sábado, 29 de novembro de 2025

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 1º DOMINGO DO ADVENTO - 30.11.2025

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 1º DOMINGO DO ADVENTO – VIGIAI E ORAI – 30.11.2025


Caros Confrades,


Neste domingo, o primeiro do advento, damos início ao ano novo litúrgico católico de 2026, antecipando-se ao ano civil, de acordo com o calendário eclesiástico. No domingo passado, tivemos o último domingo do ano litúrgico de 2025, com a celebração da festa de Cristo Rei. Os anos litúrgicos, conforme tradição muito antiga, seguem uma sucessão de três conjuntos de leituras, distinguidos como anos A, B e C, para que as leituras bíblicas não se repitam todos os anos. O ano de 2025 seguia a série C e o novo ano de 2026, que se inicia hoje, faz parte da série A. Nesta série, segue-se preferencialmente o evangelho de Mateus para as leituras dominicais, que são complementadas com uma do Antigo Testamento e uma carta apostólica. Esta antecipação é necessária para que o tempo do Advento, que é dividido em quatro semanas, possa ser integralmente completado antes do Dia de Natal.


A propósito da festa do Natal, é um assunto já bem conhecido por todos que a celebração do dia 25 de dezembro é apenas uma data simbólica, posto que o nascimento de Cristo deve ter ocorrido, com maior probabilidade, no mês de março. Porém, esta celebração do Natal de Jesus em 25 de dezembro já existe desde o século IV, isto é, há 1.700 anos. Foi quando o imperador Constantino, no ano 313, em homenagem à mãe dele, Santa Mônica, que era cristã, instituiu a celebração do nascimento de Jesus nesta data, substituindo uma antiga festa pagã que era comemorada nesta data, qual seja, uma festa romana dedicada ao deus Sol, que se prolongava por uma semana, indo do dia 17 ao dia 24 de dezembro, período em que ocorre o solstício de inverno no hemisfério norte. Depois de tantos séculos em que a civilização ocidental associa o Natal de Jesus com o dia 25 de dezembro, não faz mais nenhum sentido propor uma mudança de data, para adequar ao período mais provável. Associado a esse simbolismo, o ano litúrgico se constitui com datas e períodos que rememoram os fatos comemorados, segundo a história da salvação, não devendo ser tomadas essas datas como exatas do ponto de vista histórico. Isso em nada compromete a grandeza e a importância das festas que comemoramos nessa época do ano. Nada obstante os esquemas comerciais incorporados ao Natal, desviando o seu verdadeiro sentido, nós cristãos devemos celebrar o tempo do advento com o espírito de verdadeira conversão do coração, preparando-nos a vinda do Senhor.


As leituras litúrgicas deste primeiro domingo recomendam a vigilância e a prontidão, porque ninguém sabe o dia em que o Senhor virá. A primeira leitura, de Isaías (Is 2, 1-5), narra uma visão tida pelo Profeta sobre Jerusalém, em cujo monte está firmemente estabelecida a casa do Senhor: de lá, vem a palavra do Senhor. Para lá, acorrerão as nações e os povos todos. O nome “Jerusalém” significa “cidade da paz” e esse simbolismo está contido na visão do Profeta, segundo a qual os seus habitantes transformarão suas espadas em arados e suas lanças em foices: não pegarão em armas uns contra os outros e não mais travarão combate (Is 2, 4). Esta visão do profeta Isaías, transportada para os dias de hoje, aplica-se à Igreja de Cristo, firmemente estabelecida no monte da casa do Senhor, referindo-se ainda, numa visão de futuro, à Jerusalém celeste, descrita no Apocalipse de João, onde se encontra Cristo ressuscitado. O Cristo que nasce menino na festividade do Natal é o mesmo que se encontra glorioso na Jerusalém celeste. O simbolismo do seu (re)nascimento a cada ano nos convida a também internamente reavivar em nós mesmos o espírito cristão que se formou em nosso íntimo pelo batismo e que se consolidou na nossa formação religiosa, pela qual somos chamados a dar testemunho dos ensinamentos que recebemos. No advento, a cada ano, Cristo quer renascer em cada um de nós e, para isso, Ele requer nossa disponibilidade e nossa participação. O verdadeiro natal é o que deve ocorrer no coração de cada crente, onde devemos montar o verdadeiro presépio para acolher o que vai nascer. A Belém dos nossos dias deve ser encontrada no coração de cada cristão, que se prepara para celebrar a festa do Natal. Daí o tema deste domingo ser, como diz o apóstolo Paulo na sua carta aos Romanos, o tempo de despertar.


Passando, então, à segunda leitura, da Carta aos Romanos (Rm 13, 11-14), o Apóstolo Paulo exorta os cristãos de Roma para que se dispam das ações das trevas e se revistam das armas da luz, porque a salvação está a cada dia mais próxima, conforme a promessa de Jesus. Ele, com certeza, faz essas recomendações aos Romanos numa época em que as festas da saturnália (homenagem ao deus sol) ainda eram muito populares, com suas orgias, comilanças e licenciosidades, e recomenda: “Procedamos honestamente, como em pleno dia: nada de glutonerias e bebedeiras, nem de orgias sexuais e imoralidades, nem de brigas e rivalidades.” (Rm 13, 13) Tudo isso era o que realmente os habitantes da cidade faziam naquelas festas pagãs, as quais são representadas nos tempos de hoje com os dias do carnaval. Porém, os cristãos não devem proceder iguais aos pagãos, mas devem dar o exemplo de filhos da luz. Recordemo-nos ainda que Paulo pregava em Roma nos tempos de Nero, quando o cristianismo era uma religião proscrita e os cristãos eram tidos como inimigos do Estado Romano, precisando reunir-se às escondidas, para a celebração dos seus cultos religiosos. Paulo pregava nas catacumbas e apenas secretamente visitava as residências dos cristãos romanos, correndo o risco de ser denunciado e preso, como de fato o foi por diversas vezes. Mas o risco valia a pena, porque divulgar o cristianismo em Roma, a capital do mundo de então, significava muito para a propagação de sua doutrina. A prova está em que, quando Constantino decretou a liberdade religiosa, através do Edito de Milão, grande parte da comunidade romana já era adepta do cristianismo, embora não demonstrassem publicamente.


A leitura do evangelho é retirada de Mateus. Lemos hoje o texto do cap. 24, 37 a 44, no qual Jesus fala aos discípulos sobre a sua vinda nos últimos tempos. Assim como nos tempos de Noé ocorreu o dilúvio, quando ninguém esperava, assim também será a vinda gloriosa de Cristo. Por isso, todos devem estar despertos, porque na hora em que menos se esperar, o Filho do Homem virá. Sorrateiro como um ladrão, o Filho do Homem surpreenderá muita gente dormindo. Ninguém sabe quando será este dia, ou melhor, ninguém sabe quando será o seu dia. Na atualidade, a reflexão teológica prefere interpretar esses discursos escatológicos de Jesus de forma diferente do que tradicionalmente se entendia, isto é, não como um fenômeno coletivo, de proporções globais, um cataclismo universal, mas, ao invés, como um evento privado que acontece na vida própria de cada pessoa. De fato, o Senhor já se encontra na sua glória e, em vez de ser Ele que venha ao nosso encontro, nós é que nos dirigiremos ao encontro dele na nossa hora derradeira. Vejamos o texto do evangelho: “Dois homens estarão trabalhando no campo: um será levado e o outro será deixado. Duas mulheres estarão moendo no moinho: uma será levada e a outra será deixada. (Mt. 24, 40-41) Se o evento final fosse de ordem generalizada e universal, se fosse o mesmo fim para todos, como ensinou a catequese tradicional, todos seriam arrebatados simultaneamente, não faria sentido um ser levado e outro deixado. Se o final dos tempos fosse ocorrer como um grande cataclismo de proporções gigantescas, como entenderam os artistas da Renascença e assim pintaram nos seus quadros clássicos, não ocorreria de alguém ser poupado, mas a destruição alcançaria a todos. Será mais lógico concluir que essa arrebatação para prestar contas das suas ações deverá ocorrer em nível individual, não global. Por isso é que cada um deve estar sempre vigilante, pois ninguém sabe o dia nem a hora em que isso ocorrerá.


