domingo, 29 de outubro de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 30º DOMINGO COMUM - O MAIOR MANDAMENTO - 29.10.2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 30º DOMINGO COMUM – O MAIOR MANDAMENTO – 29.10.2017

Caros Leitores,

Na liturgia deste 30º domingo comum, o tema central enfoca a questão do maior mandamento da lei divina. Desde a antiguidade bíblica, o profeta Moisés apresentou ao povo hebreu a lista com os mandamentos, isto é, com as determinações divinas para serem por eles cumpridas. O primeiro da lista é exatamente o amor de Deus, conforme consta em Êxodo cap.20 e com mais detalhes em Deuteronômio 6,5. No Antigo Testamento, eles são listados em número de dez. No evangelho, Jesus os resume a dois. E Santo Agostinho, nos seus comentários bíblicos, resume a um só: ama e faze o que quiseres.

Na primeira leitura, extraída do livro do Êxodo (22, 20-26), vemos que nas lições iniciais de Javeh ao povo hebreu já constava o cuidado com o próximo, o amor ao próximo, que Jesus iria enfatizar mais tarde. No trecho lido hoje, Javeh instrui o povo a tratar bem os estrangeiros: “Não oprimas nem maltrates o estrangeiro, pois vós fostes estrangeiros na terra do Egito. Não façais mal algum à viúva nem ao órfão. Se os maltratardes, gritarão por mim, e eu ouvirei o seu clamor.” (Ex 22, 20) O estrangeiro, nesse contexto, é a figura do próximo, que só iria aparecer no evangelho. Não era esse o costume antigo, isto é, tratar bem os estrangeiros. Esses eram potenciais inimigos, não faziam parte do povo, por isso deviam ser tratados com reserva e de forma diferente dos irmãos de sangue. Na Roma antiga, era assim também o costume em relação aos não romanos. Os estrangeiros eram excluídos da sociedade, não possuíam direitos, eram explorados em seus serviços e não podiam reclamar dos maus tratos, porque não tinham o sangue romano. E Javeh lembra ao povo: vós também fostes estrangeiros na terra do Egito e sofrestes humilhações, por isso, deveis ter um comportamento diferente dos povos pagãos. E diz mais: o estrangeiro maltratado recorrerá a Mim e “minha cólera, então, se inflamará e eu vos matarei à espada; vossas mulheres ficarão viúvas e órfãos os vossos filhos”. (Ex 22, 23) Ou seja, neste caso, Javeh se voltará contra o seu próprio povo, para vingar os maus tratos feitos aos estrangeiros.

É interessante a liturgia chamar a atenção para esse comportamento que não era comum na época e que Javeh determinava para o seu povo. Digo determinava, porque isso era um mandamento, não era um conselho, uma recomendação. E pairava uma gravíssima ameaça contra quem não cumprisse. Curiosamente, essa regra do “amor ao próximo” não foi bem assimilada pelos fariseus doutores da lei, sendo necessário que Jesus viesse a chamar-lhes a atenção para isso. Basta lembrar aquela famosa parábola do “bom samaritano”, que foi contada por Jesus quando um dos fariseus perguntou a Ele: quem é o meu próximo. Outra regra interessante colocada nesse contexto é a não cobrança de juros dos empréstimos aos estrangeiros. A usura era também regulada na prática dos romanos de modo similar. Se o contrato de empréstimo era entre romanos, era proibida a cobrança de juros; mas se fosse entre um romano e um não romano, então aí podia. Os judeus também não cobram juros entre eles próprios, no entanto, podia cobrar dos estrangeiros. E daí que todos nós conhecemos a história do enriquecimento dos judeus europeus no período anterior às guerras mundiais, pela sua habilidade em negociar com os não judeus cobrando juros, a ponto de despertar a ganância do governo “quebrado” da Alemanha, após a depressão econômica de 1930, levando-os ao holocausto. Por incrível que pareça, isso está na Torah deles, porém sempre foram palavras mortas na hora de colocar em prática. Até parece que sofreram a vingança do próprio Javeh, quando prometeu que os mataria à espada, caso praticassem a usura.

Na segunda leitura, da carta de Paulo aos Tessalonicenses (1Ts 1, 5-10), o Apóstolo os exalta porque, pelo seu comportamento, eles se tornaram modelo para as demais comunidades da Macedônia e da Acaia. Diz Paulo: nem é mais preciso que eu diga nada, porque “as pessoas mesmas contam como vós nos acolhestes e como vos convertestes, abandonando os falsos deuses, para servir ao Deus vivo e verdadeiro ” (1Ts 1, 9). A cidade de Tessalônica era a capital da Macedônia, um importante porto comercial e um local estrategicamente colocado no meio das grandes estradas romanas, de modo que para lá acorriam muitas pessoas de diversificadas culturas, então Paulo tinha a preocupação para que a semente do cristianismo ali lançada por ele não fosse suplantada por essa variedade de povos e costumes. Daí o seu motivo de felicidade quando soube, através de Timóteo e Silvano, que os cristãos de lá continuavam firmes na fé e até influenciavam os estrangeiros, servindo-lhes de exemplo. Uma outra característica dessa carta é a crença que Paulo tinha, no sentido de que o “retorno” de Cristo estava próximo, assim era o entendimento de então, Jesus havia ressuscitado mas logo logo retornaria. O próprio Paulo parecia acreditar que ele ainda estaria vivo, quando Jesus retornasse. Por isso, lê-se no versículo 10: “Jesus, que nos livra do castigo, está por vir”. Consta que essa carta foi escrita por volta do ano 50 d.C., ou seja, nessa época a doutrina cristã ainda era muito incipiente e muitas questões ainda não estavam amadurecidas na reflexão teológica. Essa afirmação sobre a vinda de Cristo era uma delas.

