sábado, 28 de julho de 2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 17º DOMINGO COMUM - 29.07.2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 17º DOMINGO COMUM – PÃO PARA TODOS – 29.07.2018

Caros Leitores,

As leituras litúrgicas deste 17º domingo comum preconizam o milagre eucarístico, que seria depois realizado por Jesus, perpetuando-se na história e chegando até nós. O alimento que chamamos pão está presente desde os tempos mais remotos da humanidade, em todas as culturas. O tipo mais comum é o pão de trigo e sua presença na Bíblia se encontra em diversos momentos, aquele cuja fartura saciou a fome de milhares de fiéis, tanto no Antigo quanto no Novo Testamentos. Por isso, ao despedir-se, Jesus quis deixar o pão como o símbolo de sua permanência entre nós e instituiu-se a si próprio em pão da vida, não somente para saciar a fome natural, mas sobretudo para locupletar o espírito com o pão vivo e imortal.

Na primeira leitura de hoje, retirada do Livro dos Reis (2Rs 4,42), narra-se um fato miraculoso operado pelo profeta Eliseu vários séculos antes de Cristo, sendo um fato antecipatório do futuro milagre da multiplicação dos pães, que seria realizado pelo Messias. Num tempo de grande seca e, portanto, de fome para o povo, Eliseu ganhou de presente 20 pães, trazidos por um estrangeiro, mas não os recebeu, porque seria egoísmo de sua parte saciar a própria fome, enquanto o povo padecia faminto. Então, ele mandou que os pães fossem distribuídos para o povo. O seu assistente ficou preocupado: como vou distribuir tão poucos pães para tantas pessoas famintas? Ele, prudentemente, deve ter logo imaginado o tumulto que isso iria ocasionar e as brigas entre as pessoas disputando os pedaços, podendo até ocorrer agressões e ferimentos e ele mesmo poderia ser vítima do episódio. Mas o Profeta o tranquilizou: O Senhor disse – comerão e ainda sobrará. E assim foi a primeira vez da repartição do pão para todos.

A imagem do pão, encontrada em todas as culturas, desde as mais remotas, com o passar dos séculos, não perde a sua primazia, porque o pão continua sendo o alimento básico do ser humano. Além daquele padrão, feito de trigo, há as variantes, de acordo com as produções agrícolas locais, com uso de milho, de mandioca, de batata, daquela massa que for mais abundante numa região. O pão é um símbolo da própria vida que ele alimenta. Por causa da sua importância cultural, o pão ultrapassa a pura matéria física para significar os diversos dons que acompanham a vida humana, além da simples satisfação da fome corporal. O saciamento da fome induz ao bem-estar, à alegria, à boa convivência, faz elevar o espírito para as realidades sobrenaturais, então o pão é muito mais do que um alimento material, é um verdadeiro mantenedor vital do ser humano. Foi por esse motivo que Jesus, quando quis deixar um sinal perpétuo da sua presença no meio da humanidade, adotou o símbolo do pão, transformando a Si mesmo em pão da vida.

No relato do evangelista João (6, 1-15), Jesus revive a cena histórica do profeta Eliseu, diante da multidão que o acompanhara de longe, na sua travessia do Lago de Tiberíades, encontrando-o na margem oposta. Ele próprio fez uma provocação aos apóstolos, indagando-lhes pedagogicamente, mesmo já sabendo da solução que iria adotar: onde arranjaremos pão pra esse povo todo comer? E Felipe avaliou: nem duzentas moedas seriam suficientes para comprar um pedaço pra cada um. Foi quando André trouxe a informação: tem ali um rapaz com cinco pães e dois peixes, mas de que adianta isso para tanta gente? Jesus só não repetiu o refrão de Eliseu (“comerão e ainda sobrará”), mas fez que o povo sentasse e mandou distribuir os pães e os peixes, depois de abençoá-los. E o milagre da fartura se repetiu, todos comeram até ficarem saciados e ainda sobraram doze cestos com os pedaços deixados. Juntem tudo, para que nada se perca. Aquelas sobras, provavelmente, poderiam saciar novamente outros famintos, pois como vimos no evangelho do domingo passado, as pessoas estavam sempre onde Jesus e os apóstolos estavam, de modo que eles não tinham uma folga nem para comer. E o número de cestas que sobraram (doze cestas) contém uma alusão implícita às doze tribos de Israel. Simbolicamente, aquela recolha do excedente representava a totalidade do povo judeu.

Pois bem, nesse relato do evangelista João, podemos destacar alguns detalhes interessantes. Primeiro, a preocupação de Jesus com a fome daquelas pessoas. As pessoas não foram se queixar de fome para Ele, ao contrário, estavam ali para ouvi-Lo. Mas Jesus sabia que, sem a alimentação corporal adequada, a mente não funciona, a concentração não ocorre, o aprendizado é nulo. Então, antes de alimentar o espírito, é necessário alimentar o corpo. Isso significa que a Igreja não pode se descuidar dos aspectos materiais da vida social, da melhoria das condições de vida e de trabalho dos fiéis, ou seja, não compete às autoridades religiosas apenas celebrar missas e oficiar os sacramentos, mas junto com isso, deve ter a preocupação com a vida material justa. Junto com o pão da palavra, os pastores devem também preocupar-se com a assistência material das pessoas mais carentes da comunidade, enquanto os fiéis melhormente aquinhoados devem colaborar para a efetivação desse serviço. Viver a religião não deve se resumir a frequentar o templo nos dias celebrativos, fazer as novenas e rezar o terço. Isso é importante, sem dúvida. Mas ficam faltando as “obras” de caridade, que devem ser inseparáveis da fé.

Outro detalhe que importa destacar é que o milagre de Jesus foi possibilitado pela presença de um rapaz trazendo cinco pães e dois peixes. Ele poderia ter feito o milagre independentemente disso, podia ter transformado até pedras em pão ou ter feito cair pão das nuvens, mas, não, Ele quis a colaboração de alguém da comunidade. Isso significa que Deus prefere agir por nosso intermédio, com a nossa colaboração, mesmo para fazer as coisas mais extraordinárias. Santo Tomás de Aquino ensinava, utilizando a terminologia filosófica de Aristóteles, que Deus age por causas segundas. Essas “causas segundas” são as ações indiretas. Ele pode atuar de forma direta e imediata, mas muitas vezes, Deus se serve de nós, de um coirmão ou coirmã nosso(a) para operar prodígios e, nesse caso, Deus nos honra grandemente agindo por nosso intermédio. Quando Ele nos dá fartura de bens materiais, Ele também espera que nós contribuamos com maior generosidade para o serviço dos irmãos. É bem verdade que, nas sociedades modernas, tais obras assistenciais devem ser acionadas pelas autoridades públicas, porém, mesmo que isso aconteça (o que nem sempre ocorre), não ficamos dispensados de colaborar com a nossa parte. Portanto, nós precisamos estar sempre disponíveis para Deus agir por nosso intermédio, através da nossa fé operante, através do nosso exemplo e do nosso testemunho. Muitas vezes, nós nem atentamos para isso, mas as nossas atitudes estão sendo percebidas por outras pessoas e o nosso bom exemplo pode estar sendo decisivo para que um irmão, momentaneamente fraco na fé, ganhe força e supere um obstáculo na sua vida. Se deixarmos Deus agir por meio de nós, nós também poderemos ser esses agentes transformadores, sem que isso necessariamente cause em nós canseira ou preocupação. Na nossa vida cristã cotidiana, as nossas atitudes normais de cada dia podem se transformar em importantes instrumentos divinos para a realização de obras valiosas na sociedade.

Quando Jesus, na última ceia, serviu-se do pão para tornar-se presente permanentemente no nosso meio, ele quis associar a Si próprio a este alimento, que desde os primórdios da raça humana tem sido indispensável. Assim como o pão da massa material é um artigo universalmente inerente às sociedades humanas, Jesus quis que o seu corpo em forma de pão tivesse a mesma presença e mesma participação na nossa vida. Eu, particularmente, sinto um certo desconforto quando vejo a celebração eucarística sendo realizada com aquela composição do trigo, que chamamos de hóstia, porque me dá a impressão que assim nos afastamos da verdadeira intenção de Cristo, quando fez-se pão, visto que a aparência física da hóstia, embora saibamos que é produzida com a mesma massa do pão, não tem nenhuma semelhança visual com este. E eu fico pensando que Cristo quis que o Seu corpo fosse associado ao visual do pão comum, aquele alimento básico e essencial. Nós não tomamos café com hóstia, leite com hóstia, e eu acho que Cristo queria que fizéssemos uma associação visual entre o pão eucarístico e Ele, que se elevasse à dimensão da fé. O pão que alimenta o corpo também, e ao mesmo tempo, alimenta o espírito. Nas Igrejas Católicas Ortodoxas, o pão eucarístico é o pão comum mesmo, não tem esse formato de hóstia, que estamos acostumados a ver. A mim, parece que lá a vontade de Jesus esteja sendo cumprida mais fielmente.

Com a devida vênia dos Leitores que não concordam.
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quarta-feira, 25 de julho de 2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 16º DOMINGO COMUM - 22.07.2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 16º DOMINGO COMUM – MISSÃO DO PASTOR – 22.07.2018

Caros Leitores,

A temática das leituras litúrgicas deste 16º domingo comum aborda a figura do pastor. No contexto do povo hebreu na região onde viveu o Jesus histórico, os dois estereótipos mais marcantes, em função das profissões mais comuns da época, eram o pescador e o pastor. Jesus Cristo faz uso, com frequência, desses dois modelos profissionais para reforçar a sua pedagogia catequética direcionada para o povo simples, de modo a facilitar para eles a compreensão da sua mensagem. Naquela época, assim como hoje, há os bons e os maus pastores e, dependendo disso, o cuidado do rebanho será bem ou mal exercido.

Na primeira leitura, o profeta Jeremias (23, 1-6), que viveu num tempo de muita infidelidade a Javeh, praticada pelo rei Josias, levando assim o povo de Deus à idolatria, lamenta pelos maus pastores: “ai dos pastores que deixam perder-se e dispersar-se o rebanho, diz o Senhor”. Por falta de compromisso do rei, o povo relegou a segundo plano a aliança com Javeh e dedicou-se ao culto dos ídolos, culminando com o cativeiro da Babilônia. Então Jeremias complementa: “virão dias em que farei nascer um descendente de Davi, que reinará com sabedoria e fará valer a justiça e a retidão na terra”. As palavras do Profeta fazem o prenúncio de Jesus Cristo, descendente de Davi, que viria a ser “o pastor” exemplar, que não deixará as ovelhas se perderem. Infelizmente, as palavras do Profeta, proferidas mais de 600 anos antes de Cristo, fazem eco nos dias de hoje, quando vemos maus exemplos de pastores, que levam à desagregação dos fiéis, em vez de promoverem a união do rebanho. O Papa Francisco vem fazendo gigantesco esforço de união das religiões, cristãs e não-cristãs, dando exemplos concretos de solidariedade e de ecumenismo, mas nem todos os prelados, infelizmente, seguem-lhe o exemplo. E no âmbito das comunidades, continuamos a ver lamentáveis atitudes de discórdias entre grupos, cada qual se autoproclamando verdadeiros discípulos de Cristo e desagregando o rebanho, em vez de agregar.

No evangelho de Marcos (6, 30-34), temos a narração de uma das poucas cenas em que transparece o lado humanitário de Cristo preocupado com o bem estar dos discípulos e, ao mesmo tempo, vendo a multidão que estava sempre ao seu redor. “Havia tanta gente chegando e saindo, que não tinham tempo nem para comer”, diz o evangelista referindo-se a Jesus e aos seus discípulos. Eles então se retiram de barco para um lugar deserto, a fim de descansarem um pouco. Ocorre que a multidão os acompanha ao longe, pelas margens do lago de Tiberíades, e observava para onde eles se dirigiam, de modo que chegou ao local rapidamente e assim, ao desembarcar, Jesus e os apóstolos já os encontram aguardando. Ou seja, nada de descanso para Jesus e os discípulos.

Diz o evangelista que o Mestre, vendo-os assim, longe de censurá-los ou de mandá-los embora, ao contrário, teve compaixão deles porque eram como ovelhas sem pastor. Cumprindo-se a profecia de Jeremias, acerca do descendente de Davi, que viria reinar com sabedoria e com justiça, Jesus percebe que o povo está mal pastoreado, isto é, os sacerdotes e mestres da lei não cumprem com a sua missão, por isso, mesmo estando fisicamente cansado, se compadece daquele povo e passa a ensiná-los muitas coisas. Na sequência desta leitura do evangelho de Marcos, temos o episódio da multiplicação dos pães, que não é lido neste domingo, para que o tema litúrgico se concentre na figura do Bom Pastor.

Conforme Jesus demonstrou com seu comportamento, a missão de evangelizar tem prioridade total e não deve ser adiada nem mesmo quando algumas condições não são muito favoráveis. Analisando certas atitudes dos nossos pastores atuais, vemos quantas vezes o comodismo e a intolerância levam a um desserviço do pastoreio. Esse pensamento me fez lembrar agora as histórias que nos eram contadas, em Messejana, pelo Frei Higino, pelo Frei Abel, pelo Frei Sabino, Frei Anastácio, que realizaram aquele serviço religioso, que na época era chamado de “desobriga”, acho que todos se recordam disso. O missionário passava cerca de três meses distante da comunicade, fazendo um roteiro de viagem do interior do Nordeste, montado em um cavalo, passando de cidade em cidade para celebrar missas, fazer batizados e assistir a casamentos, naquelas localidades aonde o padre só chegava uma vez ao ano. Eles contavam as precárias condições em que se hospedavam, se alimentavam, cuidavam da própria saúde, tudo em nome da fé e na fidelidade ao ideal franciscano, uma atitude de heroísmo exemplar, que muito nos entusiasmava. Sem deixar de mencionar os fatos pitorescos e as histórias engraçadas que, muitas vezes, estavam associadas às suas narrações.

Esses missionários capuchinhos seguiam literalmente o exemplo de Cristo. Mesmo cansado e com fome, ele teve compaixão do povo e passou a ensinar muitas coisas. Façamos uma breve reflexão sobre essa expressão “teve compaixão do povo”, porque a linguagem comum não alcança o seu verdadeiro sentido. Ter compaixão não significa ter pena ou ter dó de alguém. O texto latino original diz que Jesus “misertus est super eos”, isto é, foi misericordioso com eles. A diferença entre ter pena e ter misericórdia é que ter pena indica um comportamento passivo, de lamentação, enquanto ter misericórdia leva a uma ação concreta no sentido de aliviar aquela situação. Uma coisa é ficar lamentando a situação de alguém e nada fazer (ter pena), outra coisa é verificar a carência de alguém e partir para uma efetiva ação em benefício daquela pessoa (ter misericórdia). Compaixão vem do verbo compadecer, isto é, com+padecer, padecer junto, colocar-se na situação do irmão que sofre não para fazer-lhe companhia no sofrimento, mas para retirá-lo daquele estado. Foi isso o que Cristo fez: vendo a multidão igual a um rebanho sem pastor, não ficou apenas lamentando a situação, mas acolheu a todos e passou a ensiná-los. E na sequência do texto, parte não lida neste domingo, multiplicou os pães para alimentá-los. Jesus não apenas distribuia o pão da palavra, que alimenta o espírito, mas também distribuia os pães e os peixes, que alimentam o corpo. Essa é a atitude exemplar de Cristo, no sentido de ter misericórdia do povo.

Analisando essa atitude de Cristo, meus amigos, podemos observar o quanto as lideranças religiosas, ao longo da história, se afastaram desse exemplo de cuidado não apenas com a dimensão espiritual do povo, mas também com as condições concretas da existência na sociedade. A religião verdadeira não é apenas participar da missa e rezar o terço, mas é também contribuir materialmente para a promoção social das pessoas mais carentes da comunidade. Após o Concílio Vaticano II, a doutrina social da Igreja reforçou a necessidade de conscientizar os fiéis de que a dimensão vertical da religião (homem-Deus) tem um componente necessário e complementar, que é a dimensão horizontal (homem-homem), sendo que as duas dimensões devem ser igualmente realizadas. Foi por isso que o magistério da Igreja, na conferência de Puebla (1978), assumiu oficialmente o compromisso da opção preferencial pelos pobres, tendência que foi reforçada em outros documentos oficiais, como o documento de Aparecida (2007), que assim sintetizou essa mesma preocupação: “Como um olhar teologal e pastoral, considera, com acuidade, as grandes mudanças que estão sucedendo em nosso continente e no mundo, e que interpelam a evangelização. Analisam-se vários processos históricos complexos e em curso nos níveis sócio-cultural, econômico, sócio-político, étnico e ecológico, e se discernem grandes desafios como a globalização, a injustiça estrutural, a crise na transmissão da fé e outros”. O exemplo de Cristo, narrado no evangelho deste domingo, nos mostra claramente que a religião não pode se dissociar das condições concretas da vida social, sob pena de nos afastarmos do que Cristo ensinou.

No evangelho deste domingo, portanto, Cristo vem nos chamar a atenção de que não basta cantar halleluyas e bater palmas durante as celebrações, pois isso alimenta só o espírito, mas é preciso também, com o mesmo zelo, promover ações efetivas no sentido de distribuir os pães e peixes, que alimentam também o corpo. Alguns dos nossos Pastores precisam urgentemente acordar dessa letargia ilusória do espiritualismo e do devocionismo, que tantos malefícios históricos já ocasionaram, abrindo os ouvidos para o clamor sempre atual do profeta Jeremias.

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segunda-feira, 16 de julho de 2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 15º DOMINGO DO TEMPO COMUM - 15.07.2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 15º DOMINGO DO TEMPO COMUM – O ENVIO – 15.07.2018

Caros Leitores,

Neste 15º domingo do tempo comum, o tema litúrgico em destaque é o envio dos apóstolos para pregarem o Evangelho nas cidades da região da Galileia. Esse foi um tipo de estágio, que Jesus deu aos apóstolos, após um período de ensinamento, para que eles colocassem em prática o que haviam aprendido. Tempos depois, por ocasião de sua ascensão, Jesus os mandou novamente, mas dessa vez, para evangelizarem todos os povos. Numa visão hermenêutica transistórica, o mandado do envio se direciona também a nós, seus discípulos dos dias atuais e a todos os discípulos de Cristo, em todos os tempos. Com nossa vida e com nosso testemunho, continuamos a evangelizar, seguindo o mandado de Jesus.

A temática do envio encontra-se presente também na primeira leitura, retirada do profeta Amós (7, 12). Este era um profeta de poucas letras, pastor de rebanhos, homem simples e humilde, sua profecia causava incômodo às elites israelitas. Então, o sacerdote do templo de Betel, de nome Amasias, o chamou e mandou que fosse profetizar em Judá e lá trabalhar, para ganhar a vida, advertindo-o a não profetizar ali em Betel, porque neste local estavam localizados a corte do rei e o templo oficial, onde Amasias era o 'profeta' oficial. Em outras palavras, Amasias estava querendo se livrar de Amós, porque este, a mando de Javé, denunciava a tibieza e a exterioridade da religião oficial de Israel, cujos cultos não agradavam a Javé por causa da ausência de devoção e do excesso de formalismo. A resposta de Amós foi bem desaforada, como o sacerdote não esperava: eu não sou profeta nem filho de profeta, sou pastor de gado, mas o Senhor me chamou quando eu estava pastoreando o rebanho e me mandou profetizar em Israel, é aqui que eu vou ficar. Com risco da própria vida, Amós prosseguiu no seu trabalho, seguindo o mandado de Javé.

Isso aconteceu setecentos anos antes de Cristo. A vocação de Amós, um homem simples e de poucos estudos, antecipava o chamado que Jesus fez aos discípulos, num contexto bastante similar, pois eram também pessoas do povo, pescadores, de poucas letras, e deveriam enfrentar também perseguições e às dificuldades inerentes ao cumprimento da sua missão, junto às elites do povo judeu. Jesus disse aos discípulos que eles deviam pregar em todos os lugares, sem levar nenhum dinheiro, nem alforje, nem muda de roupa, nada, devendo receber o seu sustento pelas pessoas da comunidade. E onde não fossem bem recebidos, deviam sacudir a poeira das sandálias contra eles em protesto. E deu a eles o poder de expulsar demônios e curar doenças.

O profeta Amós, e em geral todos os profetas do Antigo Testamento, são personificações antecipadas dos discípulos que Cristo iria preparar para a pregação do seu Evangelho. Desse modo, os discípulos de Cristo em todas as épocas passaram a ser os profetas do seu tempo. Como resultado do cumprimento desta missão de envio, nós temos hoje a doutrina cristã presente em todos os recantos do mundo e nós somos os continuadores desta missão, espalhados em todas as camadas da sociedade. Isto é, os profetas dos nossos dias somos nós, seguidores de Cristo e comprometidos com a nossa vocação de enviados. O Papa Francisco é o nosso profeta-mor, com seu carisma, seu zelo, seu exemplo que encanta até mesmo os ateus.

Provavelmente, um seguidor de Cristo que pode ser apresentado como modelo mais perfeito do cumprimento desta missão talvez seja o nosso Seráfico Patriarca Francisco de Assis, sem dúvida, um grande profeta do seu tempo. Num momento em que a Igreja de Cristo passava por uma grande influência do secularismo e as suas autoridades estavam sucumbindo às ambições do ter e do poder, bem como às seduções dos pecados capitais, o Senhor tocou o coração de Francisco e o enviou para 'reconstruir' a sua Igreja. Tão ingênuo, ele imaginou, a princípio, que seria apenas um pequeno serviço de reparos, pinturas, limpeza, só depois entendeu o verdadeiro sentido do seu chamado. Mas, por sua humildade, soube ser totalmente fiel à sua missão. Enquanto outros reformadores históricos (como, por exemplo, Lutero), com arrogância e orgulho, entraram em rota de colisão com as autoridades cujos desmandos eles denunciavam, Francisco, ao contrário, fez todas as suas ações de forma tranquila e obediente às mesmas autoridades, cujo comportamento atípico ele reprovava com seu exemplo de seguidor do evangelho. E o que Francisco fez? Exatamente aquilo que Cristo mandou, quando enviou os seus discípulos: sem preocupações com a aquisição e acúmulo de bens, sem necessidade de provisões de alimentos nem vestimentas, recebendo da própria comunidade o seu sustento, como fruto do seu trabalho. Todos nós nos recordamos que é isso o que está contido na 'regra de vida' que Francisco deixou como herança para os seus frades. Por isso, podemos dizer que, se houve alguém que cumpriu fielmente o mandado de Cristo na pregação do Evangelho, este foi Francisco de Assis. Deste modo, o nosso compromisso com o engajamento na missão tem uma dupla fonte. De um lado, o envio de Cristo aos seus discípulos, conforme relatado por Marcos no evangelho; de outro lado, o exemplo modelar de Francisco, de cuja herança nós participamos, através da formação que recebemos no tirocínio da vida franciscana. Seguir a Francisco se equipara a seguir a Cristo, só que com maior entusiasmo e alegria, pois, juntamente com o envio, temos o exemplo mais efetivo do seu cumprimento.

Na segunda leitura, retirada da carta aos Efésios (1, 3), Paulo elabora um inspirado hino de louvor ao Pai, que em Cristo nos escolheu, antes da fundação do mundo, para que sejamos santos e irrepreensíveis, sob o seu olhar, no amor. Naquela época, dos primeiros tempos do cristianismo, a palavra “santo” era usada para referir-se aos cristãos, pois esse nome ainda não era usual nas comunidades. Por diversas vezes, Paulo retoma esta palavra para se referir aos seguidores de Cristo, não tinha portanto, o sentido específico que o termo hoje possui. Nessa carta aos Efésios, ele exalta o dom da vocação que envolve todos os santos (cristãos) para serem profetas e evangelizadores, continuadores da missão salvadora de Cristo, através do envio que todos recebemos, como tributo do nosso batismo e da nossa adesão pela fé. Por Ele, nós fomos confirmados no Espírito, segundo o projeto do Pai, que assim nos predestinou para colocar a nossa esperança em Cristo e no seu evangelho da salvação.

Conforme a promessa de Cristo, são inerentes ao envio os poderes de expulsar espíritos malignos e curar os doentes. Estes poderes, que são transmitidos aos sacerdotes na cerimônia da ordenação, sintetizam o cerne da missão do evangelizador, isto é, curar os males corporais e espirituais, e não devem ser interpretados literalmente, e sim no sentido daquilo que Jesus disse, como resumo de sua missão: que todos se convertam e vivam. Quem interpreta estas palavras no sentido fundamentalista passa a praticar rituais de exorcismo, muito característicos de algumas entidades religiosas não católicas contemporâneas, que até fazem demonstrações teatralizadas disso através da televisão. Dentro da Igreja Católica, temos também essa forma interpretativa no entendimento dos grupos carismáticos, que também simpatizam com as práticas exorcistas. No meu modo de entender, o poder de expulsar demônios deve ser entendido como o poder de vencer o mal, em todas as suas formas de manifestações, principalmente aquelas mais presentes na sociedade contemporânea, materializadas na discriminação de pessoas, na exclusão social, na exploração do próximo através das nefastas práticas capitalistas, que tanta indignação causam às pessoas de boa fé. E o poder de curar doenças pode ser entendido como a aceitação e a promoção das pessoas mais necessitadas física e psicologicamente, levando apoio e auxílio aos irmãos mais frágeis e vulneráveis. Não existe uma receita ou um padrão de comportamento a ser indicado, mas isso será percebido pela sensibilidade de cada um, perante a sua consciência iluminada pela fé. Os sacerdotes recebem essa missão de forma plena, mas pelo batismo, também nós leigos a recebemos em grau genérico, conforme a promessa de Cristo, e compete a cada um de nós encontrar a melhor forma de pô-los em prática na nossa vida, com nossas ações e nosso testemunho.

Que o divino Mestre e o nosso Seráfico Patriarca nos ajudem no fiel cumprimento da missão que Cristo reservou e espera de cada um de nós.

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domingo, 8 de julho de 2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 14º DOMINGO COMUM - A FORÇA DA GRAÇA - 08.07.2018


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 14º DOMINGO DO TEMPO COMUM – A FORÇA DA GRAÇA – 08.07.2018

Caros Leitores:

A liturgia deste 14º domingo do tempo comum traz, nas suas leituras, um tema muito importante que é a doutrina da graça, a graça suficiente, a graça que basta. Deus dá a todos a sua graça, mas ele respeita a nossa liberdade, não fica nos puxando pela mão o tempo todo, espera que nós saibamos construir conscientemente o nosso caminho. A cada um é dada a força da graça em tamanho suficiente, porém, se cada pessoa não fizer também a sua parte, a graça por ele recebida restará ineficaz. A maior graça divina que nos foi dada é a redenção, trazida por Cristo. Mas ela só tera efeito naqueles que acreditarem. Pela fé nele, inicia-se o processo de abertura do nosso ser para a graça, mas a salvação de cada um deve ser conquistada com o testemunho dessa fé através das obras. Se fosse de outro modo, a graça não nos ajudaria, mas nos anularia como pessoas, porque se poria acima da nossa liberdade. Desse modo, Deus dá a sua graça mas espera que nós a aceitemos livremente e ajamos de acordo com ela, para sermos merecedores dessa distinção.

Na leitura da carta de Paulo a Coríntios (2Cor 12, 7), esse tema está bem explicado, quando ele declara que foi espetado na carne por um espinho que é como um anjo de Satanás a esbofeteá-lo. No texto original grego, a expressão paulina é 'skólops tês sarxi'', que significa ‘estaca na carne’ (faz lembrar as histórias de Drácula isso), e no texto latino, a tradução usada por São Jerônimo é 'stimulus carnis', que nas traduções portuguesas mais antigas era vertido como ‘aguilhão na carne’. A tradução atual substituiu o aguilhão por espinho, porém espinho é algo muito brando para simbolizar a imagem proposta por Paulo. Espinho lembra algo pontiagudo, mas delgado e frágil. Já a palavra grega 'skólops' tem um peso muito maior do que simples espinho, simbolizando algo mais poderoso e difícil de evitar.

Pois bem, Paulo diz que esse 'skólops' foi enfiado na sua carne para que ele não se ensoberbecesse com a maravilhosa revelação que ele teve, após a sua conversão, quando foi tocado por Jesus e se transformou em fervoroso discípulo. Por três vezes, diz ele, pedi ao Senhor que me livrasse disso, mas Ele respondeu: ‘basta-te a minha graça’ (2Cor 12, 9). Então, Paulo reflete acerca da suficiência da graça divina para a nossa salvação, ensinando-nos a não nos deixarmos sucumbir diante das dificuldades da vida, das nossas fraquezas, do desânimo e da falta de compreensão, muitas vezes, daqueles que nos são mais próximos. Quer ele dizer, com isso, que a graça de Deus que nos é dada não afeta a nossa condição humana, no sentido de que nós continuamos a possuir as mesmas imperfeições e ambiguidades da nossa natureza. O fato de acreditar em Cristo não torna o cristão, humanamente falando, melhor do que o não crente. Porém, o cristão passa a ter um recurso extra para superar as suas fraquezas humanas. Diz Paulo que é na fraqueza que a força se manifesta. E arremata: ‘porque quando me sinto fraco, então é que sou forte’. Isto é: quando as adversidades me atacam, quanto mais elas me perseguem, mais eu conto com a graça divina. Por outras palavras, a graça divina não retira de nós o pecado, mas nos proporciona condições para vencer o mal e trilhar o caminho do bem. Aqui é que o resultado vai depender de cada um de nós.

Essa doutrina desenvolvida pela teologia da graça ensina que Deus dá a todos os homens a graça suficiente para a salvação, porém, cada um deve fazer a sua parte para que ela frutifique. Desse modo, ela contrasta com a doutrina da graça de outras religiões, aquela que se denomina de predestinação. Segundo esta, algumas pessoas estão marcadas para a condenação, independente do que venham a fazer. De outro lado, outras pessoas estão escolhidas para a salvação, não importa o que fizerem na vida. Essa doutrina, se verdadeira, tornaria inútil qualquer esforço nosso para escolher o bem e praticar a virtude, além de levar à conclusão de que Deus seria sumamente injusto conosco, zombando da nossa condição e desrespeitando a nossa liberdade, o que seria incompatível com a natureza perfeita da divindade. Por isso, a teologia cristã católica ensina que a graça nos é dada, sim, sem que a peçamos, porém ela não opera de forma automática, mas vai depender da forma como cada qual corresponde aos dons divinos. Ou seja, a graça divina é suficiente, mas não surtirá efeito sozinha e, portanto, a salvação é um dom de Deus, mas é também uma conquista de cada um através da sua fé e das suas obras de misericórdia, não bastando apenas a fé. Agir em desacordo com a graça é o que se constitui em pecado e isso, às vezes, termina sendo inevitável, dadas as imperfeições da nossa natureza. Observa-se que, quando Paulo pediu a Deus: livra-me do “skólops”, ele estava querendo dizer “livra-me dessa condição de pecador”. Mas a resposta divina foi: não, a graça que te dou pode superar o pecado, isso só depende de ti. Eis o nosso cotidiano desafio.

Esse tema da “graça que basta” está representado também no evangelho de Marcos (6, 1-6), onde lemos que Jesus voltou a Nazaré, sua terra, acompanhado dos discípulos e lá se apresentou na sinagoga, no sábado, para fazer a leitura da Torah e depois explicá-la para os ouvintes. Foi quando os fariseus e os doutores da lei se ‘escandalizaram’ e ficaram se questionando: quem deu a Ele essa sabedoria? Com que autoridade Ele vem nos ensinar? Os doutores da lei não admitiam que alguém, que não pertencesse ao grupo deles, fosse ler na sinagoga e explicar a palavra de Deus para o povo. Jesus tinha vivido muito tempo em Nazaré e era conhecido, assim como os seus familiares. Diziam eles: não é este o filho do carpinteiro José? Nós conhecemos sua mãe, seus irmãos e irmãs, que ainda moram na cidade. Ora, meus amigos, aqueles fariseus tiveram diante de si, em pessoa, a própria Graça divina e não a reconheceram, e a recusaram. É interessante observar que o verbo ‘escandalizar’, nesse contexto, nada tem a ver com o sentido comum dessa palavra na nossa língua, mas significa descrença, não aceitação, incredulidade. Os fariseus se escandalizaram com Jesus quer dizer que não o aceitaram como Messias, não reconheceram nele o prometido por Deus. Portanto, aqueles fariseus tiveram a graça suficiente, mas pela sua incredulidade, pela rebeldia de sua vontade, a graça não operou efeito neles. Talvez se Jesus tivesse se “exibido” diante deles com algum milagre, tivessem acreditado. Mas, diz o evangelista, Jesus não fez milagre algum, apenas curou alguns doentes, impondo-lhes as mãos. Essas curas eram sempre feitas de forma privada, sem presença de público. Mas os fariseus tinham conhecimento de outros milagres, porque a fama de Jesus, nessa ocasião, circulava em toda a região. Portanto, embora tivessem a própria Graça entre eles, os seus efeitos não ocorreram, porque Deus respeita a liberdade humana e pela falta de fé deles, a salvação trazida por Jesus não se realizou ali.

Essa atitude de incredulidade dos fariseus já estava prevista pelo profeta Ezequiel, conforme lemos na primeira leitura deste domingo. Javeh disse a Ezequiel: vai lá, apresenta-te ao povo e fala em meu nome, eu sei que não vão acreditar em ti, porque são (Ez 2, 3): nação de rebeldes, que se afastaram de mim. Eles e seus pais se revoltaram contra mim  até ao dia de hoje. A estes filhos de cabeça dura e coração de pedra, vou te enviar …” E depois acrescenta: “Quer te escutem, quer não, ficarão sabendo que houve entre eles um profeta.” Foi assim que Jesus retornou a Nazaré, para que se cumprisse a profecia pois, crendo ou não, os líderes religiosos do povo ficariam sabendo que o Messias passou entre eles. A mesma atitude de recusa relatada pelo profeta Ezequiel em tempos passados se repetiu em relação àquele que, no dizer de João Batista, é mais do que um Profeta, pois o profeta fala em nome de Deus, mas Jesus falava em nome próprio. Isso torna a atitude rebelde dos fariseus mais grave e ofensiva do que a dos seus antepassados, porque estes rejeitaram a pessoa de um representante de Deus, enquanto os fariseus rejeitaram o próprio Deus.

Meus amigos, a pedagogia catequética tradicional promovia uma satanização do pecado, como se este fosse obra do demônio. Mas podemos concluir, pela leitura da carta de Paulo, que o pecado é fruto da condição humana e que ele não deve nos afastar de Deus, mas devemos nos amparar na graça que Deus nos concede, para superá-lo. Uma antiga oração penitencial dizia assim: ‘prometo nunca mais pecar...’ ora, sabemos que isso é impossível, porque para isso acontecer, teríamos de deixar de ser humanos. O pecado faz parte da natureza humana e assim é uma realidade sempre possível na nossa vida. Porém, sabendo que Deus nos concede a sua graça, temos a confiança de que é sempre possível também evitá-lo e, em qualquer caso, temos o remédio para sanar as suas consequências.

Que o Senhor nos ajude sempre a descobrir em nós a graça que recebemos e nos dê coragem para agir de acordo com ela.

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domingo, 1 de julho de 2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO - SOLENIDADE DE SÃO PEDRO E SÃO PAULO - 01.07.2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO – SS PEDRO E PAULO – PROTAGONISTAS DA FÉ – 01.07.2018

Caros Leitores:

Neste domingo, a memória litúrgica é dedicada aos Santos Pedro e Paulo, dois baluartes do cristianismo ocidental. O cristianismo teve início em Jerusalém, onde Jesus fora crucificado, onde ele concluiu suas pregações, a cidade símbolo para os judeus e também a grande metrópole daquela região geográfica. Todos os apóstolos eram de cultura judaica, então o território onde por primeiro o cristianismo foi difundido ficava nos arredores de Jerusalém, tanto aquelas localidades que Jesus havia visitado quanto as demais, por onde os apóstolos saíram na sua pregação missionária. A difusão do cristianismo pelo mundo greco-romano se deu por obra de Paulo, pois foi este quem levou Pedro para Roma, então a capital do mundo ocidental. Convinha que a comunidade cristã da metrópole fosse confiada a Pedro, a quem Jesus havia concedido a primazia entre os apóstolos. Paulo não quis assumir para si esse ônus e essa honraria, embora tenha sido o seu fundador.

Os demais apóstolos ficaram nas terras do oriente: Jerusalém, Alexandria, Antioquia e Constantinopla, onde atualmente estão localizadas as igrejas católicas ortodoxas. Paulo exerceu um papel fundamental para a difusão do cristianismo no ocidente porque, se dependesse apenas dos apóstolos treinados por Cristo, a religião cristã não teria ido além dos limites do mundo judaico. Eles não tinham condições intelectuais de penetrarem na cultura greco-romana, nada conheciam disso, não falavam a língua grega, não tinham o talento necessário para pregar o cristianismo no mundo helenizado. Mas Jesus queria que a sua doutrina fosse espalhada por todos os povos e então ele fez o milagre que eu considero o mais complexo e grandioso de todos: cooptar o seu maior perseguidor e torná-lo o seu maior arauto. Meus amigos, para mim, a maior prova da divindade de Cristo e ao mesmo tempo prova da origem divina da igreja cristã está neste fato. Ele precisava de um pregador com formação intelectual destacada e com grande fervor missionário e foi encontrar essas qualidades na pessoa de Paulo. Ocorre que Paulo era ardoroso combatedor da doutrina cristã, tal era a sua fidelidade à tradição judaica. Então, como para Deus nada é impossível, o aparentemente impossível aconteceu, quando Paulo foi abordado no caminho de Damasco, jogado ao chão e logo transtornado e transformado no mais ardente e vigoroso defensor do cristianismo. Foi ele mesmo quem escreveu isso, na carta aos Gálatas (1, 14-16): “No judaísmo, eu superava a maioria dos judeus da minha idade, e era extremamente zeloso das tradições dos meus antepassados. Mas Deus me separou desde o ventre materno e me chamou por sua graça. Quando lhe agradou revelar o seu Filho em mim para que eu o anunciasse entre os gentios, não consultei pessoa alguma ” E ele completa, dizendo: eu não recebi o conhecimento da doutrina cristã por meio de homem nenhum, mas diretamente de Cristo, por revelação. Os apóstolos judeus não tinham conhecimentos profundos nem discurso elegante, eles eram pescadores, pessoas de poucas letras, não podiam ser instrutores de Paulo. Então, todo o conhecimento que Paulo extraordinariamente compôs e explicitou nas suas pregações e nas cartas que escreveu, tudo lhe foi revelado diretamente por Cristo, no ato de sua conversão. Conforme disse antes, essa é uma prova indiscutível, a mais eloquente da divindade de Jesus. Sem Paulo, nós hoje não seríamos cristãos.

Pois bem. Por que Paulo não assumiu o comando da comunidade cristã de Roma, por ele fundada? Uma explicação para isso podemos encontrar na carta aos Gálatas (1, 18-19), onde Paulo diz: “Depois de três anos, subi a Jerusalém para conhecer Pedro pessoalmente e estive com ele quinze dias Não vi nenhum dos outros apóstolos, a não ser Tiago, irmão do Senhor.” Deixando de lado a polêmica sobre “o irmão do Senhor”, concluímos que, dos onze, Paulo só conheceu Pedro e Tiago. Paulo foi a Jerusalém conhecer Pedro, porque certamente estava informado de que Jesus havia deixado com ele a liderança do grupo. E Tiago era o dirigente da igreja cristã em Jerusalém. No início de sua atividade, Paulo foi convidado por Barnabé, para trabalharem juntos na igreja cristã de Antioquia, importante cidade da Ásia Menor. Quando Barnabé e Paulo saíram de lá para novas missões em outras terras, deixaram Pedro como dirigente da igreja de Antioquia. Ali, Pedro ficou durante vários anos, enquanto Paulo pregava o cristianismo e convertia os gentios de língua grega, sempre deixando um líder em cada cidade e partindo para outra. A igreja de Roma foi a mais tardia de todas, Paulo chegou lá quando já havia pregado o cristianismo em todas as outras localidades do mundo greco-romano, isto é, todas as outras comunidades são mais antigas do que a de Roma. Mas Roma era a capital do mundo e Paulo foi buscar Pedro em Antioquia e o trouxe para Roma.

Um pouco acima, mencionei as igrejas centrais do mundo oriental: Jerusalém, Alexandria, Antioquia e Constantinopla. A igreja de Roma centralizava o cristianismo no território europeu e todas tinham a mesma hierarquia. Nos primeiros séculos, a relação entre a igreja romana e as igrejas orientais era pacífica, mas, lamentavelmente, por ingerências políticas e divergências doutrinárias, essas igrejas irmãs entraram em um processo de desgaste, que culminou com o grande cisma do ocidente. Fator decisivo para isso foi a doutrina da “chefia” do líder da igreja de Roma sobre os líderes das demais igrejas. Cada igreja oriental tinha seu patriarca e estes não aceitaram ficar submissos ao dirigente da igreja de Roma. Essa doutrina resultou de influência dos imperadores romanos nos negócios eclesiásticos, primeiro Constantino e Teodósio, mais tarde, Carlos Magno. Por interferência deles, seguindo o modelo político vigente, o bispo de Roma foi transformado em autoridade universal sobre todas as demais igrejas. Os orientais nunca concordaram (nem concordam hoje ainda) com isso e, a meu ver, com toda razão. E esse é o grande entrave que o Papa Francisco tenta, com paciência e habilidade, superar, mas encontra fortes resistências de ambos os lados. O Papa Bento XVI chegou a nomear dois Patriarcas orientais como Cardeais, o que já foi um grande avanço. Mas ainda há muitas objeções para serem negociadas.

Bem, a igreja romana adota como fundamento bíblico deste 'primado de Pedro' o trecho do evangelho de Mateus, lido na missa de hoje (Mt 13, 19), o conhecido episódio das chaves dadas por Jesus a ele. Sobre isso, eu faço outras considerações. Apenas no evangelho de Mateus existe essa passagem que fala em “construir a igreja sobre essa pedra” e 'dar as chaves' da igreja a Pedro. Eu tenho uma séria desconfiança de que esse trecho não seja original de Mateus, pode ter sido manipulado, em época muito antiga, a fim de justificar essa doutrina. E digo isso com base em três constatações ou indícios. Em primeiro lugar, penso que o texto original devia assemelhar-se ao que está no evangelho de João (1, 42), onde é narrado o primeiro encontro de Jesus com Simão e Jesus lhe disse: “tu te chamarás Kefas – que significa Petrus”. E pára por aqui. Possivelmente alguém fez os acréscimos que constam no evangelho de Mateus, como forma de justificar biblicamente a doutrina da “chefia”, na época da polêmica. Em segundo lugar, vejo outro claro indício na expressão “sobre esta pedra edificarei a minha igreja”. Ora, todos sabemos que Jesus nunca mandou criar uma igreja, o que ele mandou foi que os apóstolos ensinassem a todos os povos a sua doutrina e os batizassem. O conceito de igreja foi-se desenvolvendo aos poucos, com as comunidades (ekklesias) organizadas pelos apóstolos. Esse linguajar “edificarei a minha igreja” não me parece coerente com os demais discursos de Cristo, gerando forte suposição de adaptação textual, numa época em que esta doutrina estava iniciando e necessitava de fundamentação. Em terceiro lugar, façamos um breve retrospecto histórico. A polêmica do “primado de Pedro” teve início lá pelo século IV, tendo sido objeto de inúmeras disputas durante mais de 500 anos, até explodir no cisma, em 1054. Por outro lado, os textos bíblicos hoje conhecidos somente foram tornados oficiais no Concílio de Trento (1545-1563). Ora, nesses 500 anos de discussões, digamos que tudo era válido para justificar uma posição política. Daí que eventual manipulação do texto não pode ser descartada. É a minha opinião, respeitando os que discordarem.

Bem, meus amigos, essas reflexões que faço não têm intuito de contestar ou desmerecer a autoridade do sucessor de Pedro, mas são como uma espécie de autocrítica, pois as igrejas orientais possuem uma riquíssima tradição e são mais antigas do que a igreja romana, merecem todo o nosso respeito. Que o Espírito Santo e o espírito de Pedro iluminem sempre mais o nosso Papa, para levar adiante a sua difícil empreitada em busca da união de todos os cristãos.
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