COMENTÁRIO LITÚRGICO – 1º DOMINGO DO ADVENTO – O FINAL E O COMEÇO – 28.11.2021
Caros Confrades,
O calendário litúrgico da Igreja Católica não segue o calendário comum da sociedade, por isso, neste domingo, dá início ao novo ano litúrgico católico, que costumeiramente coincide com o final de novembro ou início de dezembro do ano anterior, de acordo com a posição do dia de Natal no calendário civil, pois o ano litúrgico se inicia quatro domingos antes do Natal. A organização litúrgica da Igreja Católica distribui, no período de doze meses, toda a história da salvação, que historicamente demorou vários séculos, fazendo-nos reviver, a cada ano, todos os fatos marcantes da intervenção de Deus junto aos homens. Esta prática de dividir a Bíblia em porções correspondentes ao número de semanas do ano já existia entre os judeus, desde os tempos de Esdras, quando o povo retornou da escravidão da Babilônia. Este dirigente judeu dividiu a Bíblia hebraica em porções semanais, de modo que durante um ano, toda a Bíblia fosse lida nas sinagogas. A Igreja Católica segue essa tradição, porém de um modo diferente. Os anos litúrgicos são classificados com as letras A, B e C, pois a Bíblia católica tem mais livros do que a Bíblia judaica. Assim, as leituras litúrgicas dominicais não se repetem a cada ano, mas somente a cada três anos. No domingo passado, terminamos o ano B da liturgia e com a liturgia de hoje, 1º domingo do advento, tem início o ano litúrgico de 2022. De acordo com as regras da instrução oficial do Secretariado da Liturgia, este ano litúrgico que se inicia é identificado com a letra C.
Neste primeiro domingo do advento, a liturgia nos leva a refletir sobre as “coisas que hão de vir”, ou seja, os fenômenos indicadores do “final dos tempos”, também denominados de escatologia (coisas futuras). Ao mesmo tempo, prepara-se o coração dos fiéis para o Menino que vai chegar (adveniens), donde o nome “advento”, convidando-nos a preparar o coração para recebê-lo com espírito renovado. É curioso esse contraponto que a liturgia faz entre o “final” e o “começo”, colocando leituras com temas escatológicos e apocalípticos (evangelho de Lucas) junto da leitura do profeta Jeremias, anunciando aquele que vai chegar, para fazer valer a lei e a justiça sobre a terra, isto é, o Messias. Essa junção de temas conflitantes vem marcar a constante renovação que deve ocorrer em nossas vidas, demonstrando que o fim pode ser sempre um novo começo. O advento recorda a primeira vinda de Jesus, em forma humana e no tempo histórico; as coisas futuras recordam a segunda vinda de Jesus, não mais como criança nem no plano cronológico, mas como supremo juiz.
Esse tema da segunda vinda de Jesus, conforme abordamos em comentários anteriores, foi muito caro aos primeiros cristãos, que esperavam isto como algo imediato, para os próximos dias, de modo que alguns até deixaram de trabalhar, porque ele estava já chegando. O próprio apóstolo Paulo era um dos que esperavam ver a segunda vinda de Jesus (ele não tinha visto Jesus em forma humana). Porém com a demora desse retorno, a compreensão foi mudando de perspectiva e, ao longo dos tempos, passou por diversos quadros interpretativos. Agora, muitos séculos depois e com a evolução do conhecimento humano, já não se deve pensar numa “data” determinada, um dia marcado no calendário, nem mesmo num dia incerto e indefinido, como está escrito no evangelho (Lc 21, 35). Na minha modesta opinião, sou levado a crer que não cabe mais pensar num evento de dimensões cósmicas, como consta com detalhes na narração do evangelho lido neste domingo (Lc 21, 25), e sim numa circunstância que se realizará na dimensão atemporal, no plano da eternidade, quando ultrapassarmos o umbral da materialidade. Quando adentrarmos a dimensão da eternidade, encontraremos o Filho do Homem sentado sobre as nuvens, com todo o seu poder e glória, julgando e premiando os seus seguidores de coração sincero.
Na primeira leitura, o profeta Jeremias diz que “naqueles dias, farei brotar a semente da justiça que fará valer a lei... e Jerusalém terá uma população confiante... e será designada como 'o Senhor é a nossa justiça'”. (Jr 33, 15). A Igreja é a nova Jerusalém, lembrando aquela que um dia foi destruída, mas Deus a restaurou com o nome de Justiça. Isso ocorrerá 'naqueles dias' que não se sabe quando serão, mas que, com certeza, será na Jerusalém celeste. Dizer que o seu nome será “o Senhor é nossa justiça” significa que devemos considerar que a justiça divina não tem comparação com a justiça dos homens. A justiça de Deus é, na verdade, a sua misericórdia, o seu infinito amor para conosco, porque se Ele fosse nos julgar, do modo como nós costumamos julgar os nossos semelhantes, coitados de nós.
Então, no advento, a cada ano, nós reiniciamos a nossa preparação para esse futuro encontro com o Filho do Homem em seu tribunal da misericórdia, através dos atos litúrgicos que nos rememoram a vida histórica de Cristo, para que estejamos sempre vigilantes, como Ele próprio ensinou. Na segunda leitura, carta de Paulo aos cristãos Tessalonicenses (1Ts 4,1), o apóstolo os exorta a viverem como foi ensinado a eles, para agradar a Deus, seguindo as instruções que lhes foram passadas em nome do Senhor Jesus. Paulo estava preocupado com os Tessalonicenses, porque em sua visita àquela cidade, houve uma ríspida discussão entre ele e os judeus, fato que levou Paulo a fugir da cidade. Depois, ele mandou para ali Timóteo, para sondar o ambiente e ficou muito feliz com a informação deste de que os tessalonicenses continuavam fiéis à mensagem cristã. Por isso, Paulo os exorta a continuarem com aquele mesmo fervor religioso, preparando-se para o retorno de Cristo que, segundo o entendimento da época, se daria dentro de pouco tempo.
O evangelho de Lucas (Lc 21, 25-36) traz a clássica narrativa daqueles fatos que são indicativos do “final dos tempos”: “Haverá sinais no sol, na lua e nas estrelas. Na terra, as nações ficarão angustiadas, com pavor do barulho do mar e das ondas.” Em relação à conduta das pessoas, o texto do evangelho é assustadoramente dramático: “Os homens vão desmaiar de medo, só em pensar no que vai acontecer ao mundo, porque as forças do céu serão abaladas.” Os cristãos de todas as épocas, mas sobretudo dos primeiros tempos, tremiam diante dessas leituras e alguns até deixaram de trabalhar, porque a volta do Senhor estava próxima. Ora, Jesus disse diversas vezes que somente o Pai sabe esse dia, nem Ele sabia, como é que uns pobres mortais poderão adivinhá-lo? Por isso, mais importante do que tremer com a expectativa daquele “dies irae, dies illae” (como dizia o antigo cântico gregoriano), o que nós devemos fazer é seguir o que Jesus recomendou: “Tomai cuidado para que vossos corações não fiquem insensíveis por causa da gula, da embriaguez e das preocupações da vida, e esse dia não caia de repente sobre vós; pois esse dia cairá como uma armadilha sobre todos os habitantes de toda a terra.” (Lc 21, 34-35). Esse dia é aquele em que iremos nos encontrar diante do tribunal da misericórdia e desse dia ninguém conseguirá escapar. Daí que a preocupação de Cristo conosco é para que não nos deixemos dispersar pelos prazeres materiais e pelas preocupações da vida, para que a nossa fé esteja sempre atenta. Mais do que impressionar-se com o abalo das forças celestes, a nossa preocupação deve estar voltada para a nossa própria conduta, para a nossa fidelidade com os compromissos do nosso batismo. Cristo sabe o quanto isso é difícil para cada um de nós, frente a tantas distrações e encantamentos que a realidade material lança sobre nós. Daí o conselho que ele nos dá: ficai atentos e orai a todo momento, para terdes força pra ficar de pé diante do Filho do Homem.
É curioso como, ao longo do tempo, as pessoas leram essa passagem do evangelho e se concentraram na descrição dos fenômenos cósmicos, que na verdade estão fora do nosso controle, e esqueceram dessa outra parte em que Jesus nos exorta a agir com moderação, sem nos deixarmos seduzir pelos apelos dos prazeres corporais, pois isso sim depende de nós. Então, o ensinamento de Cristo para que fiquemos vigilantes sempre não se refere a um tempo futuro e indefinido, mas ao nosso tempo existencial. A nossa fé n'Ele deve ser renovada a cada dia, para que nossa expectativa não se volte para um fim catastrófico do mundo, mas para um fim sereno dos nossos dias, porque estes têm um prazo até certo ponto previsível. E será nesse momento que precisaremos ter forças para ficar de pé diante do Filho do Homem. A nossa força será medida pela nossa perseverança. Desse modo, quando o advento nos convida a estar vigilantes porque não sabemos o dia nem a hora, a nossa atenção não deve se voltar para “o Filho do Homem, vindo numa nuvem com grande poder e glória”, mas para o dia em que cada um de nós deveremos ficar em pé diante d'Ele.
Cordial abraço a todos.
Antonio Carlos
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