domingo, 28 de dezembro de 2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO - FESTA DA SAGRADA FAMÍLIA - 28.12.2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO – FESTA DA SAGRADA FAMÍLIA – 28.12.2014

Caros confrades,

Neste domingo que sucede o Natal, a liturgia celebra a festa da Sagrada Família de Nazaré, exemplo de fidelidade à sua religião judaica. Convém não esquecer que Jesus era judeu, Maria era judia e José era judeu também. Certa vez, assistindo aulas de hebraico, um aluno perguntou à professora quem é Jesus para os judeus. Resposta dela: Jesus é um judeu famoso, como existiram vários outros. Aí termina o significado da figura de Jesus para a religião judaica. Porém, no evangelho de hoje, lemos o relato da profecia de Simeão, ao ver aquele menino de poucos dias, que chegava com seus pais ao templo de Jerusalém, para a consagração, conforme estava previsto na lei de Moisés. Simeão viu naquele menino judeu o Messias prometido, coisa que os demais judeus de ontem e de hoje ainda não perceberam.

Temos na primeira leitura, retirada do livro do Eclesiástico (que em hebraico, diz-se Ben Sirac), as lições da tradição judaica sobre o respeito que os membros da família devem ter entre si: os filhos para com os pais, estes para com os filhos e o casal, um em relação ao outro: “Quem respeita a sua mãe é como alguém que ajunta tesouros. Quem honra o seu pai, terá alegria com seus próprios filhos; e, no dia em que orar, será atendido. Quem respeita o seu pai, terá vida longa, e quem obedece ao pai é o consolo da sua mãe.” (Eclo 3, 5-7) De acordo com os estudiosos da Bíblia, este livro foi escrito aproximadamente 200 anos antes de Cristo, ou seja, mais de dois mil anos atrás e a sabedoria do povo de Deus do antigo testamento continua plenamente atual e aplicável aos nossos dias. Este texto era lido nos templos cristãos desde os princípios do cristianismo, embora não fosse considerado sagrado para os judeus. Estes o consideravam mais um livro histórico e referencial da sabedoria dos antigos, mas não exatamente “palavra de Deus”, talvez por seu conteúdo acentuadamente humanístico. Na nomenclatura de hoje, seria considerado um livro de conteúdo psicológico, de formação humana para a juventude, mas os cristãos sempre o consideraram um livro inspirado e o seu conteúdo, que atravessou inúmeras gerações e permanece como roteiro de vida plena e justa, é merecedor do nosso respeito e digno de ser posto em prática. Sobretudo o conselho referente à senectude dos pais: “Mesmo que ele esteja perdendo a lucidez, procura ser compreensivo para com ele.” Esta recomendação é muito oportuna nos dias de hoje, quando se veem pessoas deixando seus pais ou parentes idosos em asilos, porque não querem ter trabalho com essas pessoas, principalmente se são acometidas com algum tipo de demência. E continua o sábio judeu: “a caridade feita a teu pai não será esquecida, mas servirá para reparar os teus pecados.” Na época em que esse texto foi escrito, talvez ainda não existissem as morbidades da vida contemporânea, porque naquele tempo poucas pessoas tinham vida longa, diferentemente de hoje, quando a população envelhecida cresce até mais do que o número de nascimentos. O sábio conselho do Eclesiástico merece ser lido e meditado por todos nós, especialmente por nossos jovens.

Na segunda leitura, da carta de Paulo aos Colossenses (Cl 3, 12-21), o apóstolo exorta os cristãos daquela cidade sobre os deveres recíprocos dos familiares de perdão, de misericórdia, bondade, humildade, mansidão e paciência, “suportando-vos uns aos outros e perdoando-vos mutuamente, se um tiver queixa contra o outro.” E em relação ao casal, ele traz conselhos bem específicos: “Esposas, sede solícitas para com vossos maridos, como convém, no Senhor. Maridos, amai vossas esposas e não sejais grosseiros com elas.” E complementa: “Filhos, obedecei em tudo aos vossos pais, pois isso é bom e correto no Senhor.” Ora, meus amigos, temos aqui uma nova manifestação da sabedoria judaica nos princípios do cristianismo. Embora escrevendo para as comunidades de língua grega, no entanto, Paulo era judeu, tinha formação judaica e o seu aprendizado primeiro se deu nas sinagogas. Convertido ao cristianismo, obviamente, ele permaneceu com o modo de pensar do judaísmo, porque essa era a sua formação. Portanto, os conselhos que Paulo dá aos cristãos de Colossos são inspirados, certamente, na mesma sabedoria escrita por Ben Sirac, ou seja, na milenar experiência do povo judeu, que aprendeu esse modo de ser a partir das orientações dos seus profetas, que por sua vez as recebiam de Javeh. Eu estive lendo uns artigos de um professor da Universidade Hebraica de Jerusalém, nos quais ele defende essa idéia das origens judaicas do cristianismo, que foi posteriormente influenciado pela cultura grega, e seus estudos me parecem bastante coerentes. Com efeito, na época de Paulo, essa helenização do cristianismo ainda não ocorrera, Paulo tinha o pensamento marcadamente judaico, embora inspirado pela fé cristã. Foi a partir de Santo Agostinho, no século IV, e depois com Santo Tomás, no século XIII, que se fez a opção pela matriz filosófica grega e isso trouxe inúmeras influências nem sempre benignas para o desenvolvimento da teologia cristã. Nos dias de hoje, há todo um esforço de vários estudiosos para recuperarem esse modelo primitivo da fé cristã anterior à influência grega, como ocorre desde os primórdios entre as igrejas católicas orientais. Nestas, a influência grega não se fez presente, de modo que a tendência é forte no sentido da unificação dessas comunidades, um esforço que teve início ainda com o Papa Paulo VI, que fez a primeira visita a um Patriarca oriental, após quase mil anos de cisão entre as igrejas. Quanto mais a teologia católica ocidental for capaz de se libertar das categorias do pensamento grego, tanto mais a aproximação entre as igrejas ocidental e oriental se fará sentir.

Na leitura do evangelho de Lucas (Lc 2, 22-40), encontramos o emocionante relato da obediência de José e Maria à lei mosaica. “Quando se completaram os dias para a purificação da mãe e do filho, conforme a Lei de Moisés, Maria e José levaram Jesus a Jerusalém, a fim de apresentá-lo ao Senhor.” De acordo com a lei de Moisés, a mulher ficava impura durante o período da menstruação e também durante o puerpério (aquilo que na nossa cultura chamamos de resguardo). Nesses dias, a mulher não podia ir ao templo e devia evitar ter contato com outras pessoas, porque que dela se aproximasse, também ficaria impuro. Quanta discriminação cultural com as nossas benditas mulheres e quanto isso ainda pesa sobre a nossa cultura. Pois bem. Como bons judeus, José e Maria foram levar o filho ao templo, para ser consagrado. E também como mandava a lei, para que o filho não tivesse de permanecer no templo, pagava-se uma “taxa”, de acordo com as posses do casal: os ricos ofereciam bois; os médios ofereciam carneiros; os pobres ofereciam pombos. Daí o relato de Lucas: “Foram também oferecer o sacrifício - um par de rolas ou dois pombinhos - como está ordenado na Lei do Senhor.” A mão divina colocou o intelectual Lucas no lugar certo, na época certa. Foi graças à sua presença constante na casa de Maria que ele conseguiu ouvir dela diversos depoimentos que enriquecem suas narrativas. Sem isso, nós não saberíamos de muitos detalhes que envolvem a vida de Cristo. Graças a ele e ao seu estilo narrativo, temos uma leitura emocionante desses fatos. A riqueza de detalhes da profecia de Simeão somente Lucas nos traz. José e Maria ficaram boquiabertos com a reação daquele homem de Deus. Eles chegaram ao templo de uma forma pacata e humilde, como faziam as pessoas da sua condição, e teriam certamente passado despercebidos. Mas chegou aquele homem desconhecido e reconheceu naquele menino judeu o Messias prometido pelos profetas. É óbvio que José e Maria sabiam da origem divina do Menino, mas não contaram nada para ninguém, como é que aquele homem sabia? Admirados, ouviram-no dizer: “meus olhos viram a tua salvação, que preparaste diante de todos os povos.” Essa foi a primeira declaração pública acerca da divindade de Jesus e foi feita por uma pessoa do povo, inspirada pelo espírito de Deus. Simeão não era sacerdote, não era chefe religioso, era um homem justo e temente a Deus. Pena que os líderes judaicos daquele tempo não tiveram a mesma sensibilidade e a mesma humildade de Simeão. E ele foi ainda mais além e mais veraz, quando profetizou em relação a Maria: “Quanto a ti, uma espada te traspassará a alma.” Tivemos aí a proclamação de Nossa Senhora das Dores, antecipada pelo velho judeu. Maria, que já tinha compreendido isso desde o evento da anunciação pelo anjo Gabriel, ouviu aquilo e fortificou a sua fé. Esse sofrimento fazia parte do seu “sim”, ela sabia desde o início do quanto teria de suportar no cumprimento daquela sublime missão.

O compromisso com a lei divina e a fidelidade a ela é a grande lição que devemos aprender com a Sagrada Família de Nazaré. Que o seu exemplo continue inspirando as nossas famílias no seguimento dos ensinamentos cristãos.

Cordial abraço a todos e votos de Feliz Ano Novo.

Antonio Carlos

domingo, 21 de dezembro de 2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 4º DOMINGO DO ADVENTO - O FILHO DE DAVI - 21.12.2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO DO ADVENTO – O FILHO DE DAVI – 21.12.2014

Caros Confrades,

Neste quarto domingo do Advento, destaco a referência que as leituras litúrgicas fazem de Jesus como filho de Davi. O conhecido refrão cantado no domingo dos ramos exalta o filho de Davi, em diversas outras passagens esta mesma ligação de Jesus com Davi é repetida. Os numerólogos bíblicos fizeram as contas de que desde Abraão até Davi contam-se 14 gerações; de Davi ao cativeiro da Babilônia são outras 14 gerações e do cativeiro da Babilônia até o nascimento de Jesus são mais 14 gerações. (Ver evangelho de Mateus, 1, 1-17). O rei Davi representa o auge do desenvolvimento material do povo hebreu; o cativeiro da Babilônia representa o momento da queda, o auge da destruição; o nascimento de Jesus representa, nessa linha de raciocínio, o apogeu da promessa de Javé. Davi e Jesus significam, portanto, os pontos mais significativos da história do povo de Deus, daí a importância de se demonstrar que Jesus era um descendente de Davi.

Na primeira leitura, do segundo livro de Samuel (2Sm 7, 1-16), lemos a profecia de Natan acerca do filho de Davi, que reinaria para sempre, sendo confirmado na realeza. Historicamente, este filho de Davi foi Salomão, responsável pela construção do templo e famoso por sua legendária sabedoria. No sentido transistórico, aproveitando o cálculo genealógico de Jesus explicado por Mateus, o filho de Davi confirmado perenemente na realeza é Jesus Cristo. A insistência do evangelista em ressaltar a descendência de Jesus da linhagem de Davi tem por objetivo interligar o nascimento de Cristo com a promessa de Javeh aos antigos patriarcas, fundamentando assim a fé no Messias salvador prometido pelas escrituras. O rei Davi queria construir uma casa digna para o Senhor, um templo suntuoso, mais do que o palácio onde ele, o rei, morava. No entanto, através do profeta Natan, Javeh fez ver a Davi que essa honra não seria dele, mas de um filho dele. Então, o filho próximo dele, Salomão, edificou o famoso templo, que se tornou referência para muitas gerações, alcançando até o tempo de Jesus. E o filho longínquo de Davi, Jesus, erigiu a sua igreja como templo vivo, não mais de tijolo e pedras, mas presente no coração dos que nEle creem. Quando chegou a plenitude dos tempos, a promessa de Javé foi cumprida também de forma plena.

Na segunda leitura, retirada da carta aos Romanos (Rm 16, 25-27), o apóstolo Paulo enfatiza esse mistério, que ficara escondido ao longo dos tempos, mas que então fora revelado, por meio de Jesus Cristo. “Este mistério foi manifestado e, mediante as Escrituras proféticas, conforme determinação do Deus eterno, foi levado ao conhecimento de todas as nações, para trazê-las à obediência da fé.” O mistério referido por Paulo é exatamente este do cumprimento definitivo da antiga promessa, através de um descendente da linhagem de Davi. Diferentemente do próprio rei Davi, cujo poder se dirigia e se limitava ao povo hebreu, o poder deste filho de Davi se estende a todas as nações. Portanto, o mistério que Cristo veio revelar foi de que aquela promessa feita por Javeh aos antigos patriarcas não tinha seus limites atrelados a um determinado local geográfico nem a uma etnia específica, mas todos os povos são os destinatários dela, o seu alcance se estende a todas as nações.

O evangelho de Lucas (Lc 1, 26-38) é também enfático em afirmar que José era descendente de Davi. Não podendo afirmar que José gerou Jesus, como está escrito nas genealogias anteriores, o evangelista refere que José era da família de Davi e era esposo de Maria, a mãe de Jesus. “Eis que conceberás e darás à luz um filho, a quem porás o nome de Jesus. Ele será grande, será chamado Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai Davi. Ele reinará para sempre sobre os descendentes de Jacó, e o seu reino não terá fim' ” (Lc 1, 31). Observemos que José era pai adotivo de Jesus, porém mesmo sem ser filho biológico, Jesus era herdeiro legal de José, portanto, herdeiro da tradição de Davi. A escritura não menciona que Maria era descendente de Davi. Existe um testemunho de Santo Irineu, que viveu nos primeiros séculos do cristianismo, de que Maria também era da linhagem de Davi, mas isso é atestado apenas pela tradição, não consta nos relatos dos evangelistas. Talvez fosse até mais fácil de fundamentar a descendência de Jesus em relação a Davi através da análise de genealogia de Maria. Contudo, naquela época em que prevalecia a linhagem masculina, para evitar quaisquer dúvidas acerca da validade da profecia, se por acaso ficasse demonstrada apenas a descendência pelo lado feminino, os evangelistas destacam sempre a descendência pelo lado de José, deixando de considerar a genealogia de Jesus pelo lado de Maria. Daí porque tal referência só está presente na tradição.

Interessante nesse contexto é observar a forma como a revelação divina foi dada a Maria, diferente do modo tradicional em que isso acontecia. De acordo com a tradição judaica, as mensagens proféticas eram reveladas por Javeh aos seus escolhidos através de sonhos, portanto, quando eles não estavam despertos. Porém, no caso de Maria, ela não apenas estava desperta, mas chegou a dialogar com o anjo e expor suas dúvidas, ao que o anjo respondeu e a tranquilizou. O caso do sonho de José é um desses exemplos de revelação recebida em sonho. Outro caso também relacionado com José é aquele episódio em que ele recebeu uma “ordem” de fugir com Maria e o menino para o Egito, até passar a perseguição de Herodes, através de outro sonho. Com base nessa análise, pode-se afirmar que a revelação a Maria teve uma característica totalmente peculiar, fora do padrão em que isso costumava acontecer. Certamente, porque o evento que esta revelação abordava não era apenas uma intervenção de Javeh na história dos homens, mas a autêntica redenção prometida, a intervenção última e definitiva. Com bastante probabilidade, o diálogo de Maria com o anjo foi bem mais demorado e detalhado do que a narração bíblica apresenta. Maria era muito jovem e estava no início de sua vida adulta, ainda não começara sua coabitação com José. Era necessário que ela ficasse bastante segura do que estava por acontecer, para que ela finalmente concordasse. E obviamente a gestação não teria iniciado, caso ela tivesse recusado. Daí a importância do “sim” de Maria, porque naquele momento, ela também deve ter antevisto os grandes problemas e as grandes dores que iria suportar futuramente. Isso também deve ter sido objeto do diálogo com o anjo. Por fim, ela aquiesceu: faça-se conforme a tua palavra. E o anjo retirou-se.

Meus amigos, a concordância de Maria é um ato de generosidade, de generosa grandeza. A missão que cada um de nós recebe nessa vida, ou seja, aquilo que outra passagem do evangelho chama com o nome de “talentos”, é um desafio que depende da nossa generosidade. Generosidade para aceitar e disponibilidade para executar. Do folheto da novena do Natal, que celebramos hoje em família, destaco o seguinte trecho, que achei bastante significativo: “A generosidade é a capacidade de dar com desapego, onde o amor ganha do egoísmo. É na entrega generosa que fazemos de nós mesmos que se mostra a profundidade de um amor que não fica somente nas palavras. É isso que celebramos no natal: o gesto generoso de Maria em aceitar ser a mãe de Deus e o gesto generoso de Deus que se dá a si mesmo, para a redenção da humanidade.” A generosidade é o antídoto do egoísmo, é uma atitude por demais sugestiva para os nossos tempos, em que o individualismo e o isolamento são uma marca característica da nossa sociedade, sobretudo com a massificação do uso da tecnologia da comunicação. Contraditoriamente, aquilo que deveria nos unir mais é justamente aquilo que contribui para nos afastar mais uns dos outros. A lição da generosidade de Maria continua, portanto, eloquente e atual, merecendo fazer parte das nossas reflexões e dos propósitos de melhoria de vida, que todos nós devemos fazer nesse tempo de preparação para o nascimento de Jesus.

Ao ensejo, envio a todos sinceros votos de Feliz Natal.


domingo, 14 de dezembro de 2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 3º DOMINGO DO ADVENTO - O ÚLTIMO PROFETA - 14.12.2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 3º DOMINGO DO ADVENTO – O ÚLTIMO PROFETA – 14.12.2014

Caros Confrades,

Na liturgia deste 3º domingo do advento, o tema predominante é o refrão “alegrai-vos, Ele está bem perto”, sendo este o domingo da alegria. No evangelho, destaca-se a questão da identidade de João Batista, questionado pelos fariseus: quem és tu, afinal? E ele, humildemente, nega ser o Messias ou um profeta, autodefinindo-se como “a voz que clama no deserto”, porém, Jesus irá dizer dele, em outra ocasião (Mt 11,11) que João Batista é muito mais do que um profeta, dentre os nascidos, ninguém é maior do que ele. Com efeito, João Batista foi o último profeta, aquele que anunciou que o Messias já está no meio de nós.

A primeira leitura, do profeta Isaias (61, 1-11 – deuteroIsaías), contém aquela passagem que está repetida em Lucas (4, 18), quando Jesus fez a leitura na sinagoga e se autodeclarou para os presentes: o profeta falava a meu respeito. O trecho é o seguinte: “O Espírito do Senhor Deus está sobre mim, porque o Senhor me ungiu; enviou-me para dar a boa-nova aos humildes, curar as feridas da alma, pregar a redenção para os cativos e a liberdade para os que estão presos; para proclamar o tempo da graça do Senhor.” (Is 61, 1) Quando Jesus foi convidado para fazer a leitura na sinagoga, onde ele comparecia como todos os bons judeus, Ele escolheu propositalmente esse trecho de Isaías e, ao final, completou: hoje se cumpriu aquilo que foi dito pelo profeta. Jesus havia há pouco iniciado suas pregações e aquela era a primeira vez que ele ia a Nazaré, sua terra natal, após o início de sua vida pública. Ao proclamar-se abertamente que Ele era o ungido, os nazareenses presentes na sinagoga ficaram se entreolhando e se perguntando: mas, esse não é o filho de José? Não foi ele que vimos nascer e crescer aqui? (Lc 4, 22) Ou seja, entre surpresos e incrédulos, os habitantes de Nazaré não souberam reconhecer naquele “filho de José” o Messias, filho de Deus, fato que levou Jesus a dizer: nenhum profeta é bem recebido na sua pátria (Lc 4, 23), o que deixou aqueles seus conterrâneos irritados, a ponto de quererem lançá-lo do precipício. A escolha desse trecho para a leitura demonstra o quanto Jesus era conhecedor das escrituras, em especial, do profeta Isaías, o seu livro predileto.

Na segunda leitura, da carta de Paulo aos Tessalonicenses (1Ts 5, 16-24), o Apóstolo exorta os cristãos daquela cidade a estarem preparados para a vinda de Cristo, afastando-se de toda maldade. Estai sempre alegres e rezai sem cessar, recomendava Paulo. O conselho dele acerca da alegria na espera do Senhor está em sintonia com o tema deste terceiro domingo: a alegria da espera. No sermão de hoje para os peregrinos presentes no Vaticano, o Papa assim comentou essa carta de Paulo: “Neste terceiro domingo a liturgia nos propõe outra atitude interior para viver a espera do Senhor, ou seja, alegria. Mais uma vez São Paulo na liturgia de hoje nos indica as condições para ser "missionários da alegria": orar sem cessar, sempre dar graças a Deus, seguir o seu Espírito, buscar o bem e evitar o mal. Nunca se ouviu falar de um santo triste ou de uma santa com cara fúnebre, nunca se ouviu, seria uma contradição.” (cf boletim do site www.zenit.org) Essa última afirmação do Papa nos faz lembrar uma frase que o Frei Higino costumava dizer: um frade triste é um triste frade. São Francisco era o protagonista da alegria, isso está documentado nos escritos dos seus contemporâneos. A vocação cristã não é um convite à tristeza e ao isolamento, pelo contrário, é como disse o Papa, uma convocação para sermos missionários da alegria. Em outro trecho do seu sermão de hoje, o Papa diz assim: “Não é só uma alegria esperada ou deslocada para o paraíso, ‘aqui na terra estamos tristes, mas no paraíso estaremos alegres’, não, não é isso. Mas, de uma alegria já real e que já é possível sentir agora, porque o mesmo Jesus é nossa alegria, é nossa casa.” O paraíso não é uma situação futura, mas uma realidade que já se faz presente. Nesse contexto, aquela narração bíblica da “queda” de Adão e Eva deixa de ter um sentido de perda para adquirir um significado de conquista. Nós não fomos expulsos do paraíso, nós estamos a caminho de lá e a simples expectativa da chegada já nos deixa alegres. O reino de Deus, que Jesus veio anunciar, é uma experiência antecipada, na vida terrena, daquilo que nos está prometido para uma vida futura. Ou seja, nós não precisamos esperar que isso aconteça algum dia, pois pelo batismo, nós fomos colocados no umbral do paraíso e já podemos antever o que ocorre naquela dimensão transcendental.

No evangelho de João (Jo 1, 6-28), lemos aquele episódio em que os fariseus vão até João Batista a fim de indagarem sobre a sua identidade. A fama de João Batista se espalhara na região e os líderes judeus queriam certificar-se de quem era ele, para isso, mandarem mensageiros a indagar-lhe. Quem és, afinal, para que possamos informar os que nos enviaram? João Batista, então, serviu-se das palavras do profeta Isaías para falar de si próprio: eu sou a voz que clama no deserto – aplainai os caminhos do Senhor. E ao afirmar que ele não era o Messias, acrescentou que “no meio de vós, está aquele que virá depois de mim”, isto é, eu não sou o Messias, mas Ele já está no meio de vós. João tinha consciência plena da sua missão preparatória, conforme ele mesmo proclamou em outra ocasião: é preciso que Ele cresça e eu desapareça. (Jo 3, 30) Ou como ele diz no evangelho de hoje: eu não sou digno nem de desamarrar as correias das Suas sandálias. (Jo 1, 27)

Os fariseus estranharam porque João batizava sem ser um profeta. Aqui, podemos considerar dois aspectos. Primeiro, Jesus mesmo disse que João era mais do que um profeta. Etimologicamente, a palavra “profeta” deriva do grego pro+fainô, isto é, falar por alguém, falar em nome de alguém. Essa palavra surgiu, portanto, com a tradução da escritura em hebraico para a língua grega, conhecida como a tradução dos setenta ou septuaginta. A palavra correspondente, em hebraico, é NAVI (ou NABI), que significa ter uma antevisão dos fatos, o que ocorria geralmente com as manifestações de Javeh em sonhos para certas pessoas. Então, João Batista era mais do que isso, porque ele não falava em nome de alguém, mas em nome próprio, porque ele foi a primeira testemunha da chegada do Messias; e ainda porque ele não recebera nenhuma antevisão através de sonhos, como acontecera com os profetas anteriores. Os teólogos consideram João Batista o último profeta do Antigo Testamento, e de fato, ele foi um profeta especial, um profeta-testemunha, enquanto os outros eram apenas porta-vozes. A maior profecia de João Batista, na verdade, a sua maior revelação, foi a de dizer para aqueles que iam ouvi-lo na margem do Jordão, onde ele batizava: o Messias já está no meio de vocês.

Um outro fato a merecer destaque era o batismo trazido por João, donde lhe advém o cognome de Batista. Os outros profetas não batizavam. Os judeus ficaram intrigados com isso. Como é que ele batiza e nem profeta ele é. De fato, os judeus praticavam um ritual (tevilah) de purificação, que era adotado sobretudo pelas mulheres, após o ciclo menstrual ou após o parto, para poderem novamente frequentar a sinagoga. João utiliza esse ritual, dando a ele um significado novo, a tevilah de arrependimento, a mudança de vida, preparando o caminho para a chegada do Messias. O ritual feito por João era praticado através da imersão do corpo todo no rio, significando que ao emergir, o fiel estaria renascendo, abandonando a sua vida de pecados para reviver purificado. Jesus também se submeteu a esse ritual, conforme sabemos pelas narrativas evangélicas, embora Ele não necessitasse de arrependimento. Mas o fato de Jesus ter-se associado a esse ritual é uma amostra de que Ele estava aprovando aquilo e reconhecendo o valor daquele rito simbólico. Com a tradução pra o grego, a palavra hebraica tevilah passou para baptizô (ou baptismô), que significa também lavar, derramar, aspergir, tendo essa palavra grega assumido todos os significados da tevilah hebraica, inclusive as abluções que os judeus faziam (lavagem das mãos) antes das refeições. João deu um significado mais amplo e profundo para a tevilah (ou baptismô), que deixou de ser um ritual simples e repetitivo para tornar-se uma atitude única de mudança de comportamento, de assunção de um novo modo de vida, de maneira que não haveria mais necessidade de ser repetido. Aqui está mais uma razão para ele ser considerado o último profeta e “mais do que um profeta”, porque depois dele, não haveria mais outro, e sim a manifestação do próprio Deus, em Jesus Cristo.

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domingo, 7 de dezembro de 2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 2º DOMINGO DO ADVENTO - NOVOS CÉUS E NOVA TERRA - 07.12.2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 2º DOMINGO DO ADVENTO – NOVOS CÉUS E NOVA TERRA – 07.12.2014

Caros Confrades,

Neste segundo domingo do advento, a liturgia destaca o tema da consolação, através da palavra de conforto do profeta Isaías ao povo no cativeiro, informando que o tempo do castigo terminou, é hora de preparar o retorno a Jerusalém. O tempo litúrgico do advento nos convida a essa preparação do espírito não para a volta do exílio, mas para a chegada daquele que vem. O Papa Francisco, no sermão de hoje aos peregrinos presentes na Praça do Vaticano, assim comentou esse assunto da consolação do profeta Isaías: “Todos somos chamados a consolar os nossos irmãos, testemunhando que somente Deus pode eliminar as causas dos dramas existenciais e espirituais.” Essas são as formas de cativeiro nos nossos dias.

Portanto, a primeira leitura retirada do profeta Isaías (Is 40, 1-11) nos convida a vivenciar o tempo do advento na alegria da espera da nossa libertação: “Preparai no deserto o caminho do Senhor, aplainai na solidão a estrada de nosso Deus. Nivelem-se todos os vales, rebaixem-se todos os montes e colinas; endireite-se o que é torto e alisem-se as asperezas.” Esse trecho é bastante conhecido, porque ele foi retomado por João Batista, quando pregava o batismo de penitência, nas margens do rio Jordão. O apelo do profeta e do precursor continua ressoando nos nossos dias, quando a liturgia nos põe outra vez no início da trajetória da história da nossa salvação, com a expectativa da vinda do Salvador. O profeta Isaías é aquele que melhor antecipou os acontecimentos relacionados com a chegada do Messias, o libertador: “eis que o Senhor Deus vem com poder, seu braço tudo domina: eis, com ele, sua conquista, eis à sua frente a vitória.” Embora o foco imediato da mensagem do Profeta fosse a libertação dos cativos da Babilônia, na perspectiva transistórica, a mensagem de consolação e de libertação se prolonga nos nossos dias, visto que a salvação prometida não é ato de um dia só, mas um processo continuo de aperfeiçoamento da humanidade, em busca de novos céus e de nova terra.

Aliás, este conceito de “novos céus e nova terra” está na segunda carta de Pedro, lida na liturgia de hoje (2Pd 3, 8-14). Como todos sabemos, Pedro não era nenhum intelectual, pois fora criado à margem do Lago de Genesaré, dedicando-se ao ofício da pesca, quando recebeu o chamado de Jesus. Estima-se que as cartas de Pedro foram escritas por Marcos, que era discípulo dele e o acompanhava. Diferentemente de Paulo, que escrevia aos gentios, isto é, aos povos que não conheciam a tradição judaica, Pedro escrevia para uma comunidade de Judeus, daí porque ele não precisava explicar muitas coisas, que os seus leitores já conheciam. No trecho dessa leitura, Pedro repete duas imagens que são recorrentes nos evangelhos sinóticos: o dia do Senhor virá como um ladrão e a precipitação dos céus para a terra, causando um grande incêndio que destruirá tudo. Devemos nos lembrar que as cartas de Pedro foram escritas antes dos evangelhos, portanto, não se pode dizer que ele retirou esse assunto da leitura dos evangelhos, mas sim, o oposto. Isso denota ainda que tais comentários deviam ser bastante corriqueiros nas comunidades cristãs primitivas.

Tirante aqui essa descrição das chamas, que tudo irão desintegrar, assunto já abordado em comentários anteriores, importa destacar que Pedro afirma isso no contexto da realização da promessa divina de que surgirão novos céus e nova terra, onde habitará a justiça. Deduz-se que essa imagem da destruição não deve ser compreendida no sentido físico, geográfico, mas no sentido da destruição do pecado e da injustiça, para cederem lugar à justiça que vem de Deus. É curioso observarmos o uso do plural em “novos céus” (no original grego, kainoús dé ouranoús), enquanto “terra” está no singular. Isso demonstra que Pedro acreditava na tradição judaica acerca da existência de sete céus (o primeiro, chamado Vilon, seria o local onde originalmente moravam Adão e Eva, de onde eles “caíram” para a terra, depois seguiam-se outros até chegar ao sétimo céu, que seria propriamente a morada de Deus). Dessa concepção, parte a idéia de que os céus “cairão” sobre a terra, porque essa era a noção geográfica daquela época. Visto que Pedro escrevia aos judeus, ele não precisava explicar com detalhes o que seriam esses céus, que seriam renovados. Referindo-se à terra (no original grego, gen kainen), aparece outra vez o adjetivo “kainos”, que significa algo inédito, extraordinário, nunca visto antes. Ou seja, a tradução de kainos por novo em português não indica toda a força que a palavra grega possui. Assim, os novos céus e a nova terra representam a idéia de um processo de depuração, de purificação, não sendo propriamente uma coisa que vem substituir outra, assim como nós passamos a usar um novo sapato e jogamos o outro no lixo. O novo tem aqui o sentido da renovação, de tomar algo que está velho e fazê-lo tornar-se novo outra vez. E acerca dos “sete” céus, esse conceito continua vigente no talmud judaico e significa uma espécie de local físico, embora muito elevado, porém não é compatível com o conceito de céu presente na doutrina teológica cristã.

Portanto, conforme escrevi acima, deixando de lado essa noção do sétimo céu como morada de Deus, a mensagem da carta de Pedro nos incentiva a vivermos na esperança da renovação prometida, cuja realização depende também do esforço de cada um de nós: “vivendo nessa esperança, esforçai-vos para que ele vos encontre numa vida pura e sem mancha e em paz.” Tal como Paulo fez em suas cartas, Pedro também adverte os cristãos mais apressados para que saibam esperar a vinda do Senhor, pois “para o Senhor, um dia é como mil anos e mil anos como um dia. O Senhor não tarda a cumprir sua promessa, como pensam alguns, achando que demora.” Percebe-se que tanto nas comunidades dos gentios quando nas comunidades judaicas, prevalecia uma expectativa de que Jesus retornaria “em breve”, ou seja, naqueles próximos dias, por isso tanto Paulo quanto Pedro ensinavam aos cristãos que não deviam ter pressa nem tentar adivinhar esse dia, mas que cada um permanecesse fiel e se mantivesse alerta e em prontidão. Passados mais de dois milênios e considerando a evolução dos conhecimentos científicos acerca do universo, devemos compreender esses “novos céus e nova terra” no sentido teológico espiritual, de modo que vivendo nessa “velha” terra o “reino de Deus”, estamos antecipando pela fé a vida na Jerusalém celeste, servindo como nosso guia nessa caminhada o evangelho de Cristo.

Na leitura do evangelho de Marcos (Mc 1, 1-8), vemos repetido o mesmo trecho do profeta Isaías, juntamente com a referência a João Batista, como aquele que foi enviado para preparar o caminho quando já estava próxima a chegada histórica de Cristo. Dizia João: já está no meio de vós aquele que virá depois de mim. Depois de mim virá alguém mais forte do que eu. Eu nem sou digno de me abaixar para desamarrar suas sandálias. Eu vos batizei com água, mas ele vos batizará com o Espírito Santo”. Aqui também devemos entender que esse trecho foi escrito muito depois da época de João, pois João ainda não conhecia a pessoa divina do Espírito Santo, a qual foi revelada somente depois, durante as pregações de Cristo. João teve uma antevisão do Espírito Santo em forma de pomba, por ocasião do batismo de Cristo por ele, mas isso não significa que ele tivesse tido uma antecipação da doutrina trinitária, que Jesus iria explicar aos apóstolos durante sua catequese com eles. A consciência do seu papel de precursor está bem expressa na metáfora de João sobre “desamarrar suas sandálias”. João tinha ciência de que a origem divina de Cristo e a missão que Ele ali iniciaria não tinha termo de comparação com o seu próprio trabalho. E sabe-se pela leitura de Mateus (3, 11) que João teria argumentado com Jesus: eu devo ser batizado por ti, mas tu vens a mim. E Jesus teria respondido: deixa assim por enquanto. Tudo devia acontecer de acordo com o plano do Pai e João era um importante personagem nesse plano.

Que nós saibamos, portanto, interpretar com sabedoria a temática bíblica posta diante de nós pela liturgia do advento, de modo a compreendermos sempre melhor o significado desse tempo religioso importante, mas que fica em geral obscurecido pelos apelos comerciais e emocionais relacionados com o natal da troca de presentes, desviando-nos do verdadeiro sentido do natal cristão.

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domingo, 30 de novembro de 2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 1º DOMINGO DO ADVENTO - O BARRO E O OLEIRO - 30.11.2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 1º DOMINGO DO ADVENTO – O BARRO E O OLEIRO – 30.11.2014

Caros Confrades,

O primeiro domingo do advento sempre dá início ao novo ano litúrgico, que não segue o calendário civil. Neste ano, classificado com a letra B, as leituras do evangelho serão, preferencialmente, do evangelista Marcos. Cronologicamente, o evangelho segundo Marcos foi o primeiro dos quatro a ser escrito, embora não seja o primeiro na ordem canônica. Consta que Marcos era discípulo de Pedro e teria sido também o escriba das cartas deste. O texto deste evangelista é considerado o mais próximo das fontes documentais pelo fato de apresentar-se mais resumido e com poucos detalhes dos fatos narrados. Deve ter sido escrito por volta do ano 50 d.C.

Conforme já lembrei nos anos passados, a festa de Natal em 25 de dezembro é apenas uma data referencial, não significando o dia exato em que Jesus nasceu. A festa passou a ser celebrada nesta data por determinação do imperador Constantino, que aproveitou uma festa pagã que já existia, em homenagem ao deus saturno, marcando a passagem do solstício de inverno no hemisfério norte. Isto é, a festa de 25 de dezembro já existia antes e, a partir de Constantino, ela foi transformada em uma festa cristã, homenageando Jesus, o novo sol do mundo. A tradição cristã passou a incorporar essa festa com as paisagens do inverno europeu, ornamentando com pinheiros cobertos de neve, porém devemos nos lembrar que Jesus nasceu em Belém, na Judéia, e no local do Seu nascimento não havia nem pinheiros nem neve, ao contrário, a região é predominantemente desértica. Mais um motivo para nós compreendermos o Natal com a sua simbologia coerente com o evangelho e não com os costumes tradicionais, que associam o Natal à troca de presentes e à farta ceia com iguarias típicas da data. Diferente disso, o nascimento de Cristo foi um acontecimento modesto e até austero, pois como se sabe, Maria e José não encontrarem nem hospedagem decente naquele dia de grande aglomeração em Belém de Judá.

Nas leituras litúrgicas de hoje, temos a primeira do profeta Isaías (63, 16 – 64,7, portanto, do deutero-Isaías), em que o Profeta recorda o tempo do exílio como um castigo divino, porque o povo se afastou dos caminhos do Senhor, e faz uma declaração de humildade, ao dizer que “nós nos tornamos imundície e todos as nossas obras são como um pano sujo … por isso, escondeste de nós a tua face e nos entregaste à mercê de nossas maldades”. E logo em seguida, vem a declaração de confiança: “Assim mesmo, Senhor, tu és nosso pai, nós somos barro; tu, nosso oleiro, e nós todos, obra de tuas mãos. A figura do barro nas mãos do oleiro tem um significado bastante forte de confiança na misericórdia do Senhor, na medida em que o barro é um objeto amorfo e receberá a forma que as mãos do oleiro quiser lhe dar. Essa imagem é reforçada pelo vers. 3 do cap 64: “Nunca se ouviu dizer nem chegou aos ouvidos de ninguém, jamais olhos viram que um Deus, exceto tu, tenha feito tanto pelos que nele esperam. A música cantada na celebração deste domingo, inspirada nessa imagem profética, dizia algo assim: toma o meu barro e faz de mim um vaso novo. Escolhi essa passagem de Isaías como o tema deste comentário justamente porque, ao meu ver, o tempo do advento é a ocasião propícia para cada cristão largar fora o invólucro velho e construir em si um novo receptáculo, para ali depositar o Salvador, cujo nascimento comemoramos. Tal como a quaresma é o tempo de penitência em preparação para a Páscoa do Senhor, o advento é também um tempo de revisão de procedimentos, de limpar as veredas e aplainar os caminhos para a vinda do Senhor. Na verdade, a festa do Natal é a segunda mais importante do calendário cristão, superada apenas pela festa da Páscoa. A vinda de Cristo é o início do mistério da redenção prometido por Javeh aos antigos Patriarcas e que não se destina mais somente àquele povo original da aliança, mas alcança todo o gênero humano. Esse é o acontecimento chave que marca o ponto de partida da caminhada eclesial que será seguida no decorrer do ano.

A segunda leitura traz o início da primeira carta de Paulo aos Coríntios (1Cor 1, 3-9), em cujo preâmbulo o Apóstolo felicita aquela comunidade e recomenda a perseverarem firmes na fé até “o dia de Nosso Senhor Jesus Cristo”, numa alusão evidente à segunda vinda de Cristo. Conforme já expliquei em comentários anteriores, os cristãos daquela época (e Paulo inclusive) entendiam a vinda gloriosa de Cristo “para julgar o mundo” como algo que ocorreria por aqueles dias, não iria demorar muito. No versículo 7, Paulo diz isso textualmente, quando escreve “vós que aguardais a revelação de Nosso Senhor Jesus Cristo”, ou seja, Ele irá retornar a qualquer momento. O tema dessa leitura paulina está em consonância com o tema do evangelho de Marcos, chamando a atenção para a perseverança até o final, dentro da fidelidade à graça recebida. Deus é fiel, repete Paulo, e essa fidelidade de Deus deve ser correspondida com a fidelidade do crente. Percebe-se, pela frequência com que Paulo volta a esse assunto, que essa maneira de compreender a segunda vinda de Cristo era uma idéia recorrente nas comunidades cristãs. Assim se entende porque o tema da “vigilância” é tantas vezes reprisado tanto nas cartas de Paulo quanto nos evangelhos, sendo também um apelo insistente da liturgia nessa época do ano.

A leitura do evangelho de Marcos tem essa mesma conotação da vigilância (Mc 13, 33-37). Vejamos como essa preocupação chegava a ser exagerada, pela forma como o tema nos é apresentado na parábola do patrão que viajou ao estrangeiro e deixou sua propriedade sendo cuidada pelos seus empregados. O patrão também deixou a cada empregado uma tarefa específica, encarregando um deles de ser o porteiro, que ficaria vigiando a casa. Quanto aos demais, diz a parábola, devem estar sempre preparados, porque não sabem a que dia ou hora o patrão retornará. Pode ser de tarde, de noite, de madrugada, ninguém sabe quando será este dia. Do modo como a história é contada, tem-se a impressão de que aqueles empregados não poderiam dormir, porque pode ser que o patrão chegue na hora do sono deles. Ora, meus amigos, parece óbvio aqui um exagero de linguagem. Na verdade, o foco da mensagem, ao meu ver, se refere à execução da tarefa da qual cada um foi encarregado e não ao sono em si. Essa, sim, deve ser cumprida conforme o cronograma, de modo que, no retorno do patrão, a tarefa não esteja em atraso. A tarefa maior que Jesus deixou para nós, os empregados, está resumida naqueles dois mandamentos, que todos conhecemos muito bem: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. Essa é a tarefa que não pode ser deixada para depois, mas deve ser realizada constantemente.

Com efeito, não devemos nos guiar pela tradição dos primeiros tempos do cristianismo ao interpretar esses discursos escatológicos de Jesus. Eu abordei isso aqui no domingo anterior. A segunda vinda de Cristo não deverá ser um fenômeno coletivo, de proporções cósmicas, mas um evento privado na vida de cada pessoa. Em vez de ser Ele que virá ao nosso encontro, nós, ao contrário, é que nos dirigiremos a Ele. Devemos compreender que essa maneira de apresentar o fenômeno é resultado da noção que se tinha na época acerca da terra e sua posição relativa aos demais corpos celestes. Não há dúvida de que toda a escritura é inspirada por Deus e útil para ensinar, conforme ensinou o apóstolo Paulo (2Tim 3, 16), porém, ela é palavra divina em linguagem humana e deve ser entendida dentro da concepção científica e cosmológica da época em que foi escrita. Compete a nós, que hoje lemos esses textos, desapegar do fundamentalismo e da literalidade para assim alcançarmos o seu significado mais apropriado para o nosso tempo.

Portanto, o ensinamento de Cristo para que estejamos sempre vigilantes se refere ao nosso tempo existencial. Por isso, essas leituras do tempo do natal não devem ser assimiladas com um tom de ameaça ou de aterrorização, mas como um apelo de vida consciente e centrada nos nossos compromissos de cristãos.

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domingo, 23 de novembro de 2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO - FESTA DE CRISTO REI - 23.11.2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO – FESTA DE CRISTO REI – REINO DA CARIDADE – 23.11.2014.

Caros Confrades,

Como é praxe, no domingo que encerra o ano litúrgico, a Igreja celebra a festa de Cristo Rei do Universo. Recordando um pouco a história, esta celebração foi instituída em 1925, pelo Papa Pio XI. Em outras ocasiões, já manifestei essa mesma opinião que direi agora: esta é uma festa litúrgica triunfalista, que não condiz com o exemplo histórico de Cristo. Além disso, penso que seria mais adequado falar-se de Cristo Rei de todos os povos, visto que a festividade se restringe ao orbe terrestre, onde a mensagem cristã foi deixada por Ele e se incorporou praticamente a todas as culturas. E no evangelho, quando Ele disse: ide e ensinai a todos os povos, dirigia-se certamente às pessoas da terra, não à imensidão do cosmos. Deus, o criador, reina sobre tudo. Porém, o Filho e sua mensagem foram dados às pessoas e seu objetivo será alcançado com a união de todos os povos. Nós não sabemos se existem outros mundos similares ao nosso. Pela simples estatística da probabilidade, é muito provável que, no meio de milhões de corpos celestes existam vários em condições idênticas à terra, mas disso não sabemos e ainda estamos longe de aprender. Por isso, quando nos referimos à divulgação da mensagem cristã, devemos nos ater aos confins do nosso planeta, lembrando-nos de que (conforme já abordei no domingo anterior), na época em que os evangelhos e as cartas de Paulo foram escritos, a noção geográfica que se tinha era de que as estrelas no céu eram apenas pequenos pontos luminosos, nada mais do que isso. Hoje sabemos que o nosso sistema solar e até a galáxia onde ele se situa não passa de um pequeno e remoto sítio espacial.

Por isso, ou seja, dada essa completa modificação do conhecimento que se tem sobre o universo nos dias de hoje, as leituras litúrgicas exigem de nós um maior esforço mental para ajustar a compreensão da mensagem. A primeira leitura, do livro do profeta Ezequiel, habitualmente enigmático, no trecho lido na liturgia de hoje, faz referência às muitas ovelhas que estão dispersas e que serão resgatadas por Deus. Porém, comete um erro na época justificável, de fazer distinção entre ovelhas, carneiros e bodes. Esse mesmo erro referencial será também cometido por Mateus, na distinção entre ovelhas e cabritos, comentarei isso mais adiante. Por sua vez, a carta de Paulo aos Coríntios (1Cor 15, 20-28) contém aquela famosa e polêmica comparação entre Adão e Jesus Cristo, que traz dificuldades teológicas para a harmonização entre a teologia e a ciência: “por um homem veio a morte, e é também por um homem que vem a ressurreição dos mortos. ” (15, 21) Conforme todos sabem, na perspectiva científica, não se sustenta mais a convicção de que toda a humanidade se originou apenas de um único casal, porém esse era o entendimento na época de Paulo. E depois, Paulo faz uma afirmação que, ao meu ver, está em total desacordo com a idéia de Cristo sobre o seu “reino”: “Pois é preciso que ele reine, até que todos os seus inimigos estejam debaixo de seus pés.” (15, 25) Ora, essa idéia de subjugar os inimigos é bem típica da época do império romano e era um arquétipo na cabeça de Paulo. No entanto, o “reino” que Cristo veio fundar é o reino do amor, cujo passaporte para seu ingresso é a caridade e, assim sendo, não está conforme a ele a imagem de submeter os inimigos debaixo dos seus pés. Os possíveis inimigos serão conquistados para fazerem parte também eles do reino da caridade. Por isso, precisamos filtrar a doutrina de Paulo para a ajustarmos à cosmovisão contemporânea. E Paulo novamente insiste naquela idéia da qual tratei no domingo passado, qual seja, a vinda de Cristo. Ele, Paulo, e os cristãos da época, pensavam que o retorno de Cristo era uma questão de poucos dias, Paulo pensava que ainda iria encontrar Cristo antes de morrer. Do mesmo modo, os demais cristãos entendiam que essa vinda gloriosa de Cristo seria iminente. Só com o passar do tempo e com o aperfeiçoamento da reflexão teológica essa idéia mudou.

Um semelhante contorcionismo mental será necessário para ajustarmos a compreensão do texto do evangelho de Mateus, lido na liturgia de hoje (Mt 25, 31-46). Novamente, precisamos ter em mente a cosmologia da época, fundada no geocentrismo de Ptolomeu, que era o conhecimento científico dominante. Mateus coloca na boca de Jesus todo um discurso que é, provavelmente, muito mais resultado da crença da comunidade do que de palavras do próprio Cristo. Quanto Pilatos perguntou-lhe: então, és rei? Jesus respondeu: o meu reino não é deste mundo. (João 18, 34) Então, essa descrição de Jesus descendo em sua glória, acompanhado dos anjos e sentado num trono glorioso é muito mais uma idéia de uma cabeça pensante humana do que alguma idéia que se perceba nos outros discursos de Cristo acerca do reino de Deus. De fato, o evangelista faz uma descrição bem conforme o modelo terreno dos reis de sua época, que é também como ainda hoje as imagens de Cristo Rei são representadas: com um vistoso manto, uma coroa real, um cetro, como eram os protótipos dos reis da antiguidade. Mas o Cristo Rei não precisa se apresentar com esse aparato imperialista, porque o Seu reino é da caridade, do amor ao próximo, não é da ostentação nem da dominação.

Uma outra comparação totalmente desproporcional é a que o evangelista faz, ao distinguir as ovelhas dos cabritos (25, 32-33), colocando as ovelhas à direita e os cabritos à esquerda. Eu diria que é uma comparação infeliz, porque está figurando os infiéis como cabritos, da mesma forma como o profeta Ezequiel havia diferenciado entre ovelhas, carneiros e bodes (Ez 11, 17). Meus amigos, essa metáfora é totalmente fora de propósito. Deve ter sido dela que os artistas medievais tiraram aquela idéia de representar o demônio com pés de bode, ou seja, bodes, cabritos são imagens demoníacas. Quero crer que Jesus Cristo não tenha feito esse tipo de comparação, porque contém uma odiosa discriminação, tenho por certo que da boca de Jesus não saíram palavras com tais significados depreciativos. Ademais, eu também tenho por certo que a “fila da esquerda” estará totalmente vazia, todos (ovelhas, carneiros, bodes e cabritos) estarão na “fila da direita”, porque o reino de Cristo é o reino do amor e o passaporte para sua entrada é a caridade. Percebe-se isso na ações que Ele valorizou praticadas por aqueles que ficaram na fila da direita: estava com fome e me destes de comer, com sede e me destes de beber, era estrangeiro e me recebestes na vossa casa... ou seja, em uma só palavra, é a prática da caridade.

O Papa Francisco, na missa de hoje, canonizou seis novos santos (quatro italianos e dois indianos), celebrando a missa em latim e proclamando o evangelho em grego, em homenagem às igrejas católicas orientais. Tive pena de não ver isso, pois eu gostaria demais de escutar o evangelho pronunciado em grego. E no sermão, Sua Santidade fez uma afirmação profética e, essa sim, condizente com a mensagem de Jesus: "A Salvação – disse o Papa – não começa confessando a realeza de Cristo, mas imitando as obras de misericórdia por meio das quais Ele realizou o Reino do amor, da proximidade e da ternura com os nossos irmãos. Disso dependerá a nossa entrada ou não no Reino de Deus”. (notícia do site www.zenit.org, de hoje) Achei perfeito esse ensinamento do Papa, desmistificando aquela imagem triunfalista e dominante tradicional do Cristo Rei. Proclamar a realeza de Cristo é agir como Ele agiu e como Ele ensinou que deveríamos agir: dando alimento aos famintos e água aos sedentos, vestindo os nus e recepcionando os estrangeiros. Se não fizermos isso, não adianta tentar se colocar sob o manto do Cristo Rei, porque não haverá espaço.

Meus amigos, repito uma idéia que já expus aqui, no ano passado: entendo a figura de Cristo como rei não no sentido da realeza terrena, mas como o soberano da verdade, da justiça, da paz, da igualdade e da fraternidade e, para isso, Ele não precisa nem de um manto nem de um cetro nem de um trono, porque o seu manto é a verdade, o seu trono é a justiça e o seu cetro é a paz.

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domingo, 16 de novembro de 2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 33º DOMINGO COMUM - CAPITALISMO DE JESUS - 16.11.2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 33º DOMINGO COMUM – CAPITALISMO DE JESUS - 16.11.2014

Caros Confrades,

A liturgia do 33º domingo comum, o penúltimo do ano eclesiástico, nos traz uma imagem do que se poderia chamar de capitalismo de Jesus: o patrão da história indica como modelo de atitude a produção de algum lucro e ironiza a falta de interesse de um operário que nem ao menos colocou a sua porção no banco, a fim de “receber juros”. São os ensinamentos de Cristo na conhecida parábola dos talentos, os quais devem sempre produzir novos frutos e multiplicarem-se.

Na primeira leitura, temos um também conhecido texto do Livro dos Provérbios, em que o sábio bíblico elogia uma figura feminina (Prov 31, 10-31): a mulher forte. Não deixa de ser uma referência bem interessante, porque sabe-se que, naquela época, a tarefa da mulher era colocada em segundo plano, a sua função social era secundária, num tempo em que predominava a cultura masculina, hoje chamada de machismo. Em geral, todos as culturas antigas seguem o modelo da família patriarcal, aquela em que o homem tem o poder e o domínio sobre todas as pessoas e os bens familiares. Entre os hebreus, isso não era diferente. Daí porque a figura da “mulher forte” lançada no livro dos Provérbios é uma referência que foge ao padrão cultural comum do tempo. Este livro teria sido escrito por Salomão, pelo menos em sua maior parte, e depois foi complementado por outros sábios hebreus, sendo considerado um livro profético e de leitura pública nas sinagogas judaicas, embora o seu conteúdo seja nitidamente ético e filosófico, baseado na vida cotidiana. O autor tem por objetivo ensinar o leitor a alcançar a sabedoria através da autodisciplina e de uma vida prudente.

As características da “mulher forte”, de acordo com a sabedoria salomônica, são a diligência ou a operosidade (com habilidade trabalham as suas mãos), a caridade ou a prestatividade (abre suas mãos ao necessitado e estende suas mãos ao pobre) e a piedade ou o temor de Deus (a mulher que teme ao Senhor, essa sim, merece louvor). E conclui o sábio: “Ela vale muito mais do que as joias. Seu marido confia nela plenamente, e não terá falta de recursos” (Pv 31, 10-11). Tenho plena certeza de que todos nós tivemos a ventura de ter pelo menos duas mulheres fortes nas nossas vidas: as nossas mães e as nossas esposas. Trabalhando sempre em silêncio, mas com todo o afinco, elas tiveram um papel importante e decisivo naquilo que cada um de nós conseguiu realizar. Foi por isso que Javeh, logo no início da humanidade, proclamou que não convém que o homem fique só. E observemos que o sábio fala na “mulher forte”, não na mulher subordinada, subjugada, inferiorizada. Se na época de Salomão ele já indicava essa qualidade feminina para a mulher que fará a companhia correta e justa para o homem (ela lhe dá só alegria e nenhum desgosto, todos os dias de sua vida), nos dias modernos, essa característica é ainda mais necessária e mais deve ser reconhecida e valorizada. Fica aqui a minha homenagem a todas as nossas caras-metades, que são mesmo metades de nós.

Na segunda leitura, de Paulo aos Tessalonicenses (1Ts 5, 1-6), o Apóstolo explica a vinda de Cristo no momento em que ninguém espera, por isso, todos devem estar vigilantes, para não serem surpreendidos. Nota-se que, naquela ocasião, havia uma expectativa de que Cristo iria retornar “a qualquer momento”, o próprio Paulo no início também pensava assim. Paulo tinha esperança de poder ver a Cristo na sua vinda, já que não tivera oportunidade de vê-Lo em sua existência humana. Ou seja, parecia àqueles crentes que o retorno de Jesus era uma questão de horas, de dias, talvez, tanto que alguns daquela comunidade até deixaram de trabalhar e viviam olhando para o céu, esperando ver o momento em que “aquelas coisas” apareceriam. E lembremos que, naquele tempo, ainda não era conhecido da comunidade o Apocalipse de João, onde os “sinais” do final dos tempos estão pintados com cores bem mais nítidas. Passados todos esses anos (dois milênios), nós ainda vemos pessoas alarmistas tentando interpretar os fenômenos climáticos e os desastres provocados pela ação humana como sendo os sinais do Apocalipse. Essas pessoas, de visão curta e fundamentalista, imaginam que o universo seja somente o planeta terra e se esquecem que somos menores do que um grão de areia no infinito do cosmos. Caso (digo apenas por um raciocínio absurdo) a terra entre em colapso, podem até sucumbir a vida humana e as outras formas de vida que conhecemos, mas o mundo não será nem minimamente afetado. Na verdade, a lição que devemos tirar da leitura da carta de Paulo é a da vigilância, da prudência, da prontidão. A vinda de Cristo será a qualquer momento, disso ninguém duvida, mas a prestação de contas será de cada um de nós e não do mundo como um todo. E assim que eu acredito.



Na leitura de hoje do evangelho de Mateus (25, 14 30), Jesus assume uma postura nitidamente capitalista, quando proclama a parábola dos “talentos”: um homem rico deixou três empregados na administração dos seus bens, distribuindo a cada um quantias desiguais “a cada qual de acordo com a sua capacidade”. Já começa aí a “esperteza” do patrão. Por que motivo Jesus daria um exemplo de um patrão que não trata os empregados de um modo isonômico? Por que isso se ele havia dito que o Pai não faz acepção de pessoas? Para ajudar a clarear essa polêmica, lembremo-nos daquela outra passagem em que Judas censurou a pecadora, porque ela estava derramando perfume nos pés de Jesus, pois estava estragando um produto valoroso, que se fosse vendido daria para dar esmolas a muitos pobres. E Jesus disse: pobres sempre tereis entre vós (Jo 12, 8). Vê-se, desse modo, a falácia de certos pregadores socialistas de que as riquezas devem ser repartidas igualmente para todos. Temos aí já dois exemplos da pregação de Cristo, em que ele reconhece que as pessoas têm diferentes habilidades e, por que não dizer, capacidades de trabalho diferentes. Por isso, não é justo que um preguiçoso tenha retribuição igual ao que despendeu grande esforço para produzir seu trabalho. Não é justo, ao contrário, é viciante “dar dinheiro” a quem não trabalha, sob a pífia desculpa de que essas pessoas não tiveram as mesmas oportunidades na vida. Todos nós conhecemos exemplos práticos que contraditam essa ideologia interesseira, tomando como referência as nossas próprias vidas e a dos nossos colegas, que conosco dividiram a mesma moradia durante anos.
Então, o patrão fictício da parábola de Cristo distribuiu seus bens em proporções diferentes entre os três empregados, dando a cada um de acordo com as suas capacidades. Dois deles, os mais operosos, multiplicaram as parcelas recebidas, porém o terceiro, por medo, por preguiça, por desinteresse, o que seja, não produziu nada. Os dois primeiros foram louvados, enquanto o terceiro foi censurado e excluído. E Jesus ainda vai mais longe na sua metáfora: por que não colocaste pelo menos depositado em algum banco? Assim, poderia render juros... Se observarmos bem, Jesus não está propriamente dizendo que o ganho de juros sobre o capital é legítimo, embora também não rejeite isso. Mas Ele quer dizer que ninguém deve ficar inerte, fechar-se no seu isolamento e não buscar nenhum tipo de atitude produtiva. O capitalismo de Jesus não é igual ao capitalismo de mercado, a busca do ganho constante, ilimitado, anti-ético, a qualquer custo, não se trata disso, mas no sentido da produtividade. Nós precisamos ser pessoas produtivas, tanto no sentido da produção de bens, porque isso é, sem dúvida, necessário, pois é assim que cada um de nós compartilha da obra divina da criação do mundo, mas também da produção de bons exemplos, de virtudes, de amor ao próximo, de fé e caridade nas nossas tarefas cotidianas. A partilha de bens materiais deve fazer-se na mesma proporção e na mesma oportunidade da partida da palavra e da oração. E o ambiente mais adequado para se fazer isso é na comunidade paroquial, onde nós praticamos o que é ser igreja. Portanto, aquela ação caritativa tradicional de apenas dar a esmola “pelo amor de Deus” não é exatamente o tipo de partilha que Jesus quer que façamos. Se não for acompanhada do seu componente interior de religiosidade, uma tal partilha termina por ser mecânica e artificial. Daí a minha sugestão de que o ambiente legítimo para se exercitar a partilha será através das ações comunitárias, preferencialmente, nas paróquias, que me parece preferível do que na forma de ações isoladas, individuais. Assim, estaremos praticando o verdadeiro capitalismo cristão.

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domingo, 9 de novembro de 2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 32º DOMINGO COMUM - A IGREJA MÃE - 09.11.2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 32º DOMINGO COMUM – A IGREJA MÃE – 9.11.2014

Caros Confrades,

Neste 32º domingo comum, a liturgia celebra a festa da dedicação da Igreja de São João do Latrão, a igreja-mãe de todas as igrejas católicas, a catedral de Roma. Esta festa remonta aos tempos árduos da difusão do cristianismo na Europa, até sua “aprovação” por Constantino. Mas devemos pensar na “igreja” não apenas como o templo físico, de paredes, telhado e portas, e sim também como o templo vivo que somos cada um de nós, na medida em que, pelo batismo, nos tornamos morada da Santíssima Trindade, possibilitando a realização daquela promessa de Jesus: onde estiverem dois ou mais reunidos em meu nome, eu estarei no meio deles. Não é necessário estar dentro de um templo físico para que a Sua presença se faça sentir, porque de fato ela já está latente em cada um de nós, pulsando em nossos corações.

Antes de mais nada, um pouco de história: como a Igreja do Latrão se tornou a igreja-mãe de todas as igrejas católicas ocidentais? O cristianismo vivia tempos de perseguição em Roma, que era na época a capital do mundo ocidental. Contudo, dentro da sociedade romana, havia já muitos cristãos ocultos, que não podiam manifestar-se publicamente. Quando Constantino ascendeu ao trono do império romano, sua mãe Helena, que era cristã e foi depois canonizada, passou a interceder junto ao filho para permitir a liberdade de expressão do cristianismo, mas ele só concordou com isso quando teve um “sinal do céu”. O imperador estava enfileirando o seu exército para enfrentar um inimigo poderoso e temia pelo resultado da batalha. Então, ele viu uma formação de nuvens no céu em figura de cruz e teria ouvido uma voz a dizer: “in hoc signo, vinces” (neste sinal, vencerás). Ele teria feito uma espécie de “promessa” de que daria liberdade aos cristãos, caso fosse vencedor. E foi. Depois da vitória na batalha da Ponte Mílvia (312), Constantino proclamou solenemente a liberdade religiosa em todo o império romano, através do Edito de Milão, no ano 313. No ano passado (2013), as igrejas católicas ocidental e oriental celebraram juntas o aniversário de 1.700 anos deste Edito, que foi o marco inicial da existência oficial do cristianismo europeu.

Os historiadores dizem que Constantino teria se convertido ao cristianismo, porém estudos recentes indicam que ele era adepto da doutrina ariana, que negava a natureza humana de Jesus, portanto, ele não teria sido um cristão conforme a doutrina oficial. Ele foi o responsável pela convocação do Concílio de Nicéia (em 321), onde foi discutida essa divergência e prevaleceu a doutrina de Santo Atanásio, que afirmava que Jesus era verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem, texto que passou a constar no Credo. Com isso, o bispo Ario, autor do arianismo, foi derrotado e seus adeptos se dispersaram. Porém, consta que o imperador Constantino, secretamente, continuou defendendo o arianismo. Em outras palavras, Constantino teria sido um cristão por conveniência, não por plena convicção. Porém, ele ajudou muito a Igreja nesses primeiros tempos e, quando ele transmudou a sede do império romano para Constantinopla, ele doou o palácio que era residência da imperatriz para o Papa Silvestre, que passou a residir ali. E o local foi reformado para ser transformado num grande templo, que foi o primeiro templo cristão oficial de Roma e sede da residência papal: o Palácio do Latrão e a Basílica de São João do Latrão. A inauguração solene ocorreu nesta data, no ano 324, completando portanto hoje 1.690 anos da sua consagração. Ainda conforme os estudos históricos, no ano seguinte, Constantino mudou-se para Constantinopla porque não ficava bem que as duas maiores autoridades do mundo (ele e o Papa) residissem numa mesma cidade, deixando em Roma a sede do poder religioso e levando para Constantinopla a sede do poder político. Alguns anos depois, os bárbaros invadiram e dominaram Roma, eliminando de vez o poder político dos romanos na região. Porém, os bárbaros não fizeram oposição ao cristianismo, de modo que o poder religioso do Papa permaneceu, mesmo depois da queda de Roma. Apenas por uma questão de fidelidade histórica, convém esclarecer que as igrejas cristãs orientais (Éfeso, Alexandria, Damasco, Esmirna, Antioquia) são muito mais antigas do que a igreja de Roma. Portanto, a Basílica do Latrão é a referência inicial das igrejas cristãs ocidentais apenas.

Nas leituras litúrgicas da festa de hoje, temos a segunda leitura da carta de Paulo aos Coríntios (1Cor 3, 11-17), onde o Apóstolo ensina aos primeiros cristãos que o nosso corpo é o santuário de Deus e isso é mais importante do que as igrejas construídas de pedra e de barro. Vós sois a lavoura de Deus, diz ele, e eu coloquei em vocês o alicerce sobre o qual deveis construir a vossa fé: Jesus Cristo. “Acaso não sabeis que sois santuário de Deus e que o Espírito de Deus mora em vós? Se alguém destruir o santuário de Deus, Deus o destruirá, pois o santuário de Deus é santo e vós sois esse santuário.” (1Cor 3, 16-17) Ninguém pode colocar em vocês outro alicerce diferente de Cristo Jesus. A liturgia chama a nossa atenção para o templo de Deus, que somos nós, construídos sobre o alicerce divino, que é o próprio Cristo. Durante muito tempo, difundiu-se uma doutrina de cunho clericalista, que não reconhecia o valor teológico do povo de Deus, que somos nós, identificando a igreja como pertencendo aos cristãos ordenados (padres e bispos). Contudo, o Concílio Vaticano II, na Constituição Dogmática “Lumen Gentium” veio consertar esse equívoco, mostrando a grande importância dos leigos na configuração eclesial. Assim diz o seu item 30: “O Sagrado Concílio, depois de ter enunciado as funções da hierarquia, de bom grado dirige o seu pensamento para o estado daqueles fiéis que têm o nome de leigos. Quanto se disse do povo de Deus, vale igualmente para leigos, religiosos e clérigos. Todavia certas coisas dizem respeito de modo particular aos leigos, homens e mulheres, em razão da sua condição é da sua missão e importa considerar-lhes os fundamentos com mais cuidado, em virtude das especiais circunstâncias do tempo atual. Os sagrados pastores reconhecem perfeitamente quanto os leigos contribuem para o bem de toda a Igreja. Sabem que os pastores não foram instituídos por Cristo para assumirem sozinhos toda a missão da Igreja quanto à salvação do mundo mas que o seu excelso múnus é apascentar os fiéis e reconhecer-lhes os serviços e os carismas, de tal maneira que todos, a seu modo, cooperem unanimemente na tarefa comum. E, pois, necessário que todos, professando a verdade na caridade, cresçamos em tudo para aquele que é a cabeça, Cristo, pelo influxo do qual o corpo inteiro - bem ajustado e coeso por meio de toda a espécie da junturas que o alimentam, através de uma ação proporcionada a cada uma das partes - realiza o seu crescimento, em ordem à própria edificação na caridade (Ef 4,15-16).” O Concílio veio, assim, reafirmar a doutrina paulina sobre o santuário humano, a morada do Espírito de Deus em cada um de nós, fato que nos torna pedras vivas na construção eclesial.

Na leitura do evangelho de João (2, 13-22), vemos Jesus expulsando do templo os vendedores e cambistas, porque haviam transformado a casa de oração em um covil de ladrões. E quando os fariseus vieram pedir a Ele um sinal de autoridade para fazer aquilo, Jesus lançou-lhes um desafio que eles não entenderam: destruí esse templo e eu o reedificarei em três dias. Obviamente, os fariseus não entenderam o alcance profético dessas palavras. Aliás, os próprios discípulos não entenderam naquela hora. Somente muito tempo depois, quando passaram a refletir sobre a ressurreição de Cristo, compreenderam que o “templo” a ser reconstruído em três dias não era o prédio físico, feito de pedras, que teria consumido o trabalho de centenas de operários durante 46 anos. O templo que realmente importava ali era o do seu próprio corpo, ressuscitado ao terceiro dia. Jesus estava, então, chamando a atenção dos seus ouvintes (discípulos e estranhos) para o fato de que a verdadeira morada do Espírito de Deus não é o templo de pedra, mas o templo de carne. No entanto, o templo de pedra também merece respeito e a conduta dos frequentadores daquele lugar deve observar a devida compostura, sob pena de desvirtuamento e profanação.

Meus amigos, essa festa da igreja-mãe do cristianismo ocidental é também um momento para refletirmos sobre a unidade de todos os cristãos, eliminando as divergências históricas e superando os esquemas de divisão e de conflito. O Papa Francisco está envidando grandes esforços nesse sentido, através de viagens, reuniões e orações conjuntas com as diversas autoridades das variadas organizações cristãs. Sabemos que existem fortes empecilhos dentro do próprio Vaticano, mas o Papa está, com sabedoria e paciência, removendo os obstáculos. Eu creio nessa sua obstinação profética de congregar todos os cristãos num único rebanho, como foi sempre o desejo de Cristo: “Elas ouvirão a minha voz, e haverá um só rebanho e um só pastor.” João 10:16.

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domingo, 2 de novembro de 2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO - A VIDA CONTINUA (FIÉIS DEFUNTOS) - 02..11.2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO – A VIDA CONTINUA (FIÉIS DEFUNTOS) – 02.11.2014

Caros Confrades,

A liturgia deste domingo cede espaço para a comemoração dos fiéis defuntos, essa memória litúrgica que se insere logo após a festa de todos os santos. A celebração de finados, longe de ser uma referência à morte, é muito mais uma demonstração de fé na vida que continua. O cântico litúrgico desta comemoração destaca: a vida, pra quem acredita, não é passageira ilusão e a morte se torna nossa libertação. Muito antes da cristianização da Europa, os povos ali residentes já proclamavam sua fé na vida eterna, dentre civilizações orientais e ocidentais. Principal exemplo dessa crença temos nas muito famosas pirâmides do Egito, assim como nos requintados mausoléus europeus, onde pessoas ricas e poderosas eram “depositadas” após sua morte corporal, juntamente com seus pertences, porque o espírito delas continuaria a frequentar o local e utilizaria aqueles objetos.

O historiador francês Fustel de Coulanges, em sua clássica obra “A cidade antiga”, relata o resultado das pesquisas que efetuou dentre as diversas comunidades do oriente e do ocidente acerca do modo como eles acreditavam e vivenciavam a relação com seus mortos. Trata-se de uma obra cuja leitura é amplamente recomendada para aqueles que desejam conhecer as tradições mais antigas das raças humanas mais primitivas. Farei apenas duas referências. Entre os gregos, apesar de a religião oficial ser materialista e não acreditar na continuação da vida, havia grupos de espiritualistas, que se reuniam secretamente, para cultuar suas crenças e para fazerem comunicação com os falecidos. Exemplos deles eram os órficos e os pitagóricos. Sócrates era um dos adeptos dessa crença e Platão foi um dos seus grandes propagadores, sendo o pensamento deste o fundamento das muitas doutrinas espíritas que são conhecidas no mundo ocidental. E dentre os romanos, havia os deuses lares e penates, que não eram outros senão os espíritos dos familiares falecidos e que continuavam a ser lembrados como se estivessem presentes, através dos cultos da religião familiar. Cada família sepultava seus mortos no quintal da casa e, em certas ocasiões, as festas familiares eram realizadas junto dos túmulos, para que os espíritos participassem e onde eram deixadas comidas e bebidas, para que os espíritos dos mortos se banqueteassem com elas. É daí que vem o costume dos bebuns de darem “um gole para o santo” quando estão em suas sessões de consumo etílico, porque assim também os romanos faziam homenageando seus defuntos. Portanto, antes de ser propriamente cristão, o culto dos mortos já estava presente nas civilizações ancestrais da nossa.

Passando agora às leituras litúrgicas de hoje, temos a primeira retirada do livro de Jó (19, 23-27). A história de Jó é bem conhecida na nossa tradição cultural, acredita-se que esse livro tenha sido escrito quando o povo retornou do cativeiro da Babilônia, no qual muitos haviam perdido tudo e precisavam recomeçar suas vidas da estaca zero. O objetivo do seu autor é mostrar que a antiga tradição dos fariseus, chamada de “teologia da retribuição” precisava ser revista e mesmo abandonada. De acordo com essa tradição secular dos hebreus, o sofrimento era entendido como castigo divino por causa dos pecados de alguém, assim como a riqueza e a felicidade eram entendidas como benesses divinas pelas virtudes de uma pessoa. Então, a história de Jó, um homem justo e correto, que perdeu tudo (bens e família) e passou por sofrimentos sem conta vinha ensinar ao povo que uma coisa não tem nada a ver com a outra, ou seja, nem o sofrimento é castigo pelos pecados nem a vida feliz é resultado das virtudes, porque uma pessoa virtuosa também passa por sofrimentos. Tanto assim é verdade que, no final, Jó recuperou todas as riquezas que havia perdido, porque soube sofrer com resignação e sem perder a fé. De fato, nem é absolutamente certo que Jó tenha existido, ele pode ter sido uma espécie de personagem de um livro edificante, destinado a ensinar ao povo que o sofrimento é uma contingência da vida e que não está necessariamente ligado ao pecado, às ações contrárias à lei de Deus. Os amigos tentam convencer Jó de que ele sofre por causa dos seus pecados, mas ele tem consciência de que não é um pecador e proclama “eu sei que meu redentor está vivo e que se levantará sobre o pó” e meus olhos o contemplarão. Em nenhum momento, Jó apresentou desânimo ou duvidou da proteção divina, por isso foi recompensado por sua fidelidade e por sua confiança. Essa era a mensagem que os sábios de Israel queriam transmitir ao povo hebreu naquele difícil momento de reconstrução da sua sociedade após o cativeiro.

Na segunda leitura, da carta de Paulo aos Romanos (Rm 6, 3-9), o Apóstolo ensina que Cristo ressuscitou dos mortos e assim também nós seremos semelhantes a ele na ressurreição. Paulo não precisou ensinar aos romanos que a vida continua após a morte, porque aqueles já acreditavam nisso. Eles não conheciam era o conceito de ressurreição, porque este não fazia parte das suas crenças. Pelo batismo, diz Paulo, nós morremos com Cristo, o velho homem presente em nós é sepultado, para que nós ressuscitemos para uma vida nova, o novo homem produzido pela fé em Cristo. É na morte de Cristo que somos batizados, para que ressuscitemos por Ele e vivamos com Ele. “Pelo batismo na sua morte, fomos sepultados com ele, para que, como Cristo ressuscitou dos mortos pela glória do Pai, assim também nós levemos uma vida nova.” (Rm 6, 4). Daí que Paulo diz, na carta aos Filipenses (1, 21): para mim, viver é Cristo e morrer é lucro. Nesse mesmo diapasão, a oração eucarística, que antes era chamada de “cânon da missa”, assim professa: "Senhor, para os que crêem em vós, a vida não é tirada, mas transformada. E, desfeito nosso corpo mortal, nos é dado, nos céus, um corpo imperecível." Essa doutrina, sob outra perspectiva, se opõe à doutrina da reencarnação, ao enfatizar a nova reunião entre corpo e alma, na ressurreição. Assim consta no Catecismo atual: “Pela morte, a alma é separada do corpo, mas na ressurreição Deus restituirá a vida incorruptível ao nosso corpo transformado, unindo-o novamente à nossa alma (cf. Catecismo §1016).” E quando será essa ressurreição? Bem, essa é uma longa história. Melhor ficar, por enquanto, com a definição clássica e insuspeita: no último dia.

Dentre as igrejas cristãs não católicas, as autodenominadas evangélicas ou, como antigamente se dizia, os protestantes, não há celebração de finados. Isso porque Lutero não aceitou como autêntico o Livro de Macabeus e é neste livro que está a fundamentação teológica do culto aos finados. No 2º Livro dos Macabeus, capítulo 12, vers. 43 a 46, lemos: “(Judas Macabeu) tendo feito uma coleta mandou duas mil dracmas de prata a Jerusalém para se oferecer um sacrifício pelo pecado. Obra bela e santa, inspirada pela crença na ressurreição, porque se ele não esperasse que os mortos haviam de ressuscitar, seria coisa supérflua e vã orar pelos defuntos. Ele considerava que, aos falecidos na piedade está reservada uma grandíssima recompensa. Santo e salutar é esse pensamento de orar pelos mortos, para que sejam livres dos seus pecados". Os protestantes consideram apócrifo esse livro e assim, após o sepultamento, eles não mais visitam nem oram pelos mortos, porque já estão nas mãos de Deus. Porém, toda a tradição católica sempre preservou e valorizou esse culto. Tanto assim que, em tempos mais antigos, os cemitérios estavam localizados na parte de trás das igrejas. Ainda encontramos isso em algumas cidades do interior. E a prova de que essa tradição continua viva é a grande multidão que, sempre nessa data, comparece aos cemitérios a fim de rezar pelos seus mortos. E em Juazeiro do Norte, temos uma das mais tradicionais romarias do nordeste, fruto da devoção que o Padre Cícero tinha pelas almas do purgatório. O Papa Francisco, no seu sermão de hoje para os peregrinos presentes na Praça de São Pedro, recordou a força dessa tradição milenar, quando disse: “A tradição da Igreja sempre exortou os fiéis a rezarem pelos defuntos, em particular, oferecendo a Celebração Eucarística por eles: esta é a melhor ajuda espiritual que podemos dar às almas, especialmente às mais abandonadas. O fundamento da oração de sufrágio está na comunhão do Corpo Místico. Como reitera o Vaticano, "a Igreja peregrina sobre a terra, bem ciente desta comunhão de todo o corpo místico de Jesus Cristo, desde os primeiros tempos da religião cristã, tem honrado com grande piedade a memória dos mortos”. (Lumen Gentium, 50). A memória dos defuntos, o cuidado pelas sepulturas e os sufrágios são o testemunho de uma confiante esperança, enraizada na certeza de que a morte não é a última palavra sobre o destino do ser humano, porque o homem está destinado a uma vida sem limites, que tem sua raiz e sua realização em Deus.” E quem não se sente confortado e espiritualmente satisfeito quando presta essa justa homenagem aos seus parentes falecidos? Afinal, nós somos o resultado das ações e exemplos de vida que eles nos deixaram e que constituem as bases de nossas vidas, o mesmo exemplo que estamos deixando para os nossos descendentes. Penso que deve existir um grande vazio na alma de quem não acredita e não pratica esse ensinamento.

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domingo, 26 de outubro de 2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 30º DOMINGO COMUM - O MAIOR MANDAMENTO - 26.10.2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 30º DOMINGO COMUM – O MAIOR MANDAMENTO – 26.10.2014

Caros Confrades,

Na liturgia deste 30º domingo comum, o tema central enfoca a questão do maior mandamento da lei divina. Desde a antiguidade bíblica, o profeta Moisés apresentou ao povo hebreu a lista com os mandamentos, isto é, com as determinações divinas para serem por eles cumpridas. O primeiro da lista é exatamente o amor de Deus, conforme consta em Êxodo cap.20 e com mais detalhes em Deuteronômio 6,5. No Antigo Testamento, eles são listados em número de dez. No evangelho, Jesus os resume a dois. E Santo Agostinho, nos seus comentários bíblicos, resume a um só: ama e faze o que quiseres.

Na primeira leitura, extraída do livro do Êxodo (22, 20-26), vemos que nas lições iniciais de Javeh ao povo hebreu já constava o cuidado com o próximo, o amor ao próximo, que Jesus iria enfatizar mais tarde. No trecho lido hoje, Javeh instrui o povo a tratar bem os estrangeiros: “Não oprimas nem maltrates o estrangeiro, pois vós fostes estrangeiros na terra do Egito. Não façais mal algum à viúva nem ao órfão. Se os maltratardes, gritarão por mim, e eu ouvirei o seu clamor.” (Ex 22, 20) O estrangeiro, nesse contexto, é a figura do próximo, que só iria aparecer no evangelho. Não era esse o costume antigo, isto é, tratar bem os estrangeiros. Esses eram potenciais inimigos, não faziam parte do povo, por isso deviam ser tratados com reserva e de forma diferente dos irmãos de sangue. Na Roma antiga, era assim também o costume em relação aos não romanos. Os estrangeiros eram excluídos da sociedade, não possuíam direitos, eram explorados em seus serviços e não podiam reclamar dos maus tratos, porque não tinham o sangue romano. E Javeh lembra ao povo: vós também fostes estrangeiros na terra do Egito e sofrestes humilhações, por isso, deveis ter um comportamento diferente dos povos pagãos. E diz mais: o estrangeiro maltratado recorrerá a Mim e “minha cólera, então, se inflamará e eu vos matarei à espada; vossas mulheres ficarão viúvas e órfãos os vossos filhos”. (Ex 22, 23) Ou seja, neste caso, Javeh se voltará contra o seu próprio povo, para vingar os maus tratos feitos aos estrangeiros.

É interessante a liturgia chamar a atenção para esse comportamento que não era comum na época e que Javeh determinava para o seu povo. Digo determinava, porque isso era um mandamento, não era um conselho, uma recomendação. E pairava uma gravíssima ameaça contra quem não cumprisse. Curiosamente, essa regra do “amor ao próximo” não foi bem assimilada pelos doutores da lei, sendo necessário que Jesus viesse a chamar a atenção para isso. Basta lembrar aquela famosa parábola do “bom samaritano”, que foi contada por Jesus quando um dos fariseus perguntou a Ele: quem é o meu próximo. Outra regra interessante colocada nesse contexto é a não cobrança de juros dos empréstimos aos estrangeiros. Assim era também a prática dos romanos. Se o contrato de empréstimo era entre romanos, era proibida a cobrança de juros; mas se fosse entre um romano e um não romano, então aí podia. Os judeus também não cobram juros entre eles próprios, no entanto, todos nós conhecemos a história do enriquecimento dos judeus europeus no período anterior às guerras mundiais, pela sua habilidade em negociar com os não judeus cobrando juros, a ponto de despertar a ganância do governo “quebrado” da Alemanha, após a depressão econômica de 1930, levando-os ao holocausto. Por incrível que pareça, isso está na Torah deles, porém sempre foram palavras mortas na hora de colocar em prática. Até parece que sofreram a vingança do próprio Javeh, quando prometeu que os mataria à espada, caso praticassem a usura.

Na segunda leitura, da carta de Paulo aos Tessalonicenses (1Ts 1, 5-10), o Apóstolo os exalta porque, pelo seu comportamento, eles se tornaram modelo para as demais comunidades da Macedônia e da Acaia. Diz Paulo: nem é mais preciso que eu diga nada, porque “as pessoas mesmas contam como vós nos acolhestes e como vos convertestes, abandonando os falsos deuses, para servir ao Deus vivo e verdadeiro ” (1Ts 1, 9). Aquela cidade de Tessalônica era a capital da Macedônia, um importante porto comercial e um local estrategicamente colocado no meio das grandes estradas romanas, de modo que para lá acorriam muitas pessoas de diversificadas culturas, então Paulo tinha a preocupação para que a semente do cristianismo ali lançada por ele não fosse suplantada por essa variedade de povos e costumes. Daí o seu motivo de felicidade quando soube, através de Timóteo e Silvano, que os cristãos de lá continuavam firmes na fé e até influenciavam os estrangeiros, servindo-lhes de exemplo. Uma outra característica dessa carta é a crença que Paulo tinha, no sentido de que o “retorno” de Cristo estava próximo, assim era o entendimento de então, Jesus havia ressuscitado mas logo logo retornaria. O próprio Paulo parecia acreditar que ele ainda estaria vivo, quando Jesus retornasse. Por isso, lê-se no versículo 10: Jesus, que nos livra do castigo, está por vir. Consta que essa carta foi escrita por volta do ano 50 d.C., ou seja, nessa época a doutrina cristã ainda era muito incipiente e muitas questões ainda não estavam amadurecidas na reflexão teológica. Essa da vinda de Cristo era uma delas.

Na leitura do evangelho, retirada de Mateus (Mt 22, 24-30), lemos outra disputa doutrinária entre Jesus e os fariseus, que mais uma vez tentavam apanhá-lo em alguma contradição e por isso testavam Seu conhecimento das escrituras. Daí que diz o evangelista: para testá-Lo, perguntaram: Mestre, qual é o maior mandamento da lei? E Jesus, demonstrando que conhecia a lei de Moisés melhor do que eles próprios, dá a resposta que eles já sabiam: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento!” (Mt 22, 37). Essa frase está contida textualmente em Deuteronômio 6, 5 e eles queriam ver se Jesus dizia algo diferente, mas com essa resposta, Jesus não os surpreendeu. A surpresa veio quando Ele continuou e disse também o segundo mandamento, algo que eles nem tinham perguntado: “Não procurem vingança nem guardem rancor contra alguém do seu povo, mas ame cada um o seu próximo como a si mesmo. Eu sou o Senhor.” (Levitico 19, 18). Isso, sim, foi novidade para eles, sobretudo quando Jesus completou a resposta dizendo: “Toda a Lei e os profetas dependem desses dois mandamentos”.(Mt 22, 40). Talvez, eles esperassem que Jesus fosse citar os mandamentos na sua forma tradicional, como eles (fariseus) costumavam fazer. E Jesus outra vez os surpreende. O amor ao próximo já estava determinado na Torah e eles, fariseus, não haviam se tocado para isso. A religião era, para eles, uma relação puramente vertical com Javeh, cada um por si, individual e privadamente. E a surpresa foi ainda maior quando Jesus falou que o segundo mandamento era semelhante ao primeiro. Não basta amar a Deus sobre todas as coisas, se não somos capazes de amar o próximo como a nós mesmos.

Observemos que Jesus repete a lei antiga, demonstrando que ela continuava em vigor, que Ele não veio mudar a lei, e sim aperfeiçoá-la. E o aperfeiçoamento consiste exatamente nessa nova visão da religião voltada para a comunidade, para o próximo. Assim como se deve amar a Deus com todo o coração, toda a alma e todo o entendimento, assim também se deve amar o próximo. O Padre João Mohana, conhecido escritor maranhense que fez sucesso literário nos anos 70, dizia uma frase, que eu acho muito criativa e nunca esqueci: Deus mandou que nos amássemos, não que nos amassemos. Um trocadilho bem interessante, que nos mostra o quão difícil é amar o próximo, tão difícil que os fariseus haviam “esquecido” esse trecho da lei, como se não fosse necessário. E é importante observarmos também as três dimensões do amor a Deus e ao próximo: com todo o coração, ou seja, o amor emotivo, espontâneo, intuitivo; com toda a alma, ou seja, o amor sobrenatural, divino transcendente; com todo o entendimento, ou seja, o amor racional, esclarecido, voluntário e intencional. Os povos antigos, que não tinham muito conhecimento sobre a anatomia humana, pensavam que o ser humano tinha três “almas”, sendo que uma delas se localizava no coração (fonte da emoção), outra se localizava nos rins (fonte da agressividade) e outra na inteligência (fonte da racionalidade). Assim era a doutrina de Platão, que naturalmente não foi inventada por ele, mas sistematizada nos seus escritos, algo que era comum nas culturas antigas. Com isso, devemos entender que o nosso amor a Deus e ao próximo não admite reservas nem limitações, mas deve envolver o nosso ser inteiro, com todas as nossas forças e potencialidades.

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