domingo, 27 de maio de 2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO - DOMINGO DA SANTÍSSIMA TRINDADE - 27.05.2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO – DOMINGO DA SANTÍSSIMA TRINDADE – 27.05.2018

Caros Leitores,

Celebramos hoje a festa litúrgica da Santíssima Trindade, encerrando o núcleo temático do tempo pascal. A partir do próximo domingo, retornam os domingos do tempo comum até a festa de Cristo Rei, quando se encerra o ano litúrgico. O dogma da Santíssima Trindade ocupa o ponto central de toda a fé cristã, ponto de convergência de todas as demais verdades teologais. Por isso, esta solenidade se coloca no ponto final da catequese litúrgica anual, que tem início no advento, prossegue com a paixão-ressurreição, depois, ascensão e pentecostes, todos esses eventos anteriores fazem a corrente preparatória para o desfecho na celebração da Trindade.

Nos tempos atuais, existe uma resistência às verdades dogmáticas, isto é, aquelas que nunca mudam. Então, chamemos de “o grande mistério do cristianismo”, pois não há similar em nenhuma outra religião, a Divindade que é, ao mesmo tempo, una e trina. Algumas religiões antigas (Egito, Índia) apresentam trilogias de deuses, mas em nenhuma delas existe a trindade-unidade, a divindade ao mesmo tempo trina e una, essa figura só existe no cristianismo. E lembrando-nos de que a palavra mistério significa “revelação”, um conhecimento que não seria alcançado apenas com os recursos da razão humana e que só é possível de obter se alguém revelar. Pois esta verdade da nossa fé somente veio a ser conhecida através da revelação de Cristo, quando ele por várias vezes explicou aos discípulos que Ele e o Pai são um só e que, depois dele, virá o Paráclito, o consolador, o mentor que vem confirmar e esclarecer todas as verdades ensinadas, para que não pairem dúvidas sobre elas. Através do Espírito, Jesus prometeu permanecer conosco todos os dias, até o fim do mundo. (Mt 28, 20). Na antiga Torah dos hebreus, não existia ainda a Trindade, pois não havia sido revelada.

Na primeira leitura deste domingo, retirada do livro do Deuteronômio (4, 32-40), lemos o discurso de Moisés ao povo hebreu, ensinando: “ grava-o em teu coração, que o Senhor é o Deus lá em cima do céu e cá embaixo na terra, e que não há outro além dele.” (Dt 4, 39) Moisés e os patriarcas do Antigo Testamento não conheceram a Trindade. Para eles, havia somente Javeh, que fez com eles uma aliança e se mostrou fiel sempre com grandes sinais e prodígios. Mas Javeh, esse Deus onipotente, cujo nome os hebreus não pronunciavam com receio de invocá-lo em vão e provocar a sua ira, tinha a voz igual ao trovão e era ciumento e vingativo com os deslizes do seu povo. O Senhor dos exércitos (em hebraico transliterado para o latim: Deus sabaoth, como antigamente se cantava no Sanctus), era terrível e mais poderoso do que uma tropa treinada para o combate, implacável, invencível e inevitável, essa era a imagem que dele tinham os hebreus. Então, veio Jesus e disse: vocês estão enganados, vocês estão transferindo para Deus a imagem dos seus reis insensíveis e prepotentes. O Pai não é assim, o Pai é amor. Isso foi uma reviravolta tão enorme e inesperada na crença dos hebreus, que eles nunca conseguiram assimilar e compreender. Jesus desenhou para eles uma imagem de Deus totalmente diferente daquela da tradição hebraica, os hebreus não conseguiram absorver tamanho choque de ideias e não acreditaram. Viram e não creram.

A primeira manifestação da Trindade, de acordo com a Escritura, ocorreu no batismo de Jesus no Jordão, quando ouviu-se a voz do Pai e o Espírito Santo se tornou visível em forma de pomba. Evidentemente, naquela hora, ninguém entendeu do que se tratava. Foi no dia a dia da sua vida de pregador que Cristo aos poucos foi ensinando aos apóstolos esta novidade. Essa foi a lição mais difícil de todas que Jesus ensinou a eles, não lhes entrava na cabeça pouco afeita a raciocínios profundos. Somente Paulo, com a sua cultura filosófica grega, foi capaz de melhor compreender essa doutrina e explicá-la nas suas cartas. Na segunda leitura de hoje, lemos a explicação que Paulo fez aos cristãos de Roma (Rm 8, 14-17): “Todos aqueles que se deixam conduzir pelo Espírito de Deus são filhos de Deus.E, se somos filhos, somos também herdeiros, herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo.” E na primeira carta aos cristãos de Corinto, ele dá essa mesma lição, com outras palavras (1Cor 12, 3): “Portanto, vos quero fazer compreender que ninguém que fala pelo Espírito de Deus diz: Jesus é anátema, e ninguém pode dizer que Jesus é o Senhor, senão pelo Espírito Santo.” Com palavras simples e excelente didática, Paulo foi aos poucos transmitindo aos cristãos das diversas comunidades essa verdade fundamental, que chegou até ele por revelação de Cristo, na sua conversão, diretamente com certeza, pois os outros apóstolos não saberiam repassar-lhe tão elevado conhecimento. E as cartas de Paulo foram fundamentais para a formulação da verdade teológica da Trindade, ainda nos primeiros séculos do cristianismo, época em que havia muitas divergências e falsos entendimentos doutrinários.

O esclarecimento da doutrina da Trindade se deu na discussão sobre o arianismo, no século IV d.C. Destacou-se nesta luta o Bispo de Alexandria, Santo Atanásio, considerado o autor de um poema-declaração de fé, no qual elenca as principais verdades do cristianismo, proclamando contra Ario e seus seguidores a identidade divina das três pessoas trinitárias. Seu ensinamento consistente e bem definido serviu de fundamento para a elaboração do “símbolo dos Apóstolos”, o Credo, que ainda hoje é recitado nas missas, e que foi oficialmente aprovado no Concílio de Niceia, em 325 d.C. O Pai criou todas as coisas, mas o Filho não foi criado e sim gerado. Essa distinção conceitual é importante porque indica que há uma diferença entre as coisas criadas (que não são iguais ao criador) e o Filho gerado, que é igual ao Pai. E o Espírito procede do Pai e do Filho, sendo também igual a ambos, e foi Ele quem falou pelos profetas, mesmo que esses não soubessem disso e mesmo que o povo hebreu nunca tenha percebido isso. As formulações precisas e coerentes de Santo Atanásio fazem dele uma figura venerável em todas as tradições cristãs ortodoxas e romana, sendo ele considerado o pai da ortodoxia.

Então, nós tomamos conhecimento desse mistério trinitário pela pregação de Cristo. A revelação disso é uma liberalidade de Deus ao ter aberto seu cofre de segredos para nós, através dos ensinamentos de Cristo. E a compreensão dessa verdade só se tornou possível por meio da ação do Espírito, que inspira a Igreja e que habita em nós, que o recebemos pela transmissão outorgada aos apóstolos por Cristo. No evangelho de Mateus, lido hoje (28, 16-20), lemos a última recomendação-determinação de Jesus, antes de retornar definitivamente para o seio do Pai: “'Toda a autoridade me foi dada no céu e sobre a terra. Portanto, ide e fazei discípulos meus todos os povos, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, e ensinando-os a observar tudo o que vos ordenei!” Foi na sequência desse mandato que a fé cristã chegou até nós, que agora podemos estar refletindo e acreditando nesses sábios ensinamentos. No início da vida pública de Jesus, ao ser batizado no Jordão, revelou-se pela primeira vez a Trindade divina. E agora, na sua despedida, ele novamente faz presente a Trindade, através da ordem batismal em nome das três pessoas divinas. A Trindade percorre, desse modo, toda a missão salvífica de Cristo, formando a linha mestra de toda sua catequese, e é por isso que a verdade de fé da Trindade Santa é a verdade central e fundamental do cristianismo.

Meus amigos, reflitamos: um Deus em três pessoas, sendo cada pessoa um Deus inteiro, mas sem perder a unidade. Na nossa experiência corporal, jamais essa realidade poderia ser alcançada somente com as nossas potências racionais. Os discípulos só entenderam isso depois de Pentecostes, quando o Espírito veio confirmar todos os ensinamentos de Cristo e os transformou em doutores. O apóstolo Paulo começou a desvendar esse mistério nas suas cartas, ao passo que a necessidade catequética exigia dele a busca de palavras adequadas para explicá-la de forma simples. A teologia somente veio a consolidar essa verdade muitos anos mais tarde, no Concílio de Niceia. Atualmente, os teólogos simplificam a exposição dessa doutrina, dizendo que a Palavra (Verbo) de Deus é tão poderosa que se transforma em outra pessoa divina. E o amor do Pai pelo Verbo é tão enorme que se torna outra pessoa divina, o Paráclito (assistente, advogado). Três pessoas, mas um só Deus.

Tenhamos sempre em mente essa verdade ao nos persignarmos, para que esse não seja apenas um ato mecânico e automático, mas uma demonstração da fé de que a Santíssima Trindade está presente em nós.

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sábado, 19 de maio de 2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO - DOMINGO DE PENTECOTES - 20.05.2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO – DOMINGO DE PENTECOSTES – 20.05.2018 – ESPÍRITO DE UNIDADE

Caros Leitores,

O domingo de Pentecostes encerra o tempo pascal. Entre o domingo da Ressurreição e o domingo de hoje, a liturgia rememora o período em que Jesus ressuscitado continuou aparecendo e fortalecendo a catequese dos apóstolos, reforçando a preparação deles para a missão de evangelizar. A doutrina teológica considera o evento de Pentecostes como a fundação oficial da igreja de Cristo, dada a repercussão que o fato teve na cidade de Jerusalém, atraindo grande número de moradores e visitantes para a casa onde estavam os apóstolos e que fora alvo de um de grande ruído e tremor. Havia muita gente em Jerusalém nesse dia, porque era uma festa tradicional dos judeus, a Shavuot, que é celebrada também cinquenta dias após a Páscoa e representa o dia em que Javeh outorgou a Moisés as tábuas da lei (os dez mandamentos). A festa judaica é celebrada ainda nos dias de hoje, portanto, é uma festa multimilenar.

Tal como a festa da Páscoa não foi inventada pelo cristianismo, pois ela já existia desde tempos imemoriais, também a festa de Pentecostes era uma festividade tradicional dos judeus, muito anterior ao cristianismo. Ocorre que Cristo aproveitou essas festas que congregavam multidões para conferir-lhes um novo sentido. Assim, depois de Cristo, a Páscoa não é mais a mesma nem Pentecostes é mais o mesmo. A ressurreição de Cristo e a vinda do Espírito se deram no contexto celebrativo dessas festas para que, na infinita sabedoria de Deus, mais pessoas pudessem ter contato com esses fatos marcantes da história da salvação e assim houvesse uma maior divulgação da mensagem de Cristo. Tem ainda a característica de agregar pessoas de diversas nacionalidades, que vinham até Jerusalém a fim de participarem dessas festas, desse modo a pregação dos apóstolos no dia de Pentecostes foi ouvida e admirada por um grande número de estrangeiros presentes em Jerusalém, não apenas por judeus. Esses estrangeiros estavam ali para a celebração do Shavuot tradicional, o 50º dia da Páscoa, mas a vinda do Espírito transformou essa antiga festa em Pentecostes, dando a ela um novo significado. Este novo evento foi testemunhado por todos e marcado indelevelmente pelo milagre da poliglossia (a multiplicação das línguas). De acordo como relato de Lucas, nos Atos dos Apóstolos, todos os presentes testemunharam aquele milagre: cada um dos estrangeiros ouviam a Palavra de Deus em sua própria língua. Não porque os Apóstolos tivessem, de repente, se tornado poliglotas, eles continuavam sendo os pescadores semianalfabetos de antes, mas pela ação do Espírito, as palavras por eles pronunciadas, em seu idioma natural (eles falavam aramaico), os ouvintes ouviam 'como se' eles estivessem falando a língua deles. Lucas dá uma pequena amostra das diversas etnias e procedências daqueles ouvintes: “partos, medos e elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Judeia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frígia e da Panfília, do Egito e da parte da Líbia, próxima de Cirene, também romanos” e mais cretenses e árabes, judeus e prosélitos. O fato de todos ouvirem a mensagem de Cristo na própria língua confirma a universalidade do cristianismo e corrobora a missão dada por Cristo aos apóstolos no sentido de que pregassem o evangelho a todos os povos.

Meus amigos, o vocábulo “espírito” usado no nosso idioma não dá a dimensão mais exata do termo grego original “pneuma”, traduzido em português por “espírito” à falta de uma palavra melhor. Com efeito 'pneuma' é o sopro vital, o hálito, a respiração. A palavra 'espírito', chegada até nós através do latim 'spiritus', não tem essa mesma abrangência semântica. Ao receberem o 'pneuma', os Apóstolos ganharam um novo sopro vital, uma nova energia, um novo alento. Eles superaram a timidez inicial e adquiriram uma invejável coragem a ponto de darem a própria vida em testemunho de Cristo. Durante toda a semana passada, as leituras litúrgicas, sempre tiradas de Atos, mostravam as tribulações, as humilhações, as prisões, as condenações dos apóstolos por causa da sua pregação no meio dos judeus. Foi o Espírito que transformou aqueles pescadores de peixes em pescadores de homens, conforme Cristo havia prometido. O Espírito confirmou isso.

Na leitura do evangelho, extraído de João 20, 22, lemos que Jesus “soprou sobre eles e disse: 'Recebei o Espírito Santo. A quem perdoardes os pecados, eles lhes serão perdoados; a quem os não perdoardes, eles lhes serão retidos' ”É curioso o fato de João não se referir às línguas de fogo, logo ele que era um dos presentes no Cenáculo naquele dia memorável de Pentecostes. João relata de um modo diferente o recebimento do Espírito pelos Apóstolos: foi um 'sopro' de Cristo sobre eles. Sopro é exatamente um 'pneuma'. Soprando, Cristo conferiu aos Apóstolos o Espírito (Pneuma), que tinha como objetivo nesta ocasião, a transmissão do poder de perdoar. O Papa Francisco, como sempre nos surpreendendo, no sermão para os peregrinos presentes na Praça de São Pedro, em Roma, explicou que os apóstolos receberam duas vezes o Espírito. A primeira, foi na tardinha do mesmo domingo da ressurreição, quando Jesus apareceu e soprou sobre eles, de acordo com o relato de João. Essa foi uma forma privada. A segunda vez foi de uma forma pública. Depois de subir ao céu, Jesus pediu aos apóstolos que não se ausentassem de Jerusalém e aguardassem porque, dentro de poucos dias, eles receberiam a confirmação de tudo o que haviam aprendido, através da vinda solene do Espírito do Pai. E assim deu-se naquele domingo da festa judaica de Shavuot, com grande alarde de modo a chamar a atenção de muitos, a descida do Espírito. Maria estava com eles naquele evento histórico que marca o início oficial da Igreja de Cristo, significando assim o papel fundamental de Maria como mãe da Igreja, conforme é celebrado na teologia e na liturgia.

Então, como lemos em João 20, 22, é através da transmissão do Espírito que Cristo dá aos Apóstolos o poder de perdoar os pecados, sendo este relato de João o fundamento teológico do sacramento da penitência. Portanto, quando o padre confere a absolvição ao pecador que confessa e se arrepende de seus pecados, na verdade, é o Espírito que confere o perdão. E por que o Espírito é o vetor do perdão? Porque o Espírito é o Amor de Deus. Deus é tão infinitamente enorme que a sua Palavra, poderosíssima, se converte em uma outra Pessoa divina, o Filho; e o Amor de Deus é tão desmedido e poderosíssimo que se converte em outra Pessoa divina, o Espírito. Então, o arrependimento é o sintoma do amor. Quem não se arrepende, é porque não ama, e a esses os pecados não serão perdoados, ficarão retidos. É o Amor do Pai, em forma de Pessoa divina, que nos reinsere no convívio com Ele, quando nos arrependemos, isto é, quando nos abrimos ao Amor de Deus. E ninguém ama a Deus se não ama também o próximo. Portanto, não basta o amor a Deus, mas esse amor tem que se replicar no amor dos irmãos. A falta de amor é a essência da falta de arrependimento e essa atitude bloqueia o Amor de Deus, que não consegue penetrar o coração de quem não ama, para livrá-lo das culpas, por isso, os pecados de quem não se arrepende ficam retidos, permanecem consumindo o pecador, escravizando-o.

Na leitura da primeira carta aos Coríntios (1 Cor 12, 3) Paulo faz uma exposição bastante didática sobre a ação do Espírito enquanto amor do Pai quando afirma que não existe apenas uma forma de amar, mas diversas formas válidas. “Há diversidade de dons, mas um mesmo é o Espírito. Há diversidade de ministérios, mas um mesmo é o Senhor. Há diferentes atividades, mas um mesmo Deus ” (1 Cor 12, 4-5). São os carismas e os dons próprios de cada pessoa, que são inerentes à sua natureza mas são potencializados com a presença e a ação do Espírito. Houve uma época em que a teologia afirmava que somente na Igreja Católica se realizava a verdadeira comunhão com Cristo. Mas com o advento das doutrinas ecumênicas, embora a doutrina continue afirmando que a 'ekklesia' tutelada pelo sucessor de Pedro seja a genuína, no entanto, reconhece que as diversas comunidades que vivenciam os ensinamentos de Cristo formam uma grande 'comum unidade', porque o Espírito é um só. Se ninguém pode dizer “Jesus é o Senhor” senão no Espírito, concluímos que todos aqueles que professam sua fé em Cristo de modo legítimo, através do seguimento de sua doutrina e do cumprimento de seus mandamentos, fazem isso por obra do mesmo Espírito. E mesmo aquelas pessoas que não professam publicamente uma fé religiosa, mas que agem de acordo com os valores éticos e humanos, também estes, mesmo sem saber, estão na comunhão do Espírito.


terça-feira, 15 de maio de 2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO - ASCENSÃO DO SENHOR - 13.05.2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO – DOMINGO DA ASCENSÃO - A ELEVAÇÃO DE JESUS– 13.05.2018

Caros Confrades,

Neste domingo, celebramos a festa da Ascensão do Senhor. Convém lembrar que o dia litúrgico próprio é na quinta feira passada, dia 15, quando se completaram os 40 dias após a ressurreição. Segundo o testemunho de Lucas, nos Atos (1, 3): Durante quarenta dias, apareceu-lhes falando do Reino de Deus. E convém sempre lembrar também que a simbologia do número 40, repetida em diversas passagens da Escritura, não significa que a ascensão de Jesus tenha sido exatamente 40 dias de calendário após a ressurreição. Na verdade, Jesus passou um tempo fazendo uma espécie de reciclagem com os apóstolos, recordando as lições transmitidas na sua pregação e confirmando com prodígios perante eles, de modo a fortalecer-lhes sempre mais a fé. Jesus sabia que eles eram homens rudes e não tinham assimilado bem a catequese estudada no período de três anos. Por isso, foi necessário esse “reforço escolar”, como se faz com os alunos que têm dificuldade de aprendizagem.

Na primeira leitura, temos o relato de Lucas, nos Atos dos Apóstolos, contando detalhadamente a ocorrência da despedida de Jesus. Depois daqueles dias de aulas de reforço, Jesus compreendeu que estava concluída a sua missão e pediu para os apóstolos que não se afastassem de Jerusalém, porque em breve eles iriam ser batizados com o Espírito, conforme a promessa do Pai. Eu fico imaginando a sua decepção quando um dos apóstolos, naquele momento, ainda perguntou se era agora que ele iria restaurar o reino em Israel... Acho que foi por isso que Jesus resolveu chamar Saulo e operar o milagre de sua conversão. Com aquele grupo de pescadores, a pregação do evangelho não teria ido muito além de algumas cidades do Oriente Médio. Jesus Cristo respondeu a essa ingênua pergunta de forma gentil e ao mesmo tempo enigmática: não vos cabe saber o dia nem a hora que o Pai determinou. E novamente confirmou a promessa da vinda do Espírito, que lhes traria o verdadeiro 'conhecimento' da doutrina, tal como dirá depois Paulo, na carta aos Efésios, que está na segunda leitura de hoje (Ef 1, 17): o Pai a quem pertence a glória, vos dê um espírito de sabedoria que vo-lo revele e faça verdadeiramente conhecer. Foi exatamente isso que ocorreu com os apóstolos.

Junto com a confirmação dessa promessa do Pai, Cristo reafirmou aos apóstolos o motivo para o qual tinham eles sido chamados para o convívio mais próximo com Ele: (Atos 1, 8): para serdes minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judéia e na Samaria, e até os confins da terra'. Na ocasião, eles provavelmente estavam em Jerusalém e foi lá também que aconteceu o Pentecostes poucos dias depois. Mas é digna de nota a citação da Judéia e da Samaria, pelo seguinte: a Judéia foi onde Jesus desenvolveu a sua catequese, andando por diversas cidades da região. E a Samaria era aquele grupo de judeus dissidentes, que eram inimigos do pessoal da Judéia. Um judeu mudava de lado da rua, se viesse ao encontro dele um samaritano. Mas Jesus foi lá, conversou com a mulher na beira do poço, aceitou o convite de ir até a cidade dela e realizou ali muitas conversões. Se nós trouxermos essa rivalidade para os dias de hoje, podemos interpretar que Jesus estaria se referindo aos cristãos dissidentes, que formam outras igrejas e também se reúnem em nome de Cristo. Tal como era no tempo de Cristo, a religião nem sempre é uma atividade que congrega, algumas vezes também desagrega. Mas é preciso ir em busca, não relegar, mas conviver, tal como Jesus deu o exemplo na sua convivência com os samaritanos. E a referência aos confins da terra certamente diz respeito a nós, que não somos nem judeus nem samaritanos, mas fomos convidados e aceitamos participar da boa nova da salvação.

Na segunda leitura, da carta aos Efésios (1, 17-23), Paulo repete uma lição que está presente nos evangelhos e que denota ser expressão comum nas comunidades cristãs primitivas: depois de concluir sua missão, Jesus voltou para se assentar à direita do Pai, bem acima de toda autoridade e potência. Era o costume nas sociedades antigas que o lugar à direita do rei era o da maior confiança e dava a idéia de igual poder. Todos nós sabemos que, na dimensão da eternidade, não há tempo nem lugar, de modo que sentar à direita ou à esquerda, ou atrás ou na frente, não faz qualquer sentido. Mas essa simbologia demonstra que a fé dos cristãos em Jesus, desde os primeiros tempos, era de que ele tinha idêntica situação com o Pai e idêntico poder. E nesta mesma carta, Paulo ensina a sua doutrina do corpo místico, que é a Igreja, da qual Cristo é a cabeça e está ao lado do Pai. Em verdade, Jesus não mandou os apóstolos fundarem uma igreja (ekklesia=comunidade), isso foi uma decorrência natural da necessidade de organização das atividades para as quais Jesus lhes havia enviado em missão. A questão é que, com o passar do tempo e sob a influência da cultura medieval, a comunidade tornou-se uma entidade cheia de burocracia... mas isso é outra história. Retorno ao tema inicial.

No evangelho de Marcos lido neste domingo (Mc 16, 15-20), está a mesma imagem de Jesus sentado à direita do Pai: “Depois de falar com os discípulos, o Senhor Jesus foi levado ao céu, e sentou-se à direita de Deus. ” Aqui há um outro conceito que eu pretendo explicitar, além de sentar-se à direita, que é a imagem da elevação de Jesus. De acordo com a tradição, a elevação de Jesus teria sido em Jerusalém, onde existe até uma capela erguida no local do fato. Porém, no evangelho de Lucas, consta que teria sido em Betânia: “Ele os levou até Betânia e, levantando as mãos, os abençoou. Enquanto os abençoava, apartou-se deles e foi elevado ao céu. Eles, tendo-o adorado, voltaram para Jerusalém com grande gozo». (Lucas 24, 50-52) Nos outros, não há referência ao local, Contudo, o mesmo Lucas, em Atos 1, 12, diz: “Então voltaram para Jerusalém, do monte chamado das Oliveiras, o qual está perto de Jerusalém, à distância do caminho de um sábado”, sugerindo que a elevação se deu no monte das Oliveiras, aonde Jesus gostava de ir com os discípulos. Não deixa de ser curioso que o mesmo escritor (Lucas), em duas narrações distintas, refira-se a lugares diferentes, dando a entender que ou ele não conhecia a região ou não teve o devido cuidado de organizar os textos que lhe serviram de fonte. Deve ser a primeira hipótese, pois Lucas era um médico grego, natural de Antioquia, provavelmente ele não conhecia mesmo os locais por onde Jesus havia passado.

Em verdade, esse é apenas um detalhe de pouca importância. A grande verdade que se extrai dessa narrativa é que Jesus, ao elevar-se para o céu com um corpo visível, elevou com ele a sua condição humana, isto é, a nossa humanidade que ele assumiu também foi sentar-se à direita do Pai. Com a ascensão de Jesus, restaurou-se a união entre Deus e os homens, rompida pelo pecado, união esta simbolizada nas duas naturezas de Cristo. Ao elevar-se e assentar-se à direita do Pai, Jesus levou consigo a humanidade redimida, dando-nos uma visão antecipada daquilo que ocorrerá com todo aquele que crer nele. Esta promessa está descrita assim no evangelho de Marcos (16, 16): Quem crer e for batizado será salvo. Quem não crer será condenado. Não devemos entender nessa afirmação, como querem alguns, que basta ser batizado para ser salvo, nem também o oposto, isto é, quem não for batizado estará condenado. Na verdade, crer em Jesus não é uma decisão momentânea e isolada, apenas para receber o batismo, mas é uma atitude que se renova a cada dia, quando damos testemunho da nossa fé nas nossas vivências sociais, nas obras que realizamos. Então, a fé será superior ao batismo, na medida em que este é a confirmação externa daquela. A salvação está prometida para aquele que crê na prática, não apenas na teoria, pois o simples batismo não conduz automaticamente à salvação, se não for confirmado com as obras coerentes e exemplares. Isso quer dizer que o batismo é um ritual para o crente ser admitido na Igreja, mas isso não significa que o não batizado estará ipso facto fora da salvação. O Papa Francisco, a contragosto dos burocratas do Vaticano, vem repetidamente ensinando que a salvação é alcançada por todas as pessoas que têm Deus no coração, independentemente de sua opção religiosa. A meu ver, isso representa a superação de uma antiga doutrina de que fora da Igreja Católica não há salvação. A fé em Deus deve ficar acima das diversas religiões, porque um só é o rebanho e um mesmo é o Pastor.

Com um cordial abraço a todos.
Antonio Carlos

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 6º DOMINGO DA PÁSCOA - 06.05.2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 6º DOMINGO DA PÁSCOA – ESCOLHIDOS PELO PAI – 06.05.2018

Caros Confrades,

Neste 6º domingo da Páscoa, as leituras nos revelam o quanto somos privilegiados: não fomos nós que escolhemos o Pai, mas foi o Pai quem nos escolheu. E Jesus Cristo nos ensina como é que devemos fazer para merecer tão grande distinção nessa escolha: se guardardes os meus mandamentos, permanecereis em mim, assim como eu guardo os mandamentos do Pai e permaneço nele. E o mandamento de Cristo, todos nós já sabemos: é o mandamento do amor. E não há ocasião melhor para falar sobre esse assunto do amor do que nesta semana que antecede a festa das mães.

Na primeira leitura, do livro dos Atos (At 10,25), podemos perceber o amadurecimento da ideia da salvação trazida por Cristo na mente dos apóstolos, através do discurso de Pedro perante os gentios de Cesareia, liderados por Cornélio, que era um centurião romano convertido ao cristianismo e que influenciara a conversão de muitas pessoas daquela cidade, porém ainda não tinham sido batizados. Nos versículos anteriores (Atos 10, 10-14), Pedro se vira numa situação embaraçosa, que foi a seguinte: estava com fome e teve uma visão de um grande lençol que descia do céu cheio de animais e aves, e o anjo lhe disse para escolher a comida. Pedro se recusou, porque havia ali animais que os judeus consideravam impuros, então o anjo disse: não tenhas por impuro aquilo que Deus purificou. Foi quando Pedro recebeu a visita dos emissários de Cornélio, que foram convidá-lo para ir até a casa deste, e Pedro foi. Ao chegar lá e vendo grande quantidade de gentios convertidos, Pedro pronunciou um discurso que hoje seria denominado de ecumênico: “estou compreendendo que Deus não faz distinção entre pessoas, pelo contrário, Ele aceita quem o teme e pratica a justiça, qualquer que seja a nação a que pertença”. Este discurso é significativo porque dá a entender que, até então, Pedro ainda tinha dúvida sobre o modo de apresentar a mensagem de Cristo aos gentios, porque havia aquela famosa discussão se os pagãos, ao se converterem, deviam aceitar os costumes judeus como condição para a sua conversão. Mas naquela ocasião, ele declarou que afinal tinha compreendido que isso não era necessário, pois Deus havia purificado os pagãos da mesma forma que purificara os alimentos considerados impuros pelos judeus. E diz o texto de Atos (10, 44) que Pedro ainda estava falando, quando o Espírito Santo desceu sobre todos os que ouviam a sua palavra. Isso veio corroborar o que Pedro acabara de afirmar, isto é, o Espírito Santo confirmou o discurso de Pedro perante todos os presentes. E continua o texto de Atos (10, 45) afirmando que os “judeus” ficaram admirados ao verem o Espírito Santo descendo também sobre os pagãos, eles que se consideravam os autênticos seguidores de Cristo, por serem judeus convertidos e pensavam ser necessário que os pagãos primeiramente se tornassem judeus (pela circuncisão), para depois se tornarem cristãos.

Com efeito, o texto latino traduzido pela CNBB usa aqui a palavra 'judeus', mas o texto original de São Jerônimo diz 'circuncisione fideles', ou seja, os que eram leais ao judaísmo, que acreditavam na circuncisão. Nesse contexto, ficou então decidida a polêmica, confirmando-se que a circuncisão não seria necessária, passando a prevalecer o entendimento de que não deve haver distinção entre judeu, grego, romano ou asiático ou de qualquer outra nação, circunciso ou incircunciso, pois o Espírito de Deus foi derramado sobre os pagãos na presença dos judeus. Na verdade, o que deve prevalecer entre os discípulos de Cristo não é a nacionalidade ou a herança genética, mas a observância do seu mandamento do amor.

Na segunda leitura, da carta de João (1Jo 4, 7-10), o apóstolo repete o tema que lhe é tão caro em todos os seus textos: amemo-nos uns aos outros, porque todo aquele que ama nasceu de Deus e conhece a Deus. E então, ele confirma que nós fomos escolhidos, nós não escolhemos: “Nisto consiste o amor: não fomos nós que amamos a Deus, mas foi ele que nos amou e enviou o seu Filho ” (1Jo 4, 10). Esta afirmação de João guarda total sintonia com o discurso de Pedro, referido na primeira leitura, razão pela qual a mensagem cristã chegou até nós. Os judeus pensavam que eles eram os escolhidos, porque eram os herdeiros da antiga aliança. Mas os judeus recusaram a aceitar Cristo como o Messias, então Jesus mandou os apóstolos a pregarem a sua mensagem a todos os povos da terra. E confirmou isso com demonstrações extraordinárias, como o fato narrado na leitura dos Atos 10, referida acima, em que os fiéis judeus viram o Espírito Santo descer sobre os gentios convertidos, antes mesmo que estes fossem batizados. Foi quando Pedro falou: “'Podemos, por acaso, negar a água do batismo a estas pessoas que receberam, como nós, o Espírito Santo?' E mandou que fossem batizados em nome de Jesus Cristo.” (At 10, 47-48). A descida do Espírito Santo era a confirmação de que o Pai havia escolhido aqueles gentios e retirou da mente de Pedro qualquer dúvida que ele ainda tinha acerca da universalidade da salvação.

Na leitura do evangelho de João (Jo 15, 9-17), aparece este mesmo ensinamento, agora colocado na boca de Cristo: “Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi ” (Jo 15, 16). Jesus falava isso para os apóstolos, mas a escolha se estende a todos nós, cristãos. Deus nos amou primeiro e nos escolheu, ou seja, nos deu o privilégio de sermos seus amigos. E mandou o Filho para nos revelar isso e nos ensinar como devemos proceder para permanecermos nessa divina amizade. Em Jo 15, 14 Jesus diz que “vós sereis meus amigos se fizerdes o que eu vos mandei”. E o que foi que ele mandou? Isso todos já sabemos: “Este é o meu mandamento: amai-vos uns aos outros, assim como eu vos amei. ” (Jo 15, 12) E explica: “Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis no meu amor, assim como eu guardei os mandamentos do meu Pai e permaneço no seu amor. ” (Jo 15, 10) Então, meus irmãos, a única exigência para permanecermos amigos do Pai é esta e está dita com todas as letras, não há como não compreender. No vers. 15,15 essa amizade está mais do que confirmada: “Já não vos chamo servos, pois o servo não sabe o que faz o seu senhor. Eu vos chamo amigos, porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi de meu Pai. ” Pensemos bem nesse tão grande privilégio com que o Pai nos distinguiu: sermos escolhidos por ele. E a condição é também totalmente acessível a qualquer pessoa: amar o próximo.

A propósito da festa das mães, no próximo domingo, temos um momento oportuno para falar do amor na sua forma incondicional. Uma empresa colocou um anúncio de contratação de empregados, que deviam ter as seguintes qualificações: entender de medicina, psicologia, economia, gastronomia; estar disponível para trabalhar 24 horas por dia e 7 dias por semana, sem descanso e sem horário para dormir, monitorar constantemente os seus subordinados e acompanhá-los mesmo durante a noite; não há férias, não há salário, não há aposentadoria. E os pretendentes faziam cara de estupefação: isso não é emprego, é escravidão, é impossível alguém aceitar esse encargo. Então, o entrevistador dizia que aquela função era ser mãe e todos, sem exceção, concordaram que essas qualificações são todas reais em todas as mães. E o mais notável e incompreensível de tudo isso é que, mesmo sabendo com antecipação de que a situação é assim, todas as mulheres querem ser mães. E aqui deixem-me puxar um pouco a brasa para a sardinha dos pais, porque a maternidade é compartilhada com a paternidade, tanto a paternidade quanto a maternidade vêm de Deus e têm a mesma dignidade.

Pois bem. O Pai nem exige tanto de nós para continuarmos na condição de amigos dele, e se pensarmos que mães e pais se dispõem a tanta dedicação quando decidem gerar um filho, podemos concluir que não é muito o que Deus nos pede para sermos amigos dele. Se as pessoas são capazes de tanta abnegação e disponibilidade por uma causa oriunda da natureza, é só direcionar esse mesmo comportamento para o bem dos irmãos, por uma causa oriunda do espírito, e assim estaremos sendo fiéis ao mandamento de Cristo e nos dignificando para merecermos a sublime honra de sermos amigos do Pai.

Cordial abraço a todos.
Antonio Carlos

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 5º DOMINGO DA PÁSCOA - 28.04.2018



COMENTÁRIO LITÚRGICO – 5º DOMINGO DA PÁSCOA – A TRINDADE DA UNIDADE – 28.04.2018



Caros Confrades,



A liturgia deste 5º domingo da Páscoa nos convida a refletir sobre a nossa inserção na Trindade Santa, a partir da parábola da parreira e seus ramos. Cristo é a parreira, nós somos os ramos e o Pai é o agricultor (Jo 15, 1). Se o ramo não estiver conectado na parreira, vai secando até morrer. A primeira leitura, retirada do livro dos Atos (At 9, 26) falando da conversão de Saulo, mostra que, de início os cristãos o rejeitaram, por causa da sua fama de perseguidor, sendo necessária a intervenção de Barnabé, para que ele foi inserido no grupo dos discípulos. E a Carta de João nos lembra que é através do Espírito que nós sabemos da nossa inserção em Deus.



A parábola da parreira ou da videira não se encontra nos outros evangelhos, apenas no de João, o que indica que foi uma lembrança que o próprio evangelista guardou e não era conhecida dos outros escribas. Visto que o evangelho de João foi escrito só no final do primeiro século, o exemplo da parreira reflete também o amadurecimento teológico da doutrina cristã, e se encaixa bem na teologia joanina, exposta nas suas cartas, como se vê no texto da segunda leitura deste domingo (1 Jo 3, 18). Falar na imagem da parreira e dos seus ramos não é algo muito familiar para a nossa cultura, pois poucos nordestinos têm experiência própria desse tipo de cultivo, o qual é mais comum no sul do Brasil. Essa imagem bíblica, trazida para a nossa realidade regional, bem se que se assemelha com um pé de tomate ou de maracujá, que estende seus ramos para as estruturas de apoio, que comumente os agricultores colocam. Mantém-se assim a mesma simbologia da união que deve haver entre os ramos e o tronco, sem o que a produção é impossível e sem o que o ramo desgarrado resseca e morre. Se Cristo tivesse sido nordestino, teria usado a imagem do tomateiro ou o maracujazeiro, adaptando a parábola evangélica aos padrões da nossa cultura regional.



Então, Cristo diz que Ele é a parreira (e nós diríamos, o tomateiro) e o Pai é o agricultor. E depois completa: e vós sois os ramos. Assim como é necessário que o ramo permaneça unido ao tronco para que produza frutos, também nós precisamos permanecer unidos a Cristo, para que possamos produzir frutos de santidade. A imagem da parreira, usada por Cristo, portanto, representa a ideia da inserção. Os ramos da planta são a imagem simbólica da comunidade, ensinando-nos que nenhum de nós pode viver a religião de forma isolada. A planta não possui um ramo só e nem esses ramos se espalham isoladamente, mas totalmente entrelaçados. Nenhum de nós pode estar unido a Cristo, se não fizer parte ativa na comunidade eclesial. A inserção na comunidade, por sua vez, se faz através da participação nos momentos celebrativos, em que toda a igreja se reúne para rezar. Ninguém desconhece o valor da oração individual, particular, mas a oração que nos une verdadeiramente a Cristo e, através dele, ao Pai e ao Espírito, alçando-nos à comunhão da Trindade Santa, é a oração coletiva da comunidade reunida. É lamentável que alguns católicos considerem que ir à missa é uma obrigação. Na verdade, essa mentalidade é fruto da pedagogia religiosa tradicional, que impôs a ideia do “preceito” dominical, em vez de ressaltar a importância da oração comunitária, A antiga pedagogia catequética colocava em primeiro plano a missa como uma obrigação, um preceito, por isso, quanto mais rápida a celebração, melhor. Podemos perceber o peso do efeito prejudicial que esse ensinamento deixou na cultura religiosa do nosso povo.



Pois bem, nós não nascemos já agarrados no tronco da parreira, nós nascemos como ramos desgarrados, que precisam ser enxertados no tronco, donde iremos receber a seiva da vida. É pelo batismo que somos enxertados nesse tronco vivo e é pela vivência do evangelho que nele devemos permanecer. E Cristo, pela boca do evangelista, nos diz textualmente: “Como o ramo não pode dar fruto por si mesmo, se não permanecer na videira, assim também vós não podereis dar fruto, se não permanecerdes em mim.” (Jo 15,4) Porque todo ramo que, enxertado a Ele, não der fruto, o Pai o arrancará; e aquele que dá fruto, o Pai cuidará, para que dê mais fruto ainda. Então, a nossa missão de cristãos é permanecer enxertados no tronco vivo, como ramos produtivos, que o Pai limpa e poda para aumentar sempre mais a produtividade.



Na Primeira Carta (3, 24), João complementa o texto do seu evangelho, ao ensinar qual o modo de permanecermos como ramos vivos e produtivos: “Quem guarda os seus mandamentos permanece com Deus e Deus permanece com ele.E a conduta concreta que nos mantém enxertados no tronco da vida, João explica no vers. 18-19: não amemos só com palavras e de boca, mas com ações e de verdade! Aí está o critério para saber que somos da verdade e para sossegar diante dele o nosso coração. Portanto, a condição para que nós, ramos, permaneçamos enxertados na parreira e produzindo frutos é uma só: amar de verdade, com ações concretas e não apenas da boca para fora. Para guardar os mandamentos, a única receita é a prática do amor ao próximo, pois o amor faz parte da essência desse mandamento (Jo 3, 23): “Este é o seu mandamento: que creiamos no nome do seu Filho, Jesus Cristo, e nos amemos uns aos outros, de acordo com o mandamento que ele nos deu.” Ou seja, meus amigos, a condição para permanecermos atrelados a Cristo-tronco é a fé nEle, que se expressa no amor aos irmãos. Não são duas coisas distintas, mas são duas atitudes que se complementam e, ao final, se transformam numa só. A fé que não se manifesta em obras é morta, portanto, não basta crer. E todo o que crê em Cristo, ama os irmãos, por quem Ele deu a Sua vida. O João ainda diz mais: como vamos saber se guardando os mandamentos, Deus permanece em nós e nós permanecemos nEle? Resposta de João: é pelo Espírito que sabemos disso. Vemos aqui, portanto, que permanecer unido a Cristo equivale a estar inserido na Trindade Santa.



Aqui podemos encaixar a primeira leitura, que narra a inserção de Saulo na comunidade dos discípulos, depois de sua conversão. Os Apóstolos ficaram com receio de recebê-lo, porque ele era conhecido como feroz perseguidor do cristianismo. De repente, ele chega querendo se aproximar, a reação natural dos apóstolos foi de recusa, porque essa podia ser uma nova estratégia de perseguição. Foi preciso que Barnabé advogasse em favor de Saulo e testemunhasse todo o processo de mudança ocorrido em sua pessoa, para que os discípulos então acreditassem e o aceitassem. Na verdade, Cristo precisava de um pregador da estirpe de Saulo, com formação intelectual e arrojo para enfrentar as dificuldades da missão evangélica. Em Atos (9, 19), o escriba fala que ele discutia com os judeus de língua grega, isto é, com os judeus intelectuais, coisa que os outros apóstolos não tinham cacife para fazer e que colocava em risco a sua própria vida, por isso, ele precisou mudar de cidade. Sem a competência de Saulo, a propagação do cristianismo na comunidade grega teria sido um fracasso. Para mim, uma das maiores provas históricas da divindade de Cristo é a conversão de Saulo.



Saulo tornou-se companheiro de Barnabé e foi por intermédio deste que decidiu trocar seu nome para Paulo. Os estudiosos não são unânimes na explicação do por que Saulo tomou essa decisão, mas a razão mais provável deve ter sido para que a mudança de nome representasse externamente a sua mudança íntima, a sua conversão, e ele queria que isso ficasse bem notório para todos. O nome Saulo é judeu, o nome Paulo é romano. O nome Saulo tem a mesma raiz do nome do rei Saul, primeiro rei de Israel, que perseguiu Davi. Ora, Cristo era descendente de Davi e Saulo não era mais um perseguidor. Além disso, era costume que os judeus convertidos mudassem seu nome judaico para um nome grego ou romano, assim como nós mudávamos o nome ao entrar no Seminário, como forma de simbolizar uma mudança no modo de vida. A mudança do nome de Saulo para Paulo significou, para ele, concretamente a sua inserção entre o discipulado de Cristo e, por via de consequência, sua inserção na Trindade Santa. E diz Lucas, em Atos (11, 26), que Barnabé e Paulo passaram um ano inteiro pregando e dando assistência à igreja de Antioquia e “Em Antioquia os discípulos foram, pela primeira vez, chamados com o nome de cristãos.” Temos aí também a origem histórica do nome de 'cristãos' atribuída aos seguidores de Cristo.



Que o exemplo de Paulo nos inspire a permanecer unidos à parreira-Cristo, guardando os seus mandamentos e amando os irmãos com ações de verdade.



Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos