sábado, 18 de junho de 2022

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 12º DOMINGO COMUM - 19.06.2022

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 12º DOMINGO DO TEMPO COMUM – O CRISTO DE DEUS – 19.06.2022


Caros Confrades,


Neste 12º domingo do tempo comum, as leituras litúrgicas destacam a relação entre a cruz e o batismo, através da ação salvífica do Cristo de Deus, como assim Jesus foi definido por Pedro, pela inspiração do Espírito. Falando em particular com os doze apóstolos, depois da confissão de Pedro, Jesus revela-lhes detalhes acerca da sua futura paixão, preparando o espírito deles, para que não percam a fé, quando essas coisas terríveis vierem a acontecer e os proibe de falar a respeito de sua verdadeira identidade. Esse testemunho deveria ficar reservado para depois da ressurreição.


A primeira leitura traz um texto do profeta Zacarias, no qual há uma alusão bem explícita e direta à figura do Messias, que será torturado e morto, mas depois, esses mesmos que o matarem, irão chorar sobre o seu cadáver (Zc 12, 10): “hão de chorá-lo, como se chora a perda de um filho único,

e hão de sentir por ele a dor que se sente pela morte de um primogênito”. Este texto é reproduzido na liturgia da Semana Santa, onde se lê que “contemplarão aquele a quem traspassaram”. Trata-se de um prenúncio, com grande antecipação temporal, uma longínqua antecipação do sacrifício de cruz, considerando que a datação da profecia de Zacarias é do século IV antes de Cristo.


No versículo seguinte (Zc 12, 11), o Profeta faz referência a um dia tão calamitoso quanto aquele em que o Messias irá ser imolado, recordando que “haverá um grande pranto em Jerusalém, como foi o de Adadremon, no campo de Magedo.” O fato referido pelo Profeta é a morte do rei Josias, que pereceu em circunstâncias que poderiam ter sido evitadas, ocasionando grande comoção junto do povo. Com efeito, depois de experimentar vários reis injustos e idólatras, o povo de Israel tinha um rei bom e devotado à sua gente: Josias. Ele foi tentar impedir o trânsito do exército egípcio pelo território de Israel, numa ocasião em que o Faraó travava uma guerra com os babilônios. Sem uma real necessidade, posto que os egípcios não perseguiam os judeus, o rei Josias tentou impedir a passagem do exército do Faraó e terminou morrendo numa batalha desnecessária. Este mártir inocente era a prefiguração do futuro Messias, que também seria inocentemente imolado. Esta primeira leitura, portanto, traz uma alusão direta ao sofrimento pelo qual o Messias teria de passar e também à reação de arrependimento que ocorreria entre aqueles mesmos que lhe causaram os sofrimentos. A começar por Judas e pelos soldados responsáveis pela crucifixão.


Na segunda leitura, continuando a carta de Paulo aos Gálatas (3, 26-29), lemos o ensinamento do apóstolo acerca da consequência mais importante que o batismo nos traz, que é o fato de sermos inseridos em Cristo e, com isso, nos tornamos herdeiros de toda a promessa que Javeh fez aos Patriarcas, desde os tempos antigos. “Vós todos que fostes batizados em Cristo vos revestistes de Cristo. … Sendo de Cristo, sois então descendência de Abraão, herdeiros segundo a promessa.” Pelo batismo, nós nos tornamos um em Cristo e isso nos unifica também entre nós, de modo que já não há mais distinção de raça, cor, sexo, origem, classe social, a adesão a Cristo nos torna membros de um só corpo e nos faz todos irmãos. Pelos sofrimentos na cruz, Cristo abriu para nós o acesso à casa do Pai. Pelo batismo, nos revestimos de Cristo e nos tornamos merecedores de sua graça. Observem que o batismo não apenas nos une a Cristo, mas nos reveste dEle, é muito mais profundo. O Papa Francisco, no seu sermão semanal na Casa de Santa Marta, onde ele reside, fez questão de destacar essa importante lição teológica: a porta da Igreja é o batismo, não a ordenação sacerdotal ou episcopal. Em outras palavras, isso é a tão falada sinodalidade. Trata-se de um puxão de orelhas no clericalismo reinante na Igreja, desde há muito tempo, reforçando o papel fundamental que possuem os leigos no interior da comunidade eclesial. Lamentavelmente, nossos pastores não pensam nem agem nessa direção.


A leitura do evangelho nos mostra Jesus se revelando em particular para os apóstolos. Em Lc 9, 18-21, temos aquela conhecida passagem em que Pedro faz a definição mais perfeita de Jesus, quando responde à interrogação dele próprio sobre “quem vós achais que eu sou?” Pedro se antecipa aos demais e responde com determinação: Tu és o Cristo de Deus. Antes, Jesus havia perguntado o que o povo falava a respeito dele. Talvez algum dos antigos profetas que ressuscitou, era essa a opinião popular a seu respeito. Então, Jesus proibiu expressamente os apóstolos de ficarem falando para o povo quem ele era realmente, pois essa revelação deveria aguardar os acontecimentos futuros. E passa a dissertar sobre os detalhes do seu sofrimento futuro, usando para si mesmo a expressão “filho do Homem”: O Filho do Homem deve sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e doutores da Lei, deve ser morto e ressuscitar no terceiro dia (Lc 9, 22) Por que Jesus fala sobre si mesmo como o Filho do Homem? Aqui há uma explicação interessante. Jesus se serve de uma expressão que era bem conhecida dos judeus, que em hebraico se diz “ben Adam” e que significa genericamente um ser humano, uma pessoa, um filho de Adão. Fazendo referência ao primeiro homem bíblico, que foi tirado do limo da terra (adam), Jesus usa essa expressão para representar, ao mesmo tempo, a si próprio e a todos os seres humanos, para os quais o seu sofrimento vai servir de redenção. Nesse momento, Jesus está-se referindo diretamente à sua humanidade, assumindo ser ele também um “ben Adam”, isto é, um filho da terra, assim como todos os seres humanos são. Para ilustrar melhor esse conceito, informo aos leitores que o plural dessa expressão significa, em hebraico, humanidade. Por outras palavras, Jesus está declarando que o seu ser humano vai passar por todas essas agruras. O Filho do Homem irá sofrer perseguição pelos chefes do povo, morrerá e depois ressuscitará.


Foram várias as vezes em que os apóstolos ouviram Jesus dizer isto: sofrer, morrer, ressuscitar, mas provavelmente eles só vieram a entender isso depois que esses fatos aconteceram. Judas foi um que ficou esperando, até o último momento, que Jesus fizesse uma grande demonstração de poder e liquidasse todos os inimigos de Israel. Pedro o negou por três vezes, porque não tinha compreendido o alcance daquelas palavras (sofrer, morrer, ressuscitar). João foi outro que se aproveitou do conhecimento que tinha com pessoas do palácio de Pilatos e conseguiu entrar no pretório para tentar ver o que estava acontecendo com Jesus, pois ele também não tinha entendido o sentido daquelas palavras. Aqueles dois discípulos que iam para Emaús eram outros descrentes, sem entender o que havia acontecido. Eles também não entenderam aquelas palavras. Dos demais, não se sabe, porque as reações não ficaram registradas. O certo é que, só após a ressurreição e as seguidas aparições de Jesus no meio deles, foi que começaram a juntar as ideias e compreender o que Ele havia dito. E tudo foi confirmado, depois, em Pentecostes.


E no final deste discurso, Jesus diz ainda palavras mais incompreensíveis para eles: “quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la; e quem perder a sua vida por causa de mim, esse a salvará” (Lc 9, 24). Se eles já não tinham entendido a primeira parte, esse final era ainda mais enigmático. Quem veio trazer a explicação desse enigma foi Paulo, na epístola aos Gálatas, lida no domingo passado (Gl 2, 20): “Eu vivo, mas não eu, é Cristo que vive em mim. Esta minha vida presente, na carne, eu a vivo na fé, crendo no Filho de Deus, que me amou e por mim se entregou.” Quem quer salvar a sua vida, isto é, quem quer viver segundo seus próprios desígnios, sem seguir os ensinamentos de Cristo, vai ao final se perder, se destruir. Mas quem se deixar guiar pelos ensinamentos de Cristo, pode parecer que está perdendo o seu tempo e a sua vida, mas pela fé alcançará a salvação. A vida na carne, a vida material não pode fechar-se sobre si mesma, buscando acumular cada vez mais, possuir cada vez mais, desfrutar cada vez mais, porque quem age assim vai perdê-la. A vida material deve ser vivida na fé e na caridade, crendo no Filho do Homem e seguindo os seus ensinamentos. O cristão não abandona a vida material, a vida na sociedade, não recusa a posse dos bens materiais, mas vive tudo isso, possui tudo isso com espírito de solidariedade, utilizando esses bens a serviço dos irmãos. Isso é possível porque, pelo batismo, nos revestimos de Cristo e assim a nossa vida material se constrói numa vivência de fé, sabendo administrar os bens materiais em vista do bem de todos.


Que a lição de Paulo aos Gálatas possa se transformar no lema da nossa vida cristã.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 11 de junho de 2022

COMENTÁRIO LITÚRGICO - FESTA DA SANTÍSSIMA TRINDADE - 12.06.2022

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – DOMINGO DA SANTÍSSIMA TRINDADE - 12.06.2022


Caros Confrades,


A liturgia celebra hoje a festa da Santíssima Trindade, encerrando o núcleo temático catequético, que se inicia com o Advento, passando pela Quaresma e a Páscoa, até o domingo de Pentecostes. A festa da Trindade Santa sintetiza toda a doutrina cristã, que tem no Antigo Testamento a manifestação do Deus Criador, e no Novo Testamento, as manifestações do Filho Redentor e do Espírito Santificador. A partir do próximo domingo, retornam os domingos do tempo comum, até o começo do próximo ano litúrgico, que retoma o tempo do Advento, dando início a um novo ciclo.


A fé na Santíssima Trindade é a verdade central do cristianismo, o grande mistério revelado por Jesus, que só se esclareceu definitivamente após o sopro do Espírito Santo. No Antigo Testamento, o conhecimento da divindade era unipessoal apenas, isto é, o Deus dos patriarcas havia se manifestado a Abraão e prometeu-lhe uma grande descendência, mas sequer disse o seu nome. Moisés foi o primeiro que teve a ousadia de perguntar o nome DELE, no episódio dramático do monte Sinai e ouviu como resposta um enigmático EU SOU (ehyeh, em hebraico, palavra que evoluiu depois para yhwh (javé) -יהוה). Isso era tudo que os hebreus sabiam acerca do Pai. Após vários episódios de submissão do povo hebreu, os profetas começaram a anunciar a vinda de um Messias, o Salvador. Quando veio Jesus, ele trouxe a revelação de que “Ele e o Pai são um só”. Terminada a sua missão, Jesus prometeu que o Pai enviaria o Paráclito, aquele que viria esclarecer tudo. Foi em Pentecostes que a revelação da Trindade se completou. Este é o mistério dos mistérios, aquele que perpassa toda a dimensão da fé cristã. Dizer que é um “mistério” significa que o conhecimento disso não é possível de ser alcançado somente com o uso da razão, mas é necessário que venha a fé em suplemento, para possibilitar a compreensão. Quem não se recorda daquele verso que cantávamos no Tantum ergo: praestet fides suplementum sensuum defectui. (que a fé forneça suplemento ao defeito dos sentidos)?


Sob o ponto de vista da teologia católica, os conceitos de revelação e mistério se atraem mutuamente. O mistério é aquela verdade que a nossa razão precisa aprender a identificar, o que só ocorre com a ajuda da fé. Os teólogos criaram um conceito recente (quanto eu estudei teologia, ainda não existia) para simbolizar esse aprendizado que a razão tem com a ajuda da fé: mistagogia. É uma combinação das palavras gregas “mysterion” (revelação) com “agogé” (ensinar). A revelação tem esse componente pedagógico de conduzir a razão pelos caminhos obscuros da fé. Embora o mistério da Trindade seja o fundamento e o alicerce de toda a fé cristã, ele só foi alcançado e esclarecido bastante tempo depois, dada a sua complexidade. Por isso, a compreensão sobre a Trindade conduziu a muitas discussões nas primeiras comunidades cristãs, tendo sido objeto de diversas doutrinas, depois consideradas heréticas, porque não admitiam a mesma natureza do Pai ao Filho e ao Espírito Santo. Dessas doutrinas, as mais famosas e que tiveram mais adeptos foram o arianismo e o monofisismo. O arianismo, defendida por um bispo de nome Ario, ensinava que Jesus é filho de Deus, mas não é igual a ele, Jesus seria uma espécie de semideus. O monofisismo ensinava que Cristo tinha apenas uma única natureza, a divina, e a sua humanidade era apenas aparente. Algo como se fosse um fantasma divino visível. Essas doutrinas, além de outras menos divulgadas, dividiam os primeiros núcleos do cristianismo e foram objeto de muitos debates, antes de serem finalmente rejeitadas por decisões conciliares.


A definição oficial foi aprovada em dois Concílios: Niceia e Constantinopla. No Concílio de Niceia, em 325, os padres conciliares redigiram o “símbolo dos apóstolos”, a oração do Credo, sintetizando a doutrina oficial, para que ficasse mais fácil de ensiná-la ao povo cristão. Esta oração foi depois aperfeiçoada no Concílio de Constantinopla, em 381, porque no concílio anterior não ficara definida claramente a natureza do Espírito Santo. Assim é que o Credo atualmente rezado na liturgia é também chamado de símbolo niceno-constantinopolitano, porque sua redação passou pelos dois concílios. Em relação ao Filho, o Concílio de Niceia definiu que o Filho é gerado, não é criado. Gramaticalmente, as duas palavras até são sinônimas, mas no linguajar teológico, faz-se a diferença para explicar que o mundo, as pessoas, as coisas em geral foram criadas por Deus, mas o Filho foi gerado. Esta diferença conceitual acentua que o Filho tem a mesma natureza do Pai, porque foi por ele gerado, enquanto as coisas do mundo não têm a mesma natureza do Criador, porque foram criadas. Em relação ao Espírito Santo, o Concílio de Constantinopla definiu que o Espírito procede do Pai e do Filho. Não utiliza nem o verbo gerar nem criar. O Espírito Santo origina-se de uma relação de amor entre o Pai e o Filho. Teologicamente, afirma-se que o Filho é o Verbo (a palavra) do Pai que, de tão poderosa, torna-se outra pessoa divina. A “palavra” se fez carne, diz o evangelista João. Observemos que João afirmou isso por volta do ano 100, ou seja, esse entendimento sobre a natureza do Filho como Verbo de Deus já era conhecido na época de João. E também afirma-se que o Espírito é o Amor do Pai pelo Filho que, de tão poderoso, torna-se outra pessoa divina. Assim se explica teologicamente este grande mistério, que a nossa potência racional não consegue alcançar, mas apenas a fé nos dá esta certeza.


Faz pouco tempo, eu li na internet uma matéria, onde se afirmava que a doutrina trinitária não foi inventada no cristianismo, mas é uma doutrina pagã, aproveitada pelo cristianismo. Diversas divisões protestantes negam a Trindade e algumas facções racionalistas do cristianismo também. Recusam-se a aceitar a Trindade, porque afirmam que na Bíblia, em diversas passagens, Yhvh afirma ser ele o “único” Deus e não pode haver outro. Afirmam ainda que em religiões mais antigas do que o cristianismo há também suas “trindades”, como por exemplo, no hinduismo, a trindade seria Brahma (deus da criação), Vishnu (deus da manutenção) e Shiva (deus da destruição). No antigo Egito, havia diversas “trindades”, como é o caso de Hórus, Isis e Osiris. Meus amigos, as pessoas que afirmam isso não conhecem a doutrina da Trindade católica. Esses exemplos pagãos são trindades (trios) de três deuses distintos, diferentemente da trindade unitária cristã, em que o Pai, Filho e Espírito Santo não são três deuses, mas são um único Deus. E também não a entendem aqueles que se justificam dizendo que Yhvh se apresentou como o “único” Deus, pois a Trindade é um único Deus, não há contradição aí. O que falta a essas pessoas é a “fidei suplementum”, isto é, o suplemento da fé, elas querem entender tudo apenas pela razão e confundem as coisas, assim como fez S. Agostinho, naquela famosa cena em que ele viu o menino tentando colocar a água do mar num buraco da areia. Depois que S. Agostinho percebeu o tamanho da sua ingenuidade e petulância, então fez uma descoberta fascinante. Intelligo ut credam, credo ut intelligam (entendo para crer, creio para entender). Assim, ele pode finalmente solucionar a sua dúvida.


Nas leituras litúrgicas de hoje, temos na segunda leitura, um trecho da carta de Paulo aos Romanos (5, 1-5), onde o Apóstolo ensina que “estamos em paz com Deus, pela mediação do Senhor nosso, Jesus Cristo... porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado. ” Paulo escreveu isso nos primeiros anos após a morte de Cristo, antes mesmo da escrita dos evangelhos, quando a doutrina da Trindade ainda estava em fase de elaboração, daí o seu ensinamento acerca da Trindade não ser tão direto como no evangelho de João, escrito muitos anos depois. Porém, vê-se o modo como Paulo demonstra a interligação entre as três pessoas divinas: o Pai criador, o Filho mediador, o Espírito que nos inunda. A comunidade de Roma, a quem Paulo se dirigia, era a mais eclética de todas pela própria condição da cidade, que era então a verdadeira capital do mundo e onde viviam pessoas das mais diversas procedências, costumes, idiomas e também crenças. Sem deixar de considerar que também, naquela época, o cristianismo era uma religião proscrita, perseguida, e só podia ser ensinada e praticada às escondidas. Paulo precisou utilizar a sua sabedoria para apresentar a fé na Trindade aos romanos de uma maneira que fosse mais apropriada para ser aceita. Por isso, ele explica da forma mais didática possível esta doutrina. Em Roma, havia muita influência da cultura grega nas classes sociais mais ricas, que eram o público preferencial da pregação de Paulo, dada a sua formação acadêmica. Paulo atendia às pessoas mais cultas, enquanto Pedro e os outros atendiam às outras comunidades.


Em resumo, Jesus é a chave para o conhecimento da Trindade. E, para concluir, uma breve lição de S. Tomás de Aquino: “A fé católica consiste em venerar um só Deus na trindade, e a trindade na unidade, sem confundir as pessoas, nem separar a substância; pois uma é a pessoa do Pai, outra a do Filho, outra a do Espírito Santo; mas uma é a divindade, igual a glória, coeterna a majestade do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo.


Cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

domingo, 5 de junho de 2022

COMENTÁRIO LITÚRGICO - DOMINGO DE PENTECOSTES - 05.06.2022

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – DOMINGO DE PENTECOSTES – 05.06.2022 – ESPÍRITO DE DEUS


Caros Confrades,


Mais uma vez, o ano litúrgico nos traz a celebração do domingo de Pentecostes. Encerrando o ciclo pascal, a vinda do Espírito confirma as promessas de Cristo aos apóstolos e marca o início oficial da primeira comunidade das pessoas de boa vontade, que acreditam n'Ele e se responsabilizam por levar adiante a sua doutrina. A cidade de Jerusalém foi o cenário dessa extraordinária manifestação. Naquele dia, a cidade estava cheia de visitantes, de peregrinos das mais diversas regiões da Europa e da Ásia, para celebrar a festa judaica, chamada Shavuot, ou festa das semanas, na qual os judeus comemoram a colheita dos primeiros frutos da terra e os oferecem ao Senhor. A vinda do Espírito Santo aconteceu em meio a uma das peregrinações judaicas mais importantes do ano. O escritor de Atos dos Apóstolos, o evangelista Lucas, com o detalhismo que lhe é peculiar, teve o cuidado de enumerar as nacionalidades dos presentes, conforme consta em Atos 2,9: partos, medos e elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Judeia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frígia e da Panfília, do Egito e da parte da Líbia próxima de Cirene, também romanos que aqui residem; judeus e prosélitos, cretenses e árabes, em resumo, habitantes de todo o mundo judaico e grego, desde o Oriente Médio, passando pelo norte da África, até a ilha de Creta. A presença de pessoas de diversas nacionalidades naquele dia demonstra o objetivo de Jesus acerca da universalidade da sua mensagem.


É interessante observarmos de que modo Deus conduziu a história da nossa redenção, fazendo coincidir as duas datas mais importantes da economia da salvação com as festas religiosas judaicas já existentes, de modo a deixar bem caracterizada a passagem do Antigo para o Novo Testamento. Assim é que temos a Páscoa cristã na data da Parasceve, a páscoa judaica, e o Pentecostes na data da Shavuot, a festa das semanas. Esses eventos confirmam o ensinamento de Jesus, quando disse que não veio mudar a lei, mas cumpri-la com perfeição. A celebração de Pentecostes vem substituir a festa das semanas, marcando assim o evento inaugural oficial da Igreja de Cristo. Com a vinda do Espírito, naquela tarde de festa, causando um grande barulho, o fato chamou a atenção dos visitantes, que acorreram ao local para verem o que acontecera, sendo ali o início oficial a Igreja de Cristo, com aquela memorável pregação de Pedro, que está narrada em Atos 2,2. Ali foi uma espécie de aula magna para convidados especiais, representando os povos de diversas nações e que, pela ação do Espírito, eles ouviram a pregação de Pedro no seu próprio idioma, funcionando a eloquência do Espírito como um tradutor instantâneo. A leitura do texto diz que os apóstolos passaram a falar em línguas diversas, mas na minha opinião, eles falavam a língua comum deles, o aramaico. O resultado, conduzido pela ação do Espírito, fazia com que os ouvintes, mesmo sendo povos falantes de outros idiomas, conseguiam ouvir e compreender a pregação de Pedro como se ele estivesse falando em suas próprias línguas. Foi esse o milagre operado pelo Paráclito, naquele dia memorável.


A presença do Espírito é que dá vida e sustentação à ação da Igreja de Cristo. Desse modo, embora a liturgia celebre a festa de Pentecostes apenas em um domingo do ano, devemos estar cientes de que a vinda do Espírito não foi um fenômeno que aconteceu só naquele dia, mas que continua a ocorrer todos os dias, em todas as comunidades cristãs, falando coletivamente, e em cada cristão, falando subjetivamente. Pelo sacramento da crisma, cada cristão celebra o seu Pentecostes particular, recebendo o Espírito já não mais em forma de língua de fogo, mas nem por isso de um modo menos abrasador. Pelo batismo, nós ingressamos na comunidade dos cristãos, mas é pela crisma que nos habilitamos verdadeiramente para o exercício do envio à missão, da mesma forma como aconteceu com os apóstolos, naquele dia de Pentecostes. São Paulo, na epístola aos Coríntios (1Cor 12, 4) diz que há diversidade de dons, mas um mesmo é o Espírito. Então, a missão de cada um dentro da Igreja pode ser diferente, mas nos anima e nos une o mesmo Espírito. Os cristãos ordenados, os clérigos, têm a missão de testemunhar Cristo e de anunciá-lo a todos, pregando a palavra e “presidindo” os trabalhos, seguindo na frente, exercendo a liderança da comunidade. Os cristãos não ordenados, os leigos, têm a missão de testemunhar Cristo e anunciá-lo a todos com o seu exemplo, com as suas obras e atitudes.


Ma mesma carta a Coríntios (1Cor 12,12), Paulo explica e exemplifica de maneira bem didática essa diversidade de dons, de carismas, de tarefas, através da analogia com o corpo humano: “Como o corpo é um, embora tenha muitos membros, e como todos os membros do corpo, embora sejam muitos, formam um só corpo, assim também acontece com Cristo.” É a conhecida doutrina teológica do “corpo místico de Cristo”, da qual já ouvimos falar tantas vezes, mas é sempre oportuno recordá-la, para que nos conscientizemos da função que cada um de nós deve assumir nesse contexto. Não é necessário fazer nenhum esforço, basta deixar agir o Espírito que está em cada um de nós, basta ouvir a voz da nossa consciência, que nos transmite a mensagem vinda do Espírito. Todos sabemos que o exemplo vale mais do que as palavras. Então, o nosso maior testemunho será viver o dia a dia como autênticos cristãos. Mais do que pregar, discursar ou discutir religião com as pessoas, o nosso maior testemunho será com o bom exemplo silencioso, coerente, convicto, que produz muito mais efeito do que certas pregações de palavras bíblicas ao vento, levadas por aparelhos sonoros.


Há um pequeno trecho do evangelho de hoje (Jo 14, 16), que eu considero bastante significativo: “...e eu rogarei ao Pai, e ele vos dará um outro Defensor, para que permaneça sempre convosco.” Nesta frase, eu destaco a expressão “outro defensor”. Em grego, temos “allon parákliton”, que São Jerônimo traduziu em latim para “alium paraclitum”. Primeiramente, consideremos a palavra “parákliton”. Essa palavra, em grego, deriva do verbo “parakaléô”, que significa 'convidar para ir junto'. Vamos aqui recordar uma praxe comum das culturas antigas grega e romana, na época em que não havia ainda os advogados. Uma pessoa, que fosse chamada para ir a um tribunal, podia chamar um amigo para “ir junto” a fim de ajudar na defesa. Esse é o sentido etimológico de “paráclito”. Então, a tradução simples de “defensor” não diz todo o sentido que a palavra original possui. O paráclito é o que vai com o amigo, que fica ao lado, que dá apoio e também defende, ou seja, é muito mais do que apenas um defensor. Agora, consideremos que o Espírito é o “outro paráclito”. O que podemos concluir daí? Que o primeiro paráclito é o próprio Jesus, que mesmo sem ser convidado, veio para ficar junto, para nos dar apoio e incentivo e também para nos defender. Mas a sua missão foi concluída, e agora ele volta e virá “outro paráclito”, cuja tarefa é dar continuidade em modo permanente à missão do anterior. A missão do “outro paráclito” é perene, por isso diz o evangelista: “para que permaneça sempre convosco”.


Meus amigos, que grande dádiva e que grande conforto é saber que o outro Paráclito vai permanecer para sempre conosco, nos inspirando, nos incentivando, nos defendendo. Na linguagem contemporânea, existe uma palavra inglesa que se usa até sem tradução em português, o termo “coaching”, que expressa, de certo modo, essa tarefa, sob o aspecto profissional. Pois bem, o Espírito é o nosso “coaching” espiritual, que nos acompanha na missão do dia a dia. E a pessoa que é mais assistida, porque é também a que mais necessita desse ajuda, é o nosso Papa Francisco, obstinado por construir uma nova Igreja. Faz poucos dias, a imprensa internacional deu destaque a um discurso do Papa, falando acerca do machismo presente na Igreja e da importância de uma maior participação das mulheres, inclusive em cargos no Vaticano. Ele nomeou, em novembro passado, uma professora italiana para a função de Subsecretária do Dicastério (uma espécie de Ministério) para os leigos e as famílias, sendo a primeira mulher a ocupar esse cargo. Certa vez, numa audiência com freiras, duas religiosas questionaram o Papa perguntando por que a Igreja Católica ainda faz discriminação com as mulheres e não permite que elas sejam diaconisas, como já foram nos primeiros tempos do cristianismo. O Papa, com a sinceridade e a simplicidade que lhe são características, topou imediatamente o desafio e disse mais ou menos assim: aí está uma boa ideia, nós precisamos compreender melhor com era a missão das diaconisas na igreja primitiva, eu vou designar uma Comissão especial para fazer um estudo sobre esse tema. A repercussão foi imediata e recebida com entusiasmo no meio feminino. A nova Igreja, que o Papa Francisco deseja, deverá ter como distintivo uma maior participação (sinodalidade) de todos e também, claro, das mulheres nas diversas tarefas eclesiásticas. A resistência ainda é muito grande, mas a ação do Espírito consegue vencer todas as barreiras e empecilhos.


Que nós saibamos reconhecer e dar ouvidos às mensagens de apoio e incentivo que o nosso Paráclito está diuturnamente a nos soprar. Apuremos os ouvidos do coração para conseguir isso.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos