quarta-feira, 31 de julho de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 17º DOMINGO COMUM - O PODER DA ORAÇÃO - 28.07.2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 17º DOMINGO COMUM – O PODER DA ORAÇÃO – 28.07.2013

Caros Confrades:

Nas leituras deste 17º domingo comum, encontramos um tema muito oportuno, qual seja, o poder da oração, que é uma consequência do poder da fé. Quem tem fé, ora espontaneamente e Deus ouve a sua oração. Coloca-se, nesse contexto, a discussão acerca das orações repetitivas em contraposição à oração criativa, isto é, devemos rezar de acordo com as fórmulas tradicionais das rezas ou devemos deixar falar o coração. Há justificativas teológicas para um e outro casos.

A primeira leitura, retirada de Gênesis (18, 20-32), é a continuação da leitura do domingo anterior, o diálogo que Abraão teve com os mensageiros que o visitaram e anunciaram a gravidez de Sarah. Os mensageiros anunciaram também que estariam visitando Sodoma, a fim de conferir se aquilo que bradava aos céus contra os seus habitantes era realmente fato ou alguma notícia inverídica. É muito curioso esse estilo do escritor sagrado de comparar Javeh com as pessoas humanas, como se Deus não tivesse condição de saber o que estava ocorrendo e necessitasse de mensageiros para darem seu testemunho. Na verdade, o objetivo da narrativa é demonstrar a força que possui a oração do justo diante de Deus. Abraão intercede sucessivas vezes pelos habitantes 'justos' de Sodoma, para que Javeh não os destrua assim como iria fazer com os ímpios. Abraão vai criando coragem e baixando o perfil: se houver 50 justos... e se forem 45... e se forem apenas 30... ou 20... ou 10... E Javeh o atende, dizendo que se houver 10 justos na cidade, ela não será destruída. Acontece que não havia. Porém, como disse antes, no caso, o que interessa para nós é a lição bíblica de que Javeh atende as orações dos justos e também que a presença de um pequeno número de pessoas justas faz a diferença no mundo dos ímpios. Conforme Jesus explicou em suas parábolas, o justo funciona como o fermento na massa, isto é, embora em pequena quantidade, é capaz de fazer toda a massa levedar. É o mesmo caso do exemplo da luz que, por menor que seja, ilumina todo um ambiente que antes estava escuro. É no mesmo sentido que Jesus também ensinou: buscai antes de tudo o reino de Deus e sua justiça, o mais será dado em acréscimo. O poder da oração tem uma carga energética de grande potencial, cuja ação na sociedade é capaz de produzir efeitos extraordinários.

Na leitura do evangelho, da autoria de Lucas (11, 1-13), lemos duas importantes lições de Cristo acerca da oração. Primeiro, os discípulos pedem a Ele que lhes ensine a orar, e Ele compõe na hora aquela famosa prece que continua sendo repetida hoje como “a oração que o Senhor ensinou”. Segundo, temos as exortações que Ele faz acerca do vizinho que atende ao pedido do outro, mesmo que não seja por causa da amizade, mas até para se livrar do incômodo, e ainda acerca do pai que atende ao pedido do filho e não lhe fará nenhum mal. Ora, diz Ele: “se vós que sois maus, sabeis dar coisas boas aos vossos filhos, quanto mais o Pai do Céu dará o Espírito Santo aos que o pedirem”. As lições de Cristo seguem o mesmo padrão doutrinário do texto do Gênesis acerca da força da oração e da importância de cada um rogar a Deus segundo as suas necessidades. “pedi e recebereis; procurai e encontrareis; batei e vos será aberto. Pois quem pede, recebe; quem procura, encontra; e, para quem bate, se abrirá.” Se observarmos bem, até mesmo a figura literária dos mensageiros que foram a Sodoma “conferir” o que estava se passando, como se Javeh não soubesse, está, de outro modo, reproduzida no enxinamento de Cristo com o “pedi e recebereis”. É claro que Deus sabe das nossas necessidades e, na lógica humana, não haveria a necessidade de que se pedisse. Mas a lógica divina ensina que devemos pedir, não porque Deus não saiba, mas porque o ato de pedir é um ato de humildade, é uma confissão de carência, é um reconhecimento de incompletude, é um golpe no nosso orgulho. Mesmo que, em tese, não houvesse a necessidade de fazer o pedido, Cristo ensina que devemos pedir como uma forma de nos aproximarmos sempre mais daquele que dispõe de tudo e que tudo pode. Acima de tudo, o ato de pedir é um ato de fé, pois aquele que não crê acha que não precisa de Deus e, desse modo, confunde-se na sua autossuficiência.

Desponta, nesse contexto temático, aquela famosa polêmica do modo segundo o qual devemos orar: seguindo as orações formulares ou fazendo preces espontâneas, ditadas pela sensibiliade e pela emoção de cada momento? Obviamente, Cristo nunca mandou escrever orações modelares. A prece que chamamos de “pai nosso” não foi, com certeza, dada como modelo por Cristo, mas como um exemplo de como devemos nos dirigir ao Pai. A própria estrutura do “pai nosso” demonstra que devemos sempre, em primeiro lugar, orar para agradecer e louvar. É importante observar isso, porque na maioria das vezes, as pessoas rezam apenas para pedir algo, fazem uma espécie de barganha com Deus: me dê isso que eu rezo durante tantos dias. Lamentavelmente, a pedagogia catequética tradicional levou as pessoas a identificarem a oração com um pedido de suprimento de alguma necessidade. Daí se criaram as “promessas”, os novenários, os devocionais, o costume de orar somente quando a pessoa se encontra em situação de penúria e precisa de ser urgentemente atendido, senão perde a fé e não vai rezar mais. Não podemos deixar de reconhecer que este é um fato corriqueiro na vida religiosa do nosso povo, sendo inclusive esse um motivo de “mudança de religião”, porque não conseguiu o que pretendia numa igreja, então vai procurar outra, como se Deus estivesse mais presente em uma do que em outra organização eclesial. Em verdade, o que muda não é o espírito divino, mas a fé do crente.

Pois bem. Ao longo dos séculos, as autoridades eclesiásticas foram compondo textos de orações que se tornaram padronizadas, de modo que a catequese consistia, em grande parte, na memorização desses textos orantes. E a grande maioria dos fiéis só sabe rezar esses textos oficiais, como se apenas estes fossem válidos diante de Deus. É bem verdade que algumas pessoas não têm aquele “dom” de fazer preces bonitas, com palavras e frases bem compostas. Isso não se refere apenas aos fiéis leigos, mas também aos sacerdotes. Nos primeiros tempos do cristianismo, não havia um “cânon” da missa, mas cada celebrante inventava o texto na hora da celebração. Ocorre que alguns sacerdotes mais cultos e devotos conseguiam compor orações mais completas e que agradavam mais à comunidade, enquanto outros tinham dificuldade em fazer belas preces. Assim, aos poucos foram se introduzindo textos padronizados para a celebração da missa e para as diversas orações a serem ditas nos cultos públicos. Chegou a um ponto tal essa burocracia do texto orante que, em determinada época, o celebrante cometia pecado venial se mudasse as palavras das orações oficiais. Atualmente, embora haja a obrigação de seguir o texto, o celebrante tem certa liberdade para inovar, o que antes não era permitido. Ora, há pessoas que até questionam a tradução de certos trechos litúrgicos, quando são traduzidos para as línguas vernaculares, o que demonstra que a prática da oração formular ainda é acentuadamente forte.

Uma outra forma orante que causa certo incômodo para alguns fiéis é a das orações repetitivas. O terço mariano, por exemplo, é uma dessas orações criticadas. Que sentido faz repetir o mesmo texto de uma oração por cinquenta vezes? Por outro lado, há os vários testemunhos de videntes que afirmam terem recebido de Maria a instrução-recomendação para a recitação do rosário, assim como de outros textos devocionais consagrados pela prática religiosa popular. Embora devamos reconhecer que essas repetições levam, na maioria das vezes, à distração mental porque se torna um comportamento mecânico e tedioso, não podemos deixar de reconhecer que muitas pessoas têm conseguido a obtenção de favores miraculosos com essas orações. Portanto, o que podemos dizer acerca desses vários tipos de orações é que, mais importante e mais operante do que o texto da oração será a fé do crente. Aquele que ora expressando sincera e honestamente a sua fé estará realizando o mandamento de Cristo “pedi e recebereis”, seja através das orações com textos padronizados, seja através das orações espontãneas e criativas, porque acima das palavras da prece está a comunhão espiritual com Deus, através da fé. E isso é o que efetivamente Deus escuta e retribui: o coração sincero.

Que a nossa oração seja sempre a verdadeira expressão da nossa fé.

domingo, 21 de julho de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 16º DOMINGO COMUM - ILUSTRES VISITANTES - 21.07.2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 16º DOMINGO COMUM – ILUSTRES VISITANTES – 21.07.2013

Caros Confrades,

Neste 16º domingo comum, as leituras relatam a presença de visitantes ilustres a residências humildes, trazendo à tona a ideia da boa hospitalidade. Numa abordagem metafórica, esse fenômeno da visita pode também estender-se à visita no sentido espiritual, de tratar bem os irmãos, percebendo Deus na sua presença.

