domingo, 24 de junho de 2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO - NATIVIDADE DE JOÃO BATISTA - 24.06.2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 12º DOMINGO DO TEMPO COMUM (NASCIMENTO DE JOÃO BATISTA) – ÚLTIMO PROFETA – 24.06.2018

Caros Leitores,

Neste 12º domingo do tempo comum, a liturgia dominical abre espaço para a celebração do nascimento de João Batista, o precursor do Messias. A importância de João Batista, na história da salvação é ímpar, já que ele se posiciona no meio termo entre o Antigo e o Novo Testamentos. Ele foi, ao mesmo tempo, o último dos profetas (dentre estes, o único que leva o agnome de São) e o primeiro dos discípulos de Jesus, conforme confessou na ocasião de fazer o seu batismo, no Jordão.. Isso está também confirmado com as palavras do próprio Cristo: dentre os nascidos de mulher, foi o maior de todos. (Mt 11, 11)

Coube a João Batista a tarefa de preparar o caminho para a chegada do Messias. O seu nascimento está relacionado a fenômenos extraordinários. Conforme o evangelho de Lucas (1, 5), Zacarias era sacerdote do templo. Ele e sua mulher Isabel não tinham filhos e já tinham idade avançada. Num certo dia, quando estava na sua escala da vez para entrar na parte reservada do tabernáculo, a fim de incensar a Arca da Aliança, enquanto estava lá dentro recebeu a visita do anjo do Senhor, o qual informou que a mulher dele iria ter um filho. Ele duvidou e por causa disso ficou mudo durante toda a gestação, vindo a soltar-se sua língua somente depois do nascimento do filho (Lc 1, 64). Quando esse fato miraculoso ocorreu, toda a Judeia tomou conhecimento e o povo ficou adivinhando qual seria a missão daquela criança, que nascia cercada de tão grande sinal. Outro fato singular ligado a João Batista foi o de que ele estremeceu no ventre de Isabel, quando Maria foi visitar a prima, a ponto de a mãe sentir a vibração estranha. Segundo uma antiga tradição, João Batista teria sido instruído na comunidade dos essênios, no mesmo local onde se diz também que Jesus esteve, no seu período de formação. Lá ele teria estudado as escrituras. Ainda hoje, há ruínas dessa “escola”, nas proximidades do Mar Morto. Mas mesmo que não tenha sido assim, o pai dele era sacerdote, portanto, poderia tê-lo instruído. O fato é que, quando ele começou a pregar, ele citava Isaías: a voz do que clama no deserto – aplainai os caminhos do Senhor, endireitai suas veredas, o reino de Deus chegou. Isso denota que ele tinha conhecimento das Escrituras.

Todos os profetas, principalmente Isaías, lançaram previsões acerca do futuro Messias, mas foi João Batista o único que pôde apontar com o dedo para Ele e dizer: aí está o Cordeiro de Deus. E dizia ao povo: vocês vêm atrás de mim, mas no meio de vós está um que é maior do que eu e do qual eu não sou digno nem de desamarrar a correia das sandálias... é preciso que Ele cresça e eu diminua. João está-se declarando discípulo de Jesus. E foi ele que mandou seus seguidores (um dos quais era André, irmão de Pedro) perguntar a Jesus se era Ele o Messias esperado ou se deviam esperar por outro. (Lc 7, 19) João estava, desse modo, encaminhando os seus próprios seguidores para que passassem a seguir Jesus.

Mas o fato mais notável protagonizado por João Batista foi o batismo de Jesus. Quando Ele se apresentou para ser batizado, João disse: eu que devia ir a ti, e tu vens a mim... e Jesus respondeu: deixa que as coisas aconteçam assim. (Mt 3, 14) Foi então que, após Jesus ser batizado, houve a primeira manifestação da Trindade, quando o Pai se fez ouvir e o Espírito Santo apareceu em forma de pombo. Acreditam os teólogos que essa aparição da Trindade não foi percebida por todos os presentes, mas apenas por João, foi um sinal de que a missão dele estava concluída. Este foi o início da vida pública de Jesus e por isso João Batista se situa no limiar que separa o Antigo Testamento do Novo Testamento.

Conforme os Atos dos Apóstolos (13, 24), João pregava ao povo o batismo da conversão. Ele não inventou o batismo, este já existia e era praticado regularmente pelos judeus, fazia parte dos seus rituais de ablução, pelos quais eles buscavam a purificação. Mas o batismo tradicional e comum entre eles era o auto batismo, ou seja, o penitente entrava na água do Jordão e ele mesmo mergulhava, cobrindo todo o corpo com a água do rio, para assim se purificar. Ainda hoje, algumas igrejas cristãs não católicas fazem este batismo de imersão, para acolherem seus fiéis. Porém, o batismo pregado por João era oficiado por ele, o fiel recebia o batismo de suas mãos, em sinal da conversão. A palavra conversão, todos sabemos, diz-se em grego 'metanoia', cuja etimologia significa mudança de vida, mudança de mentalidade, mudança no modo de pensar. Não era um simples ritual de limpeza, como faziam os judeus, porque saíam dali e voltavam a fazer as mesmas infidelidades de antes. Para ministrar o batismo, João exigia a conversão, a mudança de modo de pensar, isto é, a pessoa devia antes aplainar os caminhos do pensamento e endireitar as veredas da mente. Essa atitude significava a necessidade de abrir o entendimento para compreender as graves e contundentes verdades que estavam por se manifestar na pessoa e na pregação de Cristo.

Sim, porque os judeus esperavam um Messias guerreiro, tal como fora Davi, alguém que viria com a espada afiada para derrotar e expulsar os inimigos. Está lá na primeira leitura, em Isaías (49, 2), na verdade, no deutero-Isaías: fez da minha palavra uma espada afiada, fez de mim uma flecha aguçada. Isso era interpretado literalmente em relação ao Messias esperado. Ele viria de espada em punho para libertar Israel. Daí se entende o diálogo de Jesus com os discípulos de João, quando eles perguntaram se Ele era o que havia de vir ou deviam esperar por outro. (Lc 7, 19) Foi quando Jesus respondeu: ide dizer a João o que tendes visto – cegos veem, coxos andam, surdos ouvem... e feliz daquele que não se escandalizar por minha causa. Com isso, Jesus estava já antecipando a dificuldade que os judeus, principalmente os chefes dos sacerdotes e os fariseus, iriam ter em reconhecê-lo e aceitá-lo. Eles iriam se “escandalizar”, o que significa, iriam desacreditar dele, iriam lançar desconfiança em Jesus, porque o Messias que eles esperavam era de outro tipo, lutador e guerreiro, não um Messias fraco e sofredor. Daí também porque João dizia que era necessária a conversão (mudança de mentalidade), era necessário endireitar as veredas (do pensamento), aplainar os caminhos (do entendimento), a fim de conhecer e aceitar o Cordeiro de Deus.

Essa figura do cordeiro era bem familiar para os judeus, por causa do símbolo da Páscoa, o cordeiro que era imolado e que servia de alimento, lembrando a libertação da escravidão do Egito. Quando João diz que Jesus é o Cordeiro de Deus, estava ali também se referindo à sua paixão e já antecipadamente à eucaristia, o cordeiro imolado que é dado em alimento. Para compreender isso, ou seja, para entender a nova figura do Messias-Cordeiro era imprescindível mudar o modo de pensar acerca dele. João fazia referência expressa à figura do cordeiro também presente na profecia de Isaías, o cordeiro que era levado ao matadouro e não abria a boca (Is 55, 3), sinal de que João Batista conhecia bem as escrituras.

Na primeira leitura da missa da vigília, a liturgia nos oferece o trecho do profeta Jeremias, que tanto se refere a João Batista quando a Jesus Cristo (Jr 1, 5): antes de formar-te no ventre materno, eu te conheci; antes de saíres do seio da tua mãe eu te consagrei e fiz de ti profeta das nações. E mais adiante, no versículo 10, completa: eu te constituí hoje sobre povos e reinos com poder para extirpar e destruir, devastar e derrubar, construir e plantar. E na primeira leitura do domingo, a mesma imagem se encontra em Isaías (49, 6): eu te farei luz das nações, para que minha salvação chegue até os confins da terra.

Meus amigos, nós aqui e agora somos fruto dessa promessa. Deus falou pela boca de Isaías: Não basta restaurar Jacó e reconduzir o resto de Israel, isso é pouco, tu vais unir todas as nações e levar a todas elas a minha salvação. Nós somos a prova concreta de que a palavra de Deus, pronunciada pelo Profeta, foi cumprida. E nos dias de hoje, nós somos os sucessores do Profeta, para continuarmos anunciando a salvação ao mundo inteiro. E para quem acha que não tem condições de fazer isso, vale lembrar a advertência de Jeremias (1, 8): o Senhor disse - não tenhas medo, pois estou contigo para defender-te... eis que ponho minhas palavras na tua boca. Este é o nosso desafio e a nossa missão de cristãos na sociedade.

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domingo, 17 de junho de 2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 11º DOMINGO COMUM

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 11º DOMINGO COMUM – PEDAGOGIA DE JESUS – 17.06.2018

Caros Leitores,

Neste 11º domingo comum, a liturgia nos propõe para reflexão a metodologia adotada por Jesus Cristo para ensinamento a respeito do reino de Deus, explicando-o através de parábolas, nas quais se serve de figuras e situações bem conhecidas por seus ouvintes. As teorias pedagógicas mais modernas explicam que, para haver uma melhor aprendizagem por parte dos alunos, o professor deve buscar inserir novos conceitos aproveitando os conhecimentos prévios dos estudantes. Grande novidade! Há mais de dois mil anos, Jesus Cristo já inaugurara essa pegagogia, quando utilizava parábolas para explicar sua doutrina, e os pedagogos de hoje pensam que estão descobrindo o mapa da mina. Para nós, cristãos, essa metodologia foi, desde o início, a preferida tanto por Cristo quanto pelos seus apóstolos.

Na primeira leitura litúrgica, temos um trecho do livro de Ezequiel. Ele profetizou na época do cativeiro da Babilônia, tendo falecido nessa cidade. Ele teve curiosas “visões” sobre as ações de Javeh em forma de castigo para o seu povo infiel, falando sempre em linguagem muito dura, para despertar no povo o reconhecimento da própria culpa e o arrependimento. Na leitura de hoje, ele faz uma imagem simbólica muito interessante sobre o “novo reino” que haveria de vir, depois que aquele período do cativeiro terminasse, o novo reino que Javeh estava preparando para o seu povo. Diz isso usando também uma espécie de parábola: “Assim diz o Senhor Deus: 'Eu mesmo tirarei um galho da copa do cedro, do mais alto de seus ramos arrancarei um broto e o plantarei sobre um monte alto e elevado. Vou plantá-lo sobre o alto monte de Israel. ” Podemos ver nessa imagem descritiva do “broto arrancado do mais alto dos seus ramos” e plantado sobre o monte de Israel como a prefiguração de Cristo, numa simbologia análoga à que Jesus usaria depois, com a imagem da videira. Logo adiante, diz o Profeta: “Ele produzirá folhagem, dará frutos e se tornará um cedro majestoso. Debaixo dele pousarão todos os pássaros, à sombra de sua ramagem as aves farão ninhos. ” Tempos depois, Jesus repetirá essa mesma parábola, ao dizer que “eu sou a videira e vós sois os ramos” (Jo 15, 5), quem permanece em mim e eu nele, esse dará muito fruto. Os profetas, de um modo geral, utilizaram de recursos simbólicos, aproveitando os conhecimentos e vivências do povo para lhes repassarem a mensagem de Javeh.

No evangelho de Marcos, lido neste domingo (Mc 4, 26-34), Jesus lança mão de duas parábolas semelhantes, ambas relacionadas com árvores e sementes, materiais que eram comuns e amplamente conhecidos daquelas pessoas a quem ele se dirigia. A imagem da semente tem uma forte simbologia relacionada com o fenômeno da multiplicação que está a ela associada e que encerra no seu conteúdo o próprio milagre da vida. A semente é pequena, inerte, simples, mas quando plantada, cresce, se torna dinâmica, fecunda e se multiplica em incontáveis partes, que configurarão um novo ser. É interessante como ele explica que a semente possui uma capacidade autopoiética extraordinária, ou seja, ela se reproduz com suas próprias forças, não é necessário que o plantador faça nada especial, além do simples plantio, bastando inseri-la no solo fértil. “A terra, por si mesma, produz o fruto: primeiro aparecem as folhas, depois vem a espiga e, por fim, os grãos que enchem a espiga. ” (Mc 4, 28) A energia presente na semente é tão intensa que basta ser lançada no local adequado para desencadear o seu processo produtivo. Além disso, tem ainda o aspecto da multiplicação da forma. A semente tem uma pequenina dimensão, mas se transforma em uma árvore grandiosa e com enormes potencialidades de sustentação da vida de outros seres, que dela dependem. É o autêntico milagre reprodutor da vida, que continua a ocorrer incessantemente e está acessível a todos que se dispuserem a cumprir esse ritual de semear.

Assim também acontece com a Palavra de Deus, semente da vida no espírito, que ao ser semeada, começa o seu processo de produção de energias espirituais no coração de quem a acolhe, de modo que transforma não apenas a vida daquela pessoa diretamente, mas tem repercussão também sobre as demais pessoas que com esta convivem. O nosso comportamento de cristãos, a colocação em prática dos mandamentos de Cristo nos atos da nossa vida cotidiana, o nosso testemunho diante da pessoas do nosso convívio na família, no trabalho, na sociedade, são os atos e atitudes pelos quais nos tornamos lançadores da semente da Palavra. E Jesus ainda nos anima querendo dizer que não precisa fazer grandes pregações, nem grandes sacrifícios, nem enfrentar grandes desafios, mas mesmo nas pequenas coisas isso acontece. É o que Ele pedagogicamente ensina quando fala da semente de mostarda, ao dizer que é a menor semente das hortaliças, no entanto, é aquela que produz a leguminosa mais corpulenta, que serve até de pouso e arcabouço de ninho para os pássaros. Pequenas sementes que produzem grandes árvores, assim acontece também conosco, mesmo que a semente lançada seja de tamanho apoucado.

Em diversas outras ocasiões, Jesus utilizou a parábola da semente, para tornar compreensíveis os fatos relacionados com a sua missão. Por exemplo, no evangelho de João (Jo 12, 24), Jesus faz outra alusão à semente, em outro contexto, referindo-se à sua ressurreição, quando diz: se o grão de trigo não morrer, fica só; mas se morre, produz muito fruto. A imagem da semente associa-se tanto à paixão e morte de Jesus, como também à morte do homem pecador e à sua ressurreição através da graça, tanto no sentido da nova vida trazida pelo batismo, quanto no sentido da outra vida, que virá depois que deixarmos esta morada. E aqui o tema do evangelho se interliga com o texto da segunda leitura, retirada da carta de Paulo a Coríntios 2: “ enquanto moramos no corpo, somos peregrinos longe do Senhor; pois caminhamos na fé e não na visão clara ” (2Cor 5,6) Ao deixar a morada do corpo, iremos morar junto do Senhor. Portanto, neste primeiro momento, a imagem da semente se refere a nós, cristãos, que temos a oportunidade de, pelo batismo, fazer morrer em nós o ser pecador, para fazer viver o ser humano da graça. E através dos demais sacramentos, vamos passando por um processo de contínuo aperfeiçoamento do nosso ser para, depois, com a morte corporal, termos a ressurreição prometida por Cristo, da qual Ele já deu o exemplo.

A propósito dessa passagem da 2ª Carta a Coríntios, quando Paulo diz: “enquanto moramos no corpo, somos peregrinos longe do Senhor”... e depois diz “preferimos deixar a moradia do nosso corpo para ir morar junto do Senhor”, eu gostaria de destacar aqui uma demonstração da cultura grega que Paulo possuía. Está muito evidente, nesses trechos, a visão dualista dos filósofos gregos Platão e Aristóteles, esse confronto entre o mundo material e o mundo espiritual, que encontramos em Sócrates e em seus discípulos na Grécia antiga, e que Paulo absorveu, e depois essas mesmas idéias foram retomadas pela Patrística (século IV), sobretudo por Santo Agostinho, e mais adiante, por Santo Tomás de Aquino. Aliás, era impossível que o cristianismo se disseminasse no território grego sem ser influenciado pela cultura deste povo, que era predominante e bem mais elaborada do que as demais culturas contemporâneas.

Esse fato teve um aspecto positivo e historicamente inevitável, mas também gerou consequências indesejáveis de longo prazo, como as que nós observamos hoje na religião tradicional, individualista e devocionista. As primeiras comunidades, onde ainda havia grande influência da cultura judaica, tinham mais a idéia da coletividade, da comunhão, da solidariedade, que foram aos poucos sendo substituídas pelos conceitos gregos, os quais se tornaram hegemônicos. Junto com a cultura grega e sua inserção no cristianismo, portanto, desenvolveu-se esse modelo individualista da religião, que não existia nas primeiras comunidades cristãs, onde todos tinham tudo em comum (Atos 4, 32). O “tudo” em comum não deve ser entendido apenas como os bens materiais, mas sobretudo a partilha dos bens espirituais da amizade, do amor mútuo, da solidariedade em todos os sentidos. Nos dias atuais, a teologia tenta resgatar o verdadeiro sentido da palavra comunidade (comum+unidade), que não pode ficar restrita à reunião de uma multidão no templo durante a celebração, onde as pessoas nem se conhecem entre si e muitas vezes nem se cumprimentam. Devemos nosvigiar para que, involuntariamente, não venhamos a contribuir com esse modelo religioso individualista, que ainda predomina na nossa religião.

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sábado, 9 de junho de 2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 10ª DOMINGO COMUM - 10.06.2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 10º DOMINGO COMUM – O PECADO ETERNO – 10.06.2018

Caros Leitores,

Neste décimo domingo comum, a liturgia traz uma leitura da carta de Paulo aos Coríntios (2Cor 4, 13-5,1), na qual ele faz uma comparação, utilizando uma imagem que bem representa a doutrina grega da cisão corpo-espírito, que se tornou uma marca da teologia cristã. Diz ele: “se a tenda em que moramos neste mundo for destruída, Deus nos dá uma outra moradia no céu que não é obra de mãos humanas, mas que é eterna”. A doutrina judaica sobre a relação corpo-espírito vai muito mais pelo lado da unidade e integração entre ambos, no entanto, a doutrina grega prevaleceu na teologia. As outras leituras também trazem temas interessantes, dos quais destacarei dois para comentar, tomando como referência o evangelho de Marcos (Mc 3, 20): o pecado eterno e os irmãos de Jesus.

A narrativa de Marcos tem início com o evangelista dizendo que Jesus voltou para casa com seus discípulos (3, 20). É o caso de perguntarmos: que casa? Desde que Jesus iniciou sua vida de pregador, ele saíra da casa de José e Maria e não tinha um local onde morar. Provavelmente, seria a casa de algum dos discípulos ou de algum admirador dele, o narrador não se preocupa com esse detalhe. E continua dizendo que lá juntou tanta gente que eles (Jesus e os discípulos) nem sequer podiam comer. A fama de Jesus atraía a atenção de todos, em qualquer lugar onde ele chegasse, de modo que causava grande importunação, mas ele não podia simplesmente mandar o povo embora, pois isso fazia parte da sua missão. É também interessante observar que se trata de uma das raras vezes em que o evangelho se refere a uma refeição feita por Jesus, o que devia ser bastante natural, porque ele como pessoa humana precisava se alimentar. No entanto, quase sempre essa particularidade é omitida nas narrativas evangélicas.

Pois bem, os fariseus e Mestres da Lei, que estavam constantemente vigiando Jesus, o viram expulsando demônios e, por não acreditarem no seu poder divino, não encontraram outra forma de justificar, a não ser dizendo que ele estava possuído por Belzebu e era por isso que Ele conseguia expulsar os demônios. Esse boato preocupou os parentes de Jesus, que o procuraram para oferecer-lhe ajuda. Encontraram-no, então, rodeado pela multidão, enquanto ele argumentava contra os fariseus: como é que satanás vai expulsar satanás? Como é que o demônio estaria agindo contra si próprio? A acusação dos Mestres da Lei era totalmente incoerente, porque se um grupo passa a se digladiar internamente, será o seu fim. Se numa família, levantar-se irmão contra irmão, será a desagregação daquela família. Sob o aspecto humano, social, o boato espalhado pelos fariseus não tinha qualquer sustentação. Porém, sob o aspecto da fé, a situação era muito mais grave. Atribuir os milagres de Jesus ao poder do mal significava ver em Jesus o próprio demônio e isso ele fez questão de esclarecer, além de reprovar.

Foi nesse contexto que Jesus fez uma ameaça terrível àqueles incrédulos: (Mc 3, 28) “tudo será perdoado aos homens, todo pecado e toda blasfêmia, mas quem blasfemar contra o Espírito Santo, nunca será perdoado, será culpado de um pecado eterno”. Meus amigos, o que significa blasfemar contra o Espírito Santo? Por que isso é tão grave e nunca será perdoado? Ora, Jesus sempre afirmou que não agia sozinho, ele agia sempre como Trindade, em união com o Pai e o Espírito Santo. Então, dizer que ele estava possuído por um espírito do mal equivalia a não acreditar no Espírito Santo e, portanto, não acreditar na Trindade divina. Não acreditar que Jesus é filho de Deus e age em união com o Espírito Santo, portanto, negar a Trindade é excluir-se da obra redentora que Jesus veio realizar. Mais grave do que afirmar que Jesus expulsa os demônios por obra de Belzebu é a motivação interior de quem faz essa afirmação, é a recusa de receber a graça divina, é voltar as costas para o amor de Deus, por isso, é uma atitude imperdoável. E se a pessoa que assim age não reconsidera seu ponto de vista e mantém-se na rejeição do perdão, então o seu delito se tornará eterno, ou seja, eternamente imperdoável. Ora, sendo o mistério da Trindade o centro da fé cristã, a recusa de aceitar qualquer uma das pessoas divinas será um daqueles pecados retidos, sem perdão.

Diz ainda Marcos (3, 21) que os parentes de Jesus saíram em sua defesa para agarrá-lo, porque ele parecia estar fora de si. Certamente, o discurso de Jesus nessa ocasião não foi nada tranquilo e sereno, como era de costume, mas ele deve ter-se exaltado com o maldoso boato espalhado pelos fariseus. Isso faz lembrar aquele outro memorável acontecimento em que Ele tomou um chicote e saiu dando surra nos vendedores que estavam ocupando os espaços do templo, dizendo que a casa do Pai é casa de oração, não um covil de ladrões. São as duas vezes em que o evangelho fala de atitudes ríspidas e violentas de Jesus, exatamente quando a descrença dos judeus se voltava contra a Trindade. No caso do templo, em relação ao Pai; no caso da expulsão dos demônios, em relação ao Espírito Santo. Nesses casos, Ele foi tomado por uma 'santa ira', a ponto de ficar fora de si.

Quando os parentes de Jesus chegaram onde ele estava, havia tanta gente reunida que eles não conseguiram se aproximar. Então, mandaram recado pra Ele informando que estavam ali. É quando o evangelho cita aquela famosa frase que é motivo de divergência entre católicos e não-católicos há séculos: (Mc 3, 32) “Tua mãe e teus irmãos estão lá fora à tua procura.” O texto latino de S. Jerônimo assim diz: “mater tua e fratres tui foris quaerunt te”. Todos nós sabemos que 'mater' é mãe e 'fratres' é irmãos, mas comparemos com o texto grego original, escrito em letras latinas: ê mater auton kai oi adelphoi auton = a tua mãe e os teus irmãos. Vemos que a tradução latina é literal do grego. A discussão aqui está no significado do vocábulo 'adelphoi', plural de 'adelphos' que na língua grega significa “irmão”, tanto no sentido de filho dos mesmos pais, quanto no sentido de um familiar com parentesco próximo. Esta palavra vem do radical grego 'adelph', que é comum às palavras relacionadas com irmandade, fraternidade. Naquela época, era comum que as famílias congregassem sob o mesmo teto pessoas até o sétimo grau de parentesco. Comparando com os dias de hoje, seria como se juntassem as diversas gerações desde o tataravô até o tataraneto, com respectivos cônjuges e agregados, todos eram tidos como uma família no sentido mais extenso. Genericamente falando, eram irmãos entre si. Este é o argumento teológico do catolicismo para justificar que Jesus é filho unigênito de Deus. Porém, não resolve a questão de que Maria pode ter tido outros filhos, que não foram concebidos pelo Espírito Santo, e neste caso, seriam irmãos de Jesus somente pela 'carne', não pelo Espírito. A Igreja Católica Ortodoxa da Síria, uma das mais antigas do mundo, tem outra explicação para este fato. Afirma que, ao casar-se com Maria, José era viúvo e tinha seis filhos de sua esposa anterior, de nome Débora. Os filhos eram: Thiago, José, Judas, Simão, Sofia e Myrian. Com Maria, porém, José teve apenas um filho, Jesus. A Igreja Católica Romana não reverencia essa tradição oriental e não menciona um casamento anterior de José e, desde os primeiros tempos, sempre afirmou que Jesus é único filho de Maria. Por outro lado, não há evidências, nem na história nem na tradição, de que Maria tenha tido outros filhos, além de Jesus.

Pois bem. A resposta que Jesus deu aos seus interlocutores, nesse momento, não poderia ser mais desconcertante: minha mãe? meus irmãos? Quem é minha mãe e quem são meus irmãos? E diz Marcos (3, 34): olhando para os que estavam sentados ao seu redor disse: aqui estão minha mãe e meus irmãos... quem faz a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe. Esta afirmação de Jesus, colocada no contexto do seu ensinamento, não deve ser entendida no sentido negativo, como se Jesus estivesse rejeitando os seus familiares, ao contrário. A frase deve ser vista no sentido positivo, ou seja, Jesus estava afirmando que aquelas pessoas que o ouviam e aceitavam faziam parte da sua familia, tanto quanto os seus parentes pelo ramo familiar. Ele estava colocando no mesmo nível de importância os irmãos da família humana e os irmãos na fé em sua doutrina. Além de não estar desprezando seus familiares, Jesus estava elevando os seus seguidores ao mesmo nível de irmandade que eles. Fazendo um contraponto dialético com a afirmação anterior de que quem não crê no Espírito é réu de um pecado eterno, esta nova afirmação de que 'quem faz a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe', é como se Ele estivesse afirmando: quem crê na Trindade está comigo, transforma-se em meu irmão, minha irmã, minha mãe, meu familiar, meu parente, é a grande família humana que se reúne em torno dele.

Meus amigos, nós, os cristãos de hoje, desfrutamos desse inefável privilégio de sermos considerados irmãos, irmãs, pai e mãe de Jesus, se cumprirmos o seu mandamento. Essa é a sua promessa e o resultado só depende de nós.

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sábado, 2 de junho de 2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 9º DOMINGO COMUM - O SABADO - 03.06.2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 9º DOMINGO COMUM – O SÁBADO OU O DESCANSO – 03.06.2018

Caros Confrades,

Terminado o ciclo litúrgico de comemoração da Páscoa, a catequese eclesial retorna ao tempo comum, que se prolongará até o Advento. As leituras da liturgia de hoje centram-se num tema que tem sido objeto de controvérsias entre diversas comunidades cristãs: a observância do sábado. No século IV, o Concílio de Niceia colocou um ponto final nessa polêmica para os católicos, ao escolher o domingo, mas a discussão persiste entre as diversas igrejas cristãs separadas. Algumas são radicais, começando a observância do sábado logo no por do sol da sexta feira, como é o caso dos Adventistas do Sétimo Dia. Outras são menos rigorosas e outras ainda celebram mesmo o descanso dominical, assim como o catolicismo. Mas essa questão não é simples.

Temos, na primeira leitura (Deuteronômio 5, 12), a ordem taxativa de Javeh: “Guarda o dia de sábado, para o santificares, como o Senhor teu Deus te mandou. Trabalharás seis dias e neles farás todas as tuas obras. O sétimo dia é o do sábado, o dia do descanso dedicado ao Senhor teu Deus. Não farás trabalho algum, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem teu escravo, nem tua escrava, nem teu boi, nem teu jumento, nem algum de teus animais, nem o estrangeiro que vive em tuas cidades, para que assim teu escravo e tua escrava repousem da mesma forma que tu.” As igrejas cristãs que seguem a interpretação literal da Bíblia não admitem outra alternativa. De fato, toda a tradição judaica, dos tempos bíblicos até hoje, observa o descanso sabático. Jesus observava o sábado, comparecia à sinagoga como todos os judeus, assim também faziam os apóstolos e as primeiras comunidades cristãs. Por que, então, mudou-se o dia do descanso semanal para o domingo, contrariando a determinação de Javeh, observada durante muitos séculos?

Antes de prosseguir nessa temática, é conveniente uma breve explicação sobre a palavra hebraica “shabat”, de onde deriva a palavra ‘sábado’. O sustantivo “shabat” é formado a partir do verbo hebraico “shavat”, que significa “parar”, “cessar”. Corresponde ao sétimo dia porque, de acordo com a narração bíblica, Deus criou o mundo em seis dias e no dia seguinte ele “parou para descansar”. Obviamente, Deus não se cansa, essa é apenas uma forma humanizada de nos referirmos à atividade criadora divina. Assim como também os “seis dias” da criação não podem ser entendidos como períodos de 24 horas, como hoje nós consideramos. A palavra “dia”, na narração da criação está mais relacionada a um conjunto de ações divinas, não a um certo período de tempo, porque Deus não se limita ao tempo. Pode-se afirmar que a narrativa bíblica, ao referir-se aos seis dias, está justificando, perante a sociedade daquele tempo, a necessidade do descanso corporal, após um certo período de trabalho. Alguns povos da época adotavam a prática dos dez dias, isto é, nove dias de trabalho e um de descanso. Para os judeus, a atividade criadora divina será, então, o parâmetro mais elevado e indiscutível para se fazer o descanso no sétimo dia. Uma nova cultura estava se sobrepondo à antiga. Ademais, na cultura judaica, o sete é considerado o número da perfeição e diversos fatos bíblicos estão relacionados com ele. Compreende-se assim que a descrição da criação divina em seis dias funcionou apenas como um motivo a mais para fortificar a cultura do sete perfeito. Há muitos estudos técnicos para explicar a numerologia bíblica, de modo que se trata de um assunto extenso, que não pode ser simplificado em poucas palavras.

Pois bem. Na religião judaica, além desse “shabat” semanal, que correspondia ao sétimo dia, há diversos “shabatot” (plural de shabat) especiais, na comemoração das datas mais importantes. Por exemplo: antes da Pessach (Páscoa), antes do Purim, antes do Yom Kipur há vários dias sabáticos, não relacionados com o sétimo dia. Quando Nicodemos foi pedir a Pilatos para retirar o corpo de Jesus da cruz, por causa do sábado, não era por um dia só, mas sim porque na festa da Páscoa, o shabat demorava sete dias e então o corpo de Jesus entraria em decomposição, porque não poderia ser retirado enquanto não terminasse o período sabático. Essas informações são importantes, porque na nossa cultura, o sábado é apenas um dia de 24 horas, mas na cultura judaica, podia demorar vários dias, e essa ideia deve ser levada em conta para entender diversas passagens da Bíblia.

Na leitura do evangelho de Marcos (2, 23), Jesus se confronta com essa tradição sabática, mostrando que o sábado foi feito para o homem, não o homem para o sábado. Encontrando-se na sinagoga, havia ali um homem com a mão deformada. Pelo costume judaico, não se podia fazer nada no sábado, nenhum tipo de atividade. Por isso, os judeus ficaram observando se Jesus iria operar um milagre no sábado, porque isso seria contrário à lei. Percebendo isso, Jesus pergunta aos presentes: “É permitido no sábado fazer o bem ou fazer o mal? Salvar uma vida ou deixá-la morrer?” Mas eles nada disseram. Jesus, então, olhou ao seu redor, cheio de ira e tristeza, porque eram duros de coração; e disse ao homem: “Estende a mão”. Ele a estendeu e a mão ficou curada.” Jesus mostrou que, sendo Filho de Deus, é senhor também do sábado e que o rigor da lei mosaica devia ser flexibilizado, porque não é a sua observância simples e literal que agrada a Deus. Mais uma vez, Jesus mostrou que cumprir a lei não é observar rigorosamente as suas palavras apenas e que a prática da caridade no sábado é, não só permitida e louvada, mas também agradável a Deus. Livrar alguém do sofrimento num dia de sábado não é ação contrária à lei, nem mesmo sob o ponto de vista rigoroso com que os judeus a consideravam. Mas eles nunca compreenderam isso e tiraram conclusão oposta: se Jesus não observava o sábado, é porque ele não era proveniente de Deus. E buscavam um modo de eliminá-lo, completa o evangelista.

Conforme dissemos acima, as primeiras comunidades cristãs continuaram a observar o sábado, comparecendo às sinagogas, como era o costume de Jesus. Porém, com o desenvolvimento da doutrina cristã, algumas comunidades passaram a observar também o “primeiro dia da semana”, ou seja, o que nós chamamos de “domingo”, em comemoração á ressurreição de Jesus, que ocorreu no primeiro dia da semana. O sábado era observado por obrigação, mas o domingo era observado por devoção. Essa variação era, inclusive, motivo de discussão entre os cristãos gentios (de origem grega) e os judeus convertidos ao cristianismo. Além da observância do sábado, os judeus convertidos também queriam exigir dos cristãos gregos a obrigatoriedade da circuncisão, uma tradição judaica importante, divergência que deu muito trabalho para Paulo pacificar. Pode-se afirmar que não foi apenas a problemática do sábado, mas de um modo geral, dos costumes judaicos foram, aos poucos, absorvidos e repaginados pelo cristianismo.

A transição da observância do sábado para o domingo está associada ainda a outro fato histórico importante. O imperador Constantino, o primeiro a se converter ao cristianismo e a dar pleno apoio às comunidades cristãs, publicou, no ano 321 d.C., um edital com os seguintes termos: “Que todos os juízes, e todos os habitantes da cidade, e todos os mercadores e artífices descansem no venerável dia do Sol.” A “cidade”, no caso, era todo o território romano, ou seja, praticamente, toda a Europa, Oriente Médio, norte da África, o mundo então conhecido. Havia, em Roma, uma religião pagã muito seguida, chamada “mitraísmo”, cuja figura divina central era o Deus-Sol-invicto, que era venerado no primeiro dia da semana. A palavra “domingo”, em inglês, ainda conserva essa referência a isso com o título “sunday” (dia do sol). Em diversos outros idiomas há ainda essa associação. A língua portuguesa é uma das que não mais conserva a tradição. Foi nesse contexto que Constantino, após convertido ao cristianismo, determinou que a natividade de Cristo (Natal) fosse comemorada no dia do Deus-Sol, 25 de dezembro. Foi uma forma de demonstrar que Jesus era o novo Deus-Sol da humanidade. A Igreja Católica, aproveitando a norma estatal de Constantino e considerando aquilo que já era praticado em grande parte das comunidades cristãs, alguns anos depois, no Concílio de Niceia, aprovou a permuta da observância do sábado pelo domingo. Alguém poderá dizer: então, foi o imperador romano que determinou a mudança. Não exatamente. Tratava-se de um costume, que já tinha muita adesão no meio cristão a observância do domingo, então os padres conciliares, aproveitando o fato de ter a seu favor a norma estatal, aprovaram a transferência do descanso semanal para o domingo, que passou a ter esse nome “dominica”, dies Domini, dia do Senhor.

Meus amigos, devemos considerar como o que de fato importa é o dia do descanso semanal, o dia dedicado ao Deus criador. Se este dia for o sétimo, ou o primeiro da semana, é de somenos importância. Apenas numa visão estreita e literal da Bíblia ainda se continua a bradar contra essa mudança. Mas não podemos esquecer que “o Filho do Homem é senhor também do shabat”, isto é, do dia do descanso. Foi o que ele sinalizou, ao ressuscitar no primeiro dia da semana.

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