Portanto, o ensinamento de Paulo sobre o tempo de despertar não se refere a um tempo abstrato e indefinido, mas ao nosso tempo existencial. A nossa fé em Cristo deve ser renovada a cada dia, e o período do advento é o tempo mais propício para que despertemos a nossa consciência para essa realidade inafastável, que é o fim dos nossos dias, porque estes têm um prazo até certo ponto previsível. A contagem da nossa vida em meses e anos nos dá a medida para cada um avaliar a chegada ao final da carreira, quando deveremos estar com a fé robustecida e a esperança sempre renovada. Neste tempo do advento, a liturgia nos leva a fazer esta reflexão realista, não como forma de intimidação ou aterrorização, mas como exercício espiritual de vivermos conscientes e centrados nos nossos compromissos de cristãos.


Aproveitemos o tempo do advento para reflorescer a cada dia a nossa fé na divina promessa.


Cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 22 de novembro de 2025

COMENTÁRIO LITÚRGICO - FESTA DE CRISTO REI - 23.11.2025

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 34º DOMINGO COMUM – FESTA DE CRISTO REI – 23.11.2025.


Caros Confrades,


O 34º domingo comum encerra o ano litúrgico de 2025, com a celebração da festa de Cristo Rei do Universo. Recordando um pouco a história, esta comemoração foi instituída em 1925, pelo Papa Pio XI, no período que intermediou as duas grandes guerras mundiais e num momento de grande descrença nas religiões e a consequente ascensão do ateísmo no mundo. Fazia pouco tempo que o comunismo havia triunfado na União Soviética e havia aquele temor de disseminação da ideologia comunista por outros países, gerando incômoda situação de insegurança tanto na política quanto na religião. A intenção do Papa era mostrar Jesus como um rei pacífico, que não tem interesse em exercer o poder político e econômico, mas reina com a prática da caridade, com a dedicação ao serviço, com atitudes de humildade. Conforme Jesus mesmo dissera, diante de Pilatos, “o meu reino não é deste mundo”. E aos discípulos, ele havia dito: “aquele que quer ser o maior dentre vós, seja o mais disposto a servir”. Nos tempos atuais, a referência à figura de um rei perdeu muito a sua força devido a ser uma figura política que não mais faz parte da nossa realidade geopolítica, não combina com a conjuntura mundial, pois os reinos são hoje praticamente inexistentes e aqueles que ainda existem adquiriram uma estrutura formal totalmente diferente do que era até o início do século XX. O conceito do reino, nos dias de hoje, está mais associado aos contos de fada e às figuras da literatura, portanto, passou para o campo do simbolismo e da utopia. A aplicação dos títulos de rei para Jesus Cristo e de rainha para Maria, Mãe de Jesus, restringe-se ao domínio dos afetos e da devoção e para entendermos melhor o significado do reino da paz e da concórdia, proposto por Jesus, devemos considerar o Reino de Deus como uma construção comunitária, vivencial, escatológica. É para a construção desse reino que todos nós cristãos somos convocados.


Passando às leituras litúrgicas de hoje, vemos na primeira leitura, um trecho do segundo livro de Samuel (2Sm 5, 1-3), no qual é narrada a unção de Davi como rei de Israel, na presença dos anciãos representantes de todas as tribos. O rei Davi é uma das figuras mais emblemáticas do Antigo Testamento, em conjunto com o filho dele, Salomão, outro grande governante, pois os dois são responsáveis por histórias e lendas junto ao povo de Israel. Tão simbólica foi a missão do rei Davi que os profetas anunciaram que o Messias tão esperado de Israel nasceria de uma família da sua estirpe. Com efeito, tanto José, esposo de Maria, quanto ela própria pertenciam à “casa de Davi”. As profecias antigas diziam que o Messias nasceria de uma mulher descendente de Abraão, da tribo de Judá e da família de Davi. Portanto, essa leitura do segundo livro de Samuel relaciona a realeza de Davi com a realeza de Cristo. Cristo é rei por ser descendente do mais importante rei de Israel. Essa é a ligação feita pelos teólogos desde a Idade Média, o que se justificava bem naquela época, em que a realeza era a forma de governo dominante, praticamente a única existente na Europa. E dentro da regra da hereditariedade, para alguém ter direito ao trono real, era necessário demonstrar que era descendente da linhagem de um rei.


Logo nos primórdios do cristianismo, o evangelista Mateus buscava demonstrar, através das citações genealógicas, o vínculo familiar que unia Jesus Cristo ao rei Davi, afirmando assim o cumprimento das profecias. Mateus faz isso de uma forma bastante cuidadosa, quando no seu texto (Mt 1, 1-17) detalha a listagem genealógica de Jesus, elencando três períodos de 14 gerações, a partir de Abraão até chegar a Jesus. De Abraão a Davi são 14 gerações, de Davi até o cativeiro da Babilônia, outras 14, e do final do cativeiro até o Messias são mais 14 gerações. De acordo com os biblistas, isso tem uma explicação matemática, porque a correspondência das letras hebraicas do nome de Davi, de acordo com a numerologia hebraica, somando-as, dá 14 como resultado. A soma é assim: em hebraico, escreve-se Dawid, com w. Na numerologia hebraica, o D=4 e o W=6; as vogais não existiam no hebraico, por isso não entram na soma. Então, o total será D+W+D=4+6+4=14. Como se pode perceber, a numerologia também faz parte da Bíblia e Mateus devia ser um especialista na matéria.


Temos na segunda leitura um trecho da carta aos Colossenses (Cl 1, 12-20), na qual Paulo faz um grande discurso apologético acerca da divindade de Cristo. “Ele é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação, pois por causa dele foram criadas todas as coisas no céu e na terra, as visíveis e as invisíveis, tronos e dominações, soberanias e poderes. Tudo foi criado por meio dele e para ele.” (2Cl 1, 15-16) Observa-se que Paulo não economiza nos qualificativos, ao contrário, faz uma suprema exaltação da figura de Cristo, embora não use o título de rei. Jesus é o princípio de todas as coisas e o primogênito dentre os mortos e alcançar a glória da ressurreição. O texto de Paulo é um autêntico hino à realeza de Cristo, sem citá-la. Com certeza, Paulo escreveu isso sem conhecer o texto do evangelho de Mateus (as cartas de Paulo são mais antigas do que o texto de Mateus), pois talvez se o tivesse conhecido, teria mencionado também a ascendência real de Cristo na sua origem terrena. O discurso de Paulo se direciona para a ascendência de Cristo no plano divino, mostrando a estreita relação d'Ele com o Pai: “porque Deus quis habitar nele com toda a sua plenitude e por ele reconciliar consigo todos os seres.” (2Cl 1, 19-20) Portanto, embora não mencione a palavra rei”, Paulo deixa isso subentendido nos vários conceitos utilizados para realçar a Sua personalidade divina. Nesse contexto, Paulo também relaciona a figura de Cristo como Cabeça da Igreja, cujo corpo somos nós, criando assim a doutrina do corpo místico de Cristo, largamente aplicada na teologia e na catequese.


No evangelho de Lucas (Lc 23, 35-43), lemos um trecho da narrativa dos eventos relativos à paixão de Jesus, quando Ele dialoga com os ladrões crucificados ao Seu lado. Enquanto um deles intimida-o, desafiando-o a salvar-se e a salvar também os outros dois condenados, o outro repreende o comparsa e confessa seu arrependimento, pedindo que Jesus o acolha no Seu reino. Esse diálogo é bem conhecido, porque é repassado na liturgia da Semana Santa e foi sempre muito reproduzido também na catequese tradicional. Uma curiosidade, que me vem à mente sempre que leio esse texto é de imaginar como esse diálogo tornou-se conhecido, se é que, de fato, existiu. Sabemos que, na hora da crucificação de Jesus, os apóstolos haviam debandado e, diante da cruz, estavam apenas João, Maria e algumas mulheres, que olhavam à distância. Pois bem, João, que estava presente, não relata esse diálogo nos seus textos. Os outros dois evangelistas, Marcos e Mateus, apenas se referem aos malfeitores crucificados com ele, sem mencionar o diálogo, que só aparece no texto de Lucas. De que modo Lucas teria obtido tal informação? Ora, sabe-se que Lucas, sendo médico, cuidou de Maria por muito tempo e ouviu dela relatos intimistas referentes à vida dela própria e de Jesus, que os outros escritores não tomaram conhecimento. Por essa linha de raciocínio, podemos supor como probabilidade que tal diálogo tenha sido escutado e memorizado por Maria, mãe de Jesus, que posteriormente o segredou a Lucas. Não me parece crível que algum dos soldados romanos, que participaram da execução, tenha se preocupado de prestar atenção ao que os condenados falavam. E se João tivesse prestado atenção nesses detalhes, certamente também os teria relatado. Mas muito provavelmente o olhar e o ouvido da Mãe captaram coisas que passaram despercebidas a todas as outras pessoas. É impressionante essa capacidade que as mães têm para perceber mensagens até subliminares no comportamento dos filhos.


Meus amigos, peço desculpas por não fazer uma apologia da realeza de Jesus, talvez alguns de vocês até fiquem desapontados com isso. De fato, eu discordo desse aparato que a liturgia atribui à figura de Cristo como rei, pois entendo que Ele é verdadeiramente o soberano da verdade, da justiça, da paz, da igualdade e da fraternidade e que, para isso, ele não precisa de um manto real nem de um cetro nem de um trono, porque o seu manto é a verdade, o seu trono é a justiça e o seu cetro é a paz, que Ele vem nos trazer todos os dias, ensinando-nos a viver em fraternidade e harmonia. É disso que a sociedade precisa e compete a nós, cristãos, dar exemplo público dessa fraternidade e harmonia de Cristo nas nossas vivências cotidianas.


Cordial abraço.

Antonio Carlos

sábado, 15 de novembro de 2025

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 33º DOMINGO COMUM - 16.11.2025

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 33º DOMINGO COMUM – ESCATOLOGIA – 16.11.2025


Caros Confrades,


A liturgia deste 33º domingo comum traz, nas leituras, o discurso escatológico, isto é, a liturgia nos convida a refletir sobre aquelas coisas que ocorrerão no final dos tempos. A parte da teologia que trata desse tema é chamada de escatologia e isso é o que nós aprendemos no catecismo com o nome de “novíssimos”, ou seja, a segunda vinda de Jesus Cristo e o “fim do mundo”. Numa leitura apressada, parece que Jesus quer nos aterrorizar, falando de catástrofes, guerras, epidemias, que antecederão o final dos tempos. Contudo, é necessário perceber com outra mentalidade a descrição desses acontecimentos, que já foram motivos, no passado (e ainda hoje são para algumas pessoas), de deixar muita gente com insônia.


O objetivo não é aterrorizar. Na verdade, as leituras litúrgicas nos convidam a estar atentos, a ter vigilância e prudência, como características reais da vida do cristão, acreditando na promessa de Cristo de que retornará no final dos tempos e, como não se sabe quando nem como será tal apoteose, deve-se estar sempre preparado. A conhecida descrição evangélica dos “últimos tempos” já foi objeto de interpretações variadas ao longo da história. Não faltam “profetas” apressados, para apontar, nos fatos sociais ocorridos em diversas ocasiões, outrora como hoje em dia, uma associação com as predições de Cristo sobre o final dos tempos. Com efeito, se observarmos os fatos contemporâneos, até parece que a leitura bíblica está se referindo a eles. Sempre que alguma notícia sobre fatos inesperados ou incompreensíveis é divulgada, os “profetas” e “videntes” tentam identificar neles as catástrofes escatológicas. Pastores protestantes alardeiam: Jesus está voltando. Porém, o próprio Jesus disse que somente o Pai sabe quando será isso e nem ao Filho Ele o revelou. Portanto, qual desses profetas e videntes é mais sabido do que o Filho? Com efeito, quando Jesus falou aquelas coisas terríveis, referia-se historicamente à dominação dos romanos na Palestina, à destruição de Jerusalém, às perseguições dos primeiros cristãos, ou seja, quando o evangelista Lucas escreveu seu evangelho, tais fatos já tinham realmente acontecido. Jesus, porém, havia afirmado: isso não é o fim, ou seja, essas perseguições não irão destruir a sua doutrina nem dizimar seus seguidores.


É interessante observar que, desde o Antigo Testamento, já havia presságios dos Profetas acerca de maus agouros. Na primeira leitura, do profeta Malaquias (Ml 3, 19-20), ele se refere ao “dia, abrasador como fornalha, em que todos os soberbos e ímpios serão como palha; e esse dia vindouro haverá de queimá-los, diz o Senhor dos exércitos, tal que não lhes deixará raiz nem ramo.” (Ml 3, 19). Desde que os Patriarcas antigos narraram que houve outrora uma grande inundação (dilúvio) e o mundo todo sucumbiu debaixo da água, as pessoas criaram a ideia de que, da próxima vez, o mundo seria destruído pelo fogo. Diversas pinturas medievais retratam essa cena. Isso é uma crença muito antiga, mas ainda recorrente na nossa cultura religiosa popular, essa imagem persiste no subconsciente de muitos cristãos. No ano de 1910, quando estava se aproximando da terra o cometa Halley, pelos poucos conhecimentos científicos daquela época sobre esse fenômeno cósmico, as pessoas viam aquela imensa “bola de fogo” no céu se aproximando da terra e se tornando cada vez maior e ficaram esperando apenas o momento final do impacto com a terra. De repente, aquela luz se desfez, porque a terra atravessou a cauda gasosa do cometa, e a destruição não ocorreu. Em 1960, eu era criança, fiquei apavorado, porque os adultos diziam que “o mundo se acabaria” no dia 13 de maio daquele ano. Nada aconteceu. Em 2012, algumas pessoas afirmaram que o mundo acabaria no dia 21 de dezembro e citavam complexos cálculos matemáticos para justificar isso. Nada aconteceu. Neste ano de 2025, temos a presença de um corpo celeste oriundo dos confins do universo, denominado 3-I-Atlas, que está despertando a curiosidade e o medo em muitas pessoas. É a mesma história que se repete, no entanto, prevalece a palavra de Jesus: não é o fim e ninguém sabe quando será.


Na segunda leitura, de Paulo aos Tessalonicenses (2Ts 3, 7-12), o Apóstolo bate cabeça com aquela comunidade, onde se havia espalhado a informação de que Jesus “estava para chegar”, na sua segunda vinda, e assim as pessoas já nem queriam mais trabalhar e viviam à toa, apenas aguardando o momento do retorno de Jesus. Paulo manda-lhes um recado desaforado: eu (Paulo), que até poderia me prevalecer da função de pregador para obter o sustento pela comunidade, me dedico ao trabalho dia e noite, a fim de ganhar o meu salário, então, quem não quer trabalhar, também não deve comer. Diz ele: “Bem sabeis como deveis seguir o nosso exemplo, pois não temos vivido entre vós na ociosidade. De ninguém recebemos de graça o pão que comemos. Pelo contrário, trabalhamos com esforço e cansaço.” (2Ts 3, 7-8). Uma interpretação falsa da promessa de Cristo estava atrapalhando a vida daquela comunidade, o que Paulo tentava esclarecer na sua correspondência. Conforme vimos no domingo passado, essa comunidade deu muito trabalho a Paulo. Circulou por lá uma carta anônima, que era atribuída a Paulo e muito o preocupou porque continha ensinamentos equivocados. Foi de lá que Paulo teve de sair fugido, porque os judeus, a quem ele desagradara, o procuravam para matá-lo. Enfim, uma comunidade complicada e trabalhosa, onde as pessoas tinham dificuldade em compreender a doutrina cristã, mesmo tendo recebido toda instrução de Paulo. Situações parecidas ocorrem ainda hoje, quando vemos pessoas que leem a Bíblia mas, em vez de buscar retirar da leitura o seu sentido mais coerente e produtivo, apegam-se a detalhes textuais insignificantes e a tradições equivocadas, que deturpam a mensagem.


Na leitura do evangelho de Lucas (Lc 21, 5-19), Jesus faz aquela famosa previsão da destruição do templo de Jerusalém, que era entendida pelos judeus como a maior desgraça que lhes poderia acontecer. “Dias virão em que não ficará pedra sobre pedra. Tudo será destruído.'” (Lc 21, 6) Esse fato histórico se deu no ano 70, quando o exército romano invadiu Jerusalém e destruiu o templo. No entanto, perguntando os ouvintes a Jesus quando aquilo iria ocorrer, ele respondeu evasivamente: “cuidado para não serdes enganados...” (Lc 21, 8), porque muitas pessoas irão dizer que o tempo está próximo, mas não acreditem nessa gente. Muitas coisas irão acontecer: guerras, revoluções, tsunamis, terremotos, queimadas, desastres ambientais, mas as piores são aquelas coisas perpetradas pela maldade dos homens: “'Um povo se levantará contra outro povo, um país atacará outro país. Haverá grandes terremotos, fomes e pestes em muitos lugares; acontecerão coisas pavorosas e grandes sinais serão vistos no céu.” (Lc 21, 10-11). Nestes dias, está ocorrendo um encontro na cidade de Belém, Pará, para tratar a respeito do clima e da preservação da natureza. A imprensa noticia forttes inundações, causada pelo desequilíbrio climático. Muitas pessoas talvez venham a associar esses fatos naturais com a leitura do evangelho, quando na verdade, sabe-se que essas catástrofes estão relacionadas com o mau uso dos recursos naturais pelos países ricos, forçando o desequilíbrio na atmosfera. Essa crença ainda é comum, por causa daquela vetusta catequese tradicional, que apelava sempre para a ameaça aos castigos de Deus, como forma de convencer as pessoas a praticarem o bem. Mas Jesus continua nos exortando: não se preocupem, ainda não é o fim.

Precisamos, portanto, compreender esse trecho do evangelho em concordância com os versículos que vêm a seguir, pelos quais Jesus diz que, antes que isso aconteça, a nossa fé passará por provações. “Antes, porém, que estas coisas aconteçam, sereis presos e perseguidos; sereis entregues às sinagogas e postos na prisão; sereis levados diante de reis e governadores por causa do meu nome. Esta será a ocasião em que testemunhareis a vossa fé.” (Lc 21, 12-13) Meus amigos, no sentido histórico, Jesus se referia aí às perseguições pelas quais passariam os Apóstolos e os primeiros cristãos, como de fato a história documentou. Mas no sentido trans-histórico, o texto se refere a nós, hoje. A nossa fé está a enfrentar contínuas provações, perseguições, ameaças dentro e fora do ambiente religioso, até mesmo no interior do catolicismo observam-se lamentáveis polos de divisão doutrinária, bispos e religiosos criticando o Papa. Convulsões sociais, atentados por motivo religioso, fanatismo e violência incontroláveis, intolerância religiosa noticiada em diversos países do mundo. Esse tipo de conduta também impaca a todos nós, que temos fé e que, muitas vezes, não sabemos respeitar a fé alheia. Pois bem, o Papa Leão vem dando exemplo de tolerância e conclamando todos à vivência da sinodalidade. O exemplo dele deve servir de modelo não apenas para os cristãos, mas para todos os crentes das mais diversas fés, e o seu testemunho só está a confirmar aquilo que Jesus falou no evangelho: isso não é o fim.


Portanto, meus amigos, a narrativa de Cristo nos convida a sermos vigilantes e prudentes, exortando-nos a não nos deixarmos impressionar com as ameaças externas, pois o inimigo pode estar no meio de nós: o nosso orgulho, a nossa falta de misericórdia, a nossa soberba, a intolerância, o desamor. Essas são as reais ameaças que nos perseguem continuamente e é em relação elas que devemos estar sempre vigilantes.


Cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

domingo, 9 de novembro de 2025

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 32 DOMINGO COMUM - 09.11.2025

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 32º DOMINGO COMUM – A IGREJA MÃE – 09.11.2025


Caros Confrades,


Neste 32º domingo comum, a liturgia dominical cede lugar para a festa da dedicação da Igreja de São João do Latrão, a igreja-mãe de todas as igrejas católicas, a catedral de Roma, o templo onde o Papa tem sua cátedra, como Bispo. Esta festa remonta aos tempos árduos da difusão do cristianismo na Europa, até sua “liberação” por Constantino, no ano 313, pelo Edito de Milão. Mas devemos preferencialmente pensar na “igreja” não como o templo físico, de paredes, telhado e portas, e sim como o templo vivo, que somos cada um de nós, na medida em que, pelo batismo, nos tornamos morada da Santíssima Trindade, possibilitando a realização daquela promessa de Jesus: onde estiverem dois ou mais reunidos em meu nome, eu estarei no meio deles. Não é necessário estar dentro de um templo físico para que a Sua presença se faça sentir, porque de fato ela já está latente em cada um de nós, pulsando em nossos corações.


Antes de mais nada, um pouco de história: como a Igreja do Latrão se tornou a igreja-mãe de todas as igrejas católicas ocidentais? O cristianismo vivia tempos de perseguição em Roma, que era na época a capital do mundo ocidental. Contudo, dentro da sociedade romana, havia já muitos pagãos convertidos, cristãos ocultos, que não podiam manifestar-se publicamente. Quando Constantino ascendeu ao trono do império romano, sua mãe Helena, que era cristã e foi depois canonizada, passou a interceder junto ao filho para permitir a liberdade de expressão do cristianismo, mas ele só concordou com isso quando teve um “sinal do céu”. O imperador estava enfileirando o seu exército para enfrentar um inimigo poderoso e temia pelo resultado da batalha. Então, ele viu uma formação de nuvens no céu em figura de cruz e teria ouvido uma voz a dizer: “in hoc signo, vinces” (por meio deste sinal, vencerás). Ele teria feito uma espécie de “promessa” de que daria liberdade aos cristãos, caso fosse vencedor. E foi. Depois da vitória na batalha da Ponte Mílvia (312), Constantino proclamou solenemente a liberdade religiosa em todo o império romano, através do Edito de Milão, no ano 313. No ano de 2013, as igrejas católicas do ocidente e do oriente celebraram juntas o aniversário de 1.700 anos deste Edito, que foi o marco inicial da existência oficial do cristianismo europeu.


Os historiadores dizem que Constantino teria se convertido ao cristianismo, porém estudos recentes indicam que ele era adepto da doutrina ariana, que negava a natureza humana de Jesus, portanto, ele não teria sido um cristão conforme a doutrina oficial. Ele foi o responsável pela convocação do Concílio de Nicéia (em 321), onde foi discutida essa divergência e prevaleceu a doutrina de Santo Atanásio, que afirmava que Jesus era verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem, texto que passou a constar no Credo. Com isso, o bispo Ario, autor do arianismo, foi derrotado e seus adeptos se dispersaram. Porém, consta que o imperador Constantino, secretamente, continuou defendendo o arianismo. Em outras palavras, Constantino teria sido um cristão por conveniência, não por plena convicção. Porém, ele ajudou muito a Igreja nesses primeiros tempos e, quando ele transmudou a sede do império romano para Constantinopla, ele doou o palácio que era residência da imperatriz para o Papa Silvestre, que passou a residir ali. E o local foi reformado para ser transformado num grande templo, que foi o primeiro templo cristão oficial de Roma e sede da residência papal: o Palácio do Latrão e a Basílica de São João do Latrão, a igreja-mãe. A inauguração solene ocorreu no dia 09 de novembro de 324, completando portanto hoje 1.701 anos da sua consagração. Ainda conforme os estudos históricos, no ano seguinte, Constantino mudou-se para Constantinopla porque não ficava bem que as duas maiores autoridades do mundo (ele e o Papa) residissem numa mesma cidade, deixando em Roma a sede do poder religioso e levando para Constantinopla a sede do poder político. Alguns anos depois, os bárbaros invadiram e dominaram Roma, eliminando de vez o poder político dos romanos na região. Porém, os bárbaros não fizeram oposição ao cristianismo, de modo que o poder religioso do Papa permaneceu, mesmo depois da queda de Roma. Apenas por uma questão de fidelidade histórica, convém esclarecer que as igrejas cristãs orientais (Jerusalém, Éfeso, Alexandria, Damasco, Esmirna, Antioquia) são muito mais antigas do que a igreja de Roma. Portanto, a Basílica do Latrão é a referência inicial das igrejas cristãs na Europa apenas.


Nas leituras litúrgicas da festa de hoje, temos a segunda leitura da carta de Paulo aos Coríntios (1Cor 3, 11-17), onde o Apóstolo ensina aos primeiros cristãos que o nosso corpo é o santuário de Deus e isso é mais importante do que as igrejas construídas de pedra e de barro. Vós sois a lavoura de Deus, diz ele, e eu coloquei em vocês o alicerce sobre o qual deveis construir a vossa fé: Jesus Cristo. “Acaso não sabeis que sois santuário de Deus e que o Espírito de Deus mora em vós? Se alguém destruir o santuário de Deus, Deus o destruirá, pois o santuário de Deus é santo e vós sois esse santuário.” (1Cor 3, 16-17) Ninguém pode colocar em vocês outro alicerce diferente de Cristo Jesus. A liturgia chama a nossa atenção para o templo de Deus, que somos nós, construídos sobre o alicerce divino, que é o próprio Cristo. Durante muito tempo, difundiu-se uma doutrina de cunho clericalista, que não reconhecia o valor teológico do povo de Deus, que somos nós, identificando a igreja como pertencendo aos cristãos ordenados (padres e bispos). Contudo, o Concílio Vaticano II, na Constituição Dogmática “Lumen Gentium” veio consertar esse equívoco, mostrando a grande importância dos leigos na configuração eclesial. Assim diz o seu item 30: “O Sagrado Concílio, depois de ter enunciado as funções da hierarquia, de bom grado dirige o seu pensamento para o estado daqueles fiéis que têm o nome de leigos. Quanto se disse do povo de Deus, vale igualmente para leigos, religiosos e clérigos. Todavia certas coisas dizem respeito de modo particular aos leigos, homens e mulheres, em razão da sua condição é da sua missão e importa considerar-lhes os fundamentos com mais cuidado, em virtude das especiais circunstâncias do tempo atual. Os sagrados pastores reconhecem perfeitamente quanto os leigos contribuem para o bem de toda a Igreja. Sabem que os pastores não foram instituídos por Cristo para assumirem sozinhos toda a missão da Igreja quanto à salvação do mundo mas que o seu excelso múnus é apascentar os fiéis e reconhecer-lhes os serviços e os carismas, de tal maneira que todos, a seu modo, cooperem unanimemente na tarefa comum. É, pois, necessário que todos, professando a verdade na caridade, cresçamos em tudo para aquele que é a cabeça, Cristo, pelo influxo do qual o corpo inteiro - bem ajustado e coeso por meio de toda a espécie da junturas que o alimentam, através de uma ação proporcionada a cada uma das partes - realiza o seu crescimento, em ordem à própria edificação na caridade (Ef 4,15-16).” O Concílio veio, assim, reafirmar a doutrina paulina sobre o santuário humano, a morada do Espírito de Deus em cada um de nós, fato que nos torna pedras vivas na construção eclesial.


Na leitura do evangelho de João (2, 13-22), vemos Jesus expulsando do templo os vendedores e cambistas, porque haviam transformado a casa de oração em um covil de ladrões. E quando os fariseus vieram pedir a Ele um sinal de autoridade para fazer aquilo, Jesus lançou-lhes um desafio que eles não entenderam: destruí esse templo e eu o reedificarei em três dias. Obviamente, os fariseus não entenderam o alcance profético dessas palavras. Aliás, os próprios discípulos não entenderam naquela hora. Somente muito tempo depois, quando passaram a refletir sobre a ressurreição de Cristo, compreenderam que o “templo” a ser reconstruído em três dias não era o prédio físico, feito de pedras, que teria consumido o trabalho de centenas de operários durante 46 anos. O templo que realmente importava ali era o do seu próprio corpo, ressuscitado ao terceiro dia. Jesus estava, então, chamando a atenção dos seus ouvintes (discípulos e estranhos) para o fato de que a verdadeira morada do Espírito de Deus não é o templo de pedra, mas o templo de carne. No entanto, o templo de pedra também merece respeito e a conduta dos frequentadores daquele lugar deve observar a devida compostura, sob pena de desvirtuamento e profanação.


Meus amigos, essa festa da igreja-mãe do cristianismo ocidental é também um momento para refletirmos sobre a unidade de todos os cristãos, eliminando as divergências históricas e superando os esquemas de divisão e de conflito. O Papa Francisco, enquanto vivo, envidou grandes esforços nesse sentido, através de viagens, reuniões e orações conjuntas com as diversas autoridades das variadas organizações cristãs. O Papa Leão mantém esse entendimento. Sabemos que existem fortes empecilhos dentro do próprio Vaticano, mas o Papa está, com sabedoria e paciência, removendo os obstáculos. Eu creio nessa sua obstinação profética de congregar todos os cristãos num único rebanho, como foi sempre o desejo de Cristo: “Elas ouvirão a minha voz, e haverá um só rebanho e um só pastor.” João 10:16.


Um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

domingo, 2 de novembro de 2025

COMENTÁRIO LITÚRGICO - DIA DOS FIÉIS DEFUNTOS - 02.11.2025

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – A VIDA CONTINUA (FIÉIS DEFUNTOS) – 02.11.2025


Caros Confrades,


A liturgia deste domingo cede espaço para a comemoração dos fiéis defuntos, essa memória litúrgica que se insere logo após a festa de todos os santos. A celebração de finados, longe de ser uma referência à morte, é muito mais uma demonstração de fé na vida que continua. O cântico litúrgico desta comemoração destaca: a vida, pra quem acredita, não é passageira ilusão e a morte se torna bendita, porque é nossa libertação. Muito antes da cristianização da Europa, os povos ali residentes já proclamavam sua fé na vida eterna, dentre civilizações orientais e ocidentais. Principal exemplo dessa crença temos nas muito famosas pirâmides do Egito, assim como nos requintados mausoléus europeus, onde pessoas ricas e poderosas eram “depositadas” após sua morte corporal, juntamente com seus pertences, porque o espírito delas continuaria a frequentar o local e utilizaria aqueles objetos.


O historiador francês Fustel de Coulanges, em sua clássica obra “A cidade antiga”, relata o resultado das pesquisas que efetuou dentre as diversas comunidades do oriente e do ocidente acerca do modo como eles acreditavam e vivenciavam a relação com seus mortos. Trata-se de uma obra cuja leitura é amplamente recomendada para aqueles que desejam conhecer as tradições mais antigas das raças humanas mais primitivas. Farei apenas duas referências. Entre os gregos, apesar de a religião oficial ser materialista e não acreditar na continuação da vida, havia grupos de espiritualistas, que se reuniam secretamente, para cultuar suas crenças na imortalidade e para fazerem comunicação com os falecidos. Exemplos deles eram os órficos e os pitagóricos. Sócrates era um dos adeptos dessa crença e Platão foi um dos seus grandes propagadores, sendo o pensamento deste o fundamento das muitas doutrinas espíritas que são conhecidas no mundo ocidental. E dentre os romanos, havia os deuses lares e penates, que não eram outros senão os espíritos dos familiares falecidos e que continuavam a ser lembrados como se estivessem presentes, através dos cultos da religião familiar. Cada família sepultava seus mortos no quintal da casa e, em certas ocasiões, as festas familiares eram realizadas junto dos túmulos, para que os espíritos participassem e lá eram deixadas comidas e bebidas, para que os espíritos dos mortos se banqueteassem com elas. É daí que vem o costume dos bebuns de darem “um gole para o santo” quando estão em suas sessões de consumo etílico, porque assim também os romanos faziam, homenageando seus defuntos. Portanto, antes de ser propriamente cristão, o culto dos mortos já estava presente nas civilizações anteriores da nossa.


Passando agora às leituras litúrgicas de hoje, temos a primeira retirada do livro de Jó (19, 23-27). A história de Jó é bem conhecida na nossa tradição cultural. Acredita-se que esse livro tenha sido escrito quando o povo retornou do cativeiro da Babilônia, durante o qual muitos haviam perdido tudo e precisavam recomeçar suas vidas da estaca zero. O objetivo do seu autor deste livro é mostrar que a antiga tradição dos fariseus, chamada de “teologia da retribuição” precisava ser revista e mesmo abandonada. De acordo com uma tradição secular dos hebreus, o sofrimento era entendido como castigo divino por causa dos pecados de alguém, assim como a riqueza e a felicidade eram entendidas como benesses divinas pelas virtudes de uma pessoa. Então, a história de Jó, um homem justo e correto, que perdeu tudo (bens e família) e passou por sofrimentos sem conta vinha ensinar ao povo que uma coisa não tem nada a ver com a outra, ou seja, nem o sofrimento é castigo pelos pecados nem a vida feliz é resultado das virtudes, porque uma pessoa virtuosa também passa por sofrimentos. Tanto assim é verdade que, no final, Jó recuperou todas as riquezas que havia perdido, porque soube sofrer com resignação e sem perder a fé. De fato, nem é absolutamente certo que Jó tenha existido, ele pode ter sido uma espécie de personagem de uma história edificante, destinada a ensinar ao povo que o sofrimento é uma contingência da vida e que não está necessariamente ligado ao pecado, às ações contrárias à lei de Deus. Os amigos tentam convencer Jó de que ele sofre por causa dos seus pecados, mas ele tem consciência de que não é um pecador e proclama “eu sei que meu redentor está vivo e que se levantará sobre o pó” e meus olhos o contemplarão. Em nenhum momento, Jó apresentou desânimo ou duvidou da proteção divina, por isso foi recompensado por sua fidelidade e por sua confiança. Essa era a mensagem que os sábios de Israel queriam transmitir ao povo hebreu naquele difícil momento de reconstrução da sua sociedade após o cativeiro.


Na segunda leitura, da carta de Paulo aos Romanos (Rm 6, 3-9), o Apóstolo ensina que Cristo ressuscitou dos mortos e assim também nós seremos semelhantes a ele na ressurreição. Paulo não precisou ensinar aos romanos que a vida continua após a morte, porque aqueles já acreditavam nisso. Eles não conheciam era o conceito de ressurreição, porque este não fazia parte das suas crenças. Pelo batismo, diz Paulo, nós morremos com Cristo, o velho homem presente em nós é sepultado, para que nós ressuscitemos para uma vida nova, o novo homem produzido pela fé em Cristo. É na morte de Cristo que somos batizados, para que ressuscitemos por Ele e vivamos com Ele. “Pelo batismo na sua morte, fomos sepultados com ele, para que, como Cristo ressuscitou dos mortos pela glória do Pai, assim também nós levemos uma vida nova.” (Rm 6, 4). Daí que Paulo diz, na carta aos Filipenses (1, 21): para mim, viver é Cristo e morrer é lucro. Nesse mesmo diapasão, a oração eucarística, que antes era chamada de “cânon da missa”, assim professa: "Senhor, para os que crêem em vós, a vida não é tirada, mas transformada. E, desfeito nosso corpo mortal, nos é dado, nos céus, um corpo imperecível." Essa doutrina, sob outra perspectiva, se opõe à doutrina da reencarnação, ao enfatizar a nova reunião entre corpo e alma, na ressurreição. Assim consta no Catecismo atual: “Pela morte, a alma é separada do corpo, mas na ressurreição Deus restituirá a vida incorruptível ao nosso corpo transformado, unindo-o novamente à nossa alma (cf. Catecismo §1016).” E quando será essa ressurreição? Bem, essa é uma longa história. Melhor ficar, por enquanto, com uma definição clássica e insuspeita: no último dia, o dia final.


Dentre as igrejas cristãs não católicas, as autodenominadas evangélicas ou, como antigamente se dizia, os protestantes, não há celebração de finados. Isso porque Lutero não aceitou como autêntico o Livro de Macabeus e é neste livro que está a fundamentação teológica do culto aos finados. No 2º Livro dos Macabeus, capítulo 12, vers. 43 a 46, lemos: “(Judas Macabeu) tendo feito uma coleta mandou duas mil dracmas de prata a Jerusalém para se oferecer um sacrifício pelo pecado. Obra bela e santa, inspirada pela crença na ressurreição, porque se ele não esperasse que os mortos haviam de ressuscitar, seria coisa supérflua e vã orar pelos defuntos. Ele considerava que, aos falecidos na piedade está reservada uma grandíssima recompensa. Santo e salutar é esse pensamento de orar pelos mortos, para que sejam livres dos seus pecados". Os protestantes consideram apócrifo esse livro e assim, após o sepultamento, eles não mais visitam nem oram pelos mortos, porque já estão nas mãos de Deus. Porém, toda a tradição católica sempre preservou e valorizou esse culto. Tanto assim que, em tempos mais antigos, os cemitérios estavam localizados na parte de trás das igrejas. Ainda encontramos isso em algumas cidades do interior. E a prova de que essa tradição continua viva é a grande multidão que, sempre nessa data, comparece aos cemitérios a fim de rezar pelos seus mortos. E em Juazeiro do Norte, temos uma das mais tradicionais romarias do nordeste, fruto da devoção que o Padre Cícero tinha pelas almas do purgatório.


O Papa Francisco, num dia de finados, dirigindo-se aos peregrinos presentes na Praça de São Pedro, recordou a força dessa tradição milenar, quando disse: “A tradição da Igreja sempre exortou os fiéis a rezarem pelos defuntos, em particular, oferecendo a Celebração Eucarística por eles: esta é a melhor ajuda espiritual que podemos dar às almas, especialmente às mais abandonadas. O fundamento da oração de sufrágio está na comunhão do Corpo Místico. Como reitera o Vaticano, "a Igreja peregrina sobre a terra, bem ciente desta comunhão de todo o corpo místico de Jesus Cristo, desde os primeiros tempos da religião cristã, tem honrado com grande piedade a memória dos mortos”. (Lumen Gentium, 50). A memória dos defuntos, o cuidado pelas sepulturas e os sufrágios são o testemunho de uma confiante esperança, enraizada na certeza de que a morte não é a última palavra sobre o destino do ser humano, porque o homem está destinado a uma vida sem limites, que tem sua raiz e sua realização em Deus.” E quem não se sente confortado e espiritualmente satisfeito quando presta essa justa homenagem aos seus parentes falecidos? Afinal, nós somos o resultado das ações e exemplos de vida que eles nos deixaram e que constituem as bases de nossas vidas, o mesmo exemplo que estamos deixando para os nossos filhos e netos. Penso que deve existir um grande vazio na alma de quem não acredita e não pratica esse ensinamento.


Que os nossos amados parentes e amigos, bem como todos os fiéis defuntos descansem em paz.


Cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 25 de outubro de 2025

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 30º DOMINGO COMUM - 26.10.2025

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 30º DOMINGO COMUM – ORAÇÃO E CONDUTA – 26.10.2025


Caros Confrades,


As leituras da liturgia deste 30º domingo comum nos levam a meditar sobre a coerência que deve existir entre o nosso interior e a nossa conduta externa, principalmente quando oramos. A oração supõe sempre uma confissão de impotência e um sentimento de humildade. A oração do humilde atravessa as nuvens e não passará despercebida pelo Senhor. Ele é um justo juiz, que consegue sondar os nossos sentimentos mais profundos e é inútil tentar camuflar o orgulho e a autossuficiência com palavreados sonoros e encenações caprichosas. Orar somente com os lábios, da boca para fora, sem a humildade do espírito, é igual ao címbalo que tine: faz grande barulho, mas seu interior é oco, sem conteúdo.


Na primeira leitura, extraída do livro do Eclesiástico (35, 15-22), temos a descrição de Javeh como o justo juiz, aquele que não faz distinção entre as pessoas nem usa de parcialidade nos seus julgamentos. O livro do Eclesiástico, cuja autoria é atribuída a Jesus Ben Sirac, foi escrito na época do pós-exílio para ensinar aos hebreus, numa contingência de mudanças sócio políticas, a fidelidade de Javeh contida na Lei de Moisés, que é a verdadeira sabedoria divina. Esta expressão “lei de Moisés” não significa um texto legislativo específico, mas refere-se à aliança e à promessa de Javeh com Abraão e seus descendentes, lembrando ao povo hebreu, vivendo longe de Israel, que eles não podem misturar o judaísmo tradicional com os novos costumes dos povos estrangeiros, porque isso deturpa a aliança celebrada com os antigos patriarcas. Sendo um justo juiz, o Senhor não deixa de atender às preces daqueles que o invocam, sobretudo os excluídos da sociedade (pobres, órfãos e viúvas), os mais humildes. “A prece do humilde atravessa as nuvens: enquanto não chegar não terá repouso; e não descansará até que o Altíssimo intervenha, faça justiça aos justos e execute o julgamento.” (Eclo, 35, 21) O Senhor não se deixa levar pelas aparências, mas perscruta a nossa interioridade, atendendo aos que o procuram com coração sincero e humilde. Esta referência do Eclesiástico irá encontrar eco, tempos depois, na oração do publicano, que Jesus coteja com a oração do fariseu, no trecho do evangelho de Lucas, lido também neste domingo.


A segunda leitura, dando continuidade ao texto da segunda carta a Timóteo, iniciada nos domingos anteriores (2Tim 4, 6-18), é o epílogo da carta, na qual Paulo se despede dizendo que combateu o bom combate, terminou a carreira e guardou a fé. Tendo cumprido a sua missão, recebida de Cristo, ele agora espera apenas o desfecho final de sua vida, sabendo que o seu sacrifício está cada vez mais próximo. E faz sua confissão de fé e confiança no Senhor, justo juiz, que outorgará a coroa da vitória a ele e a todos os que permanecerem firmes na fé. Fala ainda, com tristeza, dos amigos que o abandonaram no seu julgamento perante o tribunal, pedindo que o mesmo justo juiz não leve isso em conta, quando chegar o tempo do julgamento deles. Segundo os historiadores, esta carta teria sido, provavelmente, a última escrita por Paulo, pouco antes de sua morte, na época da grande perseguição dos cristãos pelo imperador Nero, que mandou incendiar a cidade de Roma e colocou a culpa disso nos cristãos, insuflando os romanos a persegui-los. Numa época de grandes arbitrariedades cometidas pelo imperador Nero, que usava os cristãos como bodes expiatórios dos seus próprios desmandos, Paulo aproveita a imagem do sádico imperador para fazer o contraponto com o justo juiz, que é o Senhor, e que dará a coroa a todos os que combatem o bom combate. A queixa de Paulo sobre ter sido abandonado na prisão em Roma, segundo os historiadores, deveu-se ao fato de que, com a grande perseguição, os amigos de Paulo na sociedade romana, que eram cristãos em sigilo, tinham muita dificuldade em ir visitá-lo, por causa dos evidentes riscos que isso acarretava. Pode-se dizer que era uma questão de sobrevivência.


Na leitura do evangelho deste domingo, dando sequência ao evangelista Lucas (18, 9-14), temos a muito conhecida parábola em que Jesus faz a comparação entre a oração do fariseu e a oração do publicano (cobrador de impostos). De acordo com o próprio evangelista, o objetivo que Jesus tinha em mente era ensinar que não se deve confiar nos próprios julgamentos, nem a respeito de si nem a respeito dos outros. A cena descrita é clássica, pois foi reproduzida em inúmeras obras de arte: o fariseu orgulhoso e arrogante reza fazendo autoelogios e, ao mesmo tempo, lançando um ar de desdém para o publicano, pecador público, que estava rezando ao seu lado. Enquanto isso, o publicano, em atitude de humildade, rezava apenas pedindo perdão. Como em diversas outras ocasiões, Jesus toma o exemplo do fariseu para nos ensinar que as ações exteriores não bastam, mas é necessário que essas sejam o reflexo do nosso sentir interior. Os fariseus se consideravam justos e automaticamente salvos, porque cumpriam rigorosamente a lei (“jejuo duas vezes por semana e dou o dízimo de toda a minha renda”), mas faziam assim talvez por medo do castigo divino ou apenas para serem vistos e elogiados pelos outros, ou seja, isso não correspondia a um sentimento íntimo de piedade e de convicção. Era uma conduta de aparência, por isso, tal oração não tinha nenhum valor.


Observemos que Jesus não diz que o fariseu agia mal em cumprir a lei, pois a lei é mesmo para ser cumprida. O problema está no julgamento que o fariseu fazia de si próprio, ou seja, na sua falta de humildade, sua autossuficiência. O livro do Eclesiástico, conforme visto na primeira leitura, já dizia que a prece do humilde atravessa as nuvens e chega até o céu e suas súplicas são sempre atendidas. O fariseu da parábola tinha uma elevada presunção de santidade, segundo a sua própria noção de justiça, não segundo a justiça divina. E com a mesma facilidade com que julgava a si mesmo uma pessoa santa, também arriscava-se a julgar o seu próximo, pecador público, como alguém que não merecia a salvação e o perdão. Ora, diz Jesus, o publicano voltou para casa justificado; o fariseu, não.


Podemos fazer aqui uma ligação com outra parábola na qual Jesus compara a oferta da viúva com a oferta do fariseu (Marcos 12, 43), quando a viúva colocou no cofre apenas duas pequenas moedas, enquanto o fariseu depositou vários dobrões, que tilintavam no fundo do cofre. E Jesus concluiu: a viúva ofertou mais do que o outro, porque ela deu tudo o que possuía. Enquanto o fariseu doava o que lhe sobrava, a viúva doava toda a sua fortuna. Seguindo a mesma linha de raciocínio do parágrafo anterior, Jesus não censura o fariseu por colocar moedas valiosas, mas recrimina o modo como ele se considerava autêntico cumpridor da lei, porque dava o dízimo de toda a sua renda. O problema não está no tamanho da oferta, mas no seu egoísmo e no autojulgamento, isto é, no fato de ele se considerar merecedor da salvação, confiando-se na sua própria justiça e não na justiça divina.


Meus amigos, nesse contexto, devemos nos lembrar da advertência do apóstolo Paulo aos Coríntios (10, 12): aquele que pensa estar de pé, cuide para que não caia. O autojulgamento é uma tentação constante na nossa vida. Nos nossos dias, há muitos cristãos que pensam já estar com a salvação garantida porque vão à missa aos domingos, participam dos sacramentos, rezam o terço, pagam o dízimo, etc., mas fazem isso como uma obrigação formal, como um costume tradicional, uma prática de exterioridade, não colocam o coração junto com a sua oferta, não demonstram na prática ser solidários. Essa atitude do fariseu, reprovada por Cristo na parábola, pode ser uma ameaça velada e constante na nossa prática de cristãos, quando cumprimos nossos deveres religiosos apenas por obrigação e sem refletir sobre o significado eclesial de nossas atitudes, sobretudo quando tais atos são acompanhados do julgamento que fazemos do nosso próximo, com o qual inconscientemente nos comparamos.


Se eu vou à missa dominical e recebo os sacramentos, mas na vida social não pratico a caridade com os irmãos, meus atos religiosos são vazios de significado. A parábola do fariseu e do publicano deve ser permanente motivo de exame de consciência de todos nós, para que evitemos a sempre cômoda atitude de fazer julgamento das atitudes dos outros, valendo-nos do nosso próprio conceito de justiça. Algumas vezes, censuramos o comportamento de outras pessoas e, posteriormente, nos surpreendemos praticando aquelas mesmas atitudes. Daí a oportuna exortação do apóstolo Paulo: quem pensa estar de pé, cuide para que não caia. Antes de observarmos maldosamente as ações do nosso próximo, devemos tentar compreender seus motivos e, se for o caso, ajudá-lo a superar seus defeitos e dificuldades, em vez de criticá-los. Assim, evitaremos julgar pela nossa justiça pessoal, deixando essa tarefa para o justo juiz de todos nós.


Cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 18 de outubro de 2025

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 29 DOMINGO COMUM - 19.10.2025

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 29º DOMINGO COMUM –ORAR SEM CESSAR – 19.10.2025


Caros Confrades,


Neste 29º domingo comum, as leituras litúrgicas enfocam o tema da oração perseverante. Orar e orar sempre é o ensinamento de Jesus Cristo. Evoluindo nesse tema, a liturgia fala da importância do pedido ao Pai em forma de oração, lembrando-nos de que devemos orar constantemente e sem cessar, como também sem “conceder um prazo” para que Deus nos escute. Com efeito, o recebimento ficará ao desígnio do Pai, que sabe das nossas necessidades e a eventual demora no atendimento não deve nos arrefecer a fé. Tal como Jesus ensinou no “Pai Nosso”, na oração devemos, em primeiro lugar, louvar e agradecer, para em seguida, formular os nossos pedidos.


Todos acreditamos que o Pai do céu sabe das nossas necessidades, então, vem a pergunta: por que devemos pedir-lhe algo, pois ele já sabe que nos falta? Qual o pai que não está sempre pronto para atender às carências dos seus filhos, mesmo sem que eles peçam? Sendo assim, porque Jesus ensina que o Pai do céu quer que sempre peçamos e de forma insistente? Pode parecer uma incoerência no ensinamento de Jesus, mas a verdade é que, embora Deus saiba das nossas necessidades, Ele quer a nossa colaboração, para que sejamos merecedores. Quando Jesus diz “orai sempre, orai sem cessar”, isso não significa ficar o dia todo de joelhos, com o terço na mão ou com um livro de orações, recitando coleções de preces das mais diversas espécies seguindo formulários já prontos, não é isso. Ele quer dizer que todos os atos da nossa vida toda devem representar uma constante oração. Nós estamos orando não apenas quando pronunciamos palavras ou quando as temos no pensamento, mas a nossa oração se expande para as nossas atividades rotineiras, quando através do nosso trabalho, dos nossos relacionamentos, estamos manifestando aos irmãos exemplos concretos da nossa fé, pelo nosso testemunho de vida do evangelho. Esta é a colaboração que Deus espera de nós. Podemos ver isso nos textos litúrgicos deste domingo.


Na primeira leitura, do livro do Êxodo (17, 8-13), lemos o episódio da batalha dos hebreus com os amalecitas, contando com a participação ativa de Moisés, à distância. Enquanto as tropas lutavam, as mãos de Moisés erguidas para o céu carreavam a vitória para os israelitas; quando Moisés abaixava os braços, os amalecitas levavam vantagem. Contudo, pela idade e pelo longo tempo naquela posição, Moisés não conseguia manter os braços levantados por muito tempo e isso punha em risco o resultado da batalha. Então, seus auxiliares Ur e Aarão apoiaram os braços de Moisés, para que ele conseguisse mantê-los erguidos até a vitória final dos israelitas. Excluindo desse episódio o seu conteúdo violento da batalha, podemos descobrir no ato de Moisés levantar os braços uma atitude de oração, que deve ser contínua e persistente. Abaixar os braços significa fraquejar na oração, o que acontece, muitas vezes, na nossa vida de pessoas imperfeitas. Daí a necessidade que Moisés teve de ser ajudado por seus assessores. Isso indica a necessidade que nós temos de buscar apoio e solidariedade na comunidade dos irmãos. O Papa Francisco, num de seus sermões aos peregrinos em Roma, certa vez chamou a atenção para a importância da oração compartilhada. A oração solitária tem seu valor, sem dúvida, mas para ele ser mais fortalecida, precisa de ser realizada com a comunidade. Daí a importância da liturgia, da oração comunitária, da missa, das atividades devocionais realizadas no templo. Nos momentos desta oração eclesial, os nossos braços simbólicos erguidos ao céu, tais como os de Moisés, são ajudados pela comunidade, para que as nossas forças sejam multiplicadas. Nesses momentos, ocorre uma colaboração recíproca: ao mesmo tempo em que os irmãos nos ajudam a manter os “braços erguidos”, cada um de nós também ajuda o outro no mesmo sentido. Sem deixar de reconhecer a importância da oração individual, interior, devemos também reconhecer a importância da oração comunitária, como forma de exercer uma troca recíproca de energias e um ressoar mais forte do nosso brado orante.


Na segunda leitura, prosseguindo com o texto da 2a carta de Paulo a Timóteo, que vem sendo lida já há vários domingos, temos hoje o trecho em que o Apóstolo adverte o seu discípulo sobre a leitura orante da Sagrada Escritura: “Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para ensinar, para argumentar, para corrigir e para educar na justiça.” (2Tim 3, 16) A oração da comunidade sempre deve ter como ponto de referência a Escritura, pois é dela que retiramos os conteúdos mais próprios para compor a nossa oração e os ensinamentos mais eficazes para se transformarem em ações na nossa vida cotidiana. É esse o sentido da liturgia da palavra, que compõe a primeira parte da celebração da missa. Além disso, a Palavra também tem o dom de aconselhar diante de situações problemáticas da vida e de repreender o nosso comportamento, quando ele se distancia daquilo que Deus quer de nós. Por isso, Paulo exorta a Timóteo: “eu te peço com insistência – proclama a palavra” (4,1), insiste, admoesta quer agrade, quer desagrade, usando de toda paciência e doutrina. As Sagradas Escrituras “têm o poder de te comunicar a sabedoria que conduz à salvação pela fé em Cristo Jesus.” (2Tim 3, 15) Não devemos, contudo, entender essa exortação como a simples leitura da Bíblia ou decorar trechos para ficar repetindo mecanicamente. Mais do que simplesmente ler a Bíblia, deve-se estudar a Bíblia, meditar a Bíblia, compreender a Bíblia, esta é a oração mais produtiva para o direcionamento das nossas práticas cristãs. Eu diria que a leitura do Novo Testamento deve ser preferida, dado o seu conteúdo cristológico mais explícito.


Na leitura do evangelho de Lucas (18, 1-8), Jesus recorre à sua conhecida pedagogia das parábolas para explanar de forma bem didática a sua doutrina sobre a oração. O próprio evangelista diz que o objetivo desta parábola é demonstrar a necessidade de orar sempre e nunca esmorecer. Mas antes de adentrar nesse conteúdo, eu gostaria de destacar a figura do juiz injusto, uma contradição em si mesma. Todos sabemos que o objetivo da função de um juiz é distribuir a justiça. Assim pensando, um juiz injusto seria um antijuiz. Dentro das tribulações de cada dia, é bem possível que um juiz cometa injustiças, mas certamente isso não seria intencional, ao menos, não se espera isso de nenhum juiz. Pois bem, mas prescindindo do ofício de julgar típico da sociedade organizada, podemos também considerar que nós, que não somos juízes por profissão, por vezes nos tornamos juízes das ações dos nossos irmãos, quando avaliamos e tiramos conclusões sobre o comportamento das pessoas e podemos até ofendê-las com a falta de equilíbrio nos nossos julgamentos. Se para um juiz profissional a prática de atos injustos acarreta uma autocontradição, assim também para nós, quando nos tornamos juízes inescrupulosos das atitudes do nosso próximo, estamos contradizendo o significado mais profundo da fraternidade, que deve ser a marca registrada do cristão.


Passando agora ao tema da oração sem cessar, através da parábola do juiz injusto, Jesus nos ensina que devemos orar sempre e nunca perder a confiança. A viúva retratada na parábola insistiu por muito tempo com o juiz ímprobo, pedindo que ele lhe fizesse justiça. Por fim, o juiz resolveu atendê-la, ainda que não pelo seu amor à justiça, mas ao menos para livrar-se da importunação. Daí, Jesus conclui: se até um juiz injusto, diante da insistência de uma viúva, acaba por atendê-la, quanto mais o vosso Pai do céu, que é sempre justo, nunca deixará de atender os pedidos dos seus filhos. Ou seja, Jesus destaca nesse contexto, servindo-se do argumento contrário, o poder da oração para fazer acontecer na nossa vida aquilo do que nós realmente necessitamos. Isso não quer dizer que devamos todos os dias pedir a Deus para acertar sozinho na mega sena, até que um dia Deus vai atender, nem que seja para se livrar da importunação. Não se trata disso, claro. O que devemos pedir na oração é para sermos pessoas melhores, para conseguirmos superar as nossas fraquezas e imperfeições, para sermos sempre fiéis à nossa vocação de cristãos. A oração de quem simplesmente pede a Deus que lhe conceda bens materiais não se enquadra no conceito de orar sempre, que Jesus ensina na parábola do juiz injusto. Para conseguir obter bens materiais o que é preciso é ter disposição para trabalhar com afinco e dedicação na sua labuta profissional e, aí sim, vamos pedir a Deus que abençoe o nosso trabalho, para que os seus frutos sejam férteis e se multipliquem.


Uma prática devocional que é muito corriqueira no meio do nosso povo é “fazer promessas” aos santos para obter isso e aquilo. É uma espécie de “comércio” sagrado: dá-me isso que eu te darei aquilo. Certamente, não é esse o modelo de oração que Jesus ensina na parábola do juiz injusto. Tal como no caso de Moisés com os braços elevados ou no caso da viúva que insistia perante o juiz, o que Deus espera de nós é que façamos a nossa parte. Não se trata de desafiar ou chantagear Deus com uma promessa, pois Deus não precisa de nenhum favor nosso, ao contrário, somos nós que precisamos dos favores divinos. Não se trata de fazer o pedido e ficar com os braços cruzados, esperando que um milagre aconteça simplesmente. O milagre vai acontecer se nós fizermos a nossa parte com fé, seriedade, sinceridade e persistência. O milagre vai acontecer na proporção do tamanho da nossa fé, da qual a oração deve ser a fiel expressão.


Cordial abraço a todos.

Antonio Carlos