Na primeira leitura (Gn 18, 1-10), vemos como Abraão recebeu a visita de três forasteiros, percebendo em sua sensibilidade a presença de Deus através daqueles estranhos. Nâo precisa grande esforço exegético para divisarmos nessa imagem uma prefiguração remota da Trindade Santa, pois os três visitantes eram anjos do Senhor. Etimologicamente, a palavra anjo chegou à língua portuguesa através do latim “angelus”, que é uma transliteração do grego “anghelos” e que significa “mensageiro”. Com efeito, aqueles três visitantes vieram trazer a Abraão uma importantíssima mensagem de Javeh: a gravidez de Sara. Vendo avançar a idade e sem gerar filhos legítimos, Abraão foi servir-se da regra tradicional de gerar um filho na pessoa de uma escrava. Mas para cumprir a sua promessa, Javeh não se contentaria com esse filho enviesado e assim os mensageiros vieram trazer a notícia de que Abraão geraria um filho na sua esposa Sara, apesar da idade avançada de ambos. Este episódio traz também logo à mente um caso semelhante de gravidez em avançada idade, acontecido com Isabel, prima de Maria, quando nasceu João Batista. Podemos perceber o quanto os fatos do Antigo Testamento se entrelaçam com os do Novo Testamento, em contextos diferenciados.

Mas o que também chama a atenção nesse episódio é a hospitalidade de Abraão para com aqueles viajantes desconhecidos. Implorou para que não seguissem viagem, mas parassem na tenda dele e mandou preparar o melhor alimento: pão, leite coalhada e o cordeiro mais tenro, para que os viajantes de recuperassem da cansativa viagem. Meus amigos, todos se recordam que esse era o costume do sertão, até algum tempo atrás. Hospedava-se um viajante desconhecido, oferecendo-lhe o que havia de melhor em casa. O exemplo de Abraão, infelizmente, foi desbancado pelas rotinas de violência e de insegurança dos tempos modernos. Hoje em dia, ninguém mais tem coragem de oferecer abrigo e pousada para um desconhecido. Desconfia-se até de quem lhe pede um copo d'água, e não é sem propósito. No caso de Abraão, os visitantes predisseram a gravidez de Sara para dentro de um ano, levando Sara a rir incrédula quando ouviu a notícia. Ao nascer a criança, ela colocou-lhe o nome de Isaac – aquele que me fez rir. Em síntese, a hospitalidade devotada por Abraão àqueles viajantes decorreu do fato de ter ele percebido, através deles, a presença de Javeh. Tempos depois, Jesus vai dizer na sua pregação que quem recebe a um pequenino é a Ele que recebe. A presença de Deus através do irmão é a outra lição que podemos colher da leitura deste fato extraordinário.

Na leitura do evangelho (Lc 10, 38-42), temos o conhecido diálogo entre Marta e Jesus, a respeito do comportamento da irmã dela, Maria, que não a ajudava no trabalho da casa. Uma curiosidade que nos chama a atenção nesse trecho de Lucas é quando ele diz que “uma certa mulher de nome Marta o recebeu em sua casa”. Ora, nós sabemos que os três irmãos (Marta, Maria e Lázaro), que moravam em Betãnia, eram pessoas que desfrutavam de grande amizade com Jesus. Causa estranheza o modo como o evangelista Lucas se refere a Marta identificando-a como 'uma certa mulher'. E também a referência que ele faz ao lugar: “Jesus entrou num povoado...”, como se o local fosse desconhecido e aquela passagem fosse casual. Pelas leituras de outros trechos do NT, sabemos que Jesus hospedava-se com frequência naquela residência, onde ele até operou um de seus milagres mais emotivos, a ressurreição de Lázaro, ocasião em que Jesus chorou. (Jo 11, 35). Trata-se, sem dúvida, de um modo inesperado como o evangelista Lucas se refere à família com a qual Jesus tinha grandes relações de amizade.

Mas não ficam por aí as estranhezas dessa narração de Lucas. No trecho seguinte (Lc 10, 39-40), ele diz: “Sua irmã, chamada Maria, sentou-se aos pés do Senhor, e escutava a sua palavra. Marta, porém, estava ocupada com muitos afazeres.” Para em seguida, narrar a queixa de Marta a Jesus porque a irmã Maria ficava ali sentada aos pés dele, enquanto ela, Marta, ficava com todo o encargo das tarefas domésticas. Convenhamos, Jesus não andava sozinho, os discípulos sempre o acompanhavam, então a chegada daquele grupo numeroso numa casa implicava uma certa quantidade de tarefas fora da rotina e eram elas, Marta e Maria, as donas da casa, as responsáveis por aquele trabalho. Com certeza, chegando de viagem a pé, os visitantes queriam tomar um banho, alimentar-se, repousar, e isso significava aumento do serviço doméstico. Só que Maria ficou sentada ouvindo Jesus a conversar, enquanto Marta fazia todo o trabalho. E quando esta foi se queixar, Jesus ainda caçoou dela, dizendo que ela se preocupava demais e que Maria tinha escolhido a melhor parte.

Meus amigos, com todo respeito dos que pensam em contrário, parece-me que Lucas queria dar algum recado direcionado a alguém ou a algum grupo, quando escreveu essa história. Apenas Lucas narra esse diálogo entre Jesus e Marta que, embora não se possa entender como uma repreensão, todavia soa incoerente naquele contexto. Sabendo que a Sua presença ali fazia aumentar o trabalho doméstico e vendo Marta a cuidar das atividades, enquanto Maria nada fazia, era de esperar que Jesus dissesse a Maria que fosse ajudar a irmã. Acerca dessa atitude pouco colaborativa de Jesus, eu vi dois comentários. Um comentarista dizia que, com isso, Jesus estava colocando um valor mais acentuado na pessoa d'Ele do que no trabalho, como se ele estivesse a dizer a Marta que deixasse aquelas tarefas pra depois e fosse ouvi-Lo também. Assim, disse esse comentarista, devemos colocar Deus em primeiro lugar e tudo o mais virá como consequência. Parece-me que essa interpretação já foi muito usada, inclusive nos conventos, para colocarem-se os clérigos nas tarefas intelectuais (Maria) e os leigos nas tarefas domésticas (Marta). Evidentemente, dando mais importância às lides intelectuais, num seguimento literal àquilo que Jesus dissera. Não gostei dessa explicação.

Outro comentarista interpretou dizendo que cada uma das irmãs, Marta e Maria, amavam muito a Jesus, porém, ao seu modo: Marta através do trabalho prestativo, Maria através da atenção aos seus ensinamentos. Com isso, esse comentarista queria significar que cada pessoa tem um modo próprio de amar a Jesus e Ele ama cada um de acordo com o modo como cada qual é. Parece uma interpretação interessante, menos literal do que a anterior e teologicamente mais consistente. Porém, em relação ao trabalho, nós sempre aprendemos que existe tempo para tudo: tempus orandi, tempus laborandi, tempus ludendi, tempus ridendi, tempus dormiendi, etc (tempo de orar, de trabalhar, de divertir-se, de rir, de dormir, etc), o que não significa a pessoa deva escolher uma opção, mas o conjunto deles é que compõe a vida. Quem não se lembra que, no Noviciado, nós rezávamos enquanto fazíamos as tarefas domésticas e uma coisa não atrapalhava a outra. Era lavando os pratos e rezando a ladainha, cavando a horta e rezando o terço, “ora et labora”, dizia o Padre Mestre. O fato é que esse episódio narrado por Lucas já serviu pra muita gente justificar a preguiça, afirmando que tinha escolhido “a melhor parte”, como fez Maria. Continua me parecendo uma incoerência a narrativa de Lucas em relação aos ensinamentos de Jesus. É como se fosse, repito, um escrito destinado a dar um recado para determinadas pessoas, o que hoje nos dificulta a compreensão.

Mas abstraindo essa incógnita, observa-se nas atitudes de Abraão e de Marta o cuidado em bem receber. A hospitalidade verdadeira é aquela que decorre da caridade, que por sua vez é decorrente do amor de Deus, que nós enxergamos através da pessoa do irmão. Não precisa ser hospedando em casa, mas pode ser também no trato cordial, no gesto fraterno, no cumprimento respeitoso, na conversa bem humorada, na delicadeza dos gestos, são outras atitudes que equivalem a uma boa hospitalidade que podemos devotar aos irmãos.

Que o divino Mestre nos ensine a saber unir as duas atitudes (de Marta e de Maria) nas nossas tarefas do dia a dia.


domingo, 14 de julho de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 15º DOMINGO COMUM - A LEI DE DEUS E A SUA MISERICÓRDIA - 14.07.2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 15º DOMINGO DO TEMPO COMUM – A LEI DE DEUS E A SUA MISERICÓRDIA – 14.07.2013

Caros Confrades,

Neste 15º domingo do tempo comum, o tema litúrgico em destaque é o confronto entre a lei e a misericórdia, o mandamento e a caridade. O que é mais importante: louvar a Deus ou ajudar os irmãos? Resposta: os dois são importantes, claro. Mas o que é preferencial? Com a parábola do bom samaritano, Jesus ensina que a caridade para com o próximo é preferencial ao cumprimento puro e simples da lei.

Na primeira leitura, colhida do livro do Deuteronômio, Moisés ensina ao povo que a palavra de Deus está dentro de cada um, ou seja, está dentro da nossa consciência. Diz ele: a lei de Deus não está no céu, porque assim ficaria muito difícil de ser alcançada e alguém poderia dizer que não a conhece porque está inacessível. Também não está do outro lado do mar, porque estaria muito distante e ninguém conseguiria atingi-la. Lembremo-nos de que, na época de Moisés, o conceito de mar era bem outro do que conhecemos, ter de atravessar o mar era uma tarefa onerosa e demorada, tomando como referência o Mar Vermelho, o Mar Mediterrâneo, que eram os mares conhecidos. Mas não, diz Moisés, esta palavra está bem ao teu alcance, está em tua boca e em teu coração, para que a possas cumprir. (Dt 30, 14) Este é o conceito da lei divina enquanto lei natural, isto é, aquela regra que cada um tem dentro de si mesmo e que nós costumamos chamar de consciência.

De acordo com a doutrina tradicional, esta lei natural é inscrita em cada pessoa na sua razão como uma ideia inata, colocada pelo próprio Deus como parte da Sua atividade criadora. A lei natural decorre da própria racionalidade. No entanto, os filósofos modernos passaram a contestar essa noção de lei inata como algo próprio da natureza humana e passaram a afirmar que essas noções básicas do bem e do mal, do certo e do errado, do justo e do injusto são aprendidas a partir das vivências e experiências de cada um na família e na sociedade. De um modo ou de outro, a lei divina enquanto lei natural é reconhecida por todas as pessoas como aquela regra geral de sempre fazer o bem. Se observarmos bem o conteúdo da lei de Moisés, a grande exigência que Javeh sempre fez ao Seu povo foi honrá-Lo e adorá-Lo como único Deus, desprezando a idolatria, que era muito comum entre os povos contemporâneos. Todos os outros preceitos são compatíveis com o que chamamos de lei natural: honrar pai e mãe, não matar, não levantar falso testemunho, não querer os bens pertencentes a outrem... Esta é a lei antiga, que Jesus não veio negar nem modificar, mas sim cumprir de forma plena, conforme Ele afirmou por diversas vezes.

O evangelho de Lucas (10, 25) narra o diálogo de Jesus com um doutor da lei. Quem eram os doutores da lei? Eram os sábios instruídos na lei de Moisés, aqueles que ensinavam ao povo os preceitos dados por Javeh, podendo ser sacerdotes ou não. Portanto, teoricamente, um doutor da lei sabia (mais do que as demais pessoas) o que era de seu dever e obrigação cumprir. Dentre os judeus daquele tempo, o grupo dos fariseus era aquele formado por aqueles doutores da lei mais rigorosos, aqueles que se esmeravam no conhecimento da lei e no seu cumprimento acima de qualquer outra exigência. E faziam questão de demonstrar isso publicamente, para que todos os vissem como exemplares cumpridores da lei. Jesus não era nenhum ingênuo e quando aquele fariseu veio perguntar-Lhe o que era preciso fazer para ganhar a vida eterna, Ele respondeu com outra pergunta: o que diz a Lei? Ora, o fariseu sabia de cor e respondeu imediatamente: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo. Então Jesus disse: pois faça isso e terá a salvação. Talvez o fariseu esperasse que Jesus fosse ensinar algo diferente do que estava na Lei e assim poder acusá-lo de heresia. Quando Jesus disse “cumpra a lei”, o fariseu ficou desconcertado. E ao mesmo tempo, Jesus estava dizendo para aquele fariseu e para todos nós que a lei divina, aquela que se encontra no coração de cada homem, conforme já havia sido dito por Moisés, esta lei não passa, esta lei não muda, esta lei não é ensinada apenas pelos judeus, mas está em todos os povos desde as épocas mais antigas e em todas as origens étnicas (hindus, chineses, gregos, persas, babilônicos, astecas, maias), o mandamento de fazer o bem sempre esteve persente nas suas culturas. Com isso também Jesus queria dizer que a Sua doutrina, que nós chamamos de cristianismo, é uma doutrina essencialmente humanista, porque se dirige a todos os homens de boa vontade. E o Papa Francisco, recentemente, lembrou isso, quando afirmou que mesmo os ateus de boa fé terão a salvação.

Pois bem, mas então, em que consiste o cumprimento pleno da Lei, que Jesus veio ensinar e que faz a diferença entre a nova aliança e a antiga aliança? Aqui entra a parábola do bom samaritano. Um homem ferido, necessitando de ajuda é observado por um sacerdote e por um levita, que se desviam dele e passam pelo outro lado, na estrada. Observemos a fina ironia de Jesus, quando colocou no exemplo da parábola um sacerdote e um levita. Esses dois termos eram até certo ponto sinônimos, mas não por completo, havia levitas que não eram sacerdotes. Seriam como os diáconos, aqueles que auxiliavam os sacerdotes no serviço do templo. Então, quando Jesus colocou na parábola um sacerdote e um levita, era como se Ele estivesse dizendo para o seu interlocutor: um igual a você. Por que motivo o sacerdote e o levita teriam se desviado do ferido e moribundo? O evangelista não entra nesse detalhe, mas poder-se-ia supor, na melhor das hipóteses, que fosse porque eles estariam se dirigindo ao templo e não poderiam se atrasar para o serviço do culto. Ou numa hipótese mais malvada, porque eles realmente não se preocupavam com os sofrimentos dos outros. Era como se Jesus estivesse lançando a carapuça na cabeça daquele doutor da lei.

E para completar a ironia, Jesus colocou na parábola a figura do samaritano, como aquele que deu o bom exemplo. Ora, meus amigos, os judeus tinham uma rixa com os samaritanos, achavam que esses não cumpriam a lei, eram intrigados entre si e não se falavam. Daí que naquela ocasião do diálogo de Jesus com a samaritana, o fato causou admiração. Então, Jesus colocou um sacerdote e um levita dando mau exemplo e, de outro lado, o samaritano como autor do bom exemplo. Desse modo, duplamente Ele puxou as orelhas do doutor da lei. Uma, porque alguém da classe dele (sacerdote ou levita) preferiu passar apressado para não se atrasar no cumprimento da lei. Duas, porque o rival dos judeus foi aquele que teve misericórdia do ferido e o amparou. E para não deixar só no plano das especulações, Jesus ainda perguntou ao doutor da lei: quem desses três, ao seu ver, foi o próximo para o ferido? O doutor da lei não tinha outra alternativa senão concordar que tinha sido o samaritano, saindo dali com as orelhas pegando fogo.

Mas ainda falta darmos a resposta da pergunta: como é cumprir plenamente a lei, segundo Jesus ensinou? Agora podemos concluir: é juntando o cumprimento da lei com a prática da caridade. Não se pode dizer que, a rigor, o sacerdote e o levita descumpriram a lei. Eles tinham seus motivos. Mas o samaritano cumpriu a lei da forma mais perfeita, que foi dando a preferência ao atendimento do irmão necessitado, mesmo que isso implicasse no atraso de outras obrigações. Então, como podemos observar, quando Jesus disse que não veio para destruir a lei de Moisés, mas para cumpri-la de forma integral, Ele estava querendo dizer que ninguém pode dizer que ama a Deus se não ama o próximo. Amar a Deus é a dimensão vertical da religião, ou seja, a oração, a meditação, o jejum, o terço, a novena, o culto, o templo. Amar o próximo é a dimensão horizontal da religião, ou seja, a caridade, a estima, a ajuda mútua, o compartilhamento dos bens, a misericórdia com os irmãos. Uma dimensão se completa com a outra e a dimensão vertical, sem a horizontal, torna-se inócua. Várias vezes, no evangelho, temos exemplos patéticos nas parábolas de Jesus, como quando aqueles que foram mandados para a “esquerda” perguntaram: quando foi que Te vimos com fome e não Te demos de comer? E ele respondeu: foi quando deixastes de ajudar o irmão necessitado. Ou seja, se sopesarmos bem, a dimensão horizontal tem um peso bem maior na hora de aquilatar o cumprimento da lei, porque é a dimensão horizontal que leva a outra dimensão à perfeição. O bom samaritano é o exemplo clássico e insuperável do amor ao próximo.


domingo, 7 de julho de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 14º DOMINGO COMUM - A PAZ - 07.07.2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 14º DOMINGO DO TEMPO COMUM – A PAZ – 07.07.2013

Caros Confrades:

A liturgia deste 14º domingo do tempo comum tematiza o envio de setenta e dois discipulos de Jesus para saírem de cidade em cidade anunciando o evangelho, curando doentes e expulsando demônios, tendo como único instrumento a paz. Enviados como cordeiros no meio dos lobos, vão sem armamento algum, sem sacola, sem dinheiro, levando apenas a palavra e semeando-a por onde passarem. Esse tema do envio é recorrente na liturgia, pois na verdade ele é sempre atual e ecoa nos nossos ouvidos a cada dia, nas nossas atividades e nos nossos relacionamentos, lembrando-nos do nosso compromisso de cristãos. Por isso, quero destacar neste comentário a saudação que Cristo lhes recomendou: Em qualquer cada onde entrardes, dizei primeiro – A paz esteja nesta casa. O Seráfico Patriarca Francisco também escolheu essa lição da Paz como norma de sua vida e a ela acrescentou o Bem. A saudação franciscana é exatamente o que Cristo encomendou aos setenta e dois que enviou: levar a Paz e fazer ao Bem.

A primeira leitura, colhida no deutero Isaías (Is 66, 10-14), lembra a paz que reinou em Jerusalém, após o retorno dos exilados da Babilônia. “Alegrai-vos com Jerusalém e exultai com ela todos vós que a amais; tomai parte em seu júbilo, todos vós que choráveis por ela.” Aquela conhecida e belíssima ária de Verdi, que faz parte da nossa juventude, Va Pensiero, é um cântico de lamento dos hebreus no exílio, chorando e lembrando de Jerusalém. “O mia patria, si bella e perduta...” era o lamento dos hebreus sobre Jerusalém destruída. Então, após o retorno dos exilados, diz o profeta Isaías: alegrai-vos todos vós que choráveis por ela. E mais: “Diz o Senhor: 'Eis que farei correr para ela a paz como um rio e a glória das naçðes como torrente transbordante.” A paz chegará a Jerusalém como um rio caudaloso, levando prosperidade para esta cidade e tornando-a a glória das nações. Como de fato, daí até o tempo de Cristo a cidade de Jerusalém se destacou como uma metrópole na região, vindo a sofrer nova derrota somente para os romanos, tempos depois. Esta segunda destruição de Jerusalém foi prevista por Cristo, conforme consta no evangelho de Lucas (19, 43): virá o dia em que os inimigos cavarão um fosso ao redor e sitiarão o local, levando grande angústia para os teus filhos e não deixarão pedra sobre pedra. Foi o preço pago por Jerusalém pelo fato de que os seus habitantes, além de não crerem em Cristo, ainda o crucificaram. Jerusalém não reconheceu o príncipe da paz, então aquele rio caudaloso de que falou o profeta se transformou num fosso mortal, cavado pelos inimigos, que levaram à sua destruição.

Na segunda leitura, de Paulo dos Gálatas, volta o tema da paz como sinônimo da nova criação, aquela que foi redimida pela paixão e morte de Jesus. É quando Paulo, mais uma vez doutrinando contra os judaizantes, ensina que agora, a circuncisão e a incircuncisão já não têm valor, porque o que realmente conta é ser uma nova criatura. Este renascimento se faz pelo batismo em nome de Cristo “e para todos os que seguirem esta norma, como para o Israel de Deus, paz e misericórdia.” (Gl 6, 16). Vemos que Paulo indica a paz como fruto do batismo, da adesão ao evangelho de Cristo. A antiga aliança foi recuperada pela cruz, de modo que ele diz: “Doravante, que ninguém me moleste, pois eu trago em meu corpo as marcas de Jesus.” (Gl 6, 17). E diz mais: “ que eu me glorie somente da cruz do Senhor nosso, Jesus Cristo. Por ele, o mundo está crucificado para mim, como eu estou crucificado para o mundo.” (Gl 6, 14). Ao ser crucificado, Cristo atraiu para si os pecados de toda a humanidade, de modo que, redimindo-os, trouxe a paz a todas as pessoas de outrora e de hoje, de tal modo que não há mais distinção entre judeu e grego, entre escravo e livre, entre rico e pobre, mas todas as diferenças se diluem na graça do batismo. E o resultado que isso traz para todos é um só: paz e misericórdia.

Na leitura do evangelho, Lucas relata (Lc 10, 1, 12) o envio de setenta e dois discípulos na frente de Jesus, para cidades por onde ele deveria passar depois, a fim de que preparassem o povo para a sua chegada. É curioso notar que Lucas não tenha tido interesse em citar nenhum nome desses setenta e dois enviados nem os nomes das cidades aonde eles foram. Com certeza, não foi nenhum dos doze apóstolos, a quem Jesus estava preparando para a missão futura. E também eles não foram a localidades muito distantes, pois o próprio Lucas relata o retorno deles (Lc 10, 17) muito contentes pelas ações miraculosas que tinham realizado: “até os demônios nos obedeceram”, disseram a Jesus.

Mas o que é também interessante nesse relato do envio dos setenta e dois discípulos são as 'regras' ditadas por Jesus para que cumprissem: não levar bolsa, nem sacola, nem sandália e não cumprimentar ninguém pelo caminho. Chegando a uma casa, dirão primeiro: a paz esteja nesta casa. Comerão os alimentos que forem oferecidos e curarão os doentes. E se não forem bem recebidos, deverão sacudir a poeira contra os habitantes. Sobre esta mesma passagem, em Mateus 10, 9, consta que não deverão levar nem ouro, nem prata, nem bens, nem duas túnicas, e manda ressuscitar os mortos, curar os doentes, limpar os leprosos, expulsar os demônios e anunciar que o reino de Deus está próximo. Lendo essas linhas, me vem à mente as antigas “desobrigas” que os nossos frades faziam pelo sertão afora, transportados em montarias desconfortáveis e hospedando-se nas casas dos sertanejos. Lembro bem do Frei Higino, do Frei Abel, do Frei Sabino contando as suas “aventuras” pelas veredas do Maranhão. Tempos heróicos de pessoas abnegadas, que cumpriam à risca as ordens dadas por Cristo aos setenta e dois.

Pois bem, mas eu queria destacar nesse contexto a saudação que Jesus mandou fazer: a paz esteja nesta casa. Se ali houver um “amigo” da paz, a paz repousará sobre ele; do contrário, retornará para vós. Eu destaquei entre aspas a palavra “amigo” porque é a tradução oficial do texto da CNBB, no entanto, no original latino da vulgata, texto de São Jerônimo, a expressão é “filius pacis”, ou seja, filho da paz. Esta é a mesma expressão do original grego de Lucas: “yios eirenes” (filho da paz). Não sei por qual razão os tradutores da CNBB trocam para 'amigo da paz', pois me parece que ser filho da paz tem um significado muito mais profundo e denso do que apenas amigo da paz. Ser filho de Deus é muito superior a ser amigo de Deus. Penso que seja senso comum na nossa cultura que o status de filho é bem mais elevado do que o de amigo, então fico realmente sem entender o motivo que leva os tradutores e alterarem assim a equivalência das palavras. Nosso Seráfico Patriarca era, com certeza, um autêntico filho da paz, não apenas amigo desta. Tomando aqui emprestado uma famosa afirmação atribuída a Sócrates, quando lhe perguntaram se ele era um “sóphos” (sábio), ele negou e disse que se considerava apenas um “philos sophia”, isto é, amigo da sabedoria. Ora, nessa mesma linha de raciocínio, um “sóphos” seria um filho da sabedoria, mas na sua humildade, Sócrates se considerava apenas um amigo da sabedoria. Podemos ver, assim, que não apenas na nossa cultura brasileira, a relação entre os conceitos de “filho” e “amigo” atribui um valor muito superior ao filho do que ao amigo. Fica difícil mesmo entender o objetivo dos nossos liturgistas oficiais, quando preparam as traduções dos textos das leituras.

Então, seguindo a norma dada por Cristo, se naquela casa morar um filho da paz, a paz recairá sobre ele; se não houver, a paz retornará para o seu emissor. A lição que devemos tirar dessa ordem de Cristo é que nós devemos ser esses filhos da paz. Quando o irmão que sofre alguma perturbação nos procura, então devemos ser esse filho da paz, que recebe a paz quando ela é emitida e também transmite a paz, quando a outra pessoa dela necessita. Para sermos distribuidores da paz, é necessário sermos filhos da paz, ou seja, é necessário que a paz habite em nós, pois só podemos distribuir aquilo que possuímos e para possuir a paz, devemos haurir seus fluidos nos ensinamentos do príncipe da paz, que é Jesus. Assim, aquele rio de paz que o profeta Isaías previu para correr em Jerusalém, após o retorno dos exilados, invadirá também o nosso coração e a paz banhará todo o nosso ser. Isso significa ser filho da paz. Isso significa que, assumindo o nosso batismo, nos tornamos novas criaturas e, como diz São Paulo aos Gálatas, para todos os que seguirem essa norma, o resultado será paz e misericórdia.

Que o Senhor nos dê a sua paz. Que o Seráfico Patriarca nos dê a sua Paz e o seu Bem.