sábado, 1 de março de 2025

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 8 DOMINGO COMUM - 02.03.2025

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 8º DOMINGO COMUM – A BOCA E O CORAÇÃO – 02.03.2025


Caros Confrades,


Neste 8º domingo comum, a liturgia traz para nossa reflexão a relação existente entre o interior e o exterior da pessoa: a boca fala daquilo que o coração está cheio. E nós podemos entender com o conceito de “boca” o ser humano inteiro, porque nós nos comunicamos também com gestos e atitudes, não apenas com as palavras. Este domingo, que antecede o período quaresmal, põe em destaque uma vivência comum a todos nós, pois o nosso falar e o nosso agir estão sempre associados e, já diz o jargão popular, é mais fácil apanhar um mentiroso do que um aleijado. Sim, porque uma pessoa, cujas ações e atitudes não condizem com o seu linguajar, é de fato um mentiroso.


Na primeira leitura, retirada do Livro do Eclesiastico (Eclo 27, 5-8), temos o conselho dos antigos sábios de Israel: não elogies a ninguém antes de ouvi-lo falar. O título desse livro na Bíblia Septuaginta diz-se Sirácida (Ben Sirac) e faz parte do grupo dos livros denominados “escritos” (ketuvim), a terceira seção daquela Bíblia, ao lado dos livros poéticos e dos sapienciais (a primeira seção é a Torá – a lei; a segunda seção é Naviim – os profetas). Esse livro não faz parte da Bíblia hebraica primitiva, não tendo sido encontrado o seu texto original em hebraico. Ben Sirac foi o sábio judeu que escreveu esse livro na língua grega, em Alexandria, onde passaram a viver muitos judeus vindos do cativeiro da Babilônia. Neste livro, o autor reuniu diversos ensinamentos teóricos e práticos transmitidos ao longo de muitos séculos pelos sábios do Povo de Israel, com o intuito de mostrar sobretudo aos jovens como deve ser conduzida a vida com sabedoria. O sábio não precisa ser aquele asceta, o anacoreta, figura que surgiu na Idade Média e referia-se a pessoas que haviam abandonado todas as coisas materiais e se refugiavam nos mosteiros ou mesmo em locais desertos, dedicando-se exclusivamente à oração e à meditação, e eram tidos como respeitáveis pelo seu ato de renúncia extrema. Ben Sirac é mais modesto, procura ensinar aos jovens que não é necessário adotar condutas extremas para alcançar a sabedoria, mas que esta também pode ser encontrada nas labutas cotidianas. O sábio deve exercer a própria vida com sabedoria, servir-se dos bens materiais e do conforto que o trabalho proporciona com duas condições básicas: primeira, compreender que tudo isso é dom de Deus e sempre agradecer por isso; segundo, não ser apegado a esses bens, de modo que a posse deles não seja motivo de soberba nem de desprezo dos irmãos. Em outras palavras, a sabedoria seria a expressão da fé autêntica, aquela fé que não fica presa nas palavras, mas se estende e se entrelaça com as atitudes. Por isso, diz o texto de hoje, assim como o fruto revela a qualidade da árvore de onde proveio, assim a palavra revela o coração do homem. Antes de formar sua opinião acerca de alguém, ouça-o falar. Se a sua palavra for coerente com as ações que ele realiza, então trata-se de uma pessoa confiável e sábia. Os conselhos dos sábios de Israel, escritos na literatura sapiencial bíblica, revelam-se como perenes e sempre atuais corolários de um saber existencial, que não está atrelado nem a uma determinada religião nem a uma determinada sociedade, mas à própria natureza da humanidade.


Coloca-se nessa mesma linha de raciocínio o ensinamento de Jesus, transmitido pelo evangelista Lucas (Lc 6, 39-45): a boca fala daquilo que o coração está cheio. Jesus repercute, nos seus sermões, a figura do pregador e do doutrinador por excelência. E diz: todo discípulo bem formado se igualará ao mestre. Se o mestre for um sábio, o discípulo assim será também. Se o mestre for um néscio, o discípulo terá o mesmo destino, porque um cego não pode guiar outro, ambos cairão no buraco. Jesus usava essa imagem do cego referindo-se aos fariseus daquele tempo. Eles eram os mestres do povo, mas eram néscios, soberbos, insensatos, por isso não conseguiam guiar o povo para a religião verdadeira. Em outra ocasião, Jesus disse (Mt 23, 4): “Eles atam fardos pesados e os colocam sobre os ombros dos homens. No entanto, eles próprios não se dispõem a levantar um só dedo para movê-los.” Eles estavam teoricamente sentados na cadeira de Moisés, ou seja, eles tinham a autoridade, no entanto, não davam o exemplo, o agir deles não era coerente com o seu discurso. Por isso, disse Jesus, façam o que eles dizem, mas não imitem o que eles fazem. Esta mesma lição se repete no texto do evangelho de Lucas da liturgia de hoje, através da imagem do cego. O farisaísmo havia transformado a Lei de Moisés num repertório de regras de conduta, com mais de 600 enunciados, quase todos proibitivos (não pode isso, não pode aquilo…), no entanto, os próprios fariseus não cumpriam esses preceitos, porém exigiam que o povo judeu os cumprisse. Daí o recado grosseiro de Jesus: Hipócrita, como é que consegues perceber o cisco no olho do teu irmão, mas não percebes a catarata no teu olho? Limpa primeiro o teu olho, para poderes enxergar bem, depois vai tirar o cisco do olho do irmão. E o evangelista relembra outros discursos de Jesus com o mesmo teor: a árvore boa produz bons frutos, a árvore má produz frutos ruins; não se colhem uvas de espinheiros nem figos de abrolhos. Da mesma forma, uma pessoa de coração má não poderá dar bons exemplos. Só a pessoa boa retira bons frutos do bom tesouro do seu coração.


Meus amigos, precisamos ter muito cuidado para que esse puxão de orelhas de Jesus não venha a ser aplicado a nós. Sobretudo aquelas pessoas que possuem algum tipo de liderança, essas mais do que as outras têm a obrigação de dar bons exemplos. Assim, os pais em relação aos filhos, os professores em relação aos alunos, os idosos em relação aos jovens, os líderes de qualquer natureza em relação aos seus liderados. Os sábios romanos antigos possuíam uma máxima que bem se enquadra nesse contexto e que dizia assim: Verba movent, exempla trahunt. (As palavras comovem, os exemplos arrastam). Dizer e não fazer é uma incoerência interna imperdoável. Ninguém pode arrogar em seu favor a repreensão que Jesus fez aos fariseus do seu tempo: façam o que eu digo, mas não o que eu faço. Qualquer líder que assim fizer será indigno de exercer a liderança. Será um cego guiando outro cego para caírem ambos no buraco. Ao contrário, deve aplicar-se o sempre atual ensinamento do Sirácida: a sabedoria consiste na coerência que deve existir entre o interior e o exterior da pessoa. Essa é a sabedoria milenar recolhida pelo escritor bíblico e que tem se mostrado eficaz em todos os tempos.


O apóstolo Paulo, na epístola aos Coríntios (1Cor 15, 54-48) ensina que a total coerência entre o ser humano interior e o seu exterior é uma tarefa constante e desafiadora, que só estará completa quando este corpo mortal se revestir da imortalidade e este ser corruptível se revestir da incorruptibilidade. Aí, então, se cumprirá a palavra da Escritura: a morte foi vencida pela vitória. Onde está, na Escritura, essa referência feita por Paulo aos Coríntios? Está no livro de Isaías, o profeta do exílio e da esperança, cap. 25, 6-8, confortando os cativos na Babilônia: “O Senhor dos Exércitos dará nesse monte uma grande festa a todos os povos… e destruirá nesse monte os vínculos que oprimem todos os povos… e destruirá a morte para sempre e enxugará as lágrimas de todos os rostos...” A profecia de Isaías é messiânica e Paulo sabia que essa profecia já havia se cumprido com Jesus Cristo, através de sua ressurreição, restando agora a cada um seguidor de Cristo fazer a sua parte, para também ter acesso aos mesmos benefícios conquistados pela redenção de Jesus. E assim ele aconselha aos cristãos corintianos: sede firmes e empenhai-vos cada vez mais na obra do Senhor, cientes de que os vossos esforços não serão em vão. Esse ensinamento de Paulo pode ser conectado com outra passagem dele, na carta aos Romanos (7, 12), onde ele confessa a dificuldade que ele próprio tem de colocar em prática o mandamento de Cristo: “a lei é espiritual, mas eu sou carnal, sufocado pelo pecado. O querer está em mim, mas não consigo realizar o bem. Por isso, não faço o bem que quero, mas o mal, que não quero”. Jesus sabia que não é fácil integrar o interior com o exterior do homem, mas para isso é que Deus dá a cada um a sua graça. Paulo, na sua humildade de discípulo de Cristo, não tem vergonha de confessar que ele também erra. Porém, a questão não é errar ou acertar, mas ter consciência do erro, para não repeti-lo, para aprender com ele, para perceber que somente com o auxílio da graça divina cada um pode evoluir na direção da sabedoria e da santidade.


Examinemos, portanto, atentamente como está a coerência entre a nossa boca e o nosso coração e tenhamos a humildade de admitir que estamos sempre sujeitos a falhas, mas isso não é de todo ruim, desde que saibamos aprender com elas.


Um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 22 de fevereiro de 2025

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 7º DOMINGO COMUM - 23.02.2025

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 7º DOMINGO COMUM – O AMOR COMO DESAFIO – 23.02.2025


Caros Confrades,

Neste 7º domingo comum, as leituras litúrgicas dão sequência ao tema do domingo anterior, acerca das bem-aventuranças, o famoso “sermão da montanha”, que resume em grandes linhas todo o ensinamento de Jesus Cristo. No domingo de hoje, é como se ele concluísse: vocês ouviram o que eu disse? Eu ouçam mais: é preciso amar o próximo e também os inimigos. Amar os amigos e fazer o bem a quem lhe faz bem, isso não é grande coisa, os pagãos também fazem assim. Para fazer diferente, o cristão deve amar os inimigos e fazer o bem aos que lhe fazem o mal. É este o grande desafio do amor cristão.


Na primeira leitura, do livro do Samuel (1Sam 26, 2-22), é narrada a atitude respeitosa e temente a Deus de Davi, que poupou a vida de Saul, na ocasião inimigo dele, quando poderia tê-lo executado. Para entendermos a situação, vejamos a história. Saul era rei de Israel mas, por sua soberba e arrogância, desrespeito a lei de Moisés e, por isso, Javeh o rejeitou, determinando ao sacerdote Samuel que ungisse a Davi como novo rei. De início, Saul tinha um comportamento amistoso com Davi, apesar de não haver gostado nada de ter sido rejeitado, chegou até a entregar a filha como esposa de Davi. Porém, os sucessos de Davi nos combates contra os inimigos de Israel causaram inveja em Saul, que passou a perseguir Davi, procurando matá-lo. Por causa disso, Davi precisou refugiar-se no deserto com seus soldados, enquanto Saul o perseguia. Certa noite (aqui entra o trecho da leitura de hoje), Davi conseguiu entrar sorrateiramente no acampamento e encontrou Saul dormindo na sua tenda e poderia tê-lo matado com a própria lança real. O guerreiro companheiro de Davi (vers. 8) chegou a dizer: vou dar só um golpe, nem será preciso repetir. Mas Davi o deteve, dizendo: “ninguém pode lançar a mão contra o ungido do Senhor”. E foram embora sem molestá-lo, levando a lança e o cantil, para comprovar o que poderiam ter feito. Ora, numa situação inversa, com certeza Saul teria liquidado Davi. Mas este respeitou o inimigo, vendo nele o “ungido”. Mil anos antes de Cristo, época de Davi, ele já estava realizando aquilo que Jesus futuramente iria ensinar.


Na sequência também da primeira carta aos Coríntios, lida no domingo passado (1Cor 15, 45-49), o apóstolo Paulo continua o paralelo entre Adão e Jesus, dizendo que Adão era um homem material, ou seja, proveniente do limo da terra, enquanto Jesus é um homem espiritual, ou seja, proveniente diretamente do céu. Assim ele diz no versículo 48: “Como foi o homem terrestre, assim também são as pessoas terrestres; e como é o homem celeste, assim também vão ser as pessoas celestes.” A figura de Adão representa o homem velho, aquele que ainda não conheceu a mensagem cristã. Paulo lembra aos cristãos de Corinto que, antes da adesão ao cristianismo, eles também estavam prefigurados na pessoa de Adão, com todas as imperfeições e ambiguidades dos “homens terrestres”, seduzidos pelos bens materiais, pela riqueza, pelos prazeres da carne. Mas, depois de convertidos e depois da adesão à mensagem cristã, esse homem terrestre deve ser transmudado no “homem celeste”, cujo protótipo é a figura de Jesus Cristo. E o que vai se tornar a marca característica desse novo homem, fiel ao ensinamento de Cristo, é a colocação na prática das bem-aventuranças, de acordo com o catálogo de ações de beatitudes ensinadas no sermão da montanha. Essa mesma advertência Paulo faz também na carta aos Efésios (5, 8), nos seguintes termos: “Pois, no passado éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor. Assim, andai como filhos da luz.”


A leitura do evangelho é também uma continuação da temática do domingo passado, em que Lucas resumiu o sermão das bem-aventuranças (Lc 6, 27-38). Depois de dizer “ai de vós, que agora estás rindo, porque ireis chorar”, Jesus arremata: e a vocês que ouviram o que eu disse, vou dizer mais: “Amai os vossos inimigos e fazei o bem aos que vos odeiam, bendizei os que vos amaldiçoam, e rezai por aqueles que vos caluniam.” Eu fico imaginando a expressão nos rostos daqueles ouvintes, depois que Jesus fez esse arremate, como se dissessem: tu estás achando pouco, ainda vais exigir mais? E Jesus, percebendo a cara de espanto deles, complementa: é isso mesmo, se alguém te der um tapa num lado do rosto, oferece também o outro lado; e se alguém te tomar o chapéu, dá também o teu sapato. Se fazes o bem somente a quem também te faz o bem, que novidade há nisso? Os pecadores também fazem assim. Os cristãos devem fazer o bem a quem não lhes faz e dar um objeto sem esperar nada em troca, aqui está a diferença, aqui está o que eu denominei no início de “amor como desafio”.


Esse tipo de atitude parece, para as pessoas do mundo, como algo incoerente, ingênuo, contraditório. Alguém pode pensar: como é que Jesus exige isso dos seus seguidores? Aqui podemos inserir a lição de Paulo aos Coríntios, mencionada acima, com o paralelo entre o homem terrestre e o homem celeste. Se não somos capazes de entender esse pedido de Cristo, é porque ainda estamos impregnados com o pensamento do homem terrestre, a graça de Deus ainda não operou em nós o suficiente para superarmos essa atitude mundana de sempre esperar a retribuição por aquilo que fazemos. Para fazer isso, será necessário antes entender o conteúdo metafísico do ensinamento de Jesus, isto é, a questão não se refere a fazer-se de otário diante dos outros, tornar-se motivo de chacota e padecer humilhações. Jesus seria extremamente malvado se esperasse mesmo essa atitude, por isso, é preciso apreender a sua simbologia. E aqui, para exemplificar, podemos lembrar das atitudes de Mahatma Gandhi, lider indiano, que não era cristão, no entanto, cumpria esse ensinamento de Cristo. Enquanto todos protestavam com armas, ele protestava com uma conduta não-violenta, pregando a cultura da paz. Podemos lembrar também uma famosa frase do britânico John Lennon, conhecido guitarrista da banda Beatles, que escreveu, certa vez: “Não importam os motivos para a guerra, pois a paz será sempre superior a todos eles”. E ele não era cristão. Lamentavelmente, ele morreu assassinado por um fanático (assim como, sem querer comparar, também Gandhi e também Jesus morreram assassinados, porque o bem incomoda demais a maldade), mas os ensinamentos deles continuam a ecoar nos nossos ouvidos. Esses dois exemplos de “pessoas celestes” (usando a terminologia de Paulo), mesmo sem serem cristãos, devem nos incentivar a por em prática o ensinamento de Jesus, até porque, no nosso caso, ainda temos a vantagem de ter conosco a graça de Deus, que nos apóia e fortalece.


Em resumo, portanto, o ensinamento de Jesus sobre o amor como desafio não pode ser entendido como uma ideia de fraqueza, de acovardamento, como se o cristão devesse ter medo dos maus, não reagir aos maus, não enfrentar o malvado. Penso que, quando Cristo aconselhou “oferecer a outra face” para quem te bate no rosto, ele quis dizer: os maus agem de forma agressiva, vocês, porém, não devem tomar esse comportamento como exemplo, façam diferente deles, não por medo, mas por convicção, isto é, não se equiparem aos maus, não repitam suas ações, não se comportem como eles. Esse deve ser, segundo penso, o significado metafórico da recomendação de Cristo sobre “oferecer a outra face”. Se você revidar a um bofete, você estará repetindo o mau exemplo dado por quem lhe ofendeu. Então, não retribua a violência com violência, mas com o amor, isto é amar sem medida, esse é o amor como desafio: amar os amigos e os inimigos, fazer o bem a quem faz o mal. O escritor James C. Hunter, no conhecido livro “O monge e o executivo”, faz uma interpretação interessante desse ensinamento de Cristo. Diz ele que na frase “amar os inimigos”, o significado do verbo “amar” é diferente da frase “amar os amigos”. Explicando melhor, seria assim: em relação aos amigos, amar tem o sentido de sentimento, afeto; em relação aos inimigos, amar tem um sentido puramente comportamental, ético. Então, a frase “amar os inimigos” quer dizer comportar-se de um modo ético mesmo com aquelas pessoas que fizeram algum mal a você, isto é, não exercitar a vingança, não ficar esperando uma ocasião futura para ir à desforra. Amar os inimigos significaria, dessarte, ser ético com todos, tratar as pessoas más da mesma forma como se deve tratar qualquer pessoa, com ética e dignidade, mesmo que intimamente a sua vontade seja de esganar o adversário.


Se passarmos para uma análise do texto grego de Lucas, veremos que o J. Hunter tem certa razão. No texto grego, o verbo que está traduzido por “amai” é “agapate”, verbo com o mesmo radical da palavra “ágape”. Quando eu estudei antropologia teológica, aprendi que os gregos conheciam três significados para o verbo “amar”: 1 – amor erótico (eros); 2 – amor amizade (filia); 3 – amor fraternidade (agape). Esse terceiro sentido se refere à convivência humana, ao modo respeitoso como as pessoas devem tratar umas às outras, independente de quem seja. Então, seguindo o raciocínio de J. Hunter, podemos concluir que a ordem de amar os amigos tem o sentido 2 (amizade), enquanto amar os inimigos tem o sentido 3 (fraternidade, caridade). Eu continuo pensando que a doutrina de Cristo não faz essa distinção, no entanto, pode ser uma forma de atenuar o rigor do desafio que Cristo nos deixou e, assim fazendo, quem sabe, aos poucos chegaremos a encarar o desafio de forma completa. Que o divino Mestre nos socorra com engenho e arte, para conseguirmos colocar em prática os seus ensinamentos.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos



sábado, 15 de fevereiro de 2025

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 6 DOMINGO COMUM - 16.02.2025

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 6º DOMINGO COMUM – BEM-AVENTURADOS – 16.02.2025


Caros Confrades,


Neste sexto domingo do tempo comum, as leituras litúrgicas nos convidam a refletir sobre os efeitos valorativos da confiança que sempre devemos ter no Senhor, os quais se resumem numa palavra: a verdadeira felicidade. O profeta Jeremias compara a atitude de quem confia em Deus a uma planta cujas raízes mantêm-se em contato com a água e, por isso, não teme a chegada do calor. No evangelho, Jesus chama seus fiéis seguidores de bem-aventurados, no seu famoso e carismático “sermão da montanha”, no qual ele inverte a ordem daquilo que o “mundo” considera felicidade e mostra que ser feliz, isto é, ser bem-aventurado é ser santo. Ser fiel nas coisas simples, ser solidário em todas as ocasiões, ser amável e respeitoso só contribui para a melhora geral da vida na sociedade. Sem dúvida, é disso que todos nós mais precisamos, na vida urbana dos nossos dias.


Na primeira leitura, retirada do livro do profeta Jeremias (17, 5-8), vemos uma comparação entre a atitude de quem confia nos homens, de um lado, e quem confia no Senhor, de outro. Confiar “na força da carne humana”, como fiz o Profeta, quer dizer encantar-se com as aparências da sociedade e com as suas pompas ilusórias, representadas no poder, na riqueza, no prestígio, na dissimulação dos bajuladores, esquecendo que a verdadeira fortaleza vem da fé e das garantias proporcionadas a todos pelo cumprimento da lei de Deus. Na época do Profeta, ele se referia especificamente às atitudes levianas do rei de Judá, Ezequias, que fez acordos maliciosos e irresponsáveis com outros reinos vizinhos, com receio das ameaças de povos inimigos, em detrimento da obediência à lei de Moisés e expondo o povo às influências do paganismo e dos deuses estrangeiros e, consequentemente, à idolatria. Em vez de buscar a confiança no Senhor dos exércitos, o rei preferiu abrigar-se à sombra dos soberanos humanos e a consequência para ele próprio e para o povo foi desastrosa. Pouco tempo depois, o reino foi invadido e derrotado pelos assírios, sendo os seus habitantes arrastados cativos para Babilônia. O profeta Jeremias, por muito pouco, escapou dessa mesma sorte, tendo sido protegido por amigos, que o levaram para o Egito, onde refugiou-se. Contra a sua vontade, é bom que se diga, porque o desejo dele era acompanhar os cativos.


Na segunda leitura, retirada da primeira carta de Paulo aos Coríntios (1Cor 15, 12-20), o apóstolo recorda aos cristãos daquela cidade que a verdadeira salvação está na fé no evangelho de Jesus Cristo, conforme a pregação que ele fizera ali. ‘Lembro a vocês’, diz ele no início deste capítulo 15, ‘que o evangelho que eu preguei e no qual vocês acreditaram, nele se encontra a verdadeira salvação, e não em outras doutrinas que falsos pregadores trouxeram até vocês’. Paulo encontrava-se em Éfeso, na ocasião, e soube através de outros cristãos que em Corinto voltavam a circular doutrinas gregas antigas, pondo em dúvida a fé na eucaristia e na ressurreição dos mortos, por isso o Apóstolo escreveu-lhes esta carta, rememorando os ensinamentos que ele havia ali partilhado, a fim de conduzir a comunidade à verdadeira fé cristã. O trecho da leitura deste domingo aborda apenas o tema da ressurreição dos mortos, mas nos capítulos anteriores Paulo trata também dos outros temas, inclusive o conhecido “hino à caridade” (cap 13), no qual ele tematiza, de modo muito inspirado, as características fundamentais do amor cristão. A inclusão desse trecho no cenário litúrgico deste domingo se coloca na advertência feita pelo Apóstolo para que os cristãos de Corinto não se deixem enganar pelos falsos pregadores e não busquem a felicidade nos bens terrenos, esquecendo as verdades cristãs, dentre estas, a crença na ressurreição. Daí dizer ele, no versículo 19: ‘Se é para esta vida que pusemos a nossa esperança em Cristo, então nós somos os humanos mais dignos de compaixão’, ou seja, quem pensa assim está totalmente equivocado. Se os mortos não ressuscitam, então, Cristo também não ressuscitou. E se Cristo não ressuscitou, coitados de nós que acreditamos nele. Mas não, completa ele, Cristo ressuscitou, pois assim como entrou a morte no mundo por um homem, também por um homem veio para nós a ressurreição. Então, a fé na mensagem cristã é a fonte da verdadeira felicidade, e não as promessas ilusórias dos embusteiros. Por ser uma realidade de difícil compreensão, sobretudo naquele contexto da sociedade grega, marcada pelo materialismo e pelo imanentismo próprios daquela cultura, Paulo fez um raciocínio bastante didático, no capítulo 13, 12 dessa mesma carta, quando diz que, apesar dessa dificuldade, não é impossível crer, porque agora vemos como por espelho, em enigma, mas depois veremos face a face: “Videmus enim nunc per speculum in aenigmate, tunc autem facie ad faciem”.


A temática sobre a felicidade que acompanha aqueles que acreditam e colocam em suas vidas a mensagem cristã está representada em sua melhor forma no famoso sermão da montanha, no qual Cristo chama a todos de bem-aventurados. Dizer que somos bem-aventurados é o mesmo que dizer que somos felizes. Em latim, a palavra bem-aventurados se diz 'beati' (plural de beatus) e esta é a mesma palavra que em português se traduz por 'felizes', tanto assim que algumas traduções do evangelho usam esta palavra nos textos: felizes os pobres no espírito, felizes os mansos, felizes os pacíficos, etc. Curiosamente, Cristo chama de bem-aventurados todos aqueles que, pelo status social, seriam pessoas desventuradas. O cap. 3 do Livro da Sabedoria, identifica os conceitos de “justo”, “feliz” e “santo”, quando diz: “Depois de terem sofrido um pouco, receberão grandes bens, pois Deus os provou e achou dignos de si.” (Sb 3, 5). Aqui se encaixa o conceito de “felizes os que sofrem, porque serão consolados”. A felicidade, a santidade, a bem-aventurança e a justiça estão sempre de mãos dadas. Ser santo não é isolar-se de todos e viver nos desertos, passar o dia rezando e meditando, longe da comunidade. Talvez vivendo sozinho fosse até mais fácil para o ser humano alcançar a santidade. Mas o grande desafio da santidade é ser capaz de aturar as maledicências, as incompreensões, a má vontade de algumas pessoas com quem convivemos e ainda assim mantermos a serenidade, a alegria e o bom humor. Fazendo assim, nem é necessário desfiar as contas do rosário seguidas vezes nem castigar os joelhos no chão em preces contínuas, para alcançar o patamar da autêntica santidade.


O texto do evangelista Lucas sobre as bem-aventuranças é mais sintético do que o de Mateus, isso se explica porque um e outro se dirigiam a leitores de culturas diferentes. Lucas dirigia-se à comunidade grega e enfatiza os aspectos da pobreza, da fome, da perseguição, das injustiças sociais que fazem chorar as pessoas humildes. Em seguida, ironiza com os ricos, que possuem muitos bens, vivem na fartura, têm legiões de bajuladores, porque depois a situação irá inverter-se. Se observarmos bem, o contexto social sugerido pela leitura de Lucas referindo-se à sociedade grega daquele tempo não é muito diferente do mundo de hoje, no qual a enorme dicotomia entre ricos e pobres conduz àquela mesma estratificação: de um lado, pessoas muito ricas, que vivem na abundância e até zombam da miséria alheia, aproveitando-se dela em seu benefício. De outro lado, pessoas extremamente carentes, as quais, em grande número, se desviam para a criminalidade e a violência, como uma medida imediatista e ilusória de tentar superar a sua condição de inferioridade. Mas aqui pode ser colocada a advertência do profeta Jeremias: confiar na força da carne humana é igual a plantar sementes no deserto.


O sermão da montanha, como é popularmente conhecido esse trecho do evangelho, é uma síntese de diferentes ensinamentos e propostas, que Jesus fazia aos seus seguidores. Não necessariamente ele teria dito todas essas “bem-aventuranças” de uma vez só, num local específico, sendo mais provável que os escritores sagrados tenham coletado e reunido num mesmo texto esses, que podem ser considerados como o resumo geral e grandioso de toda a pregação de Jesus em forma de aforismos, concentrando em poucas palavras os temas principais de sua mensagem da salvação. Também podemos imaginar que esses ensinamentos eram transmitidos por Jesus para um grupo de seguidores mais próximos, incluindo os doze, aqueles que lhe eram mais fiéis. Muito embora a expressão “sermão da montanha” sugira que havia uma grande multidão de ouvintes, sabe-se que, nessas ocasiões, Jesus preferia proferir sua mensagem de forma de parábolas, utilizando-se de temas e situações comuns na vida daquelas pessoas. Essa forma mais refinada e concentrada de transmitir sua doutrina em temas deve ter sido adotada para um grupo menor, de pessoas mais comprometidas e fiéis, aos quais ele podia falar de um modo mais direto e contendo uma maior quantidade de exigências. Trazendo para o nosso contexto, o “sermão da montanha” se dirige exatamente a nós, cristãos do mundo de hoje, lembrando-nos dos nossos compromissos decorrentes de nossa adesão à fé cristã pelo batismo. Podemos dizer que hoje nós temos melhor condição de entender as “exigências” da fé cristã do que os doze apóstolos, que ouviram diretamente de Jesus essas palavras. Aqui está o nosso perene desafio: pô-las em prática.


Cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 8 de fevereiro de 2025

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 5º DOMINGO COMUM - 09.02.2025

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 5º DOMINGO COMUM – A VOCAÇÃO DE CADA UM – 09.02.2025


Caros Confrades,


Na liturgia deste 5º domingo comum, as leituras mostram três formas diferentes, pelas quais o chamado (vocação) divino foi dirigido a três personagens importantes na história da salvação: o profeta Isaías e os apóstolos Pedro e Paulo. Esses exemplos nos levam a refletir sobre a nossa própria vocação, cada um de acordo com os seus talentos, de modo que possamos dizer, como o profeta Isaías, diante do apelo do Senhor: “aqui estou, envia-me”.


Na primeira leitura, temos assim o relato de Isaías narrando sobre a sua vocação profética (6, 1), onde ele diz que foi no ano da morte do rei Ozias (740 a.C.) que ele recebeu a missão de profetizar. Diz ele que viu o Senhor dos exércitos sentado no trono, rodeado de serafins, que o adoravam dizendo “santo, santo, santo” e ficou com medo, considerando-se indigno de tamanha distinção, porque era apenas um pecador. Caiu por terra e tremeu, porque achava que ali iria morrer, pois de acordo com a tradição hebraica, ninguém tinha visto a Deus e depois continuado vivo. Então Isaías achou que era o momento de sua morte. Foi quando um dos serafins tirou uma brasa do altar, aproximou-se dele e com ela tocou a boca de Isaías, purificando-lhe os lábios para que ele pudesse falar em nome de Javé. Após isso, ele disse ao Senhor: estou pronto, envia-me. Este é, sucintamente, o relato de Isaías e daí podemos fazer algumas considerações.


Em primeiro lugar, destaco o fato de que foi Isaías o profeta que mais se aproximou da realidade do futuro Messias, inclusive sobre o sacrifício da cruz a que ele teria de se submeter, com os poemas sobre o “servo sofredor”. Tanto assim que o texto de Isaías é o mais citado por Jesus nas suas pregações, inclusive no domingo passado lemos aquele texto em que Jesus diz expressamente que “hoje se cumpriu a palavra do profeta”. Mas Isaías, por causa do contexto histórico e político do reino de Judá, onde ele vivia, sempre às voltas com guerras e ameaças por parte dos inimigos, tinha a visão de Javeh como um chefe guerreiro, o Senhor dos exércitos, de modo que as previsões que ele fez do Messias eram também de um destemido guerreiro, que viria expulsar os inimigos. Não é de admirar, portanto, que o povo hebreu tenha resistido em reconhecer a messianidade de Jesus, porque ele não veio na condição de herói, libertador político, conforme havia sido previsto pelos profetas. Quando Jesus veio pregar um reino do amor e da mansidão, eles não viram nele a figura correspondente à sua expectativa histórica, que se formara ao longo de tantos séculos, como de um Messias guerreiro e lutador.


Em segundo lugar, esse trecho de Isaías contém aquela invocação que foi colocada no cânon da missa como parte fixa: o Santo, Santo, Santo (Is 6, 3). que era o canto entoado pelos serafins que ladeavam o trono de Javeh. De princípio, convém explicar algo sob o aspecto gramatical, que não sei se todos sabem. Na língua hebraica, não há uma mudança morfológica na palavra, quando ela se põe no superlativo. Por exemplo, em português, o superlativo de “santo” é “santíssimo”, mas em hebraico, o superlativo da palavra se expressa com a repetição dessa palavra por três vezes. Desse modo, 'santo, santo, santo' (em hebraico: kadosh, kadosh, kadosh) quer dizer: santíssimo. Outro detalhe é que Isaías escreve: Senhor Deus Sabaoth, palavra hebraica que significa exércitos e que não foi traduzida nem para o grego nem para o latim, mantendo-se a grafia original nesses dois idiomas. Quem se recorda da missa em latim, lembra disso: Sanctus, sanctus, sanctus, Dominus Deus Sabaoth. Assim era também em português, mas na reforma litúrgica, a CNBB preferiu alterar a denominação “Deus dos exércitos” por “Deus do universo”, como está hoje no texto oficial.


Outro detalhe interessante é que o serafim apanhou uma brasa do altar com uma tenaz, espécie de alicate, (para não se queimar) e com ela tocou os lábios de Isaías (que não se queimou), ficando com isso purificado para falar em nome de Javeh. É interessante notar essa figura do fogo como símbolo da purificação, que tem presença constante nas imagens bíblicas. A brasa foi retirada do fogo que fora aceso para o sacrifício das vítimas que eram oferecidas ao Senhor. Ora, esse detalhe insinua que Isaías teve esta visão enquanto estava no templo. Isaías teve a árdua missão de denunciar os pecados do povo de Israel, desde os simples fiéis até os governantes, fato que ele fez com muita coragem, mesmo sabendo dos riscos que corria. Não é fato histórico confirmado, mas há uma tradição que afirma que Isaías morreu ao ter seu corpo serrado no meio, por ordem do rei Manassés, que ficou ofendido com as admoestações do profeta.


Na segunda leitura do domingo, o apóstolo Paulo conta, de sua própria pena, a sua vocação, história que todos conhecemos. Mas ele faz alguns complementos interessantes sobre as aparições de Cristo após sua ressurreição, narrativas que estão em certa divergência com os evangelhos. Por exemplo: diz que Jesus apareceu primeiro a Cefas (Pedro) e depois aos doze (2Cor 15, 5); esta aparição a Pedro isoladamente não consta nos evangelhos. Diz depois: mais tarde, apareceu a mais de 500 irmãos de uma vez, depois apareceu a Tiago e depois aos apóstolos todos juntos. Pelas narrativas evangélicas, essas aparições a 500 irmãos e a Tiago também não estão registradas, contudo, não se pode dizer que Paulo esteja faltando com a verdade, pois muitas tradições orais que eram conhecidas em algumas comunidades não eram conhecidas em outras e nem todas foram escritas.


Por fim, em 2Cor 15, 8, Paulo diz que Jesus apareceu também a ele (“como um abortivo”), afirmando não ser merecedor de tamanha honra. Nesse ponto, Paulo está fazendo um discurso de humildade, arrependido do tempo em que foi perseguidor da Igreja. Mas logo depois (vers. 10), ele faz um autoelogio, ao dizer: tenho trabalhado mais do que os outros apóstolos. Talvez como uma espécie de compensação, por ter sido perseguidor, Paulo tenha se dedicado muito mais do que os outros, em viagens e missões por todo o mundo grego, levando o cristianismo até Roma, que era a grande capital do mundo de então. Foi Paulo quem levou Pedro para presidir a comunidade de Roma, para dedicar a ele a honra de ser o líder cristão da cidade mais importante do mundo na época, fato que ainda hoje tem grande repercussão, na pessoa do Papa, bispo de Roma. Aliás, na minha convicção pessoal, a vocação de Paulo é uma das maiores provas da divindade de Cristo, porque se dependesse dos doze apóstolos judeus, dificilmente o cristianismo teria alcançado a expansão que atingiu, em termos de locais habitados naquela época. Com sua formação intelectual e sua pedagogia arrojada, pode afirmar-se que Paulo foi o primeiro teólogo, igualando-se a João em importância na elaboração doutrinária.


O evangelho de Lucas (5, 1-11) expõe a vocação dos primeiros apóstolos: Pedro e seu irmão André, que eram sócios de Tiago e João, filhos de Zebedeu, todos pescadores. Primeiro, Jesus entrou na barca de Pedro e pediu que se afastasse um pouco da margem do Mar da Galileia (ou Lago de Genesaré), para que pudesse pregar para a multidão que estava na praia. Depois, Jesus ordena que Pedro adentre para águas mais profundas, a fim de pescar. Pedro estava meio desanimado, porque na noite anterior, a pescaria tinha sido um fracasso. Foi então que se deu a pesca milagrosa: eram tantos peixes que o peso deles rompia as redes e foi preciso chamar a outra barca (de Tiago e João), para que o auxiliassem. Foi quando Jesus convidou Pedro para ser pescador de gente, estendendo o mesmo convite aos demais.


Pois bem, meus amigos. O que vemos de comum nesses três episódios? É o fato de que Deus se serve de fatos da existência das pessoas para chamá-los a colaborar na Sua missão. Na história de nossas vidas, a vocação cristã nos põe diante desse desafio de identificar e cumprir a nossa missão na sociedade onde vivemos. Assim como Isaías, Pedro, Paulo e todos os apóstolos, se especularmos sobre o nosso passado, iremos encontrar diversos fatos pelos quais Jesus nos chama para dar testemunho dele, sendo essa a nossa missão. Missão é um conceito que se identifica com a nossa vida social, na qual somos chamados a viver de acordo com o evangelho, testemunhando a nossa fé perante a comunidade. Não é necessário ficar o dia todo com o terço na mão nem com a Bíblia embaixo do braço para simbolizar que estamos em missão. Quando cumprimos nossas tarefas com honestidade, convicção, amor ao próximo, alegria, integridade, estamos dando um testemunho muito mais eloquente e eficaz do que se estivéssemos só balbuciando orações em particular ou citando frases da Bíblia. Portanto, nós não precisamos sair da nossa rotina para colocar em prática a nossa vocação, para realizar na nossa vida o que Deus deseja e espera de nós, estejamos nós só na beira da praia ou em águas mais profundas. Em qualquer lugar em que nos encontremos, a missão está ao nosso alcance.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 1 de fevereiro de 2025

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 4 DOMINGO COMUM - 02.02.2025

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO COMUM – FESTA DA APRESENTAÇÃO DO SENHOR – 02.02.2025


Caros amigos,


Neste domingo, a liturgia celebra a festa da apresentação do Menino Jesus no templo, que é também a festa da purificação de Maria. Esta festa é popularmente celebrada com o sugestivo nome de Nossa Senhora das Candeias, pois a liturgia a denomina de festa da luz, portanto, Nossa Senhora da Luz. É interessante notar como a Sagrada Família, seguindo rigorosamente o protocolo da lei de Moisés, dava exemplo de elevado devocionismo judaico. Interessante também notar como Jesus Cristo, em todas as referências que lemos nos evangelhos, sempre cuidou de cumprir a mesma lei mosaica, apenas desviando-se do excessivo literalismo e fundamentalismo dos fariseus, que o criticavam por isso. A festividade apresenta ainda a figura do velho Simeão, aquele que reconheceu o Messias prometido naquele indefeso menino que chegara ao templo.


A festa litúrgica desta data se presta a várias observações sobre costumes e legislações do antigo hebraísmo. Primeiramente uma informação: a distância entre Nazaré e Jerusalém, aonde José e Maria foram para apresentar o Menino Jesus, é de 112 km, aproximadamente a distância entre Fortaleza e Canindé. Conforme a lei mosaica, a apresentação do filho primogênito deveria ocorrer 40 dias após o seu nascimento. Assim, passado o “resguardo”, Maria e José prepararam-se para a viagem de Nazaré a Jerusalém, viagem a pé, naturalmente. As pessoas que fazem romaria a pé para Canindé, saindo de Fortaleza, em geral demoram 3 dias de caminhada. Considerando que José e Maria viajavam com uma criança de colo, essa viagem deve ter durado provavelmente uma semana. O evangelista Lucas não menciona isso, então podemos fazer esse cálculo. Ainda sob o aspecto legislativo, a apresentação do menino no templo corresponde ao que hoje os pais (geralmente, o pai) fazem: o registro do nascimento do filho no cartório. Era também o tempo de conferir a circuncisão do menino (que era feita no oitavo dia após o nascimento) e de cumprir o ritual de purificação da mãe, porque de acordo com a lei, a mulher ficava impura quando engravidava (assim como quando estava menstruada) e precisava fazer o ritual legal para obter a purificação e assim poder voltar a frequentar os locais sagrados. Também sob o aspecto legislativo, os pais deviam levar uma oferenda: os ricos ofereciam novilhos, os menos ricos ofereciam cabritos e os pobres ofereciam um par de pombinhos, foi esta última a oferta da Sagrada Família, o que demonstra a classificação econômica da família de Nazaré. Como se vê, a legislação da época fora cumprida à risca.


Os detalhes minuciosos narrados por Lucas (Lc 2, 22-40) não deixam a menor dúvida de que ele captou essas informações diretamente da fonte, ou seja, Maria revelou isso a ele. Quem mais saberia o que tinha acontecido no templo de Jerusalém, naquele dia? E Maria deve ter tomado o maior susto quando ela e José chegaram ao templo com o menino, porque eles sabiam da “origem” dele, mas aquilo era segredo dos dois. Ela deve ter ficado imensamente perturbada com a reação do velho Simeão, que reconheceu o menino como o Messias esperado e ainda deu a ela o aviso: uma espada traspassará o teu coração. Se Maria ainda não tinha noção do alcance do seu “sim” ao anjo Gabriel, naquele momento, ela viu bem claramente o que a esperava. E certamente ao narrar esses fatos a Lucas, após a morte e ressurreição de Cristo, Maria ainda tinha aquele diálogo bem vivo na sua mente. E a espada já havia sido fincada no coração dela, dando-lhe maior certeza de que aquele velho judeu que encontrara no templo tinha ido até lá impelido pelo Espírito.


E Maria guardou ainda a imagem de Ana, a profetisa, que também reconheceu o menino e cantou os louvores de Javeh. Lucas diz textualmente que Ana era uma profetisa (2, 36), isso não é apenas uma dedução dos biblistas. Vejam, meus amigos, como havia profetisas em Israel, assim como havia as diaconisas nos primeiros tempos do cristianismo. Paulo (Rm 16, 1) fala em Phoebe, da comunidade de Cencreia, certamente havia outras. Lucas fala de Ana, profetisa do templo de Jerusalém, certamente havia também outras. Assim, de um modo bem discreto, observa-se a referência às atividades religiosas das mulheres, tanto no AT quanto no NT, no entanto, hoje em dia, o exagerado clericalismo que se instalou na hierarquia eclesiástica católica coloca tantas dificuldades para o reconhecimento das mulheres nas funções de direção da Igreja. Recentemente, o Papa Francisco nomeou uma mulher para um elevado cargo na Secretaria de Estado do Vaticano, o que deu motivo a muitos elogios e sobretudo muitas críticas dos tradicionalistas.


Ainda na esfera dos costumes, observa-se na narração de Lucas quanto o cristianismo herdou o tabu hebraico acerca da sexualidade. O preconceito aliado ao desconhecimento do fenômeno natural da menstruação feminina faziam com que a mulher fosse considerada impura, havendo prescrições rigorosas para serem observadas tanto pela mulher quanto pelo homem, durante o período do mênstruo. A mulher menstruada ficará imunda por sete dias (Levítico 12,2) e se um homem praticar sexo com ela durante esse período, ele também ficará imundo por sete dias (Levítico 15, 24). Essas noções incipientes e preconceituosas sobre o processo de reprodução humana, dentro da evolução do saber científico, ficaram superadas. Todavia, o tabu e o preconceito reinante na teologia católica acerca da sexualidade continuam fortes e, aparentemente, insuperáveis. A própria regra da obrigatoriedade do celibato dos padres é, ao mesmo tempo, prova disso e possível causa dessa equivocada compreensão. Na realização do Sínodo da Amazônia, em 2020, quando se colocou a possibilidade da ordenação sacerdotal de homens casados, houve tamanha reação dentro da alta cúpula do Vaticano que o Papa achou melhor deixar o assunto esfriar, porque chegou-se até a falar em cisma, o que seria desastroso. Isso só vem confirmar o tamanho do preconceito que ainda prevalece nos meios católicos tradicionalistas, entre clérigos e leigos.


Passando agora para a leitura do profeta Malaquias, o último dos profetas, ele fala numa linguagem que faz lembrar Isaías, acerca do futuro Messias: “ quem poderá fazer-lhe frente, no dia de sua chegada? E quem poderá resistir-lhe, quando ele aparecer? Ele é como o fogo da forja e como a barrela dos lavadeiros; e estará a postos, como para fazer derreter e purificar a prata.(Ml 3, 2-3) Um fato curioso é que a liturgia sempre seleciona trechos bíblicos escritos pelos profetas em que eles se referem ao futuro Messias, deixando aquela impressão de que um profeta é alguém que prevê um fato, como é corriqueiro no linguajar popular. No entanto, quando os profetas se referem ao Messias, assim como o faz Malaquias, chamam a atenção para a dissolução dos costumes do povo, a corrupção das autoridades, inclusive dos sacerdotes, a prática da idolatria e o abandono do culto a Javeh. Então, eles sempre dizem: essas pessoas serão devidamente justiçadas quando vier o Messias, enquanto os justos, os cumpridores da lei, estes serão agraciados. É assim que se deve entender as figuras metafóricas utilizadas por Malaquias, no trecho citado. Os maus não irão resistir quando Ele aparecer, Ele será como o fogo da forja (ou seja, o calor que derrete os metais) ou como a barrela dos lavadeiros (ou seja, aquela substância cáustica que se mistura na água, a fim de lavar roupas muito sujas). Na verdade, o profeta Malaquias está denunciando a corrupção do povo e das autoridades e, ao mesmo tempo, anunciando a vinda daquele que vai trazer a justa recompensa para cada um, de acordo com o seu procedimento.


Na segunda leitura, o autor da carta aos Hebreus (que não é o apóstolo Paulo) ensina a doutrina da verdadeira humanidade de Cristo, que se tornou igual a um de nós, a fim de nos purificar e nos dar a salvação, “Pois, afinal, não veio ocupar-se com os anjos, mas com a descendência de Abraão.” (Hb 2, 16) Essa lição teológica da carta aos Hebreus é muito importante para nos confirmar que, desde os primeiros tempos do cristianismo, os fiéis já tinham a convicção de que Jesus era verdadeiramente humano e não um Deus disfarçado de homem, como alguns judeus da época e outros teólogos antigos quiseram afirmar. E vem confirmar também a nova face do Pai, que foi revelada por Cristo, muito diferente do Javeh do Antigo Testamento, que se apresentava como um Deus vingativo e cruel. Cristo vem mostrar a nova feição de Javeh como um pai misericordioso, sempre disposto ao perdão, que se preocupa com os filhos e, longe de querer castigá-los, quer que todos se convertam e se salvem. Cristo não veio ocupar-se com anjos, mas com os descendentes de Abraão, ou seja, com pessoas pecadoras. Por isso, Ele assumiu plenamente a condição humana, para sentir na carne o que os homens sentem, “pois, tendo ele próprio sofrido ao ser tentado, é capaz de socorrer os que agora sofrem a tentação. ” (Hb 2, 18). Mostrando com seu exemplo como se deve enfrentar e vencer o pecado, Cristo, com seu sacrifício, nos dá a certeza de que nós também, servindo-nos dos recursos espirituais que Ele nos deixou, temos condição de alcançar o merecimento da glória que Ele conquistou para nós.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 25 de janeiro de 2025

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 3 DOMINGO COMUM - 26.01.2025

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 3º DOMINGO COMUM – 26.01.2025 – AUTOPROCLAMAÇÃO


Caros Confrades,


A liturgia deste 3º domingo comum traz um dos textos mais significativos para o reconhecimento de Jesus Cristo como Filho de Deus. Em sua costumeira modéstia e sempre falando por metáforas ou parábolas, raras vezes Jesus se referiu diretamente à sua pessoa como sendo aquele que as escrituras anunciaram. Ao concluir a leitura do texto de Isaías (61, 1), conforme o testemunho do evangelista Lucas, ele complementou: hoje se cumpriu isso que acabastes de ouvir. Mas ele estava na sinagoga de Nazaré, sua cidade natal, e ali todos o conheciam, assim como conheciam seus pais e familiares, então ninguém levou a sério o que ele falou e a sua autoproclamação não surtiu efeito, apesar de outras evidências que ele já apresentara.


Mas a primeira leitura, extraída do livro de Neemias (8, 2-10), contém também um texto interessante que relata uma atividade do sacerdote e escriba Esdras, lendo e explicando ao povo a Lei (Torah), em linguagem acessível, de modo que todos ficaram atentos desde o amanhecer até o meio dia e alguns até se emocionaram, chegando às lágrimas. Observemos o contexto histórico, para compreender melhor o motivo de tanta emoção da parte do povo: Neemias foi o governante que trabalhou na reconstrução das muralhas e do templo de Jerusalém, após o retorno dos hebreus do exílio da Babilônia. Naquela época, poder ouvir a leitura da Torah em Jerusalém era, para os hebreus recém-retornados do exílio, a realização de um sonho que eles acalentaram durante muito tempo e esperaram muito ansiosamente para vivenciá-lo. Para eles, era uma experiência totalmente nova, porque haviam nascido no exílio. Então, voltar a Jerusalém já era, por si só, uma emoção muito forte e poder celebrar seus cerimoniais na cidade reconstruída era algo ainda mais emocionante. Daí porque tanto o governador Neemias quanto o sacerdote Esdras falavam ao povo: “não fiqueis tristes nem choreis”, porque todo o povo chorava ao ouvir a leitura. E o governador instruiu o povo a banquetear-se naquele dia, porque aquela era uma ocasião abençoada: “'Ide para vossas casas e comei carnes gordas, tomai bebidas doces e reparti com aqueles que nada prepararam, pois este dia é santo para o nosso Senhor'.” (8, 10) Um detalhe curioso que chama a atenção nesse texto é que, costumeiramente, os hebreus realizavam suas cerimônias religiosas ao entardecer (por do sol), mas neste caso específico, o ato se deu na parte da manhã (do amanhecer até o meio dia), sugerindo que se tratava de uma celebração não rotineira, em horário não habitual, para comemorar a reconstrução do muro. Na sequência desse texto, diz o escritor sagrado que o povo ergueu cabanas na praça, de acordo com a tradição mais antiga dos hebreus, e habitaram nelas por sete dias, dando origem a uma festa ainda hoje celebrada (festa dos tabernáculos), uma das três mais importantes da religião judaica.


Na segunda leitura, da carta de Paulo aos Coríntios (ICor 12, 12-30), o Apóstolo apresenta outra versão da sua doutrina sobre os modos de agir do Espírito Santo, desta vez através da imagem do corpo na sua relação com os membros (o corpo místico). “Vós, todos juntos, sois o corpo de Cristo e, individualmente, sois membros desse corpo. ” (12,27) A dialética do corpo e dos membros aponta para a diversidade dos dons com os quais são dotadas as pessoas da comunidade, o que as torna diferentes umas das outras, no entanto, essas diferenças não isolam as pessoas, mas as complementam. E cada uma delas vai agir de acordo com o que o Espírito a inspira: “De fato, todos nós, judeus ou gregos, escravos ou livres, fomos batizados num único Espírito, para formarmos um único corpo, e todos nós bebemos de um único Espírito. ” (12, 13) O texto evidencia o grande problema que Paulo enfrentava naquela ocasião, a conhecida questão dos judaizantes (os judeus tinham dificuldade de aceitar os pagãos convertidos). A isso se juntava a questão econômica, porque havia ricos e pobres entre os convertidos. Então, ele explica que, assim como há diferenças de etnias ou de classes sociais na sociedade civil, também na comunidade cristã nem todos são iguais, pois há diferentes ministérios: “em primeiro lugar, os apóstolos; em segundo lugar, os profetas; em terceiro lugar, os que têm o dom e a missão de ensinar; depois, outras pessoas com dons diversos, a saber: dom de milagres, dom de curas, dom para obras de misericórdia, dom de governo e direção, dom de línguas.” (12, 28) Essas diferenças, porém, não devem causar dissensões dentro da comunidade, porque todas elas são formas variadas de ação do mesmo Espírito. E assim como, no corpo, não há membros mais honrosos ou decentes do que outros, pois todos detém igual importância e honorabilidade, assim também entre os fiéis não deve haver inveja, porque uns têm o dom da profecia, enquanto outros tem o dom para o governo e a direção. Com efeito, não poderiam ser todos apóstolos, todos profetas, todos dirigentes, todos intérpretes, então essa diversidade é que produz a riqueza e a complementaridade recíproca dos membros da comunidade, do mesmo modo como os órgãos corporais formam sistemas e se harmonizam. Podemos ver, nessa visão pedagógica paulina, que ele antecipou em vários séculos a teoria dos sistemas, que só surgiu cientificamente no século XIX. Nessa visão teológica de Paulo, o Espírito é o ponto de referência comum, para o qual todos os “sistemas” particulares convergem.


O texto litúrgico escolhido para a leitura do evangelho é da autoria de Lucas e contém duas notas bastante significativas para a nossa informação. Primeiro, no prólogo, ele afirma que “muitas pessoas” já escreveram sobre os acontecimentos que se realizaram entre nós, relatados por aqueles que foram testemunhas oculares, por isso também ele, Lucas, após meditar bastante, decidiu escrever a sua versão. Esse comentário traz, nas entrelinhas, a informação de que havia numerosos escritos (“evangelhos não oficiais”) acerca de Jesus, de seus ensinamentos, de seus feitos miraculosos, os quais teriam sido resumidos ou compilados nos evangelhos oficiais que hoje temos. Não foram apenas os evangelistas a escrever. Lucas diz que resolveu escrever “de modo ordenado”, deixando-nos entender que os outros textos eram dispersos, ou talvez eram textos diversos contendo as mais diferentes histórias e testemunhos. Daí dizer-se que os evangelhos de Marcos, Mateus e Lucas são “sinóticos”, ou seja, reuniões, compilações de textos diversos reescritos e adaptados por eles. Cada evangelista utilizou esses textos e acrescentou suas próprias notas ou comentários. No caso de Lucas, sabe-se que ele incluiu muitas informações colhidas de sua convivência com Maria, que não haviam sido escritas por ninguém, mas ele as tinha em primeira mão.


Em seguida, o texto da leitura dá um salto para o capítulo 4, relatando a ida de Jesus à sinagoga de sua cidade natal, Nazaré, num dia de sábado, para o culto regular. A essas alturas, Jesus já era famoso, o milagre das bodas de Caná havia sido bastante comentado e Jesus já havia pregado nas sinagoras de outras cidades da Galileia, causando admiração. Mas ali estava ele em Nazaré, sua terra natal, onde as pessoas conheciam a sua origem, seus pais e familiares, todos sabiam que ele não era um escriba ou um levita, muito menos um mestre da Lei. Mas a sua fama já era conhecida e ele se apresentou para fazer a leitura, provavelmente, ele pediu o livro de Isaías, pois sabemos, através de outras passagens, que esse era o Profeta preferido dele. Jesus escolheu deliberadamente o cap. 61, onde diz: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou com a unção para anunciar a Boa Nova aos pobres.” Jesus conhecia o texto, ele não abriu casualmente nessa passagem, ele fez de propósito, ele queria dizer aos presentes quem ele realmente era. Diz o escritor sagrado que, após ter lido, ele se sentou e todos ficaram olhando para ele, esperando que ele dissesse algo. Então, ele se declarou abertamente: o Profeta estava falando sobre mim.


O texto litúrgico pára por aqui, mas o discurso de Jesus não se encerrou com isso. Aquelas pessoas tinham ouvido falar dos milagres que ele havia feito em outras cidades e, certamente, esperavam que ele fizesse ali uma “demonstração”, um milagrezinho especial, quem sabe, até pediram isso, porque as palavras posteriores de Jesus foram muito ríspidas com os presentes, a ponto de eles o expulsarem da cidade e o levarem até uma montanha, de onde iriam precipitá-lo, de tão irritados que ficaram. Foi nessa ocasião que Jesus disse: nenhum profeta é bem recebido na sua terra. Aqueles conterrâneos de Jesus, certamente, o provocaram, talvez prevalecendo-se do fato de serem “velhos conhecidos”, tentando receber dele um tratamento privilegiado. Porém, ele quis demonstrar que a sua missão se dirigia a todos sem distinção e, sobretudo, aos mais necessitados, tal como predissera o Profeta. Se trouxermos esse fato para os dias de hoje, podemos observar que algumas pessoas tentam se utilizar da religião para lograr proveito pessoal, promoção social, ações interesseiras, vantagens financeiras. Jesus está ensinando que a fé não se presta para isso, está acima de tudo isso. Não é pelo número de missas assistidas ou pela quantidade de terços rezados que alguém deverá se considerar mais merecedor do que outrem, que não frequenta a missa nem reza o terço. Deus valida o que vai no íntimo de cada um, não aquilo que transparece externamente, muitas vezes sem a necessária convicção.


Que o Divino Mestre nos afaste de praticar uma religião de fachada e nos inspire a prática da fé verdadeira e coerente.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 18 de janeiro de 2025

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 2º DOMINGO COMUM - 19.01.2025

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 2º DOMINGO COMUM – 19.01.2025 – A NOVA JERUSALÉM


Caros Confrades,


A liturgia deste 2º domingo comum destaca um tema de grande significado: o consórcio entre Javeh e Jerusalém, que se restabelece após o cativeiro da Babilônia, fazendo a prefiguração vétero testamentária do enlace amoroso entre Cristo e a Igreja, que se consolidou no Novo Testamento. No evangelho, o episódio das Bodas de Caná retoma a imagem do casamento como a grande festa da família e da sociedade, prestigiada pela primeira demonstração pública do poder miraculoso de Jesus. O apóstolo Paulo, de forma didática e eloquente, ensina as diferentes formas de atuação do Espírito Santo entre os crentes, ilustrando a diversidade dos dons que ele inspira nos fiéis.


Na primeira leitura (Is 62, 1-5), Javeh fala pela boca do Profeta, enaltecendo a glória de Jerusalém, por quem ele declara a sua predileção: “teu nome será Minha Predileta e tua terra será a Bem-Casada, pois o Senhor agradou-se de ti e tua terra será desposada. Assim como o jovem desposa a donzela, assim teus filhos te desposam; e como a noiva é a alegria do noivo, assim também tu és a alegria de teu Deus. Ao retornarem do exílio na Babilônia, os hebreus se dedicam à reconstrução de Jerusalém, adornando-a para o Senhor, assim como a noiva se enfeita para encontrar-se com o noivo, bem como a reconstrução do templo, que havia sido destruído pelos assírios. Javeh não descansará enquanto não surgir em Jerusalém a Justiça, enquanto não se acender nela a tocha da salvação. Esdras foi o grande responsável por essa gigantesca tarefa de reconstruir a cidade e restabelecer o culto.


Importa destacar que, durante o tempo em que os hebreus ficaram cativos na Babilônia, a região da Galileia foi ocupada por povos nômades de diversas etnias, que tentavam escapar do império assírio. Posteriormente, com a vitória de Ciro, tendo sido o império assírio dominado pelos persas, os hebreus foram libertados e retornaram para Canaã. Ao chegarem, ali encontraram aqueles povos, que não mais voltaram para os seus locais de origem e formavam um conglomerado altamente disperso de tipos humanos, um amontoado de línguas, costumes, religiões, culturas, uma população pobre e marginalizada. Então, além do trabalho material de reconstrução da cidade destruída, os hebreus retornados do cativeiro tiveram de enfrentar também essa situação social do encontro com povos diversos, que não conheciam a importância de Jerusalém para o judaísmo. A imagem do casamento tinha, portanto, também essa finalidade de transmitir para os estrangeiros um pouco da história do povo hebreu e sua relação com Javeh.


A liturgia prossegue com o tema do casamento no evangelho de João (Jo 2, 1-11), abordando o conhecido episódio das Bodas de Caná. O evangelista não teve a preocupação de mencionar os nomes dos nubentes, porém deviam ser pessoas próximas da família de José, talvez parentes, visto que Maria também estava presente, assim como Jesus e os discípulos foram convidados. Aquela foi a oportunidade para que Jesus iniciasse a sua missão pública, fazendo a primeira demonstração de sua origem divina. Esse episódio é relatado apenas pelo evangelista João, o qual certamente estava ali presente e testemunhou o fato. Há uma tradição que afirma ser o evangelista Marcos um dos servos que encheu as vasilhas de água, que depois foi transformada em vinho, porém eu presumo que se tal tivesse ocorrido, Marcos certamente teria inserido esse fato no seu texto. Segundo a interpretação generalizada dos biblistas, o fato de ter Jesus escolhido iniciar sua atividade pública numa cerimônia de casamento, significa uma tácita aprovação do matrimônio como instituição amada por Deus. Com toda certeza, isso não foi mera casualidade, porque em toda a sua atividade de pregador, Jesus utilizou-se dos caminhos culturais do povo hebreu para, através destes, ensinar a sua doutrina. Desse modo, a sua presença naquele evento, a sua forma de agir e o impacto causado pela ocorrência entre os presentes tiveram uma consequência bastante significativa. As festas de casamento daquele tempo eram muito prolongadas, podiam demorar até sete dias, havia sempre muitos convidados, inclusive pessoas de outras localidades, como sói acontecer também nos dias de hoje. Então, aquele fato extraordinário foi espalhado por muitos lugares, pelo testemunho dos inúmeros presentes.


Um detalhe intrigante no texto de João, certamente não casual, é o linguajar de Jesus, ao responder à sua mãe, quando ela foi dizer a ele que o vinho havia acabado. A tradução da CNBB até disfarça um pouco a forma rude da fala de Jesus (Mulher, por que dizes isto a mim?) Mas o texto grego, traduzido por São Jerônimo, é mais direto e até grosseira: Mulher, o que eu e tu temos com isso? (Quid mihi et tibi est, mulier?) E o dado mais curioso: Jesus não chama Maria de “mãe” e sim de “mulher”. Há dois momentos no evangelho em que Jesus se refere a Maria com a expressão “mulher”: nesse caso de Caná e na cruz, quando confia Maria aos cuidados de João. Exatamente no início e no final de sua vida de pregador. O simbolismo desse detalhe referido por João deve ser, provavelmente, para indicar que, nesse momento, Jesus estava falando como Filho de Deus, destacando a sua natureza divina, e não propriamente com o seu ser humano. E tanto Maria entendeu isso que não se melindrou, não se intimidou com aquele tratamento com o qual Jesus a ela se dirigiu e simplesmente disse aos empregados: façam tudo o que ele disser. Maria tinha consciência do seu papel e, sobretudo, tinha uma fé acima de qualquer adversidade. E também, nesse momento, ela deve ter sido instruída pelo Espírito Santo, para saber o momento de agir e a forma dessa ação. Não foi, com toda certeza, uma expressão casual e despropositada do evangelista João. Poder-se-ia até supor que seria uma questão de tradução, mas não foi isso, pois João escreveu o seu texto em grego e a palavra escrita é “gýnai”, que significa literalmente “mulher”.


E agora podemos passar para a carta de Paulo aos Coríntios (1Cor 12, 4-11), na qual ele se reporta às diversas formas de atuação do Espírito. Há uma diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo. Paulo captou e formulou, de forma profunda e acertada, a doutrina sobre os variados modos de agir do Espírito na comunidade cristã, todas elas em vista do bem comum. Uns têm o dom da sabedoria, outros têm o dom da ciência, outros têm o dom da fé; a uns, é dado o poder de fazer milagres, a outros, o poder de fazer curas; outros são capazes de falar línguas diversas, interpretar palavras, profetizar... tudo isso no mesmo Espírito. Esse texto de Paulo é largamente citado pelos grupos do moderno pentecostalismo, para fundamentar diversas tendências (carismas) religiosos. Há os que se permitem "falar" palavras incompreensíveis, caricaturando o "dom das línguas", como se fosse esse o sentido de falar "línguas estranhas". De fato, o termo "estranho" nesse contexto nada tem a ver com expressões desconexas e vazias de significado, mas tem o sentido de "línguas diversas" (em grego, géni glósson; em latim, genera linguarum). No meu entendimento, Paulo estava se referindo a um fenômeno similar ao ocorrido logo após Pentecostes, quando Pedro fez uma pregação em aramaico e os ouvintes, oriundos de regiões e falantes de linguagens diversas, ouviram o seu discurso, cada qual, como se Pedro estivesse falando em sua própria língua. É uma “arte” do Espírito.


Outra expressão desse texto que é também objeto de compreensão imprópria é quando Paulo fala que o Espírito confere o poder da cura e de fazer milagres, o que poderia ser até uma redundância, porque curar (nesse sentido) já seria fazer um milagre. Contudo, examinando o texto original, verificamos que não é bem assim. As expressões são: karísmata iamáton (São Jerônimo traduziu por "gratia sanitatum", ou seja, o carisma medicinal) e energýmata dynámeon (traduzido por "operatio virtutum", ou seja, realização de maravilhas). Podemos dizer que as nossas rezadeiras do interior e os que administram medicamentos tirados de vegetais têm o carisma medicinal, porque não estudaram a técnica médica, no entanto, possuem a intuição da medicina. De modo semelhante, a ação humana organizada e bem intencionada também produz maravilhas. Há uma tendência comum de mistificar os dons do Espírito, porém penso que devemos procurá-los no nosso dia a dia, nas nossas atitudes rotineiras, nos nossos empreendimentos solidários, na força que é capaz de unir as pessoas em torno de uma causa comum. E mais: que ninguém se sinta desmerecido, porque não percebe em si esses dons extraordinários do Espírito, pois eles acontecem muitas vezes sem que os percebamos. As outras pessoas são as que percebem isso em nós. E eu me arrisco a dizer que aqueles que se autoproclamam detentores desses carismas são, de fato, embusteiros. Desses, temos inúmeros exemplos.


O ensinamento de Paulo deve ser compreendido no sentido da onipresença do Espírito em tudo aquilo que realizamos com fé, com reta intenção, com o coração desapegado. Ninguém precisa sair do seu cotidiano para ser contemplado com essa assistência contínua e extraordinária do Espírito, porque ele faz morada dentro de nós, desde que recebemos os sacramentos da iniciação cristã. Podemos até não perceber a sua atuação, mas em tudo o Espírito se faz presente.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos