão objetivamente, porque Kant já explicou, de forma incontestável, que o tempo é uma percepção subjetiva nossa, então a expressão final dos tempos deve ser entendida como final do universo. Ocorre que com a indizível e imensurável dimensão que o universo se apresenta para os astrônomos e astrofísicos, pode-se colocar em dúvida se o universo realmente se extinguirá ainda que num futuro distante. Só por essa breve referência, já se pode avaliar a complexidade da ideia que envolve a expressão “final dos tempos”.

No evangelho de Marcos (Mc 13, 24-32), lemos aquela descrição assustadora e detalhada de Jesus aos discípulos, sobre as coisas futuras, palavras que sempre foram, ao longo da história, entendidas literalmente. Porém, se nós as lermos com uma mentalidade serena, à luz do que hoje se conhece acerca do universo, mesmo quem não for especialista no assunto perceberá que se trata de eloquente alegoria. “O sol escurecerá...” quando eu era aluno do curso ginasial (isso já tem uns bons 50 anos), eu li uma matéria que dizia: daqui a dois milhões de anos, o sol esfriará. Nunca esqueci disso. Essa deve ser a tendência natural, se imaginarmos que o sol é um corpo celeste que realiza intensa atividade atômica, a tendência é que, com o passar do tempo (muito tempo mesmo), sua energia irá regredindo progressivamente. Por outro lado, sabe-se que o nosso sol é apenas uma estrela de quinta grandeza e que existem inumeráveis sóis no universo, o que significa que se, acaso, o nosso sol escurecesse, em termos de universo, isso não faria diferença significativa. Alegoria, portanto.

“As estrelas começarão a cair do céu...” essa era a concepção cosmológica dos povos antigos, que entendiam o firmamento como uma semiesfera, onde estariam penduradas as estrelas. Nos dias de hoje, nem uma criança do ensino fundamental pensa mais assim. Os riscos que, teoricamente, existem são de eventuais colisões de corpos celestes. “A lua não mais brilhará...” é outra frase que não resiste à mínima crítica, porque todos sabemos que a lua não tem luz própria, mas reflete a luz solar. Ora, essas frases só podem ser compreendidas metaforicamente. Eu fico boquiaberto quando ouço pessoas que, publicamente, afirmam que a Bíblia está cheia de erros, por causa dessas passagens. Essas pessoas não conseguem pensar alegoricamente e nem percebem que as expressões bíblicas reproduzem uma mentalidade e um conhecimento científico de diversos séculos antes de nós e que precisam ser devidamente aculturados para fazerem sentido na nossa época.

Ora, se passarmos agora para as outras expressões contidas nesse mesmo contexto, no evangelho de Marcos, obrigatoriamente também iremos concluir que elas devem ser entendidas metaforicamente: “vereis o Filho do Homem vindo nas nuvens”..., “enviará os anjos aos quatro cantos da terra e reunirá os eleitos de Deus de uma extremidade a outra...”, “essa geração não passará até que isso aconteça”... São frases que precisam ser relidas e reinterpretadas no seu significado cultural e religioso, na mesma proporção em que fizemos com as afirmações de conteúdo cosmológico. Com certeza, Jesus não aparecerá sentado numa nuvem, os anjos não tocarão trombetas ensurdecedoras para despertarem os mortos e os reunirem aos vivos, pois se forem somadas as quantidades de seres humanos de todas as épocas, veremos que não haveria espaço físico suficiente para conter tanta gente. A geração que não passará não é a geração cronológica, mas a “gens” humana. E aqui está a afirmação mais grave. Eu entendo aqui que a ganância dos seres humanos vai terminar por inviabilizar a vida terrestre. No ritmo que as coisas estão acontecendo, isso parece que não vai demorar muito. A sucessão de desastres ecológicos provocados pela irracionalidade e a ambição de alguns irresponsáveis irá, isso é certo, por um fim na humanidade. E aí sim, teremos o final dos tempos. Não do modo literal como está descrito no texto do evangelista Marcos, mas no sentido de que, com a extinção dos seres humanos, o tempo realmente se extinguirá, porque não haverá mais consciência e racionalidade para reconhecê-lo e contabilizá-lo.

Importa aqui assinalar também que Jesus, naquela ocasião e de forma profética, se referia à destruição de Jerusalém, por causa da infidelidade do povo judeu e pelo fato de não o terem reconhecido como o Messias esperado. A Jerusalém histórica, com efeito, foi destruída pelo exército romano cerca de 70 anos após a morte de Cristo. A “grande tribulação” a que Jesus se referiu no seu discurso metafórico se reportava, em primeiro lugar, à profanação do templo de Salomão pelos romanos, o que iria causar (como de fato causou) grande comoção para os judeus. Mas com a destruição da Jerusalém de tijolos, ergueu-se outra Jerusalém simbólica, atemporal e espiritual, que é a Igreja de Cristo, que veio substituir e firmar-se sobre as ruínas do templo salomônico.

Aqui nesse contexto se encaixa o texto da segunda leitura, da carta aos Hebreus (Hb 10, 11-12): “Todo sacerdote se apresenta diariamente para celebrar o culto, oferecendo muitas vezes os mesmos sacrifícios, incapazes de apagar os pecados. Cristo, ao contrário, depois de ter oferecido um sacrifício único pelos pecados, sentou-se para sempre à direita de Deus.” Os cultos ofertados no templo de Salomão não têm comparação com a oferenda de Cristo, que foi única e definitiva. A redenção operada por ele transformou aquela Jerusalém de barro e tijolos por um templo imperecível, que não está mais situado num espaço geográfico, mas no coração de todos aqueles que creem. E os salvos não estão mais inscritos “num Livro”, como disse o profeta Daniel, mas estão espalhados por todos os confins da terra, reunidos sob a presença mística de Cristo, que afirmou: onde houver dois ou mais reunidos em meu nome, eu estarei ali presente. Não é mais necessário se deslocar até uma Jerusalém geográfica ou até o templo físico, porque a Jerusalém celeste e o templo espiritual estão onde estiverem os cristãos unidos em sua fé. Essa é a grande diferença. Essa é a verdadeira realidade que representa o conjunto das coisas futuras.

Se observarmos bem, o discurso de Cristo é fundamentalmente de cunho ecológico, bem atualizado para a linguagem do nosso mundo atual. O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não passarão. Aquela concepção cosmológica de céu e terra não faz mais nenhum sentido para a mentalidade moderna. São céu e terra passados. Mas essa geração não passará até que tudo isso aconteça. Infelizmente, estamos presenciando, sob diversas formas de condutas de pessoas sem escrúpulo da geração humana, ações devastadoras que nos induzem a pensar que “as folhas da figueira da parábola estão ficando verdes e os frutos não demorarão a aparecer”. Que Deus dê a essas pessoas a chance de se conscientizarem disso, antes que seja tarde demais.

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domingo, 8 de novembro de 2015

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 32º DOMINGO COMUM - O EXEMPLO DA VIÚVA - 08.11.2015

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 32º DOMINGO COMUM – O EXEMPLO DA VIÚVA – 08.11.2015

Caros Leitores,

Neste 32º domingo comum, a liturgia traz para nossa reflexão dois episódios envolvendo viúvas: uma do tempo do profeta Elias e outra do tempo de Cristo. Em ambos os casos, a atitude de cada uma representa um louvável exemplo de generosidade e de desprendimento. A liturgia reúne esses dois fatos marcantes, ocorridos em épocas históricas bem distantes uma da outra, chamando a nossa atenção também para a superação do preconceito, que naquela época existia contra as viúvas, mas no nosso tempo adquire formas diversificadas. Somos convidados a vencer o preconceito, não apenas pelo aspecto jurídico-legalista, porque este só alcança a conduta exterior, mas e principalmente pelo aspecto caritativo-cristão, que parte do íntimo do coração.

Na primeira leitura, retirada do Livro dos Reis (1Rs 17, 10-16), temos o episódio protagonizado pelo profeta Elias, numa época de grande seca na região do Sinai, onde se encontrava estacionado o povo hebreu, levando o povo a passar grandes necessidades de abastecimento. O Profeta percorria a região, a mando de Javeh, a fim de exortar o povo contra a idolatria, que o contaminava facilmente, quando estavam em contato com os povos do deserto. Ao chegar na cidade de Sarepta, o Profeta pediu pão a uma mulher que colhia lenha, ao que ela respondeu que só tinha um pouco de farinha e de azeite, pra fazer o último pão que comeriam, ela e o filho, porque depois disso não teriam mais o que comer e o jeito era esperar a morte. Elias pediu que ela fizesse aquele último pão para ele, assegurando que Javeh não deixaria que faltasse o necessário para ela e o filho, até que sobreviesse novamente a fartura.

Se aquela não fosse uma mulher de fé, ela não teria acreditado no Profeta, teria negado a ele aquele último pão, com o qual iria saciar a fome provisória dela e do filho, encaminhando-se em seguida para a inanição. Mas, não. Ela acreditou no Profeta e deu a ele o seu último alimento. E aconteceu o milagre, conforme Elias predissera: sua farinha era reposta e seu azeite era renovado a cada dia, e assim ela teve alimento por muitos dias além. O Profeta comeu e seguiu o seu caminho, mas a promessa de Deus foi cumprida, porque a viúva fez a sua oferta de coração sincero.

Tempos depois, um episódio semelhante envolvendo outra viúva é narrado pelo evangelista Marcos (Mc 12, 41-44), numa ocasião em que Jesus se encontrava no templo e observava as ofertas que os judeus faziam, de acordo com o costume de doar o dízimo para o culto. Os ricos depositavam moedas grandes e pesadas, que faziam eco ao caírem no fundo do cofre. Provavelmente, havia o costume de deixar o dobrão cair subitamente, para chamar a atenção dos transeuntes sobre o tamanho da oferta. Daí a pouco, chegou uma pobre viúva que colocou só duas moedinhas, que nem fizeram barulho ao cairem no cofre. Jesus observava os doadores e logo ressaltou para os discípulos a diferença entre as ofertas: os primeiros, os ricos, doavam o que lhes sobrava, enquanto a viúva doara tudo o que possuía; os ricos faziam a oferta de forma ostensiva e com barulho, destacando o cumprimento da sua obrigação, enquanto a viúva fazia a doação com humildade e discrição, não por obrigação, mas por devoção, doava de coração o próprio coração. E Jesus completou: a oferta dessa mulher com duas moedinhas sem valor foi muto maior do que a dos anteriores, que fizeram tanto barulho, porque Deus não olha a quantidade, mas a qualidade da nossa oferta.

O evangelista não relata os eventos futuros relacionados a este fato, mas com certeza Deus proveu aquela pobre mulher com maiores bênçãos e retribuições, assim como deve ter recusado as ofertas dos outros fanfarrões, os quais, nas palavras do próprio Jesus “receberão a pior condenação” (Mc 12, 40). A teologia do dízimo utiliza o exemplo da viúva para fortalecer a convicção de que todos os paroquianos são responsáveis pela manutenção do templo e dos serviços religiosos, evitando-se a 'cobrança' de espórtulas para celebração dos sacramentos, como era a prática tradicional, fazendo doações espontâneas e regulares. Apenas os casamentos requintados, que são na verdade muito mais acontecimentos sociais do que cerimônias religiosas, são taxados aos que os requisitam.

O direito canônico não estipula valores para o dízimo, assim como não imprime qualquer tipo de sanção para os fiéis nesse sentido. No Antigo Testamento, havia o entendimento de que o dízimo seria a décima parte das colheitas e dos ganhos auferidos. No entanto, pelo comentário que Jesus faz acerca da oferta da viúva, podemos concluir que, mais importante do que a quantidade da oferta do dízimo é a qualidade da oferta que cada um faz. Muitos pregadores das organizações eclesiais ditas evangélicas aproveitam-se dessa norma veterotestamentária para cobrar dos fiéis os 10% do salário de cada um e muitos contribuem assim mesmo, de forma crédula e ingênua, supondo estarem adquirindo um 'terreninho' no céu. Outras pessoas criticam as ofertas e contribuições feitas pelos católicos, alegando que a Igreja é muito rica e devia vender suas propriedades e distribuir aos pobres a arrecadação. Com certeza, essas pessoas não conhecem os serviços de assistência popular realizados nas paróquias, os quais não seriam possíveis sem estruturas materiais e sem suporte monetário. O dízimo é uma contribuição para o serviço do templo, que não precisa se expressar apenas em valor financeiro, mas pode também ser ofertado em forma de serviço ou de colaboração com as atividades paroquiais. Esse serviço voluntário é essencial para que o trabalho evangelizador possa atingir um número maior de pessoas, sobretudo os mais necessitados. Na concepção atual, a palavra dízimo foi desassociada do seu étimo de corresponder à décima parte dos bens para significar o tamanho do seu coração. De nada valeria entregar para a sua Paróquia matematicamente dez por cento das suas rendas, se aquilo não fosse uma atitude de fé, diferente de mera obrigação.

Na segunda leitura, extraída da carta aos Hebreus (Hb 9, 24-28), o agiógrafo faz referência à oferta que Cristo fez de si próprio e que se diferencia completamente daquelas que eram historicamente feitas pelos sacerdotes do Antigo Testamento. Estes precisavam entrar no templo todos os anos e repetir suas preces rituais, oferecendo a Javeh o sangue alheio, ou seja, as oferendas dos animais sacrificados, que eram os “dízimos” apresentados pelos mais abastados. Porém, Cristo entrou no tabernáculo apenas uma vez e ofereceu o seu próprio sangue, por isso, ele não precisará mais repetir a oferta, porque esta é completa e definitiva. “Foi agora, na plenitude dos tempos, que, uma vez por todas, ele se manifestou para destruir o pecado pelo sacrifício de si mesmo.” (9, 26) A liturgia faz o contraponto entre as ofertas dos sacerdotes do Antigo Testamento com a oferta de si próprio por Cristo, na mesma linha de raciocínio que Jesus fez o contraponto entre a oferta feita pelos fariseus no templo e a oferta da viúva pobre: aqueles fizeram uma oferta imperfeita (o que lhes sobrava) e não agradável a Javeh, mas estoutra fez a oferenda perfeita (o próprio coração). O autor da carta aos Hebreus inspirou-se, certamente, no comentário que Jesus fez aos discípulos acerca da oferenda da viúva: “'Em verdade vos digo, esta pobre viúva deu mais do que todos os outros que ofereceram esmolas. Todos deram do que tinham de sobra, enquanto ela, na sua pobreza, ofereceu tudo aquilo que possuía para viver'.

A personagem singela e discriminada da viúva, exaltada por Jesus, nos leva a refletir sobre as discriminações que a sociedade também faz a algumas pessoas, nos tempos atuais. Na antiguidade, as viúvas pertenciam à classe mais baixa da sociedade, porque os direitos dos povos antigos não lhes garantiam nenhuma participação nos bens hereditários, que eram distribuídos entre os herdeiros diretos do falecido (filhos, netos, parentes consanguíneos), as viúvas eram excluídas da partilha. Por isso, elas eram as pessoas mais pobres da sociedade, fato que associado à condição feminina daqueles tempos as colocava em singular estado de miséria. Ao exaltar a contribuição da viúva, que ofertara tudo o que tinha para sobreviver e seria recompensada por Deus, Jesus nos ensina a respeitar e valorizar as pessoas, independentemente de sua condição social.

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domingo, 1 de novembro de 2015

COMENTÁRIO LITÚRGICO - TODOS OS SANTOS - EM COMUNHÃO - 01.11.2015

COMENTÁRIO LITÚRGICO – TODOS OS SANTOS – EM COMUNHÃO - 01.11.2015

Caros Leitores,

A liturgia comemora neste domingo, em dia próprio, a festa de Todos os Santos. Essa festa é necessária, porque dada a grande quantidade de pessoas canonizadas, não seria possível fazer celebrações destacadas de todos os santos distribuindo-os pelos dias do ano e, além disso, esta solenidade litúrgica nos traz para a reflexão a verdade teológica da 'comunhão dos santos', que nós rezamos no Credo, e faz parte dos enunciados básicos da fé católica. Esta comunhão (melhor explicada no termo latino 'communio'), ou seja, a comum união de todos os cristãos, inclui não apenas aqueles que já estão no reino de Deus (a comunidade gloriosa) mas também aqueles que ainda estão a caminho, isto é, nós (comunidade operosa), que vivemos no meio das vicissitudes do tempo a proclamar com nossa vida cristã a nossa fé na ressurreição.

É bem significativo refletir sobre o dogma religioso da comunhão dos santos e sobre o próprio significado do termo 'santos', porque nós habitualmente designamos com essa palavra aqueles cristãos que foram oficialmente canonizados, ou seja, aqueles que tiveram suas virtudes publicamente reconhecidas pela Igreja Católica e são colocados como modelos para todos. Não podemos, porém, esquecer que o apóstolo Paulo, na carta aos Romanos (8, 32) utiliza o termo 'santos' como sinônimo de cristãos e, portanto, todos nós somos santos. Ou, pelo menos, somos destinados para a santidade. Ser santo não significa nunca cometer algum deslize, não significa viver com o terço ou a Bíblia na mão ou recitando os salmos, não equivale a nunca ter raiva de alguém nem nunca ter cometido qualquer desobediência à lei de Deus. Os cristãos são santos porque foram santificados pelo sangue de Cristo, na Sua morte e ressurreição. A teologia ensina que a principal vocação do cristão é à santidade, nós todos nos encontramos neste caminho de busca da santidade. A tradição cultural religiosa comumente nos leva a fazer uma relação paradoxal entre eles e nós: eles, os santos; nós, os pecadores. De fato, teologicamente, não é assim. Tanto aqueles que foram canonizados são santos, quanto também nós, que peregrinamos do “vale de lágrimas” e que tomamos os canonizados como modelo de nossa vida cristã. Quando o jovem perguntou a Jesus: Mestre, o que devo fazer para entrar na vida eterna? Jesus respondeu: observa os mandamentos (Lc 18, 18). Esta pergunta, com outras palavras, pode muito bem ser entendida assim: Mestre, o que devo fazer para ser santo? A resposta é a mesma.

A comunhão dos santos é, portanto, um conceito equivalente ao que Paulo expressa nas suas cartas com o nome de 'corpo místico', do qual Jesus é a cabeça e nós somos os membros. Este corpo místico na sua forma visível é a Igreja e engloba todos os fiéis seguidores dos mandamentos de Cristo, de antes, de hoje, de ontem e de depois, todos formando uma unidade na diversidade dos carismas, mas mantendo-se unidos no Espírito. É nesse contexto que devemos entender a primeira leitura da liturgia de hoje, retirada do Apocalipse de João, onde ele fala no número dos que foram marcados na fronte (Ap 7, 4) para serem salvos, cujo quantitativo era de cento e quarenta e quatro mil. Numa linguagem direta, João se refere às doze tribos de Israel, num montante de doze mil de cada uma, para chegar a esse total. João era judeu e talvez tivesse a esperança de que os seus irmãos de raça ainda viessem aderir à mensagem de Cristo. Historicamente, sabe-se que isso não ocorreu. Mas ele previu, logo a seguir, (Ap 7, 9) “uma multidão imensa de gente de todas as nações, tribos, povos e línguas, e que ninguém podia contar.” É aqui que nós entramos e essa multidão é tão imensa, que João nem teve coragem de quantificar, e nem poderia. E todos também estavam marcados para serem salvos, uma vez que “estavam de pé diante do trono e do Cordeiro; trajavam vestes brancas e traziam palmas na mão. Todos proclamavam com voz forte: "A salvação pertence ao nosso Deus, que está sentado no trono, e ao Cordeiro".” (Ap 7, 9-10) Unindo num mesmo contexto as lições dos apóstolos João e Paulo, podemos concluir sem medo de errar: todos igualmente santos, todos igualmente irmãos, todos igualmente face a face com o Criador.

Na segunda leitura, o mesmo apóstolo João, na sua primeira carta (1Jo 3,2) usou uma expressão semelhante à de Paulo para dizer que todos somos santos: o de sermos chamados filhos de Deus. Ora, como poderia um filho de Deus não ser santo? Daí ele afirmar: “Caríssimos, desde já somos filhos de Deus, mas nem sequer se manifestou o que seremos!” Ou seja, nós já somos e ainda nem sabemos como é ser isso, pois nós abraçamos pela fé esse grande mistério revelado por Cristo, embora tal situação vá se consolidar somente no futuro. Assim, pela fé, nós já somos filhos de Deus, embora sem sabermos com clareza do que somos, pois isso somente se manifestará totalmente quanto O virmos face a face, quando então Ele será tudo em todos. A teologia tem uma expressão interessante para explicar isso: “é o já e ainda não”, é a grandeza do mistério que nós conseguimos alcançar com a nossa fé. Nós já somos santos, mas ainda não sabemos bem como é isso. Mas já somos. Isso só é possível para quem crê. Daí João ter escrito em 1Jo 3,1: este é o grande presente de amor que o Pai nos deu, o de podermos ser incluídos no rol dos seus filhos já desde agora, quando Ele ainda não se manifestou plenamente para nós.

A riqueza litúrgica da festa da comunhão dos santos se completa com o famoso sermão da montanha, no qual Cristo chama de bem aventurados todos os que estão submetidos a algum tipo de tribulação. Dizer que somos bem aventurados é o mesmo que dizer que nós somos santos. Em latim, bem aventurados se diz 'beati' (plural de beatus), que é a mesma palavra que em português se traduz por 'felizes', tradução que também aparece em algumas versões do texto sagrado. Curiosamente, Cristo chama de bem aventurados todos aqueles que, pela aparência social, seriam pessoas desventuradas. Havia um entendimento tradicional entre os judeus do farisaísmo de que as pessoas abençoadas por Deus (portanto, bem aventuradas) já recebem logo neste mundo os Seus dons de forma abundante. Assim, perante essa visão farisaica, bem aventurados eram os ricos, os poderosos, os belos, os vencedores, os beneficiados pela sorte e pela esperteza. Os demais eram considerados pessoas amaldiçoadas, esquecidas por Deus, que desde logo já estavam sofrendo um castigo que continuariam a sofrer na outra vida.

Contrariando esse ponto de vista, Jesus por diversas vezes ressaltou as virtudes dos pobres e humildes, em contraposição à arrogância e ao orgulho dos ricos. Cito somente dois casos: do rei que preparou o banquete e os convidados não compareceram, tendo ele convidado os mendigos e os moradores de rua para se refestelarem. E ainda o caso da pecadora que lavou os pés d'Ele com lágrimas na presença dos fariseus (não confundir com a figura de Maria Madalena, esta foi de quem Ele expulsou sete demônios – Lc 8, 2). No sermão da montanha (Mt 5), ele vai dizer quem são os verdadeiros bem aventurados: os pobres, os aflitos, os mansos, os famintos, os misericordiosos, os puros, os pacíficos, os perseguidos, os injuriados, todos aqueles a quem a tradição social excluía como os mais desprezíveis. E arremata: alegrai-vos e exultai porque grande será a vossa recompensa.

Caros amigos, vejamos então a nossa responsabilidade de cristãos enquanto chamados, vocacionados à santidade. Cada um de nós, na variedade das tarefas cotidianas, exercemos, do modo como Deus nos chama, a nossa vocação para a santidade. Não importa se um dia seremos canonizados, se teremos nossas virtudes reconhecidas e seremos colocados num altar, servindo como exemplo para os demais cristãos. Isso nem é necessário, porque o que nós somos e fazemos apenas a Deus interessa. Ocorre, porém, que devemos ter consciência de que nós já somos, embora ainda não tenhamos chegado lá. Isso significa que toda a nossa vida é um aprendizado, um treinamento contínuo, um exercício interminável na tentativa de superarmos nossas deficiências e nos livrarmos dos nossos pecados. O que Deus quer e espera de nós é que vivamos constantemente na busca daquilo que nos falta para alcançarmos a santidade plena. E o modo de irmos nos aproximando disso é praticando continuamente a caridade e o amor ao próximo.

Que nós sejamos fiéis ao ensinamento de Cristo e possamos nos aproximar sempre mais da perfeição que conduz à santidade.

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