Na leitura do evangelho, retirada de Mateus (Mt 22, 24-30), lemos outra disputa doutrinária entre Jesus e os fariseus, que mais uma vez tentavam apanhá-lo em alguma contradição e por isso testavam Seu conhecimento das escrituras. Daí que diz o evangelista: para testá-lo, perguntaram: “Mestre, qual é o maior mandamento da lei?” E Jesus, demonstrando que conhecia a lei de Moisés melhor do que eles próprios, dá a resposta que eles já sabiam: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento!” (Mt 22, 37). Essa frase está contida textualmente em Deuteronômio 6, 5 e eles queriam ver se Jesus dizia algo diferente, mas com essa resposta, Jesus não os surpreendeu. A surpresa veio quando Ele continuou e disse também o segundo mandamento, algo que eles nem tinham perguntado: “Não procurem vingança nem guardem rancor contra alguém do seu povo, mas ame cada um o seu próximo como a si mesmo. Eu sou o Senhor.” (Levitico 19, 18). Isso, sim, foi novidade para eles, sobretudo quando Jesus completou a resposta dizendo: “Toda a Lei e os profetas dependem desses dois mandamentos”.(Mt 22, 40). Talvez, eles esperassem que Jesus fosse citar os mandamentos na sua forma tradicional, como eles (fariseus) costumavam fazer. E Jesus outra vez os surpreende. O amor ao próximo já estava determinado na Torah e eles, fariseus, não haviam se tocado para isso. A religião era, para eles, uma relação puramente vertical com Javeh, cada um por si, individual e privadamente. E a surpresa foi ainda maior quando Jesus falou que o segundo mandamento era semelhante ao primeiro. Não basta amar a Deus sobre todas as coisas, se não somos capazes de amar o próximo como a nós mesmos.

Observemos que Jesus repete a lei antiga, demonstrando que ela continuava em vigor, que Ele não veio mudar a lei, e sim aperfeiçoá-la. E o aperfeiçoamento consiste exatamente nessa nova visão da religião voltada para a comunidade, para o próximo. Assim como se deve amar a Deus com todo o coração, toda a alma e todo o entendimento, assim também se deve amar o próximo. O Padre João Mohana, conhecido escritor maranhense que fez sucesso literário nos anos 70, dizia uma frase, que eu acho muito criativa e nunca esqueci: Deus mandou que nos amássemos, não que nos amassemos. Um trocadilho bem interessante, que nos mostra o quão difícil é amar o próximo, tão difícil que os fariseus haviam “esquecido” esse trecho da lei, como se não fosse necessário. E é imperativo observarmos também as três dimensões do amor a Deus e ao próximo: com todo o coração, ou seja, o amor emotivo, espontâneo, intuitivo; com toda a alma, ou seja, o amor sobrenatural, divino transcendente; com todo o entendimento, ou seja, o amor racional, esclarecido, voluntário e intencional. Os povos antigos, que não tinham muito conhecimento sobre a anatomia humana, pensavam que o ser humano tinha três “almas”, sendo que uma delas se localizava no coração (fonte da emoção), outra se localizava nos rins (fonte da agressividade) e outra na inteligência (fonte da racionalidade). Assim era a doutrina de Platão, que naturalmente não foi inventada por ele, mas sistematizada nos seus escritos, algo que era comum nas culturas antigas. Com isso, devemos entender que o nosso amor a Deus e ao próximo não admite reservas nem limitações, mas deve envolver o nosso ser inteiro, com todas as nossas forças e potencialidades.

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domingo, 22 de outubro de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 29º DOMINGO COMUM - O CIDADÃO E O CRISTÃO - 22.10.2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 29º DOMINGO COMUM – O CIDADÃO E O CRISTÃO - 22.10.2017

Caros Leitores,

Neste 29º domingo comum, as leituras litúrgicas põem em destaque a nossa vida cotidiana e chamam a nossa atenção para a nossa conduta de cristãos, que deve ser exemplar tanto quanto como cidadãos. Uma atitude não deve colidir com a outra. Enquanto cristãos, temos o mandamento de Cristo para seguir; enquanto cidadãos, temos as normas governamentais para obedecer. Por mais que os valores éticos e a credibilidade dos nossos representantes políticos estejam abalados, a nossa responsabilidade de cristãos e de cidadãos nos recomenda que devemos ter sempre em vista o país na sua integridade, independentemente de simpatias, antipatias, preferências ou rejeições. O respeito aos dirigentes do país, mesmo quando demonstrada sua indignidade, é um dever que se impõe a nós, cristãos, como corolário da nossa fé.

A primeira leitura, do livro do profeta Isaías (45, 1-6), refere-se ao imperador persa Ciro II, como o governante ungido por Javeh sem que ele próprio soubesse disso, porque Javeh o havia escolhido para ser o libertador do povo de Israel. Com efeito, Ciro derrotou os exércitos de Nabucodonosor, dominou a Babilônia e deu a liberdade aos hebreus. A habilidade militar de Ciro II fez dele o monarca do maior reino que se viu naquele tempo, além de ter sido um rei tolerante com os inimigos vencidos, dado o seu bom coração. Tudo isso fez com que os hebreus vislumbrassem na pessoa dele um enviado de Javeh e, ao retornarem para a Palestina, tornaram-se seus aliados políticos, fazendo com que o reinado dele ganhasse ainda maior território. Conforme já tive ocasião de comentar alhures, o livro do profeta Isaías, a partir do cap 45, é chamado pelos biblistas como “deutero Isaías”, ou “ Isaías”, pois os fatos que aborda são historicamente posteriores à morte de Isaías. No caso, Isaías morreu no ano 681 a.C., enquanto o reinado de Ciro II teve início em 559 a.C. e a libertação dos hebreus cativos se deu em 539 a.C., ou seja, mais de um século após a morte de Isaías. O deutero Isaías foi escrito pelos discípulos do profeta, dando continuidade ao seu vaticínio. Em várias passagens anteriores, Isaías havia prenunciado a libertação do povo, quando chegasse o momento escolhido por Javeh. Então, os seus discípulos quiseram mostrar que o Profeta havia acertado suas previsões.

Durante muito tempo, os estudiosos acreditaram que o texto completo houvesse sido escrito por Isaías, mas a crítica histórica que começou a organizar os livros da Bíblia, a partir do final do século XIX, confrontando os relatos bíblicos com os fatos da história universal, chegou a essa distinção entre o proto Isaías (1º Isaías), escrito pelo Profeta mesmo, e o deutero Isaías, escrito por seus discípulos. Na fé do povo hebreu, o grande império que Ciro II veio a formar, mesmo ele não sendo crente em Javeh, no entanto, isso mostra mais ainda o poder de Javeh, que é insuperável por qualquer outro deus. “Armei-te guerreiro, sem me reconheceres, para que todos saibam, do oriente ao ocidente, que fora de mim outro não existe. Eu sou o Senhor, não há outro.” Santo Agostinho, interpretando essa tradição hebraica de sempre perceber a presença de Javeh nos eventos históricos, mostrando a ação divina através desses acontecimentos, criou uma doutrina conhecida como “teologia da história”, que está no seu livro A Cidade de Deus, uma grande contribuição dele para a cultura ocidental.

Na leitura do evangelho (Mt 22, 15-21), lemos aquele famoso diálogo de Jesus com os fariseus, acerca da moeda do tributo. Temos lido, nesses domingos sucessivos, diversas altercações de Jesus com os fariseus, narradas por Mateus sempre com a finalidade de mostrar a dureza dos seus corações e para justificar o fato de que o evangelho fora anunciado aos pagãos, porque aqueles para quem a mensagem se destinava, recusaram-se a recebê-la. Por diversas vezes, os fariseus armaram ciladas para apanharem Jesus em algum passo em falso e essa foi uma das mais ardilosas que eles tramaram. De fato, eles colocaram Jesus num beco sem saída, porque qualquer resposta que Ele desse seria comprometedora. O povo hebreu amargava o fato de estar dominado pelos romanos e uma das consequências dessa dominação era o pagamento de pesados impostos. Pagar imposto ao imperador romano era uma humilhação para os hebreus, além de que era uma sangria na economia da região. Vários protestos se levantaram contra o pagamento desses impostos, sendo que o grupo mais revoltado com essa situação eram os zelotes, que tentavam convencer o povo a sonegar, porém esse era um risco enorme e o castigo para os sonegadores era cruel. Consta que Judas Iscariotes pertencia ao grupo dos zelotes e tinha a ideia de que Cristo lideraria uma grande rebelião do povo contra os romanos, expulsando-os do seu território. Teria sido esse o motivo pelo qual Judas se aproximou de Jesus e também teria sido esse o motivo pelo qual, no final das contas, entregou Jesus aos romanos e depois suicidou-se, porque ficara desiludido quando percebera que Jesus não planejava revolta nenhuma.

Então, nesse contexto político de grande insatisfação, se Jesus dissesse que não era para pagar os tributos, Ele estaria se pondo contra os romanos e os fariseus teriam um motivo forte para acusá-lo. E se ele dissesse que o tributo era lícito, atrairia para si a ira do povo que o seguia, porque todos tinham aquele pagamento como iníquo e injusto. Porém, Jesus percebeu desde logo o embuste em que queriam lançá-lo e os desmascarou de uma forma totalmente inesperada: se vocês usam a moeda romana, então paguem aos romanos o que eles cobram; por outro lado, se vocês dirigem suas orações a Javeh, então façam isso com a mesma fidelidade. E os fariseus, como se diz no popular, tiveram que enfiar a viola no saco e sair pra cantar em outra freguesia. Eu me referi, há pouco, ao livro de Santo Agostinho “A Cidade de Deus”, pois bem, lá ele coloca as coisas mais ou menos nos seguintes termos: nós somos cidadãos do mundo e também cidadãos do céu, um fato está inteiramente incluído no outro, não há como separar. E nem é isso necessário, porque a nossa salvação é alcançada a partir da nossa vida na comunidade e nós não precisamos deixar de ser cidadãos para ser cristãos. A nossa cidadania celeste é construída junto com a nossa cidadania terrena, uma não obstrui nem substitui a outra. Ao contrário, elas se sustentam reciprocamente. O que Jesus quer de nós é que vivamos a nossa cidadania civil exercitando nela os deveres e compromissos da nossa fé. Nós não somos cristãos apenas quando vamos à igreja, quando rezamos o terço, quando damos esmolas, quando fazemos leitura espiritual, etc. No nosso dia a dia do trabalho, das relações sociais, dos círculos de amizade, das atividades de lazer, em tudo o nosso comportamento deve demonstrar a nossa opção de vida e de fé cristã.

Vivemos um período político conturbado e grandemente vulnerável e preocupante, em que a massa popular oscila entre a dúvida e a polarização de opiniões. Muitas lideranças cristãs, sejam clérigos ou leigos, assumem por vezes posições de extremismo tendendo seja para o extremismo conservadorista ou para a recíproca oposta. E a imprensa, assim como as mídias sociais em geral, divulgam incessantemente informações duvidosas e ardilosas, contribuindo para tornar o ambiente social mais inseguro e confuso. Outros partem para um absenteísmo irresponsável, do tipo “não votar em ninguém” ou boicotar o processo eleitoral. Jesus nos mostra, na narração de Mateus, que o cristão deve ser esperto e estar atento ao momento político, enxergando-o com clareza e serenidade, buscando alternativas válidas e factíveis, evitando os extremos e as abstenções. Trata-se de uma atitude sem dúvida difícil de se fazer com equilíbrio, sobretudo por causa da falta de confiabilidade das informações que circulam, mas o nosso compromisso de fé nos impele a buscar incessantemente e com sã consciência descobrir as melhores alternativas dentro das atuais circunstâncias, posto que nunca estaremos vivendo uma situação ideal na sociedade. Devemos, portanto, obter os melhores resultados com os recursos disponíveis.

O domingo de hoje é celebrado como o “dia das missões”, dia de rendermos uma homenagem especial àqueles bravos religiosos europeus, que acompanhavam as esquadras dos navegantes, dos quais a história registrou poucos nomes, mas bastante conhecidos: Frei Henrique de Coimbra, franciscano português, e os jesuítas espanhóis Manoel da Nóbrega e José de Anchieta. Graças ao seu ardor missionário, a religião cristã chegou até nós e ajudou a moldar a nossa cultura e a nossa sociedade. Um grande “viva” para eles.

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domingo, 15 de outubro de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 28º DOMINGO COMUM - CONVIDADOS AUSENTES - 15.10.2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 28º DOMINGO COMUM – CONVIDADOS AUSENTES – 15.10.2017

Caros Leitores,

As leituras da liturgia deste domingo seguem o tema predominante dos domingos anteriores, mostrando as parábolas que Jesus Cristo falava aos fariseus e anciãos do povo, sempre chamando a atenção deles, que estavam cegos para a sua mensagem de salvação e não o reconheciam como o Messias da promessa. Desta vez, o cenário da narrativa é o grande banquete, promovido por um grande rei, para o qual mandou convidar os seus amigos, no entanto, estes fizeram pouco-caso do convite e inventaram as mais singelas desculpas para não comparecer. Como nos exemplos já comentados, os fariseus não compreenderam que aquela história era sobre eles próprios.

Na primeira leitura, do profeta Isaías (25, 6-10), observamos que já existia a figura do banquete que o Senhor dos exércitos ofereceria, naquele monte, a todos os povos, composto de ricas iguarias de pratos deliciosos, acompanhados do vinho mais puro. Sobre aquele monte, o Senhor eliminará para sempre a morte e enxugará as lágrimas de todos os povos da terra. O monte simbólico é a prefiguração de Jerusalém, para onde voltariam os exilados e, em cujos arredores, por sua crucificação, Cristo expiou os pecados da humanidade e atraiu para si todos os povos. A mensagem cristã e os sacramentos instituídos por Ele, como sinais da continuidade de sua presença são a confirmação da promessa do Senhor dos exércitos, através do Profeta, de que a mão do Senhor repousará sobre esse monte para sempre. Vemos, mais uma vez, Jesus se servir de uma imagem extraída da profecia de Isaías para transformá-la numa nova história, transferi-la para um novo contexto. Curioso é que, mesmo fazendo essa extraordinária demonstração não apenas de conhecimento das Escrituras, mas também relacionando diretamente com a sua pessoa divina, nem assim os chefes dos fariseus e anciãos do povo conseguiam captar as entrelinhas das parábolas de Cristo, dirigidas especificamente a eles.

Na segunda leitura (Fl 4, 12-20), o apóstolo Paulo dirige aos Filipenses uma mensagem de agradecimento por terem eles se preocupado com a sua situação pessoal, com as dificuldades pelas quais ele passava, encontrando-se preso pelos romanos. Os estudiosos não conseguem identificar o local onde Paulo estaria preso, mas supõe-se que era numa cidade próxima (talvez Éfeso), pois ele fora preso diversas vezes. Nessa ocasião, a comunidade de Filipos angariou donativos que foram enviados a Paulo por um mensageiro, para minorar as carências de suas precárias condições de vida na prisão e Paulo devolveu a eles, por meio do portador, a carta em agradecimento. Provavelmente, com os donativos recebidos, Paulo tivesse usufruído de um verdadeiro “banquete” naquela prisão, onde ele estaria passando fome. Numa extraordinária demonstração de sua fé, Paulo menciona nessa carta uma frase, que talvez seja a mais conhecida e repetida pelos cristãos: “tudo posso naquele que me dá forças”, quando diz que já se acostumou a viver na pobreza e na riqueza, na abundância e na miséria, tudo suportando pela causa do evangelho.

No evangelho de Mateus (22, 1-14), o hagiógrafo coleciona mais uma das parábolas ditas por Jesus como indireta/direta aos fariseus, que o acompanhavam por curiosidade ou com o intuito de apanhá-lo em algum deslize. A história é muito parecida com a parábola da vinha, lida no domingo anterior, quando ele se refere aos “empregados” do rei, porém, desta vez Cristo não falou que o rei mandou, por fim, o seu próprio filho. Um outro detalhe que chama a atenção do leitor é o fato de que Ele faz referência a uma festa de casamento, mas não menciona quem seriam os noivos, concentrando a sua narrativa nas atitudes dos convidados. Hoje, tanto quanto naquela época, um convite de casamento era recebido como uma honra, como uma deferência especial por parte dos promotores da festa, significando uma grave desatenção ou uma ofensa o não comparecimento do conviva. Sobretudo porque, naquele tempo, essas festas eram realizadas sempre em grande estilo de riqueza e fartura, sendo algo a que as pessoas sempre faziam questão de ser convidadas. Ou seja, a situação era, em si mesma, emblemática e impactante para a cultura do povo hebreu.

Pois bem, a parábola é bastante conhecida e o seu desfecho também: o banquete foi preparado com todo requinte, mas os convidados não compareceram. Além de apresentarem as desculpas mais esfarrapadas, alguns ainda maltrataram os emissários do rei (na simbologia, seriam os profetas). Então, diz o rei: os convidados não foram dignos, por isso, vão chamar os pobres, os desocupados, os malandros, as prostitutas, todos aqueles que estão por aí à toa. Novamente, Jesus Cristo passa na cara dos fariseus que os estrangeiros estão sendo convidados para o reino porque eles (fariseus) desdenharam do convite, que lhes foi dirigido em primeiro lugar, eles que formavam o povo da promessa. E fazendo aqui a remissão com a primeira leitura de Isaías (25, 6), vemos que se repete a imagem de um grande banquete que seria oferecido em Jerusalém, comemorando a libertação do povo. No contexto de Isaías, a comemoração se referia à libertação sociopolítica do povo hebreu, mas, no sentido trans histórico, a referência se dá com a salvação trazida pelo sacrifício de Cristo, na mesma Jerusalém.

Há uma particularidade interessante nessa leitura de Mateus, em 22, 11, quando ele emenda a história do banquete com a do convidado que está sem traje próprio para a festa (antigamente, a tradução era ‘sem a veste nupcial’). Eu me lembro que o Padre Uchoa, nosso professor de Bíblia no Seminário da Prainha, explicava isso dizendo tratar-se de uma contradição do texto sagrado, porque se o rei mandou chamar os que estavam pelas esquinas, pelos becos, pelas favelas, etc, como iria depois exigir que todos estivessem com traje de festa (ou com veste nupcial, como se dizia antes)? Era compreensível que fosse exigido o traje próprio daqueles que tinha sido convidados com antecedência, mas daqueles que foram apanhados nas ruas e chamados ali, como exigir deles que estivessem com roupa de festa? A explicação exegética para isso, segundo o Padre Uchoa, é que se trata de dois textos justapostos. Vamos tentar explicar melhor essa contradição literária.

Se bem observarmos, a narrativa da parábola do banquete termina no versículo 22, 10: "e a sala do banquete ficou cheia". O trecho seguinte, iniciando no versiculo 11, deve ser um acréscimo feito por Mateus (ou por algum copista posterior) e que não faz parte originalmente desta parábola. Como é que se sabe disso? Pela análise comparada dos evangelhos sinóticos. A mesma parábola é contada em Lucas 14, 15, e a história termina quando Lucas diz: "nenhum daqueles que foram convidados primeiro degustará a minha comida" (refere-se aos fariseus, os convidados ausentes). E logo muda para outro assunto. Então, conclui-se que Mateus usou a mesma fonte de Lucas, mas acrescentou um pedaço de outro escrito que tem certa relação com a história do banquete, mas não foi pronunciado naquela mesma ocasião por Jesus Cristo. Assim, fica explicada a contraditória atitude do rei que, ao mesmo tempo, convidou e desconvidou e ainda mandou açoitar o conviva que não usava o traje adequado.

Meus amigos, transportando para a nossa realidade a parábola narrada por Cristo, compreendemos facilmente que o banquete continua sendo o Reino de Deus, mas os “empregados” que o rei mandou para chamar as pessoas que estavam nos becos e favelas, os profetas de hoje, somos nós, cristãos e missionários do Reino. Com isso, Jesus Cristo ensina que a nossa missão cristã não se realiza plenamente dentro do templo, mas na comunidade, no dia a dia, no trabalho, nas relações sociais, em todo lugar onde nos encontrarmos, pois nós somos desafiados a testemunhar o Reino de Deus com nosso exemplo, com a nossa fé ativa, mais do que com nosso discurso, mais do que com uma cruz pendurada no pescoço ou o terço na mão. A messe é o mundo todo e os operários da messe, isto é, os “messionários” ou missionários, como queiram, somos nós. E ao fazermos isso, estaremos simbolicamente demonstrando que estamos sempre com a veste nupcial, aquela que distingue e identifica os verdadeiros cristãos, em qualquer lugar onde nos encontremos.

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domingo, 8 de outubro de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 27º DOMINGO COMUM - UVAS SELVAGENS - 08.10.2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 27º DOMINGO COMUM – UVAS SELVAGENS – 08.10.2017

Caros Leitores,

Neste 27º domingo comum, o tema da liturgia nos traz, mais uma vez, a imagem da vinha para representar o povo de Deus, naquela época representado pela casa de Israel. Curiosamente, no seu sermão contra os fariseus, Jesus repete quase integralmente a mesma metáfora do profeta Isaías composta 700 anos antes. Percebe-se uma nítida preferência de Jesus pelos ensinamentos deste Profeta, que ele reproduz diversas vezes nos seus discursos. Só que os doutores da lei, bitolados nas suas convicções e conjeturas, nada entenderam. Por pouco, Jesus dava os “nomes dos bois”. Mas essa atitude dos fariseus não é algo do passado, pois isso também acontece conosco, quando nós estamos tão embevecidos com a nossa soberba e autossuficiência, que não conseguimos ver a mensagem de Deus através dos acontecimentos.

Na primeira leitura, o profeta Isaías (cap 5) fala de Jerusalém usando a figura da vinha, construída pelo seu proprietário, e arrendada a vinhateiros, que dela não cuidaram devidamente. Resultado: em vez de produzir bons frutos, produziu uvas selvagens. Para a nossa realidade, a figura do vinhedo não é tão significativa, como é, por exemplo, para os gaúchos, donos dos mais famosos vinhedos do nosso país. Por não ser uma realidade típica do ambiente nordestino, a leitura do evangelho não proporciona uma exata visão da metáfora usada por Jesus. Talvez se ele tivesse comparado com um roçado de milho e feijão, fosse uma figura mental mais apropriada para a nossa compreensão cultural. De todo modo, era um assunto bastante comum para o povo de Israel, assim como o arrendamento dessas plantações para agricultores, o que se tornava um assunto bem familiar para eles. E nem era preciso grande esforço para alcançar o sentido figurado da imagem, porque o Profeta explicou bem claramente: “a vinha do Senhor dos exércitos é a casa de Israel, e o povo de Judá, sua dileta plantação; eu esperava deles frutos de justiça e eis injustiça; esperava obras de bondade e eis iniquidade.” (Is 5, 7) A época histórica do profeta Isaías foi um período de grandes convulsões sociais e políticas, em que a nação hebraica vivia em permanente ameaça de invasão por estrangeiros, principalmente egípcios e assírios. O Profeta alertava para o perigo da idolatria e consequente afastamento de Javeh, que ameaçava: “vou mostrar-vos o que farei com minha vinha: vou desmanchar a cerca, e ela será devastada; vou derrubar o muro, e ela será pisoteada” (Is 5, 5). Por fim, depois de tanto falar e não ser ouvido pelas autoridades, consta que o profeta Isaías foi serrado ao meio, por ordem do rei, sendo assim a sua morte. O que ocorreu logo depois foi a derrota dos assírios para os babilônios e, por causa da aliança que o rei de Israel havia feito com os assírios, os babilônios invadiram Jerusalém e levaram o povo cativo. Aconteceu exatamente como o Profeta anunciara.

Temos neste domingo um salmo responsorial totalmente contextualizado com a primeira leitura, como se fosse uma continuação desta. Consta ser esse um salmo de Assaf, um personagem que viveu na época pós-exílica, quando ocorria a reconstrução de Jerusalém. O salmista personifica a alma do hebreu arrependido, que compreendeu o castigo merecido do exílio e agora pedia perdão a Javeh, prometendo não mais afastar-se dele. “E nunca mais vos deixaremos, Senhor Deus!/ Dai-nos vida, e louvaremos vosso nome!/ Convertei-nos, ó Senhor Deus do universo,/ e sobre nós iluminai a vossa face!/ Se voltardes para nós, seremos salvos!”, diz ele, após ter feito uma súplica de arrependimento: “Voltai-vos para nós, Deus do universo!/ Olhai dos altos céus e observai./ Visitai a vossa vinha e protegei-a!” O texto do salmo reflete o ânimo predominante no povo hebreu, naquele momento de retorno à terra prometida, liberto do cativeiro. Consta, no livro das Crônicas (1Cro 16, 7) que Assaf foi encarregado por Davi para ser o chefe dos cantores que vinham à frente da Arca da Aliança, quando essa relíquia foi trazida de volta para Jerusalém, após a libertação do povo e que os filhos dele foram os cantores que levaram a Arca para o templo, já no tempo de Salomão, após a restauração. Desse modo, a salmodia funciona, ao mesmo tempo, como eco e como complementação da leitura do profeta Isaías.

Temos na leitura do evangelho de hoje (Mt 21, 33-43), outra parábola contada por Cristo, na tentativa de ser entendido pelos fariseus e seus doutores da lei. Os dois domingos anteriores trouxeram também parábolas similares, todavia, nessa parábola da vinha, Jesus foi ainda mais claro e os fariseus entenderam a história contada, só não compreenderam que aquilo tinha a ver com eles. Eles já conheciam o discurso sobre a vinha, feito pelo profeta Isaías, porque na condição de doutores da lei e sacerdotes, a Torah era o seu livro de leitura diária na sinagoga, não havia como não relacionar de imediato a parábola contada por Jesus com a advertência do Profeta, em época histórica diversa. Percebe-se, pela leitura, que os fariseus ficaram indignados com a reação daqueles “vinhateiros rebeldes”, pois sugeriram que eles deviam ser castigados com morte violenta e a vinha devia ser entregue a outros operários. Porém, a sua mente preconceituosa contra Jesus não permitia que eles enxergassem, na pessoa deste, a figura do “filho do dono da vinha”. E assim, a história contada por Jesus entrou nos ouvidos deles como “história de trancoso”, como se Jesus estivesse apenas testando o senso de justiça deles.

O evangelista Mateus, no versículo 39, coloca na boca de Jesus a previsão do que iria acontecer com Ele, algum tempo depois, por ação dos fariseus instigando o povo: “Então agarraram o filho, jogaram-no para fora da vinha e o mataram.” Outra vez, a figura da vinha representava a cidade de Jerusalém, para fora da qual Jesus foi levado a fim de ser crucificado. E ainda segundo o evangelista Mateus, Jesus teria encerrado dizendo que: o reino de Deus será tirado de vocês e será entregue a outro povo, que produzirá bons frutos”. (vers 43) Na minha opinião pessoal, diria que essa parte final não deve ter feito parte da parábola original contada por Jesus aos fariseus, porque assim Ele estaria sendo direto demais e até grosseiro, esse não era o estilo de Jesus. Parece-me mais um “comentário” feito pelo evangelista por ocasião da produção do seu texto, pois aquele evangelho se destinava aos convertidos de Antioquia, um grupo composto por judeus da diáspora e por pagãos de outras nacionalidades, todos afastados do judaísmo tradicional. Por isso, Mateus faz questão de salientar que o reino de Deus, que outrora havia sido prometido aos judeus (leia-se fariseus), agora havia sido retirado deles e passado para os outros povos. Como se sabe, as palavras de Jesus não foram escritas na hora em que ele falava, mas foram guardadas na mente e na fé dos seus seguidores, que se encarregaram de divulgá-la, após a sua morte e ressurreição. Por isso, não se pode entender o texto do evangelho como se fossem palavras literalmente pronunciadas por Jesus, mas sim como testemunhos das verdades por Ele ensinadas.

Meus amigos, aproveito o espaço para fazer uma referência à memória litúrgica do Seráfico Patriarca São Francisco, celebrada na semana que passou. Esta é, de longe, a grande festa religiosa do nordeste, fazendo ecoar em diversas localidades o hino “cheio de amor, as chagas trazes do Salvador.” É curioso como algumas pessoas têm uma vida breve, porém muito fecunda. São Francisco viveu apenas 44 anos e foi canonizado logo dois anos após sua morte. Quantas realizações fez ele em tão curto espaço de tempo vivido, quanta densidade na sua biografia e nos seus exemplos e ensinamentos. A imagem do santo pobre e humilde se encaixou muito bem no tipo cultural do povo nordestino, de modo que a empatia foi instantânea e profunda. Está fazendo cerca de um século que os primeiros frades chegaram nas terras nordestinas (ao Maranhão, final do século XIX e ao Ceará, início do século XX), trazendo a bandeira de São Francisco e a sua presença cativante e amiga. Nós somos testemunhas vivas e herdeiros dessa formação franciscanista, que cada um incorporou ao seu modo. Os diversos santuários e as diversas obras sociais espalhadas por diferentes cidades atestam a presença vibrante do franciscanismo no meio da sociedade nordestina. É certo que não foi apenas no nordeste que se desenvolveu a devoção a São Francisco, mas é também certo que é no nordeste onde essa devoção tem seus adeptos mais fervorosos e suas marcas mais visíveis. Basta lembrar a gigantesca estátua de São Francisco, em Canindé, que deve ser a maior do mundo erguida para este Santo. Isso mostra, numa dimensão material, o tamanho da credibilidade que São Francisco tem entre o nosso povo.

E pensar que ele, na sua sincera humildade, não pretendia jamais tal popularidade nem tanta fama. No entanto, nele se cumpriu aquilo que Maria falou quando recebeu a saudação do anjo: pôs os olhos na humildade de sua serva e por isso todas as gerações me chamarão bem-aventurada. A vida de São Francisco e a obra dos seus seguidores vem comprovar, sem nenhuma dúvida, que Deus exalta os humildes. O nosso Papa Francisco é uma pessoa que, no nosso tempo, incorpora a alegria e a humildade franciscanas, fato que vem conquistando a simpatia de pessoas das mais diversas origens e crenças ao redor do mundo. É a prova de que o carisma franciscano continua atual e ativo, numa época em que o mundo tanto necessita de pessoas com esse perfil. São Francisco, rogai por nós.

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domingo, 1 de outubro de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 26º DOMINGO COMUM - OBEDIÊNCIA E HUMILDADE - 01.10.2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 26º DOMINGO COMUM – OBEDIÊNCIA E HUMILDADE– 01.10.2017

Caros Leitores,

A liturgia deste domingo deste 26º domingo comum põe no foco a parábola narrada por Jesus acerca dos dois filhos, simbolizando os fariseus e os pecadores, destacando que obedecer não significa cumprir formalmente a lei, mas vivê-la no seu coração. O próprio Cristo nos deu o mais perfeito exemplo da obediência, conforme nos lembra o apóstolo Paulo, quando Ele deixou de lado sua condição divina e assumiu a nossa humanidade, humilhando-se até a morte, tudo para cumprir com fidelidade o plano do Pai.

A primeira leitura é retirada do Profeta Ezequiel, que chama a atenção para a conduta de acordo com a justiça, como garantia de uma vida longa. É importante lembrar que Ezequiel profetizou no tempo do exílio da Babilônia junto aos exilados. Ele era também um deles. Javeh permitiu que o povo hebreu sofresse essa imensa humilhação de ser levado cativo para uma terra estrangeira, por causa da desobediência à aliança, porque abandonaram a promessa dos Patriarcas, porque trocaram Javeh pelos ídolos e a lei pela vida luxuosa. O Profeta adverte:Quando um justo se desvia da justiça, pratica o mal e morre, é por causa do mal praticado que ele morre.” (Ez 18, 26) Era isso que havia acontecido ao povo hebreu: desviara-se da justiça, por isso estava no cativeiro. Todos tinham fé em que Javeh não iria deixar o seu povo para sempre cativo. No entanto, o Profeta foi enviado para anunciar que a libertação só ocorrerá quando eles se converterem e se humilharem, isto é, abandonarem a vida de desobediência e retornarem para o projeto de Javeh. O estilo de Ezequel é cheio de imagens fortes, pelas quais ele busca sensibilizar o povo. É muito conhecida a profecia dele no cap. 36, 26: “tirarei do vosso peito o coração de pedra, e vos darei um coração de carne ” O coração do povo estava petrificado e essa era a missão do profeta: amolecer-lhes o coração. Não é certeza que Ezequiel tenha retornado do exílio, pois não são conhecidos os detalhes da sua morte. No entanto, a sua missão profética foi decisiva e seu trabalho foi completado pelos seus discípulos.

Na segunda leitura, retirada da carta de Paulo aos Filipenses, lemos aquela conhecida e nem sempre bem compreendida passagem em que ele diz que Cristo não se prevaleceu do fato de ser igual a Deus, isto é, não quis ter nenhum privilégio. A tradução da CNBB, já tive oportunidade de comentar isso alhures, é infeliz porque fala em “usurpação”, abrindo espaço para entendimentos fora do contexto, no meu modesto modo de pensar. Com efeito, Paulo está enfatizando a fidelidade de Cristo ao projeto do Pai, fazendo-se obediente em tudo e, por isso, o Pai O exaltou e O colocou acima de tudo e Lhe deu um Nome que está acima de todo nome. (Fl 2, 9) Convém sempre lembrar que a comunidade de Filipos foi a primeira fundada por Paulo e pela qual ele tinha uma afeição especial, como se quisesse tornar esta a comunidade modelo para as outras. Daí ele dizer: “Se existe consolação na vida em Cristo, se existe alento no mútuo amor, se existe comunhão no Espírito, se existe ternura e compaixão, tornai então completa a minha alegria: aspirai à mesma coisa, unidos no mesmo amor; vivei em harmonia, procurando a unidade. ” Vê-se o cuidado que ele tinha em manter a comunidade fiel na observância do evangelho, evitando conflitos, praticando o amor mútuo e a comunhão fraterna. A fidelidade ao evangelho era a melhor maneira de conservar a obediência a Deus.

Temos no evangelho de Mateus (21, 28-32) outra daquelas parábolas de Cristo dirigidas aos fariseus, no caso, aos sacerdotes e anciãos. Estes se consideravam fiéis a Deus porque cumpriam rigorosamente os preceitos da Lei, e por causa disso, desprezavam os pecadores (cobradores de impostos e prostitutas) porque não observavam os preceitos tanto quanto os primeiros. No domingo passado, tivemos a parábola dos trabalhadores que chegaram em horários diferentes e todos receberam o mesmo salário, outra indireta contra os fariseus que se julgavam mais merecidos do que os pecadores. Aqui, Jesus traz para a consideração dos líderes farisaicos uma comparação. Um pai tinha dois filhos e mandou a ambos que fossem trabalhar na vinha. O primeiro disse: “não vou” mas, depois, pensou melhor e foi; o segundo disse “vou já”, mas não foi. E aí faz a pergunta retórica e de resposta óbvia: qual dos dois realmente obedeceu ao pai? Os próprios sumos sacerdotes (fariseus) responderam corretamente, porém não compreenderam que, novamente, Jesus estava contrapondo os pecadores, representados pelo filho que, a princípio, desobedeceu ao pai, mas depois arrependeu-se e foi fazer o que o pai mandara, com a conduta dos fariseus, representados pelo filho que aceitou o compromisso, porém não o cumpriu. Os fariseus, além de se considerarem automaticamente salvos porque obedeciam fielmente os preceitos da Lei, ainda desdenhavam dos pecadores (cobradores de impostos, prostitutas) que estariam assim condenados a priori. Por isso, Jesus usa um linguajar mais do que direto: “João veio até vós, num caminho de justiça, e vós não acreditastes nele. Ao contrário, os cobradores de impostos e as prostitutas creram nele. Vós, porém, mesmo vendo isso, não vos arrependestes para crer nele”.” (Mt 21, 32) Ora, os fariseus achavam que não tinham do que se arrepender, pois afinal eles se consideravam puros e fiéis, eles eram os cumpridores da lei, não os outros. O que mais admirava aos fariseus nas atitudes de Jesus é que Ele, em vez de ficar na sinagoga, no meio deles, andava nas praças, nas montanhas, nas beiras dos lagos junto com os pecadores. Ora, se eles, fariseus, eram os herdeiros da promessa, então por que a prioridade de Jesus não fora dada a eles? Essa foi a questão que eles nunca entenderam e por isso não viram em Cristo o Messias.

Meus amigos, é muito comum observarmos essa atitude dos fariseus na conduta de muitos cristãos de hoje. No comentário anterior, eu fiz a alusão às duas senhoras que discutiam no estacionamento da igreja logo após a missa. Mas esse é um exemplo entre muitos, infelizmente. Nos ambientes internos dos diversos serviços paroquiais encontramos cristãos que estão longe de praticarem o conselho de Paulo aos Filipenses (2, 3): “Nada façais por competição ou vanglória, mas, com humildade, cada um julgue que o outro é mais importante, e não cuide somente do que é seu, mas também do que é do outro.” Existe mesmo uma competição indisfarçada, uma busca insensata pelo “poder” dentro da comunidade, prática de bajulação como forma de conquistar a confiança do Pároco, domínio de espaços e locais (por ex: essa é a “minha” missa, essa é a “minha” pastoral), e o que é pior, chegam ao ponto de travarem discussões e agressões, gerando um clima de rivalidade e desconfiança. Provavelmente cada um dos leitores já se deparou com situações dessa espécie. Quanto maior visibilidade tem a função em referência, maior é a disputa por ela no ambiente paroquial. Muitas vezes, a situação se torna tão instável, a ponto de comprometer até a permanência do próprio Pároco, porque as “conversas” chegam até o Bispo em forma distorcida. Fico a imaginar que essas pessoas, se tivessem vivido no tempo de Cristo, estariam ali gritando: solta Barrabás.

Oportuno destacar, nesse contexto, que estamos em tempo de novena preparatória para a festa de São Francisco em muitas comunidades. Ele foi o modelo da obediência, legado que deixou para todos os seus seguidores. São Francisco ensinava aos frades o que ele chamava “obediência de cadáver”, algo como se a pessoa obediente não devesse ter vontade própria, mas comportar-se exatamente como lhe ordena o superior. Obviamente, esse conceito de obediência deve ser contextualizado para seu melhor entendimento e, se considerado no sistema de vida de São Francisco, podemos considerá-lo compatível com o mundo do seu tempo. Essa era a pedagogia da época mas esse ensinamento, com essa mesma perspectiva radical, não se coaduna com a sociedade contemporânea, na qual a norma oficial proíbe até castigos educativos que os pais antes aplicavam aos filhos. Nos dias atuais, ninguém repetiria mais a tese da “obediência do cadáver”, no entanto, devemos sempre lembrar que a obediência é sinônimo de humildade, não de mero cumprimento de uma ordem. O exemplo de Cristo na parábola já ensinava isso: obediente não é aquele que diz “sim” e não pratica, ou seja, aquele que cumpre sua obrigação só da boca para fora. Obediência não é fazer somente porque estão todos observando ou “para não dar o que falar”. Obediência é agir com o coração, mesmo que às vezes ocorram imperfeições nesse agir. O profeta Ezequiel já advertia aos cativos da Babilônia: “Quando um ímpio se arrepende da maldade que praticou e observa o direito e a justiça, conserva a própria vida.” (Ez 18, 27) Eventuais falhas na ação fazem parte da condição humana de seres pecadores, que somos nós. Foi para que tenhamos forças de superar as fraquezas da nossa natureza imperfeita que Cristo nos deixou os seus ensinamentos e os seus sacramentos, por meio dos quais permanece conosco. A humildade para reconhecer os próprios pecados e arrepender-se deles é o caminho que leva o cristão à perfeição. Os fariseus nunca entenderam isso, nem antes, nem agora.

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