domingo, 20 de maio de 2012

COMENTÁRIO LITÚRGICO – DOMINGO DA ASCENSÃO - O ENVIO – 20.05.2012



Caros Confrades,

Celebramos neste domingo a festa da Ascensão do Senhor. Convém sempre lembrar que o dia próprio da festa é na quinta feira anterior, quando se completam os 40 dias após a ressurreição, segundo o testemunho de Lucas, nos Atos (1, 3: Durante quarenta dias, apareceu-lhes falando do Reino de Deus.) E convém sempre lembrar também a simbologia do número 40, repetida em diversas passagens da Escritura. A festa litúrgica é celebrada no domingo por causa do acordo da CNBB com o governo acerca dos feriados religiosos. Contando a partir da quinta feira da Ascensão até o domingo próximo, teremos mais 10 dias, formando 50 dias após a ressurreição, quando celebraremos a festa de Pentecostes, cuja etimologia significa 'quinquagésimo'. Com efeito, era uma festa tradicional aquela que os judeus celebravam após sete semanas da Páscoa (7 x 7) e foi exatamente por isso que havia tanta gente em Jerusalém naquele dia. Mas deixemos a continuação desse assunto para o próximo domingo.

Neste domingo da Ascensão, o tema principal que percebo é o do envio, da missão. Conforme o texto dos Atos (1, 4), Jesus falou para os apóstolos que não se afastassem de Jerusalém, porque em breve eles iriam ser batizados com o Espírito. Os apóstolos ainda mantinham aquela esperança política do Messias revolucionário e fizeram aquela pergunta que podemos hoje classificar como ingênua: “é agora que Tu vais restaurar o reino de Israel?” porque, na mente deles, ainda não se haviam esclarecido todos os ensinamentos doutrinários cristãos. Jesus Cristo, mais uma vez, respondeu de forma gentil e enigmática: não vos cabe saber o dia nem a hora que o Pai determinou. E novamente confirmou a promessa da vinda do Espírito, que lhes traria o verdadeiro 'conhecimento' da doutrina, tal como dirá depois São Paulo, na carta aos Efésios, que está na segunda leitura de hoje (Ef 1, 17): o Pai a quem pertence a glória, vos dê um espírito de sabedoria que vo-lo revele e faça verdadeiramente conhecer. Foi exatamente isso que ocorreu com os apóstolos.

Junto com a confirmação dessa promessa do Pai, Cristo reafirmou aos apóstolos o motivo para o qual tinham eles sido chamados para o convívio mais próximo com Ele: (Atos 1, 8): para serdes minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judéia e na Samaria, e até os confins da terra'. Nas leituras do meio da semana, foram lidos vários trechos de Atos, em que são narradas as viagens de Paulo pelas diversas comunidades da Ásia Menor, os debates com os judeus, as conversões em massa, os sofrimentos passados (espancamentos, julgamentos, prisões). Lamentavelmente, não teve outro escriba acompanhando as atividades dos demais Apóstolos em missão, assim como temos as crônicas de Lucas, em Atos, contando os detalhes das viagens e atividades de Paulo. Mas com certeza os outros também saíram pelo mundo em missão, cumprindo o mandado de Cristo. Foi nessa missão que Pedro terminou por fixar-se em Roma, onde sob o reinado de Nero, foi crucificado de cabeça para baixo. O martírio de Pedro, assim como de muitos cristãos judeus e gentios no Coliseu de Roma nesta época, se deram por causa do famoso incêndio da cidade, encomendado por Nero, que achava feia a cidade (e era mesmo), então com isso ele alcançaria dois objetivos: a reforma urbana de Roma e a imposição da culpa disso aos cristãos. Foi nesse contexto que se deu o martírio de Pedro. Quem quiser ver uma versão hollywoodiana desses fatos, procure pelo filme Quo Vadis, onde essa história é contada em detalhes.

O evangelho de Marcos lido neste domingo (Mc 16, 15) repete o mesmo tema da missão que Cristo deu aos apóstolos: “'Ide pelo mundo inteiro e anunciai o Evangelho a toda criatura! Quem crer e for batizado será salvo. Quem não crer será condenado. ” Conforme já dissemos em comentário anterior, estamos seguindo o ano litúrgico “B”, cujo texto sagrado seguido é o evangelho de Marcos, embora com inserções ocasionais de João. Isso se verificou por diversas vezes nesses domingos da Páscoa, porque o texto de Marcos é por demais sucinto e até com algumas passagens de linguagem obscura, como a que lemos nesta citação acima: quem crer e for batizado será salvo, quem não crer será condenado. Por muitos séculos, a catequese da Igreja Católica se baseava nestas palavras para dizer que fora da Igreja não há salvação. Somente após o Concílio Vaticano II, quando foram resgatados os conceitos do ecumenismo, esse entendimento foi abrandado.

Com efeito, esse texto é bastante cru e sem rodeios: quem crer e for batizado será salvo, quem não crer será condenado. Mas o seu entendimento será melhor alcançado com uma interpretação mais abrangente, inspirado no que o próprio Cristo disse aos discípulos certa vez, quando eles disseram a Ele que havia uma pessoa expulsando demônios em nome Dele (sem ser discípulo) e eles os tinham proibido (Mc 9, 38). Resposta de Cristo: (Mc 9, 39-40): “Não lho proibais; porque ninguém há que faça milagre em meu nome e possa logo falar mal de mim. Porque quem não é contra nós, é por nós.” Coligindo os dois textos (quem não crer será condenado – quem não é contra nós, é por nós), podemos concluir que a adesão ao espírito do cristianismo ocorre também entre aqueles que não são formalmente engajados entre os 'discípulos', mas expressa isso nas atitudes praticadas. Eu conheci, certa vez, um judeu cuja esposa era católica, daquelas de ir à missa todos os dias. No entanto, ele era muito mais humanitário e compassivo no trato com os empregados, diferentemente da esposa, que era rígida e intolerante. É o caso de se perguntar: qual dos dois seguia com mais fidelidade os ensinamentos de Cristo?

Com esse pensamento, a expressão 'quem não crer será condenado' deve estar relacionada àquelas pessoas más e perversas, cujos hábitos destoam totalmente dos ensinamentos cristãos. E isso tanto pode incluir pessoas batizadas como não batizadas, pois o simples batismo não conduz à salvação, se não for confirmado com as obras coerentes e exemplares. Não faz muitos dias, eu li um e-mail, cujo remetente era um padre, no qual ele dizia que a Igreja Católica afirma que o inferno existe, mas não afirma que haja pessoas lá, porque o resultado do julgamento divino, na hora máxima da prestação de contas de cada um, não é dado a ninguém saber. É o que diz Cristo, no texto da primeira leitura de hoje (At 1,7): não vos cabe saber os tempos e os momentos que o Pai determinou... A Igreja Católica também ensina que, na hora suprema, o arrependimento supremo pode resgatar toda uma vida de pecados graves e isso somente ao Pai é dado saber.

Portanto, a expressão 'quem não crer será condenado' deve ser compreendida com uma interpretação abrangente, e não com a sua estrita literalidade. O mesmo raciocínio se aplica ao texto do Apocalipse, que trata dos 144 mil assinalados (Ap 7, 4), que não pode ser compreendido dentro do quantificador matemático expresso. Daí a razão de ser muito arriscado ler a Bíblia sem uma adequada preparação de estudos, porque a Palavra tem uma riqueza muito maior do que as suas palavras indicam.

Preparemo-nos para a festa de Pentecostes, que conclui o ciclo pascal, aplainando as veredas do nosso interior para recebermos o 'batismo' do verdadeiro conhecimento.


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 6º DOMINGO DA PÁSCOA – DEUS ISONÔMICO – 13.05.2012



Caros Confrades,

As leituras deste 6º domingo da Páscoa nos trazem, outra vez, a recomendação de Cristo para o cumprimento do primeiro e maior dos mandamentos: o amor. A ênfase está nos textos escritos por João (1ª Carta 4, 7 – evangelho 15, 9). Mas eu quero direcionar meu comentário para a 1ª leitura, do livro dos Atos (10, 25), que mais uma vez relata maravilhas realizadas pelos discípulos de Cristo.

As leituras da liturgia semanal, sempre retiradas do livro dos Atos, narram diversas missões de Paulo, Barnabé, Pedro e outros discípulos. Na leitura de ontem, sábado, está o relato do primeiro encontro de Paulo com Timóteo, que foi circuncidado por Paulo e depois seguiu viagem com ele, para pregar o evangelho. Este relato da circuncisão de Timóteo por Paulo, nos primeiros anos do cristianismo, demonstra como ainda se misturavam os costumes judeus com as novas práticas cristãs. Os judeus convertidos insistiam que os 'pagãos' convertidos deviam submeter-se ao ritual da circuncisão, como requisito para aderirem ao cristianismo, e isso gerou diversas polêmicas dentro da comunidade, envolvendo também opiniões divergentes também entre os discípulos. O fato de Paulo circuncidar Timóteo significa que ele (Paulo) queria agradar os judeus, embora talvez não achasse que fosse necessário. Mas acolher na comunidade um incircunciso poderia gerar outras polêmicas, que ele pretendia evitar.

Na primeira leitura de hoje (At 10,25) consta o episódio em que Cornélio se prostrou diante de Pedro, e este pediu que ele se levantasse, porque era humano tanto quanto ele. Com certeza, Cornélio via Pedro como um verdadeiro representante de Cristo, ou talvez o próprio Cristo. O texto de Atos não diz se Cornélio era judeu ou grego. Mas em referência a esse episódio, Pedro pronunciou um discurso que é considerado fundamental para encerrar essa polêmica dos judaizantes - “estou compreendendo que Deus não faz distinção entre pessoas, pelo contrário, Ele aceita quem o teme e pratica a justiça, qualquer que seja a nação a que pertença”. Este discurso é significativo porque dá a entender que Pedro ainda estava em dúvida sobre de que lado deveria se posicionar na questão entre judeus e gentios, mas naquela ocasião, ele declarou que afinal tinha compreendido o fato, de modo a encaminhar uma solução. E diz o texto de Atos (10, 44) que Pedro ainda estava falando, quando o Espírito Santo desceu sobre todos os que ouviam a palavra. Isso veio confirmar o que Pedro acabara de afirmar, isto é, o Espírito Santo confirmou o discurso de Pedro perante todos os presentes. E continua o texto de Atos (10, 45) afirmando que os “judeus” ficaram admirados ao verem o Espírito Santo descendo também sobre os pagãos, eles que se consideravam os autênticos seguidores de Cristo, por serem judeus convertidos e pensavam ser necessário que os pagãos primeiro se tornassem judeus (pela circuncisão), para depois se tornarem cristãos.

Com efeito, o texto latino traduzido pela CNBB usa aqui a palavra 'judeus', mas o texto original de São Jerônimo diz 'circuncisione fideles', ou seja, os que eram leais ao judaísmo, que acreditavam na circuncisão. Nesse contexto, ficou então decidida a polêmica, confirmando-se que a circuncisão não seria necessária, surgindo daí o conceito de um Deus isonômico, que não faz distinção entre judeu, grego, romano ou asiático ou de qualquer outra nação, circunciso ou incircunciso, pois o Espírito de Deus foi derramado sobre os pagãos na presença dos judeus, para que eles não tivessem mais dúvida sobre a isonomia divina.

Esse trecho dos Atos cap 10 nos coloca ainda diante de duas polêmicas históricas, além da questão dos judaizantes. São eles: o versículo 46, onde diz que os 'circuncisione fideles', isto é, os adeptos da circuncisão ouviram os pagãos 'falando em línguas' e louvando as maravilhas do Senhor; e o versículo 47, quando Pedro diz: o que nos impede de batizar estes que receberam o Espírito, assim como nós recebemos? Aqui temos duas descrições problemáticas: a 'fala em línguas' e a descida do Espírito Santo sobre os que ainda não haviam sido batizados, ou seja, antes do batismo deles.

Sobre o tema de 'falar em línguas', algumas igrejas não-católicas e, entre os católicos, os membros do Shalom, entendem isso como pronunciar palavras desconexas, expressar fonemas sem nenhum nexo semântico. Eu já ouvi isso (vocês talvez já ouviram também) nas emissoras de rádio de algumas igrejas autodenominadas 'evangélicas', e também nas 'igrejas eletrônicas' pela TV, de repente o 'locutor' emenda palavras compreensíveis com fonemas inexpressivos e quer significar com isso que está 'falando em línguas'. Pela leitura do texto dos Atos, eu entendo a expressão 'loquentes linguis' como falando línguas que os judeus não entendiam. Naquelas regiões não judaicas e não romanas, a língua predominante era a grega, mas os diversos povos tinham línguas próprias, das suas próprias etnias, como ainda hoje ocorre na África, onde as pessoas falam inglês ou francês, mas conservam suas línguas tribais. Eu compreendo essa expressão 'loquentes linguis' como se fosse 'falando na língua deles próprios', isto é, falando uma língua diferente do aramaico (que os judeus falavam) e do grego (que os gentios falavam). Essas línguas próprias eram incompreensíveis para os judeus, mas isso não quer dizer que eles estivessem falando palavras desconexas, fonemas sem sentido. Eles estavam aclamando as maravilhas de Deus nas línguas de suas etnias. O texto grego de Atos é bem mais claro sobre isso e está coerente com o que eu afirmei. Diz assim, transcrevendo em letras latinas: “auton lalounton glossais”, ou seja, falando nas próprias línguas. Explicando as palavras: auton – o próprio, o mesmo, de si mesmo, por si mesmo; lalounton – flexão do verbo laleô – falar; glossais – língua seja no sentido do órgão corporal, seja no sentido do idioma falado. São Jerônimo, ao traduzir para o latim, simplificou com a expressão 'loquentes linguis', não colocou o adjetivo 'ipsis', que seria o equivalente ao grego 'auton'. Daí que na tradução para o português, ficou a insólita expressão 'falando em línguas' como se fosse algo exótico, incompreensível. Para sermos mais exatos, devemos entender aí 'falando nas próprias línguas'.

A outra questão aberta aqui é a descida do Espírito Santo antes do batismo. Na primeira vez em que o Espírito apareceu foi no batismo de Jesus no Jordão, e veio depois do batismo. Os apóstolos não foram batizados, porque Cristo não colocou isso como condição. Na verdade, eles foram batizados com o próprio sangue, pois foram todos martirizados, à exceção de João. Em outras passagens narradas nos Atos, ocorre a vinda do Espírito sobre os ouvintes, como confirmação da pregação dos apóstolos, antes do batismo. Mas a catequese oficial diz que o batismo deve ser administrado em primeiro lugar, como o primeiro sacramento e como condição para a recepção dos demais. Não há dúvida de que, com Jesus, foi assim que aconteceu. Mas o que se lê em Atos é que o Espírito desceu antes do batismo. A passagem lida na liturgia de hoje é uma confirmação disso. Parece-me que a tradição está colocada acima do exemplo bíblico.

Quero agora fazer uma alusão ao episódio inicial, em que Cornélio de prostra diante de Pedro e este manda que ele se levante, porque é tão humano quanto ele. Pois bem, percebe-se aí um ato inequívoco de Cornélio reconhecendo a autoridade de Pedro dentro da comunidade eclesial. E por outro lado, percebe-se também a atitude humilde de Pedro de não se considerar digno de que alguém se prostre diante dele, porque só se faz isso diante de Deus. Ora, com o passar dos tempos, na Idade Média, os bispos, sucessores dos apóstolos, não apenas gostavam disso, mas até exigiam isso dos subalternos. No tempo da Igreja mandatária, era comum que até os reis e rainhas se prostrassem diante do Papa. Essa atitude humilde de Pedro ficou esquecida por muito tempo, até ser resgatada pelo Concílio Vaticano II, que expressou isso na constituição Lumen Gentium. O bispo emérito de Blumenau, Dom Ângelo Sândalo, no jornalzinho O Domingo de hoje, destaca este fato, ele que foi um dos participantes do Concílio. O Concílio afirmou que a Igreja é o Povo de Deus. Isso veio terminar com aquela ideia de que a Igreja era composta somente pelo Papa, os Bispos e os Padres, ou seja, a Igreja das autoridades. O povo era apenas o 'rebanho' que seguia as ordens das autoridades. Diz o referido bispo: na Igreja, há profunda igualdade entre todos, o que nos diferencia são as vocações, os carismas, os serviços, os dons. Todos somos povo de Deus. Meus amigos, essa 'igualdade de todos' dentro da Igreja está em total coerência com o título desse meu comentário, sobre o Deus isonômico. Mas a realidade da vida eclesial, nas Dioceses e Paróquias, não evidencia tal igualdade, ao contrário, o sentido da autoridade ainda é o que predomina. De fato, essa isonomia total dentro da Igreja, distinguindo-se só pelas vocações, carismas, serviços e dons ainda se encontra apenas no papel. Sem os fiéis, no entanto, não existe Igreja-ekklesia-comunidade.

Que o Espírito ilumine sempre e cada vez mais as autoridades eclesiais e todos nós, para sermos coerentes com o que Ele espera de nós.


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 5º DOMINGO DA PÁSCOA – CRISTO, A PARREIRA – 06.05.2012



Caros Confrades,

A liturgia deste 5º domingo da Páscoa nos traz uma das parábolas mais conhecidas de Cristo, ao lado do Bom Pastor e do Bom Samaritano: a parreira e seus ramos. Ele é a parreira e nós somos os ramos (Jo 15, 1). Nesse contexto, a primeira leitura, retirada do livro dos Atos (At 9, 26) fala da conversão de Saulo, que depois passaria a se chamar Paulo. Vejamos de que modo esses dois temas se unem na liturgia deste domingo.

A parábola da parreira ou da videira só se encontra no evangelho de João, o que pode ter sido fruto da lembrança do próprio evangelista ou pode também ter sido uma fonte literária conhecida por ele e não pelos outros evangelistas. De todo modo, o exemplo da parreira reflete bem o amadurecimento da doutrina cristã na época em que João escreveu seu evangelho, por volta do ano 100 d. C. E se encaixa bem ainda na teologia joanina, exposta nas suas cartas, como se vê no texto da segunda leitura deste domingo (1 Jo 3, 18). Falar em parreira, para mim, significa uma grata recordação daquele jardim do Seminário de Messejana, que ficava entre o refeitório e o salão de estudo, onde havia uma grande parreira plantada. Várias vezes, eu vi o frei Daniel, irmão leigo que acho que todos conheceram, podando aqueles ramos e, em pouco tempo, estavam eles a brolhar novamente. E também tinha uma 'ciência' para adubá-la, porque não podia colocar o adubo diretamente sobre as raízes, mas com uma camada de terra separando. Muito tempo depois, em viagem ao Rio Grande do Sul, eu pude conhecer o que são grandes parreiras, que se espalham por onde a vista alcança, e então percebi que aquela pequenina parreira do nosso jardim era apenas uma imitação em miniatura do que ela representava.

Então, Cristo diz que Ele é a parreira e o Pai é o agricultor. E depois completa: eu sou a parreira (videira) e vós sois os ramos. Assim como é necessário que o ramo permaneça unido ao tronco da parreira para que produza frutos, também nós precisamos permanecer unidos a Cristo-tronco-da-parreira para que possamos produzir frutos de santidade. A imagem da parreira, usada por Cristo, era bem apropriada para a sua pedagogia das comunidades que viviam nas regiões ribeirinhas do Jordão, as quais eram terras mais férteis. Na sua alocução de hoje, na Praça de São Pedro, dirigindo-se aos peregrinos presentes em Roma, o Papa Bento XVI lembrou que “Muitas vezes, na Bíblia, Israel é comparada com a fecunda vinha quando é fiel a Deus; mas, se afasta-se Dele, torna-se estéril, incapaz de produzir aquele “vinho que alegra o coração do homem”, como canta o Salmo 104 (v.15) ” Portanto, Cristo se utiliza de uma imagem que era bem conhecida pelos judeus, pois já era utilizada desde o Antigo Testamento. Ele faz, então, uma atualização dessa imagem, deslocando a atenção para a pessoa d'Ele, que com sua encarnação, veio plantar no meio dos homens a árvore da nossa salvação, tornando-se o tronco ao qual nós devemos aderir, se quisermos nos salvar.

Nós não nascemos já agarrados no tronco da parreira, nós nascemos como ramos autônomos, que precisam ser enxertados no tronco, donde iremos receber a seiva da vida. É pelo batismo que somos enxertados nesse tronco vivo e nele devemos permanecer. E Cristo, pela pena do evangelista, nos diz textualmente: “Como o ramo não pode dar fruto por si mesmo, se não permanecer na videira, assim também vós não podereis dar fruto, se não permanecerdes em mim. ” (Jo 15,4) Porque todo ramo que, enxertado a Ele, não der fruto, o Pai o arrancará; e aquele que dá fruto, o Pai limpará, para que dê mais fruto ainda. Então, aqui se coloca uma pergunta: como fazer para, uma vez enxertados no tronco vivo, não sejamos ramos improdutivos, sujeitos ao corte certo? A resposta se encontra na carta de João, que lemos na segunda leitura.

Na Primeira Carta (3, 24), João complementa o que ele não escreveu no texto do evangelho, ensinando qual o modo de permanecermos como ramos vivos e produtivos: “Quem guarda os seus mandamentos permanece com Deus e Deus permanece com ele. ” Portanto, esta é a condição para que nós, ramos, permaneçamos enxertados na parreira e produzindo frutos. E quais são esses mandamentos a que João se refere? A resposta se encontra no versículo anterior (3, 23): “Este é o seu mandamento: que creiamos no nome do seu Filho, Jesus Cristo, e nos amemos uns aos outros, de acordo com o mandamento que ele nos deu. ” Ou seja, meus amigos, a condição para permanecermos atrelados a Cristo-parreira é a fé nele, que se expressa no amor aos irmãos. Não são duas coisas distintas, são duas atitudes que se complementam e, ao final, se transformam numa só. A fé que não se manifesta em obras é morta, portanto, não basta crer. E todo o que crê em Cristo, ama os irmãos, por quem Ele deu a Sua vida.

Aqui podemos fazer o gancho para a conversão de Saulo (Paulo), que se encontra narrada em detalhes no livro dos Atos dos Apóstolos. Tudo indica que Lucas, o escritor dos Atos, viajava com Saulo (Paulo) pelo mundo afora, porque ele sabia de todas as suas atividades em detalhes. Narra Lucas que Saulo estava presente no apedrejamento de Estêvão (um dos primeiros diáconos e o primeiro mártir do cristianismo), inclusive, foi Saulo quem segurou as roupas de Estêvão na hora do seu martírio. E depois disso, Saulo tornou-se perseguidor dos discípulos de Cristo. Mas Cristo precisava de uma pessoa com o temperamento dele e com o conhecimento dele, para consolidar os primeiros passos da Sua igreja, então, ele foi enxertado na parreira “à força”, quando Cristo o derrubou do cavalo e o chamou para a missão de evangelizar. A narrativa dos Atos lida neste domingo (At 9, 26) relata que Saulo chegou a Jerusalém e tentou se juntar aos discípulos, mas estes ainda tinham medo dele, porque o conheciam como feroz perseguidor e não acreditavam na sua conversão. Foi preciso que Barnabé advogasse em favor de Saulo e testemunhasse todo o processo de mudança ocorrido em sua pessoa, para que os discípulos então acreditassem e o aceitassem.

Pouco depois, Barnabé foi encarregado de dar assistência à igreja de Antioquia, onde havia uma grande comunidade cristã, e então convidou Saulo para ir com ele. Foi nesta ocasião que Saulo decidiu trocar seu nome para Paulo. Os estudiosos não são unânimes na explicação do por que Saulo tomou essa decisão, mas a razão mais provável deve ter sido para que a mudança de nome representasse externamente a sua mudança íntima, a sua conversão, e ele queria que isso ficasse bem notório para todos. O nome Saulo é judeu, o nome Paulo é romano. O nome Saulo tem a mesma raiz do nome do rei Saul, primeiro rei de Israel, que perseguiu Davi. Ora, Cristo era descendente de Davi e Saulo não era mais um perseguidor. Além disso, era costume que os judeus convertidos mudassem seu nome judaico para um nome grego ou romano. No caso, havia um oficial do exército romano, a quem Saulo admirava, que se chamava Paulus, pois pertencia à família dos Pauli. Pode ter sido então uma forma de, ao mesmo tempo, assumir um nome romano e homenagear um amigo. O que mais importa, porém, é que a mudança do nome estava refletindo a sua mudança interior. E diz Lucas, em Atos (11, 26), que Barnabé e Paulo passaram um ano inteiro pregando e dando assistência à igreja de Antioquia e “Em Antioquia os discípulos foram, pela primeira vez, chamados com o nome de cristãos. ” Temos aí também a origem do nome de 'cristãos' atribuída aos seguidores de Cristo.

Paulo é o exemplo mais eloquente de um ramo estranho, enxertado na parreira, e que se tornou ramo frondoso e produtivo. Que o exemplo dele nos inspire a permanecer unidos à parreira-Cristo, sendo fiéis ao ensinamento de João (guardar os mandamentos) e produzindo frutos para a nossa própria salvação e para a salvação dos irmãos.


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO DA PÁSCOA – O BOM PASTOR – 29.04.2012


Caros Confrades,

Neste 4º domingo da Páscoa, a liturgia nos traz a conhecida imagem do Bom Pastor (Jo 10, 11). Juntamente com a figura do Bom Samaritano, são duas das imagens bíblicas mais conhecidas pelo nosso povo. Os Confrades que moraram em Parnaíba devem recordar-se que lá existe um nicho com uma grande imagem de Maria homenageada sob o título de Divina Pastora. Eu nunca vi essa devoção em outros lugares por onde passei. E até mesmo lá em Parnaíba eu ouvi alguns frades dizerem que este não é um título reconhecido para Nossa Senhora, que devia ser invenção de alguém; no entanto, aquela imagem não foi confeccionada lá, portanto, deve haver réplicas dela em outras paragens.

A comparação do Messias com o Bom Pastor é uma analogia bastante significativa para o povo de Israel, que tinha considerável parte de sua economia baseada no pastoreio, herança ainda dos tempos nômades no deserto. Jesus utilizava, na sua pedagogia catequética, as imagens conhecidas pelas pessoas da região, preferencialmente, a do pescador-peixe e do pastor-ovelha. Em diversas ocasiões, ele usou figuras e ações ligadas à profissão do pescador para associar com a missão do cristão; outras vezes, o tema foi a figura do pastor, como no caso da leitura deste domingo. E ainda faz uma referência indireta a nós, os gentios, que não somos da cultura judaica, dizendo que existem outras ovelhas que ainda não pertencem a este rebanho, a estas eu também devo conduzir, porque haverá um só rebanho e um só pastor. A nossa vivência cristã atual é a realização dessa profecia de Jesus, ao anunciar a universalidade da sua doutrina.

Este tema é retomado na primeira carta de João (1Jo 3,2), quando ele diz que “desde já somos filhos de Deus, mas nem sequer se manifestou o que seremos!”. Eu entendo que João quer afirmar que, por ora, mesmo sendo pecadores e frágeis, já temos esse dom de sermos chamados 'filhos de Deus', o que será realizado em plenitude quando Jesus se manifestar em nós, porque então seremos semelhantes a ele. Penso que aqui João está se referindo explicitamente à nossa ressurreição, quando morrermos em Cristo e formos com ele ressuscitados. É como se a situação atual fosse uma antecipação do que acontecerá no futuro, para que, através do nosso testemunho, outras pessoas possam também acreditar em Jesus, filho de Deus.

Coerente com este mesmo tema é a primeira leitura, retirada do livro dos Atos dos Apóstolos (At 4,8), que relata um discurso de Pedro perante os membros do Sinédrio judaico, em mais um interrogatório pelo qual passavam, por estarem realizando milagres em nome de Jesus, depois de terem sido proibidos de fazer isso. No domingo passado, fiz referência aqui ao discurso de Gamaliel no Sinédrio, quando Pedro e João eram interrogados por estarem pregando o cristianismo, fazendo uma defesa indireta deles. Nas leituras litúrgicas do meio da semana, foram lidos diversos trechos do livro dos Atos, sempre referindo-se a ações miraculosas feitas pelos apóstolos, logo após a ressurreição de Cristo. Foi o caso de um homem chamado Enéias, que era paralítico e estava acamado fazia 8 anos e Pedro o curou, da mesma forma como Jesus curara outro paralítico, e este também saiu andando e carregando a cama na qual jazia pouco tempo antes. Outro milagre de Pedro foi a ressurreição de uma mulher caridosa, chamada Tabita. A morte dela causou grande comoção na comunidade, porque ela fazia muito bem aos pobres, que lamentaram o fato. Pedro estava na cidade e foi avisado e, dirigindo-se até lá, orou pedindo a Jesus que a ressuscitasse, e isso aconteceu. E diz o texto: todos ficaram maravilhados e muitos habitantes creram em Jesus.

Pedro, cheio de coragem, encarou os anciãos e os chefes do povo no tribunal e disse sem meias palavras: nós estamos sendo perseguidos porque fazemos o bem, pois saibam que fazemos isso em nome daquele Jesus que vós matastes... Imaginemos a cena: Pedro um pescador, uma pessoa rude e sem instrução, falando diante dos mestres e doutores da lei, os donos da sabedoria de Israel. Cumpriu-se aí literalmente aquilo que Jesus predissera, que eles não se preocupassem com o que iriam dizer, porque o Espírito falaria através deles. E o curioso é que Pedro utiliza uma imagem que Jesus havia ensinado aos apóstolos, sobre a pedra angular rejeitada pelos construtores.

Jesus era verdadeiramente um grande pedagogo. O conceito da pedra angular não era propriamente da cultura judaica, mas da engenharia romana, que naquela época era dominante no território da Palestina. Todos conhecem as famosas arcadas de Roma, fruto da engenhosa arte dos construtores romanos que, antes da existência do concreto armado com ferro, conseguiam fazer vãos enormes que se auto sustentavam, pela colocação de uma pedra em formato triangular bem no centro, equilibrando o peso dos semiarcos laterais. Em qualquer foto das construções da Roma antiga é possível ver a sua presença, e a sua importância decorre do fato de que, se ela fosse retirada, toda a construção iria abaixo. Jesus traz para a sua pedagogia uma imagem importada, que não era nativa da cultura judaica, mas que já se tornara bastante conhecida, por causa da prolongada presença dos romanos na região. E Pedro repete este conceito perante os mestres da lei e chefes do povo, reforçando o seu discurso.

E Pedro fecha o seu discurso com uma afirmação que é muito cara aos nossos 'irmãos separados' (termo cunhado pelo Papa João XXIII) para criticarem dos católicos por causa da devoção a Maria e aos santos, que muitas vezes supera a figura de Cristo. O nosso Confrade Bosco, em diversas mensagens, já enfatizou essa característica do catolicismo. Diz Pedro: (At 4, 12) ”em nenhum outro há salvação, pois não existe debaixo do céu outro nome dado aos homens pelo qual possam ser salvos”. Nenhum de nós desconhece este viés devocional, que a catequese tradicional tem contribuído para levar ao exagero, assim como todos nós temos de reconhecer que os 'irmãos separados' estão com a razão ao criticarem o devocionismo exagerado. Enquanto os templos são repletos de diversas imagens de Maria e de cristãos canonizados, a lembrança da presença real de Cristo é simbolizada apenas por uma pequenina luz vermelha, em algum canto do presbitério. Isso, quando não fica em uma nave lateral ou em outro local ainda mais escondido. Não se nega o valor da missão de Maria nem dos testemunhos de vida dos cristãos elevados à honra dos altares, no entanto, em vez de servirem apenas como mediação para a figura de Cristo, eles terminam se transformando no próprio alvo da devoção. E não é raro vermos pessoas que, durante a missa, estão a rezar o terço, denotando esse tradicional costume de subestimar o ato litúrgico essencial, substituindo-o por devoções privadas. “Em nenhum outro há salvação”, continua repetindo Pedro nos nossos dias. Só há um Bom Pastor, aquele a quem as ovelhas ouvem a voz e seguem. Na nossa transformação, Cristo se manifestará em nós e seremos semelhantes a ele. Sem desmerecer a virtude e o exemplo dos cristãos que se destacaram na autenticidade da fé e na vivência da caridade, a pessoa de Jesus Cristo deve ser sempre o centro da nossa atenção primordial, não podemos deixar para nos lembrarmos d'Ele somente na semana santa e na Páscoa.


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 3º DOMINGO DA PÁSCOA – O MILAGRE NO CENÁCULO – 22.04.2012



Caros Confrades,

A liturgia deste terceiro domingo da Páscoa relata a primeira aparição de Cristo aos apóstolos, após a ressurreição, deixando-os assustados e medrosos, pensando estarem vendo um fantasma. O relato está no evangelho de Lucas (24, 35) e é a sequência do texto do ano anterior, quando lemos o episódio do diálogo de Jesus com os discípulos que iam para Emaús.

No ano passado, eu fiz um comentário sobre esse tema, até lembrando que na Igreja de São Francisco, em Sobral, há um grande painel com esta cena, por trás do altar mor. O texto de Lucas relata que, logo após eles terem percebido que era Jesus, ao partir do pão, imediatamente eles voltaram para Jerusalém, a fim de contar aos outros a experiência deles. Se nós considerarmos que eles haviam caminhado o dia inteiro para chegar naquela localidade e voltaram dali logo em seguida ao reconhecimento de Jesus, deveremos concluir que eles chegaram de volta a Jerusalém por volta amanhecer, isto é, passaram a noite caminhando em retorno.

Ao chegarem a Jerusalém, foram direto encontrar-se com os demais para contar o ocorrido e (diz Lucas em 24, 36), ainda estavam falando quando o próprio Jesus apareceu no meio deles, dizendo: a paz esteja convosco. Eles tomaram aquele susto. Imaginem que tem alguém nos contando uma história sobre ter visto uma pessoa falecida e, no meio da conversa, aquela pessoa aparece, como seria a nossa reação. Foi o susto tomado pelos apóstolos ao verem Jesus. Maria Madalena já havia contado que o tinha visto, mas eles ficaram duvidosos; agora os dois contavam uma história parecida e, de repente, ali está Ele. Então, diante do estado de choque deles, para amenizar as coisas, Jesus fez seu primeiro milagre após a ressurreição, qual seja, mostrou-se palpável (vejam aqui as chagas nas minhas mãos e pés... tende alguma coisa para comer?), ou seja, deixou que eles o tocassem e comeu peixe frito diante deles. E ainda disse: “um fantasma não tem carne nem ossos como estais vendo que eu tenho” (Lucas 24, 39).

Onde está o milagre aqui? Está na condição de corporalidade palpável em que Jesus se mostrou para os apóstolos. Ora, se ele tivesse carne e ossos e se ele necessitasse de comer, não estaria com o seu corpo espiritualizado, característica da sua ressurreição. O corpo material de Jesus se evaporou ao ressuscitar, deixando apenas a marca no lençol (o sudário). Se seu corpo continuasse material, ele não poderia entrar no salão estando as portas fechadas. Porém, na primeira vez, para que os apóstolos tivessem certeza da sua identidade, Jesus fez este milagre transformando-se momentaneamente em um ser sensível, era (como de fato foi) um argumento impossível de não ser aceito. “Sou eu, vejam aqui.” Nas demais vezes em que Jesus apareceu, não foi mais preciso recorrer a esse prodígio, porque os apóstolos já não mais ficavam temerosos quando o reconheciam.

Um fato curioso, relacionado com esse episódio, é que o espiritismo se baseia nessas narrativas para fundamentar sua doutrina de que, logo após a morte, a pessoa não vai imediatamente para o 'outro lado', mas ainda fica vagando por algum tempo, até partir definitivamente. Porém, não foi isso que aconteceu com Jesus, ele não ficou vagando por aí. As suas aparições tinham como objetivo completar a formação doutrinária dos apóstolos, recordar-lhes os ensinamentos e associar os fatos da sua morte e ressurreição com os oráculos dos profetas, para que eles compreendessem melhor as escrituras e pudessem dar melhor testemunho de tudo. É como se ele dissesse: lembram quando eu disse isso? Pois foi o que aconteceu, segundo os profetas haviam anunciado. Agora aqui estou eu, ressuscitei conforme prometi. Se não fosse essa 'segunda chamada' da pedagogia de Jesus, os ensinamentos de antes teriam ficado esquecidos, pois os apóstolos eram homens rudes, não acostumados a leituras e estudos. Jesus ainda precisou arrebatar Paulo para ser o grande doutrinador, mesmo sem tê-lo conhecido pessoalmente, porque sabia que se dependesse apenas dos galileus, a sua Igreja não tinha chance de seguir adiante. Assim, Jesus passou quarenta dias fazendo a reciclagem, aulões de reforço, demonstrações fantásticas, para que assim eles se firmassem na fé. Nenhum dos evangelistas relata que Jesus tenha perguntado a Pedro porque o negara diante dos palacianos, pois Jesus sabia que o conhecimento deles ainda era muito superficial, era necessário um aprofundamento, uma revisão geral. Quando, por fim, receberam o Espírito, então estavam preparados pro que desse e viesse, foi o que aconteceu.

Nas leituras da liturgia diária da semana que passou, foram lidos vários trechos dos Atos dos Apóstolos, relatando as primeiras pregações dos apóstolos, as prisões que eles sofreram, as chicotadas e a perseguição dos fariseus e saduceus, proibindo-os de falar em nome de Jesus. Quanto mais eles eram proibidos de falar, mais falavam. Eram já os primeiros frutos da catequese final de Jesus. Na leitura da quarta feira (Atos 5, 17), consta que os saduceus encontraram alguns apóstolos pregando na cidade e mandaram prendê-los. No outro dia, convocavam o Sinédrio, que era o supremo tribunal dos judeus, comandado pelo Sumo Sacerdote, e mandaram buscar os apóstolos na prisão, para processá-los e julgá-los. Qual não foi a surpresa deles quando os soldados voltaram informando que as grades estavam fechadas, mas os apóstolos não estavam lá. Diz o hagiógrafo que, durante a noite, um anjo do Senhor os havia libertado. Podemos imaginar a raiva com que ficaram os saduceus e o desapontamento dos sacerdotes, ansiosos para condenar os seguidores de Jesus.

Na leitura dos Atos da quinta feira da semana passada, há o relato de uma sessão de julgamento dos apóstolos perante o Sinédrio, por causa da desobediência deles que continuavam falando em nome de Jesus (Atos 5, 28), quando Pedro muito inspirado disse: devemos obedecer antes a Deus do que aos homens. E os sacerdotes queriam também mandar matá-los. E na leitura de sexta feira, dando sequência (Atos 5, 34), temos o centrado discurso de Gamaliel, que era mestre da lei e membro do Sinédrio, dizendo: 'deixai esses homens irem embora, porque se o projeto deles for obra humana, daqui a pouco se acaba, mas se for obra divina, vós não conseguireis detê-los.' E o seu conselho foi seguido pelo Sinédrio.

Deste discurso de Gamaliel, pode-se tirar duas conclusões: 1. era comum naquela época aparecerem pessoas se dizendo serem o “messias”, como ele dá exemplo de dois – um chamado Teudas e outro chamado Judas, o galileu (Atos 5, 36-37), ambos foram mortos e seus seguidores desapareceram, portanto, visto que os sacerdotes achavam que Jesus, também galileu, seria mais um desses, em pouco tempo seus seguidores iriam desaparecer; 2. por detrás desse 'conselho' de Gamaliel, também é possível perceber que ele era admirador secreto de Jesus, porém, não podia manifestar-se, assim como Nicodemos e José de Arimatéia, que só se encontravam com Jesus às escondidas. Através do conselho de 'deixar os apóstolos irem embora', Gamaliel estava, com sábia argumentação lógica e jurídica, ao mesmo tempo, querendo livrar os apóstolos daquela incômoda situação e ainda insinuando que a obra deles era de origem divina e que as perseguições não iriam detê-los.

Naquele momento histórico, o cristianismo nascente ainda se encontrava em Jerusalém. Depois, com a conversão de Paulo e com a adesão dos gentios, cidadãos romanos, Pedro transferiu-se para Roma, que era uma cidade muito mais influente em toda a região, onde era necessário congregar e organizar as numerosas comunidades que estavam se formando. Na verdade, Pedro estava seguindo a ordem de Jesus, que consta em Lc 24, 47: “e no seu nome, serão anunciados a conversão e o perdão dos pecados a todas as nações, começando por Jerusalém. Vós sereis testemunhas de tudo isso”. Por extensão, somos nós hoje as testemunhas daquelas verdades anunciadas por Jesus.