sábado, 26 de agosto de 2023

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 21º DOMINGO COMUM - 27.08.2023

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 21º DOMINGO COMUM – PODER E LIDERANÇA – 27.08.2023


Caros Confrades,


Neste 21º domingo comum, a liturgia coloca para nossa reflexão um tema importante e ao mesmo tempo polêmico, qual seja o da liderança de Pedro. Afinal, Jesus quis mesmo instituir Pedro como “chefe” da sua Igreja? Esse trecho de Mateus (16, 17-19) foi utilizado historicamente para fundamentar a teoria do primado de Pedro e, por via de consequência, a autoridade do Papa como “chefe” da Igreja universal. Mas será que Cristo, de fato, pretendeu isso? Ele que sempre ensinou e deu exemplo da liderança pelo serviço? Ele que sempre se recusou a ser considerado como chefe do seu grupo de discipulos? Ele sempre ensinou e insistiu: o que se julgar ser maior do que os outros seja aquele que serve mais, ou quem se julgar o maior, que seja o menor. A clareza na solução das discussões em torno desse tema é a chave para a re-união das Igrejas católicas no ocidente e no oriente.


Temos na primeira leitura, retirada do livro de Isaías (22, 19-23), uma repreensão do Profeta contra Sobna, o administrador do palácio real no tempo do rei Ezequias. O reinado deste trouxe desastrosas consequências para Israel, em virtude de seus erros administrativos, colocando em risco a segurança do povo, ao fazer alianças políticas duvidosas, além de não valorizar o poder do Javeh, preferindo confiar nos reis vizinhos. Sobna era um estrangeiro administrador do palácio real e, diante da ameaça de invasão de Israel pelo exército da Assiria, em vez de estimular o povo a rezar, fazer penitência e pedir a proteção de Javeh, duvidou do poder divino, mandando oferecer banquetes para todos, dizendo: vamos comer hoje, porque amanhã iremos todos morrer. Ou seja, tanto Ezequias quanto Sobna foram infiéis a Javeh e duvidaram do seu poder contra os inimigos do povo, por isso o profeta Isaías foi avisá-lo de que aquele lugar de administrador seria agora assumido por Eliakim, filho de Helcias. O castigo para Ezequias viria depois. Podemos associar a figura de Sobna à do administrador infiel. Ele desconheceu totalmente a autoridade em nome de quem exercia o poder e, com seu mau exemplo, transmitiu a desconfiança ao povo. Em vez de exercer a liderança a serviço do povo, Sobna fazia na verdade um desserviço, por isso, Javeh irá substitui-lo por um outro administrador, como disse o Profeta: “eu o vestirei com a tua túnica e colocarei nele a tua faixa, porei em suas mãos a tua autoridade; ele será um pai para os habitantes de Jerusalém e para a casa de Judá.” (Is 22, 21) A liturgia utiliza esse episódio de Sobna para fazer o contraponto com o trecho do evangelho de Mateus, no conhecido episódio em que Cristo institui Pedro como a “pedra” fundamental da Igreja.


Na segunda leitura, um trecho da Carta aos Romanos, que já vem sendo lida há vários domingos, no qual o Apóstolo louva a riqueza, a sabedoria e a ciência divinas. Esse hino de louvor, da forma como está apresentado na liturgia, fica melhor entendido se for contextualizado. Nas linhas anteriores, Paulo está explicando aos Romanos que nós, pessoas humanas, estávamos iguais a ramos que foram cortados de uma oliveira e Cristo, com o seu sacrifício, nos reinseriu na árvore, dando-nos de novo a vida. Paulo lembra aos Romanos que os judeus se recusaram a ser reinseridos na oliveira, por causa da incredulidade deles, mas ele (Paulo) está convocando os gentios para assumirem aquele lugar recusado pelos judeus. Por isso, ele proclama: “Ó profundidade da riqueza, da sabedoria e da ciência de Deus! Como são inescrutáveis os seus juízos e impenetráveis os seus caminhos!” (11, 33) Paulo utiliza um argumento bem simples e convincente, de modo a conseguir a adesão dos romanos intelectuais à doutrina cristã. Os romanos daquele tempo estavam muito influenciados pela filosofia grega, sobretudo pelo moralismo dos pós-socráticos e Paulo servia-se dessa situação para mostrar que o cristianismo era superior ao moralismo grego. E com isso ele conquistou numerosos adeptos entre os romanos, aqueles que se reuniam nas catacumbas para ouvir a pregação dele e receber o batismo.


Na leitura do evangelho de Mateus (16, 13-20), Jesus interroga seus discípulos sobre o que as pessoas falam a respeito d'Ele. “O que dizem os homens sobre o Filho do Homem?” As respostas são várias: uns dizem que é João Batista ou Elias ou Jeremias, ou algum profeta que ressuscitou. Foi quando Pedro sintetizou: Tu és o Cristo de Deus. E Jesus advertiu os discípulos para que não espalhassem essa informação por enquanto. Até aqui, o trecho do evangelho de Mateus (16, 13-17) é semelhante aos outros dois evangelhos sinóticos: Marcos (8, 27-30) e Lucas (9, 18-21). O problema começa no versículo seguinte, que dá continuidade à fala de Jesus: “… por isso, eu te digo que tu és Pedro e sobre essa pedra edificarei a minha igreja e as forças do mal não prevalecerão contra ela”. Ou seja, considerando que os outros dois evangelhos sinóticos não contém tal acréscimo, há fortes suspeitas de que, durante a Idade Média, antes que fosse definido o cânon dos livros da Bíblia, certos trechos das escrituras podem ter sido propositalmente “editados”, de modo a servir de fundamento a algumas doutrinas que começaram a ser divulgadas. O fato de que os outros dois evangelhos terminam o seu relato na parte em que Pedro diz: Tu és o Cristo de Deus e somente o evangelho de Mateus contém aquela parte restante levanta sérias dúvidas de que esse trecho final teria sido, possivelmente, uma inserção posterior, que não constava no manuscrito original, com o objetivo específico de dar um fundamento bíblico à autoridade de Pedro como “chefe” da Igreja. Tal suspeita é reforçada pelo fato de que os Patriarcas das igrejas orientais não concordaram quando o Bispo de Roma se arvorou na autoridade suprema de todos os cristãos, acima da autoridade deles, levando ao cisma, que ainda hoje persiste. De fato, sabe-se que os evangelhos denominados de sinóticos são compilações de documentos mais antigos, manuscritos que circulavam nas primeiras comunidades cristãs formadas logo após a ressurreição de Cristo, por isso suas passagens guardam grande semelhança. Qual seria a explicação para esse trecho dos versículos 18 e 19 se encontrarem apenas na compilação de Mateus? Por que os outros dois evangelistas não citam isso? Não há resposta uniforme e clara para essas perguntas.


Não obstante isso, é importante deixar claro que essas são dúvidas acadêmicas e que há de ser prestigiado o texto oficial, que é reconhecido como autêntico. Mesmo assim, a situação está longe de ser pacificada, porque surge outra questão igualmente importante. Ainda que Pedro tenha sido formalmente indicado por Cristo para liderar o grupo dos apóstolos após a sua paixão, que ocorreria logo depois desses eventos, vem a outra dúvida séria: a autoridade dada a ele por Cristo era para ser o chefe mesmo, isto é, para ele ter um nível hierárquico superior aos demais?


A propósito dessa questão, trago aqui um trecho de um artigo do Cardeal Orani Tempesta: “O Papa Emérito Bento XVI ensinou que: "A Cátedra de Pedro evoca outra recordação: a conhecida expressão de Santo Inácio de Antioquia que, na sua Carta aos Romanos, designa a Igreja de Roma como «aquela que preside à caridade» (Inscr.: PG 5, 801). Com efeito, o fato de presidir na fé está inseparavelmente ligado à presidência no amor. Uma fé sem amor deixaria de ser uma fé cristã autêntica. Mas as palavras de Santo Inácio contêm ainda outro aspecto, muito mais concreto: de fato, o termo «caridade» era usado pela Igreja primitiva para indicar também a Eucaristia. Efetivamente, a Eucaristia é Sacramentum caritatis Christi, por meio do qual Ele continua a atrair a Si todos nós, como fez do alto da cruz (cf. Jo 12, 32). Portanto, «presidir à caridade» significa atrair os homens num abraço eucarístico – o abraço de Cristo – que supera toda a barreira e estranheza, criando a comunhão entre as múltiplas diferenças."1 Ora, meus amigos, presidir na caridade significa estar a serviço. Foi justamente o que Cristo fez na última ceia, quando amarrou uma toalha na cintura e passou a lavar os pés dos apóstolos. E ainda disse: eu vos dei o exemplo para que façais o mesmo. “O maior de vocês deve ser aquele que serve.” (Mt 25,11) Infelizmente, a doutrina do primado de Pedro e dos seus sucessores no bispado de Roma não foi sempre tomada nesse sentido. Ao contrário, a autoridade romana se tornou símbolo de monarquia, de autoritarismo, de poder político mesmo, isso durante muitos séculos e persiste no inconsciente católico dos dias de hoje. Pelo que eu conheço da história dos Papas, eu destacaria somente dois, os quais eu posso dizer que presidiram realmente na caridade: o Papa João XXIII e o atual Papa Francisco. Todos os demais foram sempre supremas majestades, que exerciam autoridade política acima até dos governantes estatais, que usavam a tríplice coroa como símbolo dos poderes religioso, material e político. Certamente, não foi isso que Cristo transmitiu a Pedro e esse foi o grande motivo para a cisão das igrejas orientais, que não aceitaram a submissão ao Bispo de Roma. Este fato é um real e difícil obstáculo para que se alcance a unidade dos cristãos.


Que o Divino Mestre inspire o Papa Francisco a presidir realmente na caridade e assim possamos ter novamente a união de todos os cristãos dentro da mesma comunidade.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

1http://www.cnbb.org.br/eventos-1/muticom/13641-a-catedra-de-pedro

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 20º DOMINGO COMUM - FESTA DA ASSUNÇÃO DE MARIA

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO 20º DOMINGO COMUM – FESTA DA ASSUNÇÃO DE MARIA – 20.08.2023


Caros Confrades,


Neste 20º domingo comum, a memória litúrgica celebra, no Brasil, a festa da Assunção de Maria, uma verdade de fé proclamada pelo Papa Pio XII, em 1950, a última proclamação dogmática feita por um Papa. O Papa Pio XII, segundo ouvi de um sacerdote que estudava em Roma naquela época, ficou muito relutante se devia ou não fazer essa declaração dogmática da Assunção de Maria, porque não tem base na Bíblia, mas apenas na tradição. Ele pediu a Deus um “sinal” que lhe desse a certeza na sua convicção, pois estava cônscio da sua responsabilidade e da grande repercussão que a sua decisão teria. Logo abaixo, falarei sobre o sinal que ele recebeu.


As histórias acerca da “morte” de Maria são antigas e suportadas por uma tradição muito forte. Consta que Maria “morreu” aos 70 anos, no ano 56, e a sua despedida movimentou toda a cidade de Jerusalém. O apóstolo João era o seu guardião e o evangelista Lucas era o seu médico particular. Consta que ela recebeu, pela segunda vez, a visita do anjo Gabriel, anunciando a sua breve “morte” e ela, novamente, teria dito “eis aqui a serva do Senhor, faça-se segundo a tua palavra”. A história pessoal de Maria é ímpar e admirável.


Não apenas na Igreja Católica Romana, mas também no catolicismo ortodoxo das Igrejas Orientais, a assunção de Maria é celebrada desde a antiguidade, embora no oriente não tenha sido definida como dogma de fé. Mas foi nessas Igrejas orientais que se iniciou, por volta dos séculos III e IV, a celebração da “dormição” de Maria, baseada em escritos antigos que circulavam naquelas comunidades, nos quais se afirmava que Maria não havia morrido, mas apenas adormecera e então foi levada ao céu pelos anjos. Narra uma tradição da igreja siríaca que o apóstolo Tomé viu o momento em que Maria ascendia com os anjos e pediu a ela uma relíquia, para guardar como lembrança e, ao mesmo tempo, comprovar aquele fato. E, então, Maria deixou cair o seu cinto, que atualmente repousa na catedral de Homs, na Síria, dedicada a Nossa Senhora do Cinto.


A Igreja Católica Romana não guardou essa tradição, porém interpreta a narração apocalíptica do capítulo 12, que descreve o aparecimento de um grande sinal no céu, com uma mulher vestida do sol, pisando sobre a lua e coroada com doze estrelas como sendo a figura de Maria. Há também escritos muito antigos, como o “Liber Requei Mariae” (livro do descanso de Maria), do século III, que afirma que Maria não morreu, apenas descansou. E um outro escrito, este do século V, intitulado “De transitu Mariae” (sobre o trânsito de Maria), que reforça a mesma afirmação. Estes dois são escritos anônimos, ou pelo menos sua autoria não tem comprovação. E no século VI, o teólogo São João Damasceno defendeu a doutrina da assunção, que foi oficializada no pensamento teológico católico. Foi com base nesses textos e no testemunho, do qual falarei a seguir, que o Papa Pio XII decidiu fazer a proclamação. A teologia ensina que a morte é consequência do pecado. Se Maria foi concebida sem pecado, então a morte não sobreveio a ela.


Conforme mencionei acima, antes de se decidir pela oficialização do dogma da Assunção, Pio XII estava com sérias relutâncias e pediu a Deus um “sinal” inequívoco. Este veio de uma maneira bem prosaica, através de um garoto francês. Esta criança tinha sido milagrosamente curada de uma doença, após ser desenganado pelos médicos, graças às orações de seus pais à Virgem Maria. Certo dia, o menino surpreendeu o pai dele dizendo que havia recebido um recado de Maria, que ele deveria levar ao Papa. O pai não levou aquilo a sério, até porque era pobre e não tinha condições financeiras de ir a Roma. Mas, durante meses, o garoto insistia que precisava falar com o Papa. A história se espalhou e os parentes e amigos ajudaram para as despesas da viagem. Chegando a Roma, o pai do menino estava embaraçado, sem saber como chegar até o Vaticano e pedir audiência com o Papa para o seu filho de 10 anos, achando que ninguém acreditaria naquilo. Para surpresa dele, antes que ele tomasse qualquer iniciativa, chegou uma pessoa na hospedaria onde estavam e perguntou se ali estava hospedado um garoto francês e que o Papa esperava para falar com ele. Bem, não precisa contar o resto da história. O que ele o Papa conversaram nunca foi revelado, mas depois desta conversa, o Papa se convenceu de que deveria oficializar o dogma da Assunção de Maria.


A proclamação papal acerca do dogma da Assunção não afirma taxativa se houve ou não a morte de Maria, isto é, proclamou a assunção de Maria em corpo e alma ao céu, sem se pronunciar sobre o detalhe se ela havia morrido ou apenas dormido ou descansado, conforme consta nos escritos anônimos dos primeiros séculos. Essa omissão proposital é uma atitude de prudência, para que os eventuais adversários da proclamação não viessem a contraditá-la por haver-se baseado em escritos apócritos. Por isso, além da referência ao capítulo 12 do Apocalipse, a doutrina também referencia a carta de Paulo aos Coríntios (1Cor 15, 22-23): “Como em Adão todos morrem, assim também em Cristo todos reviverão. Porém, cada qual segundo uma ordem determinada: Em primeiro lugar, Cristo, como primícias; depois, os que pertencem a Cristo, por ocasião da sua vinda.” A Igreja entende que, logo depois da entrada gloriosa no céu de Cristo ressuscitado, foi a vez de Maria, pela sua condição de imaculada mãe de Deus. Na verdade, a definição dogmática da assunção de Maria é uma consequência lógica de outra definição dogmática conciliar, publicada no Concílio de Éfeso, em 431, que proclamou Maria como Mãe de Deus, desfazendo uma antiga heresia, segundo a qual Maria seria a mãe apenas de Jesus homem, mas não de Cristo Deus, porque Deus não pode ter mãe.


Sobre as leituras litúrgicas da festa de hoje, já nos referimos acima à primeira, retirada do Apocalipse (12, 1), que fala do grande sinal (signum magnum) visto por João no céu. Era uma mulher grávida e, ao seu lado, um enorme dragão esperando que ela despachasse a criança, a fim de devorá-la. Essa imagem é emblemática nos arquétipos teológicos de todos os tempos, como uma referência clara e explícita aos embustes demoníacos contra a Igreja. Mesmo sem termos em mente qualquer anjo do mal, como criatura espiritual, podemos enxergar esses “agentes demoníacos” no interior de alguns setores burocráticos da própria Igreja. Quem não se recorda dos asquerosos “corvos do Vaticano”, que tanto atormentaram o Papa Bento XVI, forçando a sua renúncia, em 2003. Foram eles mesmos que dominaram o Papa João Paulo II, nos últimos anos de sua vida, período em que ele esteve muito debilitado e senil em consequência da doença de Alzheimer, produzindo documentos em nome do Papa e com a sua autoridade, com fortes evidências de que o Papa não sabia mesmo do que estava acontecendo. Dizem que, quando Napoleão Bonaparte assumiu o trono da França, logo depois da Revolução Francesa, teria colocado como um dos objetivos do seu governo a destruição da Igreja Católica. Sabendo disso, o arcebispo de Paris esteve conversando com o Imperador francês e teria revidado assim: desista do seu projeto de destruição da Igreja, porque os próprios padres já tentaram e não conseguiram. E olhando para os tempos atuais, observando o enorme carisma do Papa Francisco, admirado e exaltado até pelos ateus e fiéis de outras religiões, podemos concluir que os demônios podem estar dentro dos muros do Vaticano, mas as “portas do inferno” realmente não prevalecerão.


A segunda leitura litúrgica é a carta de Paulo aos Coríntios, à qual já me referi acima, cuja lição sobre a derrota da morte pela ressurreição de Cristo é o fundamento teológico mais forte para a afirmação da assunção de Maria, sobretudo levando-se em consideração que, sobre Maria, a serpente do pecado foi imobilizada, conforme se vê nas imagens dos artistas que retratam a figura da Imaculada Conceição. Aliás, esse título de “imaculada”, de acordo com a revelação particular a Bernardete Soubirous, aceita e admitida pela Igreja, foi Maria mesma quem afirmou: “je suis l'immaculée conception”, assim está estampado na gruta de Lourdes, na França. Não é afirmação bíblica, mas a tradição é fortíssima e antiquíssima, devendo ser prestigiada a sua credibilidade.


Uma curiosidade, que o evangelista Lucas não revela é onde Maria terminou seus dias. As crenças tradicionais são divergentes acerca do fato. Segundo algumas tradições, ela teria permanecido em Jerusalém, até o seu “passamento” - digamos assim, para não afirmarmos nem que ela morreu nem que descansou. Segundo outras tradições, ela teria terminado seus dias em Éfeso, onde existe uma casa, que é visitada pelos peregrinos e venerada como sendo a “casa de Maria” e de onde ela teria sido trasladada para o céu. Sabemos que João, o evangelista, era bispo de Éfeso e foi a ele que Jesus confiou os cuidados com Maria, ainda no Calvário. Talvez por isso a tradição se incline a aceitar que Maria teria terminado a vida em Éfeso. Mas pode ser também que João tenha se mudado para Éfeso somente depois da “passagem” de Maria, esse fato também não foi documentado. João teria se transferido para Éfeso, conforme a tradição, por volta do ano 50. Supondo que Maria teria engravidado com cerca de 15 anos, como era o padrão da sua época, no ano 55 ela teria cerca de 70 anos de idade. Por isso, tanto uma tradição quanto outra (Jerusalém ou Éfeso) são compatíveis com os fatos e assim não tem como solucionar a controvérsia.


Meus amigos, penso que é crença incontroversa o fato de que Maria ocupa um lugar central e incomparável em toda a economia da salvação (para usar um termo clássico da teologia). Não é por acaso que ela é reverenciada com tantos títulos. Que ela sempre nos vigie a todos com a sua ternura maternal.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 12 de agosto de 2023

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 19º DOMINGO COMUM - 13.08.2023

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 19º DOMINGO COMUM – FIRMEZA NA FÉ – 13.08.2023


Caros Confrades,


A liturgia deste 19º domingo comum nos exorta a sermos firmes na nossa postura de fé. Esta não pode padecer nem do apego à tradição, de um lado, nem da fragilidade da dúvida, de outro. A primeira figura está no desabafo de Paulo, na carta aos Romanos, onde ele lamenta pela atitude rígida dos judeus, os legítimos herdeiros da promessa, que não reconheceram o Filho de Deus. A segunda figura está na fraqueza de Pedro diante do perigo, duvidando de si próprio e sucumbindo na sua vacilação. São duas situações perante as quais precisamos estar atentos, porque facilmente elas podem nos iludir. A nossa fé não pode ficar estagnada no tempo e nem ameaçada por dúvidas, mas deve seguir um constante processo de crescimento e amadurecimento, superando todas as ameaças que a afligem.


Na primeira leitura, retirada do livro dos Reis (1Rs 19, 9-13), o autor sagrado nos ensina a reconhecer Deus nos acontecimentos, mostrando o exemplo do profeta Isaías. Ele subiu o monte Horeb (que é o mesmo monte Sinai), a fim de ter um encontro com Javeh, e pernoitava numa caverna, quando recebeu o aviso: espera lá fora, que o Senhor vai passar. Então, o profeta viu chegar um grande vendaval, mas não se abalou porque não viu o Senhor naquele vento; depois, veio um terremoto medonho, mas também ele não se impressionou, porque não viu o Senhor no terremoto; depois, viu um fogo devastando as árvores, mas o Senhor também não estava no fogo; por fim, veio uma leve brisa, então, ele saiu para esperar a chegada de Javeh. O que devemos entender com isso? Que a ação de Deus acontece de forma suave, natural, sem alarde, mansamente. Deus não precisa fazer grande barulho para mostrar-se a nós. Ele não necessita de ser anunciado com toque de tambores ou som de cornetas, como faziam as autoridades dos tempos antigos, nem ainda através de ruidosos alto-falantes, como alguns pregadores hodiernos, a fim de serem notados pela população. Deus age na nossa vida de forma quase imperceptível, nós só precisamos estar atentos e saber perceber a sua presença na mais simples rotina, na mais costumeira tarefa diária. Não nos devem impressionar atitudes espalhafatosas de alguns pregadores, que aparecem nas igrejas eletrônicas, cujos canais enchem a lista das transmissões na TV, caprichando nas mímicas e nos trejeitos, utilizando-se até de encenações teatralizadas e pagas (isso já foi comprovado), com o intuito de auferirem maior credibilidade. A lição do Profeta está ali: Deus não está nesses eventos teatralizados, nesses terremotos psicológicos, no fogo dos anúncios fantasiosos. Deus está presente na simplicidade, na leveza do contato, na naturalidade do encontro pessoal. Quão proveitoso seria se todos os que buscam a Deus aprendessem a lição ensinada pelo profeta Isaías nessa leitura. Rapidamente, os ilusionistas da religião seriam desmascarados e os verdadeiros pregadores da Palavra seriam identificados.


A segunda leitura, dando continuidade à carta aos Romanos (Rm 9, 1-5), traz a queixa e o desabafo de Paulo em relação aos seus “irmãos de raça”, os judeus e mais ainda os fariseus, aquele grupo de judeus mais radicais e mais apegados às filigranas do texto da lei do que ao seu espírito de sabedoria. Diz ele: “Tenho no coração uma grande tristeza e uma dor contínua, a ponto de desejar ser eu mesmo segregado por Cristo em favor de meus irmãos, os de minha raça.” Paulo oferece a sua própria vida pela conversão dos judeus, para libertá-los daquele fechamento mental, que os impede de reconhecerem a verdade da Palavra de Deus humanizada em Jesus Cristo. “ A eles pertencem a filiação adotiva, a glória, as alianças, as leis, o culto, as promessas e também os patriarcas,” ou seja, eles são os chamados em primeiro lugar, os que deveriam estar na frente da fila, eles é que deveriam estar no trabalho de conversão dos gentios, no entanto, ao contrário, os gentios estão servindo de exemplo para eles, pela sua adesão à fé em Cristo, que eles renegam. E Paulo lamenta porque é um deles, foi educado como eles, sabe o que eles pensam, sabe o que eles esperam. Paulo pensava como eles e despertou para uma nova visão, daí a profunda dor que o Apóstolo sente pelo fato de seus irmãos de raça não serem também irmãos na fé cristã. O extremismo da sua compreensão das escrituras impede que eles aceitem o evangelho. Eles são tão aferrados à sua tradição, tão cuidadosos cumpridores de suas obrigações religiosas, no entanto, fecham-se num casulo intransponível, criado por eles próprios, e ficam impossibilitados de ver os novos rumos para onde a religião caminha.


Meus amigos, esta fé enclausurada em si própria, nos dias de hoje, é muito mais frequente do que se possa imaginar. Diversos grupos se apegam ao tradicionalismo religioso e rejeitam sumariamente qualquer nova abordagem da fé. O medo da heresia, mais ainda, o medo de uma possível infidelidade e de um castigo por causa isso levam muitos católicos a refugiarem-se nas velhas práticas e nas antigas doutrinas, criando uma clausura mental de pseudo segurança, tal como os judeus ainda hoje fazem, em relação ao segundo mandamento. O receio de chamar o nome de Deus em vão é tão grave e patológico que, no lugar da palavra Javeh eles pronunciam Elohim, Adonai, o Eterno, o Nome, mas não dizem Javeh, por causa da eventualidade de transgressão do segundo mandamento. Não devemos assimilar tal atitude. O nosso Deus é Amor, sua benevolência e compaixão são ilimitadas, não devemos criar obstáculos onde eles não existem. Lamentavelmente, existem em nossa Igreja clérigos e leigos submissos a essa ideia anacrônica de um Deus terrível, ameaçador, com o chicote permanentemente na mão pronto para castigar o fiel ao menor deslize. No meu modo de entender, esses comportamentos podem ser identificados com a estreiteza religiosa dos antigos fariseus, que transformaram a lei de Moisés num conjunto de torturas físicas e mentais, que lhes obstruía o entendimento e a sensibilidade. Basta uma leitura mais atenta dos evangelhos para percebermos que não foi isso que Cristo ensinou.


No evangelho de Mateus (14, 22-33), vemos na imagem de Pedro a atitude oposta da fé petrificada em rígidos preceitos, isto é, a fé vacilante. Ao menor desafio, diante do menor obstáculo alguns cristãos sucumbem vítimas de suas próprias dúvidas. Se prestarmos atenção, podemos descobrir na nossa própria vida situações em que agimos iguais a Pedro, vencidos pela insegurança e a incerteza daquilo em que cremos. Quando Jesus se identificou para os discípulos, andando sobre as águas em direção ao barco como se estivesse em terra firme, Pedro, na sua costumeira impetuosidade, disse logo: também quero fazer isso. E Jesus disse: vem. Mas logo o vento forte se agitou contra o corpo dele e ele duvidou de si próprio. Sim, ele não duvidou de Jesus que lhe havia dito: vem! Ele duvidou da sua própria capacidade de realizar aquela tarefa extraordinária, que era pisar na água sem afundar. Era a sua fé que o mantinha flutuando. Quando ele pensou mais nos seus defeitos do que na força que Cristo havia lhe dado, então começou a afundar. Não foi a falta de fé em Cristo que se abateu sobre Pedro, mas ele duvidou de si mesmo, ele pensou que não seria capaz de fazer algo tão difícil, mesmo tendo recebido a ordem de Cristo: vem!


Meus amigos, esse comportamento de Pedro nos toca muito de perto, porque é muito possível que nós venhamos a padecer dessa mesma fraqueza, nos momentos em que somos desafiados. A fé cristã exige de nós certos compromissos que, às vezes, nós temos dúvida se poderemos levá-los adiante. O maior deles, talvez, seja o nosso compromisso de ser sal da terra e luz do mundo, isto é, de sermos exemplos para as outras pessoas. Não se acende uma luz para pô-la dentro do armário, nem se toma o sal para jogá-lo fora. Penso que nenhum de nós discorda disso e cada um se diz disposto a colocar em prática. Porém, quando somos desafiados numa situação concreta, muitas vezes agimos em desacordo com esse compromisso. Se eu critico os políticos corruptos (o que é muito comum, tanto uma coisa quanto outra, ou seja, a crítica e a corrupção), porém, eu cometo pequenos desvios de conduta social (por exemplo, avançar um sinal de trânsito, jogar papel no chão, sonegar um tributo, tirar vantagem de uma situação em detrimento de alguém), fatos considerados banais para algumas pessoas, então eu estou fazendo igualmente a Pedro, isto é, estou fraquejando na minha fé, estou sendo incoerente na minha crítica aos que agem desonestamente. A nossa fé deve se manifestar não somente quando vamos à missa, quando rezamos o terço, quando pagamos o dízimo, quando ensinamos a reza aos nossos filhos, isso tudo é muito importante, sem dúvida. Contudo, mesmo nas ações mais corriqueiras do dia a dia, somos constantemente desafiados para darmos o exemplo da nossa fé e, nessas ocasiões, não podemos agir deste ou daquele modo justificando que “todo mundo faz assim”, porque o nosso compromisso de cristão é ser luz, e não sombra. Não é raro ouvirmos comentário do tipo: “fulano vive na igreja, no entanto, quando sai de lá...” Precisamos vigiar sempre, para não sucumbirmos a tal incoerência.


Deus quer de nós fidelidade sempre, não apenas no comparecimento da missa aos domingos e na participação dos sacramentos, não apenas em determinadas horas do dia ou em determinados dias da semana, mas a cada minuto de vida que Ele nos dá. Que o mergulho de Pedro nos sirva de alerta para nos mantermos firmes na nossa caminhada acima das águas turbulentas da sociedade.


Cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 5 de agosto de 2023

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 18º DOMINGO COMUM - A TRANSFIGURAÇÃO - 06.08.2023

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 18º DOMINGO COMUM – A TRANSFIGURAÇÃO – 06.08.2023


Caros Confrades,

Neste 18º domingo comum, a liturgia celebra a solenidade da transfiguração de Cristo, extraordinário fenômeno ocorrido perante três dos seus apóstolos. A realeza de Cristo já estava predita no livro de Daniel (cap 7), onde ele narra visões e sonhos que lhe vieram à cabeça e ele precisou que um anjo lhe explicasse, porque ele não conseguia entender. Nessas visões, o profeta adota um conceito que, depois, foi assumido por Cristo: o filho do homem. E o apóstolo Pedro, na sua segunda carta, corrobora a narração de Mateus, dando testemunho do que ele presenciou naquela noite em que Jesus lhe mostrou a sua face gloriosa.


Na primeira leitura, o profeta Daniel (7, 9-14) descreve uma visão ou sonho fortemente enigmático, no qual viu animais monstruosos em situações completamente fora do contexto normal. Quatro animais gigantescos e exóticos saíram do mar (um leão, um urso, um leopardo e outro sem nome, que possuía dentes de ferro), figuras que os intérpretes atribuem aos grandes reinos que surgiram do ‘grande mar’ (o Mediterrâneo), inclusive o império romano, que seria a quarta fera inominada. (As imagens desses animais não foi mencionada na leitura, porque os versículos 10 e 11 foram omitidos). E por fim, surgiu um Ancião de muitos dias (aqui começa o trecho da leitura de hoje) e dele aproximou-se um “filho de homem”, a quem foram dados o poder, a glória, a realeza, e todas as nações da terra serviram a ele. Interessante observar que Jesus Cristo, em diversas ocasiões, referiu-se a ele mesmo como “filho do homem”, numa explícita referência à figura criada pelo profeta Daniel. Esse reino, que lhe foi dado, completa o profeta, nunca se dissolverá. Nessa enigmática metáfora, reforçada com a utilização do conceito por Cristo, os exegetas interpretam o personagem “filho do homem”, da profecia de Daniel, como a prefiguração de Cristo, que trouxe ao mundo a mensagem do reino de Deus, que deveria alcançar todos os povos e seria triunfante no final dos tempos. Essa leitura se encaixa de modo pleno no fenômeno da transfiguração de Cristo, pela qual Jesus se mostrou luminoso e glorioso para os três apóstolos, e a sua autenticidade foi confirmada pela “voz” que se fez ouvir na ocasião, que bem pode ser atribuída ao “Ancião de muitos dias”, usando a mesma simbologia do profeta Daniel. No final deste capítulo 7, num trecho não incluído na leitura de hoje, o profeta Daniel confessa o quanto aquele “sonho” o deixou perturbado, mesmo depois de ter recebido as explicações do anjo. E declara: “Aqui terminou o assunto. Quanto a mim, Daniel, os meus pensamentos muito me perturbaram, e mudou-se em mim o meu semblante; mas guardei o assunto no meu coração.” (Dn 7, 28) Deveras forte e impactante a palavra do Profeta que, segundo ele mesmo informa, escreveu isso logo após o término da visão, para que não esquecesse dos detalhes. É muito instrutiva a leitura inteira do cap 7 de Daniel, o que recomendo.


Na segunda leitura, lemos um trecho da segunda carta de Pedro, onde ele presta um eloquente testemunho acerca do que presenciou, juntamente aos outros dois apóstolos, do fato de extraordinária confiança com que Jesus os distinguiu. Por isso, ele diz que a sua pregação não está embasada em fábulas ou narrativas inventadas, mas no fato de que ele mesmo presenciou a demonstração inquestionável da divindade de Cristo. Diz ele: “Efetivamente, ele recebeu honra e glória da parte de Deus Pai, quando do seio da esplêndida glória se fez ouvir aquela voz que dizia: ‘Este é o meu Filho bem-amado, no qual ponho o meu bem-querer’. Esta voz, nós a ouvimos, vinda do céu, quando estávamos com ele no monte santo.” (2Pd 1, 17) De acordo com a narração de Mateus, Jesus os proibiu de falar sobre o que tinham visto, até que ele ressuscitasse dos mortos. As epístolas de Pedro, diferentemente daquelas de Paulo, foram destinadas às comunidades de judeus convertidos e o objetivo de Pedro é exatamente convencer os judeus, que ainda relutavam em reconhecer a messianidade de Cristo, que ele (Pedro) podia afirmar isso com plena certeza. A “voz” que veio da nuvem e testemunhada por Pedro é a mesma que também partiu da nuvem na ocasião em que Jesus recebeu o batismo da penitência, ministrado por João Batista, no Jordão, evento narrado por todos os evangelistas e que se constitui em um dos cinco principais fatos atestadores da divindade de Cristo (batismo, transfiguração, crucificação, ressurreição e ascensão).


Na leitura do evangelho de Mateus (17, 1-9), temos uma das narrações da transfiguração de Jesus diante de Pedro, Tiago e João, sendo esta a leitura selecionada pela liturgia de hoje. Primeiramente, podemos refletir sobre a escolha desses três, isto é, por que Jesus não se transfigurou diante de todos os apóstolos? Certamente, eram esses três os que tinham sua maior confiança. Pedro já estava escolhido para ser o líder do grupo e Jesus o preparava para essa missão. João era o discípulo mais jovem, aquele em que Jesus depositava total confiança. Quanto a Tiago, havia dois discípulos com esse nome. O evangelista Mateus diz que quem estava no trio era o Tiago (maior) filho de Zebedeu, irmão de João, porém os outros dois evangelhos sinóticos (Marcos 9, 2 e Lucas 9, 28) não afirmam se era este mesmo ou o outro Tiago (menor) filho de Alfeu. Este último é considerado, por algumas tradições, como irmão de Jesus, deixando assim uma dúvida sobre a identidade do terceiro discípulo a presenciar aquele extraordinário fenômeno. Se levarmos em consideração o grau de parentesco, podemos supor que o Tiago referido na narração da transfiguração seja o outro, o irmão de Jesus, não o irmão de João, como diz Mateus. Eu, particularmente, defendo esse entendimento.


A propósito desse conceito de “irmão do Senhor”, importa destacar aqui nesse contexto o significado de “irmão” nas culturas antigas. Com efeito, a palavra grega “adelphos”, que se traduz geralmente por irmão, não quer dizer apenas “irmão de sangue”, como habitualmente se entende, mas também significava primo, meio-irmão, irmão de criação, ou seja, um parentesco bastante próximo, não necessariamente irmão consanguíneo. Prefiro acreditar que o Tiago do trio, que presenciou a configuração, poderia ser este Tiago Adelphos, o menor, e não o filho de Zebedeu, irmão de João. Isso entra em choque com o texto de Mateus, mas os motivos que acima destaquei me levam a sustentar a segunda hipótese, com todo o respeito. Trata-se de uma questão, como já mencionei em outras oportunidades, de que não se deve interpretar o texto bíblico de forma puramente literal, mas buscando elementos circunstanciais que auxiliem a uma compreensão mais ampla. Devemos considerar que, durante séculos, esses textos passaram pelas mãos de vários copistas e não se descarta a eventual possibilidade de ter havido pequenas alterações ou adaptações do texto primitivo.


Um outro ponto a se destacar no texto da narração da transfiguração é a metamorfose de Jesus ante a presença de dois personagens da tradição hebraica: Moisés e Elias. Eles representam, respectivamente, a Lei e os Profetas. Diz o narrador que a face de Jesus ficou resplendente igual ao sol e as suas roupas brancas tanto quanto a luz. Em uma outra versão desse texto, a leitura diz que a roupa de Jesus ficou branca como a neve, podendo-se observar aqui uma divergência da tradução do grego para o latim. Com efeito, no texto original em grego, está escrito que as roupas de Jesus ficaram “leuka ôs tô phôs” e S. Jerônimo traduziu em latim como sendo “alba sicut nix”. Bem, phôs em grego significa luz (phôs, photos), no entanto S. Jerônimo utilizou uma metáfora europeia para traduzir o original grego. Em lugar de “brancas como a luz” ele utilizou “brancas como a neve”. O texto atual fez retornar a tradução mais coerente com o original.


Nesta narração, Jesus quis provar aos seus discípulos duas verdades que ele vinha pregando há muito tempo: primeiro, a sua origem divina; segundo, que os seus ensinamentos não são contrários à lei mosaica, como muitas vezes os fariseus o acusavam, mas ao contrário, ao se apresentar ao lado de Moisés e de Elias, dialogando com eles, queria significar que havia pleno entendimento entre os respectivos ensinamentos. Os discípulos eram judeus e, certamente, também podiam ter ainda dúvidas dessas duas verdades. Afinal, o judaísmo farisaico interpretava a lei de uma forma tão específica e exclusiva que, à primeira vista, dava a impressão que o ensinamento de Jesus se colocava contra a sua tradição. Com aquela visão futurista, Jesus dava provas de que a sua doutrina era mesmo a continuidade daquilo que a tradição guardava como ensinamentos de Moisés e dos Profetas.


Para nós, a imagem do Cristo transfigurado é um constante e eloquente apelo a fim de que tenhamos sempre na mente o nosso destino glorioso, cuja antecipação Ele demonstrou naquele memorável cenário. Nossa missão é fazer com que Cristo se apresente através de nós, transfigurando-nos.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos